quarta-feira, 1 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14428: Os nossos seres, saberes e lazeres (82): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte II) (Luís Graça)





Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror"Localização: Niederkirchnerstraße 8
10963 Berlin, metro:Potsdamer Platz ou Kochstraße


Exposições permanentes (em alemão e inglês) > das 10h às 20h, todos os dias, entrada gratuita

Interior >  Topography of Terror: Gestapo, SS and Reich Security Main Office on Wilhelm- and Prinz-Albrecht-Straße

Exterior > The Historic Site “Topography of Terror.” A Site Tour in 15 Stations


Mais de um milhão de pesoas visitaram em 2014 o Centro de Documentação  “Topograpia do Terror".... Durante o chamado  “Terceiro Reich” (1933-1945),  as instituições do terror nazi estavam aqui localizadas: a sede da GESTAP0, a Polícia Secreta,  das SS e da Segurança do Reich (na II Guerra Mundial)... Hitler e os seus colaboradores mais próximos tinham, por aqui perto, os seus gabinetes e mais tarde, com a guerra, os seus "bunkers"... Foi no seu "bunker", algures por aqui, que Hitler se suicidoou... Estamos a 1,5 km do antigo Reichtag (o parlamento que ois nazi incendiaram em 1933), e das portas de Brandemburgo...

No tempo da RDA (República Democrática Alemã) foi tudo arrasado... Hoje há apenas restos arqueológicos dos edifícios (de resto, destruídos pelos bombardeamentos e combates no final da II Guerra Mundial) e uma exposição permanente sobre a ascensão e queda do nazismo e os crimes, dentro e fora da Alemanha... Para que as gerações mais novas, na Alemanha, na Europa, em todo o Mundo, não esqueçam...

O Centro de Documentação e o espaço museológico à volta ficam a escassos 350 metros da cosmopolita Potsdamer Platz, com entrada junto ao edifício Martin Gropius... O muro de Berlim (1961-1989) também passava por aqui...

Passei algumas horas da tarde chuvosa de 21 de março a visitar esta exposição... A profusão e a riqueza da documentação fotográfica abarcam praticamente todos as dimensões do regime totalitário a que Hanna Arendt (1906-1975) chamou o "mal absoluto"... Saímos deste lugar acabrunhados... Mas ao mesmo tempo orgulhosos do que há de melhor nos seres humanos, os que souberam e conseguiram resistir: alemães e outros representantes de outros povos que tiveram a  coragem e a lucidez de lutar contra esta monstruosidade...

Aqui ficam algumas fotos (e respetivas legendas em inglês) que tirei da exposição, e que reproduzo,  com a devida vénia, com um fim meramente informativo e didático (*)... A "Topografia do Terror" é um dos locais da memória de Berlim, da Alemanha, da Europa e do Mundo, que é obrigatório visitar. O acesso é gratuito, e está aberto das 10h às 20h. (**).

Devo acrescentar que achei, de um modo geral, os berlinenses simpáticos e afáveis, dos meus contactos (superficiais) com eles, como turista... O turista é bem vindo a Berlim, o turismo cria empregos... Cerca de 14% da população de Berlim é estrangeira. sendo metade de origem turca... Em relação ao passado (nazismo, holocausto, guerra, muro de Berlim...) julgo que eles estão a saber fazer a gestão desses traumas.... Há uma expressão em alemão para isso: Vergangenheitsbewältigung, saber lidar com o passado... 

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados




1933> Hitler sobe ao poder... democraticamente, sob a República de Weimar,  para logo a seguir destruir a demcracia... A GESTAPO e as SS serão o principal instrumento do terror nazi.




1933 > O início do Reich dos Mil Anos... Desfile nazi, c. março de 1933




1941 > Mogilev > Conquistadores e conquistados...




Cartaz para o "Dia da Polícia Alemã" (1941)






Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída á resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!)  sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...



1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS,  feitas prisioneiras pelo exército britâncio... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.




1945 >  Berlim > Abril/maio... Captura de um elemento SS... 


1945 >  Uma criança nas ruínas de Berlim



Alemanha > 12 de março de 1945 > Cartaz de propaganda do exército dos EUA: granadas decoradas com as palavras "Feliz Páscoa, Adolfo" e "Ovos da Páscoa para Hitler".

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Guiné 63/74 - P14427: Os nossos seres, saberes e lazeres (81): Mau tempo no canal: do Faial ao Pico, ali perto está S. Jorge (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Pela primeira e talvez última vez na minha vida, fui duas vezes numa semana aos Açores.
Aqui vos deixo o relato da ida ao Pico, com mau tempo no canal, a montanha cheia de forro, impossível de fotografar, seria blasfémia reproduzir o que vem nas brochuras turísticas. Havia ventania a rodos, o avião foi parar à Horta, seguimos para a Madalena, passeei ao fim do dia.
Na manhã seguinte, deu para ir a S. Roque, havia luz, parecia que S. Jorge queria que eu lá fosse e eu cheio de saudades pelas férias que lá passei com as minhas queridas filhas.
Espero que gostem.
Estou sempre pronto para regressar àquelas ilhas de que me sinto cativo e nativo.

Um abraço do
Mário


Mau tempo no canal: do Faial para o Pico, ali perto está S. Jorge (1)

Beja Santos

A viagem da Portela até à aproximação do Pico foi muito agradável. Depois mandaram apertar os cintos, o focinho da aeronave enterrou-se no algodão das nuvens e avisaram aterragem para breve. Mas não houve aterragem nenhuma, parecia voarmos no vento ciclónico, subíamos e descíamos em autêntica montanha russa, o comandante pôs a aeronave a circundar à volta, certamente à procura de que aqueles amaldiçoados ventos cruzados desaparecessem. Foram minutos de suspense, avistava-se o Faial e S. Jorge, mais de perto e mais de longe, até que o comandante informou que íamos aterrar na Horta. Por pura coincidência, ia na altura na página 157 da quarta edição de Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, para mim a mais importante obra-prima da literatura portuguesa dos primeiros 50 anos do século XX, tudo isto é subjetivo, cada um responde pelos seus gostos, no que me toca não conheço melhor.

O comandante anunciou a mudança de destino e eu li no romance de Nemésio: “E o Pico sem tirar o seu capote e capelo das tardes acinzentadas em que parece haver fios entre as nuvens e os nervos”. É um romance soberbo, tem uma organização sem igual, famílias decadentes e ascendentes, amores malogrados, o território particular do triângulo Faial-Pico-S. Jorge, a região do Canal, transformado num território universal, com chuvas diluvianas, mar encapelado, os Dulmos, os Garcias, o Barão da Urzelina, o linguajar do povo, a Lisboa do ditador Sidónio, a tia-avó Secundina e a sua língua desbragada, as conversas cochichadas, os Clark, símbolo da presença britânica desde o ciclo da laranja, inevitavelmente a pesca da baleia, mas também há a peste, a vegetação e o tempo, o mau tempo do canal… Metaforicamente, a ascensão e a queda da riqueza, a sua passagem de testemunho, o romantismo em confronto com a industrialização e a fúria demolidora dos negócios, o misticismo religioso dos açorianos e a sua curiosidade intelectual, exposta no livro como expoente do naturalismo. Margarida Dulmo acaba por se envolver na pesca à baleia, um dos momentos mais empolgantes da escritura de Nemésio, o manejo talentoso do mundo local:
“Vendo a golfada de um grande cachalote perto, o João da Cezilha meteu a antegalha, arreou a vela e o mastro, que emechava de dobradice, e empunhou o remo de esparrela. Os baleeiros encaixando os remos no fundo da canoa, armaram as seis pás. E, sem pinga de sangue, contendo o fôlego, como uma quadrilha de gangsters à beira de um golpe desesperado, aproximaram-se do Leviatã”.
Uma pausa na obra-prima de Nemésio. Já estamos no cais da Horta, vamos de embarcação para a Madalena, na ilha do Pico. Toca de juntar material sobre o que está a viver e a ler.


A ilustração desta obra-prima é de outro mestre, neste caso das artes gráficas, do desenho e da aguarela, Bernardo Marques, felizmente que não está esquecido.


É uma das últimas recordações da arte dos baleeiros, estes trabalhos em osso, há hoje artífices que os reproduzem, são obras vibrantes da caça à baleia e da vida dura do caçador.



Estamos pois no cais da Horta, ao fundo avista-se o Monte da Guia, por detrás é Espalamaca, e depois Porto Pim, vem tudo no romance de Nemésio, as águas não estão revoltas, mas já se sente a ventania, dentro em breve holandeses, britânicos e alemães vão andar com estômago revoltado, vão ceder ao enjoo, tenham paciência, são trinta minutos de tormenta.


O que nos espera é isto, a lava batida pela fúria do mar, irei adormecer à noite com estes gemidos, por vezes roncos que tudo fazem estremecer. A montanha do Pico está encastelada de nuvens, dou a palavra a Nemésio: “O Pico estirava no negrume a sua enorme massa de lavas, que o dia costumava pintar docemente de lilás e de azul. O pico era aquilo: aquela Terra Santa aproada a Sueste e carregada de vinhas, de baldios, de barcos-de-boca-aberta, de bofage e de iscalho de baleia”. E ponto final neste extraordinário romance que se enrola na triste sina de Margarida Dulmo que juntará o seu nome aos barões da Urzelina, é a metáfora do velho nome com pergaminhos que se consorcia aos novos-ricos, tudo no triângulo do canal. E assim se chegou à Madalena, aqui nasceram o presidente Manuel Arriaga e o patriarca das Índias, D. José da Costa Nunes.


A Igreja da Madalena é singela, contempla o mar, e daqui a pouco o visitante vai ficar de boca abanda com os quilos de folha de ouro, não se brinca com o orago da terra, é tudo esplendor.


Altar-mor com a Santa a dominar o templo. É impressionante, e os azulejos também contam. E logo a seguir vem a grande surpresa para contento do viajante. Ora vejam.


Estes santos tinham também uma vertente didática, lembravam aos crentes a ascensão aos céus e a descida aos infernos. Mas o que aqui empolga o turista em viagem são as cores, os matizes e a advertência dos castigos. E fica a visita feita, a cicerone é natural para lá das Lajes do Pico, já avisou o viandante que temos pouco mais de uma hora de luz, é urgente retomar a viagem até à Criação Velha, espera ter uma agradável surpresa a dar ao seu acompanhante, quer mostrar-lhe o santuário de S. Mateus, prepare-se para o assombro.


Seguíamos viagem quando este contraste obcecou o fotógrafo amador, o contraste entre o amontado da lava e aquela luz diáfana entre nuvens em correria, dá para perceber porque existe este misticismo açoriano, esta espiritualidade sem rival, se não é assim é pelo menos a ilusão de quem capta a imagem.


Este é o moinho flamengo da Criação Velha, freguesia da Madalena. O viandante já andou a fotografar alguns currais, daqueles que fazem parte do Património da Humanidade, como decretou a UNESCO. O moinho está bem restaurado e muito bem situado, dá para imaginar o que foi a vida daqueles povoadores a conquistar uma natureza tão áspera, o terreno do Pico não tem paralelo com o das outras ilhas, aqui pontifica a lava e a montanha e florestas de faia e cedro, com muito incenso à volta. Este é o traço dominante da ilha que ganhou fama pela baleação e o seu verdelho, sempre presente à mesa dos czares, diga-se o que se disser o verdelho é o melhor aperitivo alcoólico do mundo.


A imagem é chocha, pretendia-se mostrar os currais e ao fundo a Criação Velha, ficou esborratada, havia necessidade de mais luz mas o fotógrafo amador estava tão embevecido com aquelas nuvens em viagem que pede desculpa pelo mal-entendido.


E lá fomos em correria até ao santuário, o evangelista parece caminhar para os céus, quem aqui entra vem cheio de devoção, acorrem crentes das ilhas e das Américas, é aqui que está o Senhor Bom Jesus Milagroso, abaixo da escala do Senhor Santo Cristo, mas que ninguém ponha em causa o seu poder de ajudar os aflitos.


A capela do santo não permite que seja fotografado, já para ali preside o lusco-fusco. Salva a situação a existência de pagelas, à disposição dos crentes. É esta pagela que nos salva da arrelia, pois era impensável ter vindo da Criação Velha, passando pela Candelária e chegar aqui a S. Mateus e não mostrar o seu orago tão estimado. E vem outra surpresa, nunca o viajante viu colunas tão floreadas, parece que estamos numa igreja da Toscana, o santuário excede-se em animação e cor.


Foi o que os últimos raios de sol permitiram, até se vê uma luz especial ao fundo do arco, foi a luz que atravessou a janela e que permitiu esta vivacidade, coisa rara em arcos e colunas nos Açores.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 31 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da Páscoa de antigamente na sua terra natal, Brunhoso.


Brunhoso há 50 anos

4 - A Páscoa

A Quaresma era o inverno das nossas vidas de meninos e adolescentes, depois do Natal, festa tão diáfana, tão alegre, do menino Jesus e da Sagrada Família, com prendas se bem que pobres, à medida da nossa pobreza mas que sendo as únicas, eram fantásticas. No período entre o Natal e o fim do carnaval havia tantas brincadeiras de garotos, o lançamento do pião, a bilharda, o arranca trigo, a louta, as raparigas tinham o jogo da macaca e outras. Logo após a terça-feira de Carnaval, essa grande festa pagã, com tanto desvario e diversão, caímos, mal dormidos como que empurrados por pecados que não sei se tínhamos cometido nas festas carnavalescas, na quarta-feira de cinzas, com missa bem cedo, era dia de trabalho, em que o padre Zé nos punha a cinza na testa, enquanto repetia a mesma advertência em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" - "Lembra-te ó homem que és pó e em pó te tornarás". Em termos teológicos e filosóficos, esta será uma afirmação discutível, mas este blogue não é um concílio de bispos, nem uma ágora ou assembleia de filósofos.

Nesse dia todas as pândegas e excessos vínicos dos homens e rapazes, bem como as nossas brincadeiras de garotos passavam a ser pecaminosas por ofender ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo que tanto terá penado por nós, no Monte das Oliveiras, nas ruas de Jerusalém, na cruz, no gólgota ou calvário, há mais de 2000 anos.
Dias negros e sombrios, entre o Carnaval e a Páscoa, que iriam marcar as nossas vidas pela tristeza e pela culpa, para todo o sempre. Todos nós meninos, garotos e jovens, mais ou menos inocentes, tivemos que nos arrastar por esse túnel longo e escuro.

A Igreja ancestral, a velha Igreja institucional, pecaminosa e libertina, do poder imperial, temporal e espiritual, da Roma sagrada, depois confinada ao Vaticano, das guerras santas e cruzadas, da arte e da opulência, marcou-nos a alma com ferro em brasa, a nós filhos de Brunhoso e de tantas outras aldeias do vasto mundo, por pecados que ainda não conhecíamos.

A Igreja comandava a nossa vida espiritual dentro da moral rígida que esses bispos e padres formados na escolástica de S.Tomás de Aquino e no cantochão igualmente antigo, falando, nas igrejas, esse latim clássico que ninguém entendia, mas que dava mistério e pompa aos rituais solenes que se celebravam em igrejas e catedrais.

A quaresma, esse tempo de luto, em que o padre e toda a igreja se cobriam de roxo, era o tempo da penitência, da abstinência, das cruzes, das bulas, da desobriga tão exigente sobretudo para os homens que fugiam à confissão, como o diabo da cruz.

Para divertimento dos rapazes e exasperação das mulheres mais velhas, havia nessa época o ritual que numa noite, que não recordo, percorria toda a aldeia, que se chamava "o serrar das velhas" que imitando o barulho duma serra manual e fingindo um prolongado carpir, iam recitando quadras, das quais só recordo uma: "Estamos no meio da quaresma, sem provar o bacalhau, serramos esta velha, como quem serra um pau".
Achei sempre este ritual desumano e violento para as avós da nossa terra, não faço ideia qual será a sua origem.

Antes da Páscoa, no sábado de aleluia, o ambiente começava a desanuviar, deixavam de se ouvir as matracas que na semana santa convidavam os crentes para as cerimonias religiosas, para dar lugar a alguns toques de sinos, ainda tímidos.

Os sinos tocariam com entusiasmo e continuadamente a partir da meia-noite de sábado. Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitara e isso era motivo de júbilo para todos os cristãos. Os rapazes não iriam dormir nessa noite, atarefados em enfeitar o campanário da igreja com as melhores flores que encontrassem no campo, e em manter os sinos a tocar durante toda a noite e todo dia de Páscoa.

Saídos dos grandes fornos de lenha, esses grandes pães feitos de farinha, azeite, ovos, presunto, linguiça e toucinho, abençoados com gestos e rezas por essas sacerdotisas, nossas mãe, avós, irmãs, eram, continuam a ser, melhores, mais saborosos e mais divinos do que o pão ázimo da Páscoa dos judeus.

A festa da Páscoa já estava a ser preparada pelas mãos das mulheres que na sexta-feira ou sábado, faziam os folares.

Os fornos, aquecidos com giestas e estevas, eram como altares de fogo onde a alma dessas mulheres se elevava em preces de amor à família e a esse Deus que ressuscitava.

A Páscoa era a festa das flores, os rapazes davam o tom ao enfeitar o campanário, a festa do folar, a festa da primavera, a festa da renovação.

Os rapazes, os mais felizardos, vestiam fatos novos, tal como as raparigas, vestidos novos, nesse dia.

De muito novo e já adolescente, lembro-me de ir com amigos, amigas, irmãos, irmãs, primos e primas, a comer o folar pelos lameiros dos vales cheios de flores primaveris

Em Brunhoso, no tempo do padre Zé, que terá pastoreado a aldeia quase tantos como o Salazar governou o país, não havia visita pascal, ou compasso. Depois da morte dele, foi para lá um padre da terra que quis instituir essa cerimonia. No primeiro ano acabou por entrar em choque com a tolerância do povo que não lhe perdoou a facto de não ter entrado numa casa onde o homem e a mulher não eram casados.

Durante muitos anos não voltou a haver compasso em Brunhoso. A Páscoa, sempre a associei a prados verdejantes e floridos, ao renascer das folhas, das árvores e das flores, à grande festa da natureza, à festa da primavera festejada por muitos povos antigos e modernos de muitas culturas e religiões.

Pelo sabor do folar, pelo repicar dos sinos, pela família, a presente e a que já partiu, pela beleza renovada dos vales e dos montes, gosto muito de Brunhoso no dia de Páscoa, somente não fui lá em dois anos da minha vida, foram os dois anos que passei lá longe, na Guiné do nosso descontentamento mas que apesar disso nos deixou tantas saudades.

Boa Páscoa, um abraço.
Francisco Baptista

Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P14425: Parabéns a você (882): Carlos Pedreño Ferreira, ex-Fur Mil Op Esp do COMBIS e COP 8 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14417: Parabéns a você (881): António Graça de Abreu, ex-Alf Mil do CAOP 1 (Guiné, 1972/74); Benjamim Durães, ex-Fur Mil Op Esp do BART 2917 (Guiné, 1970/72) e Rosa Serra, Alferes Enfermeira Paraquedista do BA 12 (Guiné, 1969)

terça-feira, 31 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte I) (Luís Graça)












Alemanha > Potsdam > Bassinplatz > 25 de março de 2015 > Memorial e cemitério militar russo, em Bassinplatz, na cidade de Potsdan, construídos em 1946, contendo os túmulos de 388 soldados e oficiais soviéticos mortos em abril de 1945 na luta pela conquista de Potsdam, a sudoeste de Berlim (mortos em combate ou posteriormente, na sequência de ferimentos graves em combate).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


Os russos foram os primeiros, dos Aliados,  a chegar a Berlim. A 30 de abril de 1945 um soldado soviético hasteava a bandeira vermelha no Reichtag. No seu bunker, a cerca de quilómetro e meio, Hitler suicidava-se uma hora mais tarde. Na manhã de 2 de maio, as forças alemãs, cercadas em Berlim, rendem-se aos russos...A cidade foi extensa e intensamente destruída. As marcas da guerra ainda hoje são dolorosamente visíveis para um turista atento como eu, que também participei numa guerra, embora dita de "baixa intensidade"... Na contra-ofensiva russa, seis milhões de soldados russos confrontaram-se, no final da guerra, com três milhões de alemães...

A cidade de Potsdam está, também, associada à  histórica Conferência de Potsdam que decorreu nesta cidade, entre 17 de julho e 2 de agosto de 1945, e em que os três representantes dos vitoriosos aliados da Segunda Guerra Mundial (EUA, Grã-Bretanha e Rússia) decidiram o futuro da vencida Alemanha, que se tinha se rendido incondicionalmente, no dia 8 de maio de 1945.

Potsdam é hoje a capital do estado federal de Brandemburgo (, com cerca de 2,5 milhões de habitantes). Faz fronteira, a leste, com Berlim, formando a região metropolitana Berlim/Brandemburgo. Potsdam, com cerca de 150 mil habitantes,   deve a sua importância ao facto de ter sido residência dos reis da Prússia e ao seu imenso património histórico edificado. O conjunto, englobando 500 ha de parques e 150 edifícios erguidos entre 1730 e 1916, foi classificado como  Património Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1990. O parque Sanssouci [ do francês, "sans souci", sem preocupação, sem stress...] e em especial o palácio Sanssouci, construído por Frederico o Grande, rei da Prússia,  em meados do séc XVIII, é o ex-libris de Potsdam.

Para além de ser um dos lugares mais turísticos da Alemanha, Potsdam é também um importante centro de investigação e desenvolvimento.  Fica a menos de 30 km de Berlim. Adorei visitar o seu "bairro holandês", para além da visita obrigatória ao parque e ao palácio Sanssouci, residência de verão de Frederico o Grande.  No regresso à estação de comboio, para voltar ao hotel em Berlim,  fui surpreendido por este memorial da II Guerra Mundial [, fotos acima]... E confesso que senti um estranho calafrio ao ver este conjunto escultórico em bronze, de estetética tipicamente estalinista...

Um dos soldados empunha uma pistola metralhadora  Shpagin PPSH 41, de calibre 7,62 mm Tokarev. com tambor de 81 munições...

Veio de imediato à minha memória o som, que nos era tão familiar, da "costureirinha" na Guiné, no meu tempo (1969/71) (**).  Não foi o único arrepio que senti em Berlim, na semana em que lá estive, de férias. Voltava lá cerca de 15 anos depois, desta vez com mais tempo e vagar para descobrir Berlim e os seus  arredores... (LG)

Guiné 63/74 - P14423: Blogpoesia (410): Sobre um poema de Herberto Hélder (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

 
 
1. Em mensagem do dia 24 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos de Herberto Hélder falecido recentemente. Homenageia também, e assim, todos os nossos camaradas que com a sua veia poética nos deliciam com os seus textos em verso.





Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

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Um lindo poema, copiado directamente da internet, em homenagem aos seu autor, que partiu hoje e nos deixou uma obra poética imensa para todos nós e para as gerações futuras.

O meu pesar e homenagem também a todos os poetas da nossa Tabanca que pela sua própria sensibilidade estão mais próximos dele.

Ao nosso grande camarada Luís Graça que tem uma grande alma de homem e poeta e que nos tem ajudado tanto a respirar, através deste espaço amplo que criou para todos nós, através da sua poesia, da sua prosa, do seu estimulo e exemplo de combatente.

Um abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14421: Blogpoesia (409): Meu Soldado Herói (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P14422: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (3): Eu e o malogrado fur mil mec auto Joaquim Araújo Cunha, da CART 2715, em Amedalai, em junho de 1970, de bicicleta a pedal




Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca)  > Subsetor do Xime > Amedalai (tabanca em autofesa e destacamento de mílícias) >  Junho de 1970 > O velhinho José Nascimento (1ª foto de cima) e o pira Joaquim Cunha.

Fotos: © José Nascimento  (2015). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de 24 de fevereiro último, enviada pelo José Nascimentoo (ex-fur mil art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) [, foto atual à esquerda] (*)


Caro amigo Luís Graça

Quando a minha Companhia saiu do Xime para Quinhamel, houve uma sobreposição de oito ou dez dias pela outra (CART 2715) que nos rendeu. Este espaço de tempo foi o suficiente para estabelecer uma certa amizade com um camarada de armas, a que nós vulgarmente apelidamos de "porreiro". Foi o furriel Cunha, mas nunca mais tive qualquer contacto com o rapaz, depois de deixar o Xime.

Mais tarde soube em Bissau que esta Companhia tinha sofrido uma grande emboscada em que tiveram vários mortos, entre os quais o furriel Cunha (**). Apesar desta amizade de tão pouca duração, foi como se um dos meus tivesse morrido e é com uma certa frequência que me vem à memória a imagem deste desditoso jovem militar.

Fur mil art, José Nascimento
 (CART 2520. 1969/71)
Por volta do ano de 1976, em casa de um dos meus irmãos que tinha o equipamento de fotografia e ao passar alguns negativos para a imagem real, pensando que era uma das minha fotos, surgiu-me à minha frente a imagem do Cunha a andar de bicicleta a pedal. Foi um nativo qualquer da população, que nos deixou dar uma voltinha.

Esta foto guardo-a com muito carinho. Foi tirada na tabanca de Amedalai, que ficava entre o Xime e Bambadinca, logo a seguir à Ponta Coli.

Em homenagem a este infortunado camarada e para que fique para a posteridade, quero publicar na nossa Tabanca Grande a sua fotografia.

Um grande abraço,

José Nascimento

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(**)  Furriel Mil Mec Auto Joaquim Araújo Cunha, nº 14138068; morto em 26/11/70 na Operação “Abencerragem Candente”; sepultado em Barcelos;

Vd. também postes de:

26 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10726: A minha CCAÇ 12 (27): Novembro de 1970: a 22, a Op Mar Verde (Conacri), a 26, a Op Abencerragem Cadente (Xime)...(Luís Graça)

8 de maio de  2012 > Guiné 63/74 - P9863: (De)caras (10): Relembrando o Fur Mil Joaquim de Araújo Cunha, natural de Barcelos, que pertencia à CART 2715 (Xime, 1970/72), e que foi morto de morte matada em 26/11/1970 (José Nascimento, CART 2520, Xime, 1969/70)

(...) Comentário do nosso leitor e camarada José Nascimento, com data de hoje, ao poste P1317:

Sou o furriel Nascimento, da CArt 2520 [, Xime, 1969/70], a Companhia que foi rendida pela Companhia do Cunha, aCART 2715 [, Xime, 1970/72].

Durante o período de sobreposição estabeleci uma relação de amizade com o Cunha. Quando soube da sua morte [, em 26 de novembro de 1970,] senti uma grande mágoa. 

De vez em quando a sua imagem vem à minha memória. Guardo uma foto dele tirada na tabanca de Amedalai, que quero publicar na nossa Tabanca Grande. (...)

(...) Comentário de L.G.:

Numa segunda feira, triste, chuvosa, depois das aulas, depois do tardio jantar, às 22.30, abro a caixa do correio e vejo o teu lacónico comentário a um poste já velho de mais de cinco anos e meio... Senti um estranho arrepio de frio que me atravessou o corpo de uma ponta à outra, ao ler a tua evocação do Cunha.

Parece que ainda estou a vê-lo... O Cunha, o Joaquim de Araújo Cunha, o pequeno e valoroso Cunha, ainda com o seu ar de criança tímida, era o único dos seis corpos que não estava desfeito pelos rockets. Tinha apenas um fiozinho de sangue na testa: o primeiro tiro fora, seguramente, para ele que ia à frente da secção, juntamente com o nosso guia e picador Seco Camarà. A imagem que retenho dele, era de alguém que caíra, exausto, em cima do capim... Quando cheguei à sua beira, ainda lhe dei uma bofetada, sacudindo-o energicamente:
- Acorda, meu sacana!

Como garante o Guimarães (da CART 2716, do Xitole), o Cunha que fez a recruta com ele e foi mobilizado para a Guiné no mesmo Batalhão (BART 2917), "deve estar no céu porque era um homem bom". Não acredito no céu, mas, se ele existe, o Cunha e todos os valorosos combatentes, como ele, que eram bons e que eram jovens e que morreram de morte matada, só poderão estar no céu... Nunca esquecerei também a última cerveja que bebi com ele, às tantas da madrugada, escassas horas antes daquela fatídica emboscada. Ainda hoje não consigo perceber por que é que fomos obrigados, pelo comando de Bambadinca, a fazer aquela maldita operação, com um nome de código esotérico... Três dias depois da invasão de Conacri!... E sobretudo a razão por que cometemos erros fatais no seu planeamento e condução...

O Cunha era natural de Outeiro, freguesia de Carreira, concelho de Barcelos. Está sepultado no cemitério local.

José Nascimento, camarada da CART 2520, com quem devemos (a malta da CCAÇ 12) ter feito algumas operações em conjunto, no Xime, obrigado pelo teu comentário e, antecipadamente, pela foto que nos vai enviar contigo e o Cunha. (...)


(...) Comentário dea nossa leitora Ana Silva:

Ana Silva disse...

(...) Sou sobrinha do Fur Mil Joaquim de Araújo Cunha. Apesar da mágoa, a minha mãe gostou muito de ler estas palavras e perceber que era acarinhado pelos colegas. Temos, ainda, guardadas todas a fotografias pelo que teremos todo o gosto em as partilhar. Obrigada. Cumprimentos para todos. (...)

Guiné 63/74 - P14421: Blogpoesia (409): Meu Soldado Herói (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 21 de Março de 2015:

Caros Amigos e Camaradas
Neste sábado 21 de Março – Dia Mundial da Árvore, da Floresta e Poesia.
Agora mesmo me lembrei ser o Dia Mundial da Poesia, fui à luta, sem armas, apontei para o teclado, após o almoço e disparei.
 Saiu isto…

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar


Meu Soldado Herói

Mário Vitorino Gaspar

“O Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate".
Antero de Quental, Sonetos

O Soldado Herói renasceu,
soluços arejados, ténue nevoeiro…
Corre, voa, voa primeiro…
Sorri beijos de nudez, voa ao céu.
És poesia, flor do poeta que passa.
Meu Herói Soldado de raça.

És alma, onda e luz,
tudo que gosto e gozo,
semente do grito valoroso,
nesta terra que reduz
as vozes e sons de quem exprime.
Meu Herói! És elo bem sublime!

Neste vazio de oca solidão,
nutres pelo inimigo, tua presa,
amor e sílaba de acesa tristeza.
A guerra existe! E será razão?
Seja extinta, está na hora
de amar, amar e sem demora!

Viaja nas nuvens, voa, anda cá:
Liberdade, Paz… Chegou o dia!
Deus… Deus, bem nos olhos lia
nos céus azuis, longínquos de lá...
Soldado, o sonho da paz, espera!
Nutres paixão e amor… e venera.

Canta, sorri cheiros de flores,
dá beijos e beijos de amor tanto!
Musicalidade, lágrimas de encanto,
cheiros de rosas floridas de amores.
Colorido volume de cor pintado:
Meu heróico guerreiro Soldado...

Decretada a paz, suculenta verdade
sumarentos rios e correntes de prata.
O mundo assinará pinceladas na acta:
– Paz, amor e sonoro suco da liberdade!
O Soldado ria o coração… E apertava
nas mãos os sonhos que sonhava.

Vamos escrever voos de aves no ar,
rir e pintar pétalas entre os espaços…
Soldado bebe sumo de beijos e abraços.
Ama sempre e semeia o verbo amar,
navega nos versos de marés cantando.
Corre, salta e pelo mundo voa amando.

Soldado! A arma que rói vida. Sei…
Tira-lhe os suores, e bem arrumada.
Não esqueças, jamais a vejas humilhada,
diz perto dela: descansa sempre te amei...
Meu Soldado olha os céus lá em cima.
Paz, Amor e Liberdade nos anima.

Anos somados. Velhos como os trapos?
Sonhar amigos perdidos, gravados na memória
Será conhecida e não esquecida sua história.
Homens de honra, pais, avôs e ainda aptos.
Negaremos Praça ao Soldado Desconhecido!
Lembrado só e sempre como Soldado querido!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14403: Blogpoesia (407): "Saio sempre de madrugada" (J.L. Mendes Gomes)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14420: E as nossas palmas vão para... (10): João Crisóstomo e António Rodrigues, amigos da causa de Aristides de Sousa Mendes (Parte II)



Título da reportagtem feita pelo jornal "Defesa da Beira", 1/10/2004




S/l> S/d > O presidente da República Jorge Sampaio, tendo à sua esquerda o João Crisóstomo e á sua direita o António Rodrigues




1. Segunda parte da mensagem de 31 de janeiro último, enviada pelo João Crisóstomo (*) [, aqui na foto com a sua esposa, Vilma, do lado esquerdo, com outro casal amigos da causa de Aristides Sousa Mendes; foto: cortesia da Fundação Aristides de Sousa Mendes]


Em 2004 eu queria que o nosso herói Aristides [de Sousa Mendes] fizesse parte da Galeria dos Heróis no prestigioso Museum of Jewish Heritage em Nova Iorque ─ depois de ter lançado a ideia de lembramos com relevância o dia 17 de Junho. o que foi feito com uma série de acontecimentos do Vaticano à China, de Portugal a Timor Leste , num total de 22 países durante essa semana…

Abrindo aqui um parênteses: para isto foi importante a ajuda do Secretariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na altura sob a direção do Sr. Embaixador Rocha Páris em Lisboa, e da Fundação Internacional Raoul Wallenberg em Nova Iorque, que muito me facilitaram os necessários contactos: nessa semana houve 34 missas, muitas delas celebradas por cardeais e outras eminentes figuras da Igreja Católica; serviçøs religiosos em sinagogas, e outros acontecimentos em colégios, universidades e outras instituições de cultura e ensino…

Ao 17 de Junho eu chamava "dia de Acção de Graças”, mas depois, por sugestão da dra Mariana Abrantes, começamos a chamar " O dia de Consciência", nome com que ficou a ser chamado desde então.

Consegui, entretanto, convencer o director do supracitado Museu [“Museum of Jewish Heritage"] a aceitar a ideia, mas ficou condicionada a que eu conseguisse trazer para Nova Iorque por um ano ou dois, para ficar em exposição, o livro do "Registo de Bordéus" e o carimbo com que Aristides carimbava os passaportes.

Consegui que o MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] aceitasse deixar vir o livro, mas faltava o carimbo (que no fim teve de ser substituído pela caneta de Aristides, já que não foi possível encontrar o carimbo). Mas na altura nós pensávamos que o carimbo existia em qualquer parte em Portugal. Aproveitei as minhas férias e, com o António Rodrigues, que sempre tinha sido o meu braço direito em todas as minhas campanhas e que tinha regressado de vez a Portugal, resolvemos procurá-lo.

Pedi o auxílio de Mariana Abrantes, de Luís Fidalgo e de António Moncada, neto do César (irmão gémeo de Aristides) em cuja casa suspeitávamos se encontrava esse carimbo. E lá andámos umas duas ou três horas, sem encontrarmos o carimbo.



No fim resolvemos "visitar" a casa de Aristides, que fica bem perto. Aí o António Moncada disse-nos que não, pois a casa não estava em condições de ser visitada por ninguém, pelo perigo que isso representava: havia um grande buraco no teto que havia caído (com uns quatro a cinco metros de diâmetro), e os "beams" (barrotes, é assim que se chamam, não é?), alguns deles ao caírem, fizeram buraco enorme em todos os andares até ao chã e outros barrotes, de todos os tamanhos, alguns enormes, estavam dependurados, numa imagem dantesca de ameaça e perigo.

Mas nós (eu e o António), que tínhamos vindo de tão longe, queríamos ver a casa de que tanto tínhamos ouvido falar ( a foto dela até fazia parte num artigo que escrevi em 1998 e que foi publicado em vários jornais) e insistimos com o Moncada e o Luis Fidalgo (que também como o Moncada era membro director da Fundação).

Finalmente acederam ao nosso pedido, mas que tudo seria por nossa conta e risco. Assim aceitámos. E lá entrámos, pés de mansinho, um após outro, olhando para o alto e para os lados com todo o cuidado. Verificámos que o enorme buraco estava situado mais ou menos no meio da casa, logo à entrada, mas com cuidado havia maneira de ver o resto da casa sem grande perigo.

Para nosso espanto apercebemo-nos que a casa parecia nunca ter sido sujeita a qualquer cuidado ou limpeza. E por respeito ao nosso herói nós resolvemos que a casa teria de ser limpa imediatamente e não sairíamos de Cabanas de Viriato sem que a casa de Aristides recebesse pelo menos uma limpeza geral.




Mais: começámos a pensar se não seria possível contratar um empreiteiro para consertar o telhado. Pensamos nós: se este buraco continuar assim, com as chuvas e ventos de inverno etc., a casa não vai aguentar mais do que dois ou três invernos… Viemos para fora para pedir autorização do que queríamos fazer e averiguar sobre empreiteiros locais, etc. Sucede que entretanto a nossa visita tinha despertado a curiosidade de alguns residentes de Cabanas; e, quando falámos sobre a ideia de reparar o telhado, falámos sobre orçamentos e viabilidades, etc.

Entre os presentes que tinham chegado ou estavam por perto foi-nos apresentado um empreiteiro, logo seguido de outro que também podia estar interessado e que nos podiam dar ideias sobre o que estávamos falando, dum possível conserto da Casa. Que era impossível reparar o buraco e não era possível fazer nada a não ser cobrir o telhado com uma "umbrella" de metal, até que fosse possível fazer uma reparação à casa toda. Essa cobertura de metal custaria pelo menos 20.000 dálares ( isto em 2004!), o que nós não podíamos dispender nem tínhamos disponível!




O António Rodrigues porém não se conformava, arguindo que se podia consertar o telhado, que a casa não precisava de cobertura nenhuma e que não era preciso gastar tanto dinheiro.

Perante a posição bem clara e declarada de que nada se podia fazer, o António Rodrigues, meio nervoso, deu-me um toque no braço de maneira a não ser ouvido por mais ninguém e diz-me: “Se eles não o podem fazer, então faço eu!”...

Eu, habituado a muitas outras ocasiões em que o António tinha feito "milagres" aqui nos EUA, apenas disse: “Eh pá, tu tens a certeza? Então estes que são profissionais acham que não há nada a fazer, tu achas que vais conseguir alguma coisa?!”… Ao que ele respondeu: “Deixa comigo. Eles estão a dizer que para consertar o teto têm de consertar a casa toda... Ora eu posso escorar tudo, partindo do chão até chegar ao teto e aí, depois de chegar ao teto, o telhado é fácil de consertar... Deixa comigo”.

Foi difícil de convencer, mas depois não só concordaram em nos deixar a "limpar a casa” que era tudo o que dizíamos ia acontecer, como toda a gente começou a oferecer os seus préstimos e ajudas: (i) um trator e um camião para levar as madeiras, pedras, tijolos, terra e lixo; (ii) além de virem eles próprios (e elas, pois se me lembro bem o trator pertencia a uma senhora que quando podia nos vinha ajudar) ao fim do dia para conduzir os mesmos; (iii) os escuteiros da escola queriam ajudar, o que tivemos de recusar pelo perigo de que não podiamos assumir a responsabilidade; (iv) o irmão da Mariana Abrantes, professor António Abrantes e sua esposa Ivone vieram-nos ajudar e connosco permaneceram até altas horas da noite para o que trouxeram holofotes para pudermos trabalhar de noite, como nós pedimos.




Os que não puderam ficar foram-se, mas o Luís Figalgo (advogado, e director da Fundação) nos garantiu, e cumpriu!, arranjar-nos um seguro contra acidentes, para o caso de nos acontecer algo (o que bem podia ter acontecido, dado a nossa coragem e entusiasmo em fazer o que estávamos a fazer).

Foi durante essa primeira noite, conforme depois saiu em todos os jornais e na própria RTP que também fez cobertura do acontecido, debaixo de grossa camada de terra e estrume de ovelhas e de galinhas, tudo misturado com caliça das paredes, pedras e tijolos, que nós viemos a encontrar o que os media chamaram de "tesouro na casa de Aristides": "documentos inéditos "encontrados"; "documentação encontrada surpreende investigadora", etc etc.; cartas de Aristides à sua mulher, de seus filhos para outros que já tinham emigrado para o Canadá; uma cópia de um livro, escrito por A. S. Mendes ainda por abrir ( à maneira antiga, tinha de se cortar as páginas com um "abridor de cartas"); e muitos outros pedaços de documentos, alguns ainda intactos, mas a maioria que se desfaziam em pó nas nossas mãos ao simples tocar, revistas e jornais do tempo...

Tudo foi entregue no dia seguinte em dois sacos de plástico à Fundação na pessoa do dr. Luis Fidalgo na presença da dra Lina Madeira, uma autoridade em A. S. Mendes que veio de Coimbra a correr, e de vários correspondentes presentes.

Voltando à "ad hoc" reparação do telhado e dos buracos nos andares até ao chão... Eu fiquei com o António Rodrigues três ou quatro dias comendo na cantina do lar para idosos, de que o Luis Fidalgo era diretor, e dormindo as primeiras noites na casa do Antnio e Ivone Abrantes, e depois num pequeno hotel local (ainda hoje não sei quem pagou a nossa estadia; o Luis Fidalgo disse-nos que estava tudo pago e não nos devíamos preocupar com isso). Tive de deixar o António sozinho e voltei aos EUA.


Fotos do jornal  "Defesa da Beira", 1/10/2004. Inmagens digitalizadas e enviadas pelo João Crisóstomo


O que o António fez e conseguiu depois, muitas vezes trabalhando sozinho, viajando todos os dias num camião bastante "usado" que um amigo dele lhe pôs ao serviço e onde trazia de sua casa ferramentas, materiais de construção como madeiras, barrotes, e tudo o mais que tinha e ele achava ser preciso para consertar a casa e o telhado... é coisa quase impossível de imaginar, não se tivessem visto os resultados.

A sua imaginação de arquiteto “ad hoc” - entre outros apelidos chamavam-lhe o "arquiteto sem canudo", "o milagreiro ambulante", "o americano maluco"...porque às cinco da manhã ele já estava, vindo de Aljubarrota, encarrapitado no telhado ou a trabalhar sozinho como um desalmado para remendar o que ele achava imperioso ser feito para que a casa aguentasse mais uns anos até se encontrar uma solução definitiva - levou-o a procurar nos arredores eucaliptos, telhas para o telhado ( iguais às outras do telhado, já difíceis de encontrar), materiais de construção, sobretudo barrotes e madeiras que precisava.

A sua franqueza e simplicidade desarmavam toda a gente que não podia negar o que ele queria, "para consertar a casa de Sousa Mendes"... Os troncos dos eucaliptos, não sei quantos, mas numa visita que fiz à Casa anos depois deparei com um bem grosso, barrando o meu caminho, escorando o andar superior, depois de rusticamente despojados dos seus braços/ramos, serviram para escorar os andares começando pelo chão...

E, um por um, cada andar foi escortado e consertado até chegar ao teto.... era preciso "ter a certeza” de que os barrotes originais no telhado å volta do buraco "ficassem bem ligados" para que tudo não fosse parar ao chão outra vez. E o António de vez em quando me falava nos anos seguintes nuns bons cabos que lhe faziam muita falta e que ainda estavam a escorar e segurar o telhado da casa de Sousa Mendes: “Quando consertarem de vez a casa, vou lá buscá-los, que eles ainda me fazem boa falta de vez em quando”…

E assim foi o que sucedeu. O António, acabado o teto, estava esgotado e só desejava e sonhava poder descansar. Faltava tapar as janelas com madeira para proteger um pouco mais da chuva e vento e ter a certeza de que as portas permaneciam fechadas. Assim pediu, como eu antes de me ir embora de volta aos EUA tinha já falado seria preciso fazer. Mas tal parece não ter sucedido.

A Casa ficou durante alguns anos em condições de ser visitada sem perigos dum barrote a cair na cabeça. Mas com o tempo e sem um "António'" a preocupar-se pela sua saúde, sujeita às intempéries, o telhado e o resto começou outra vez a cair aos bocados até que finalmente, quase no último minuto, a desesperada reconstrução das paredes, telhado e janelas, finalmente aconteceu..
Bem hajam quantos trabalharam e contribuíram para o que agora finalmente e felizmente vai já em bom progresso. Bem merecem uma placa em lugar de destaque. Mas nesta não se esqueçam de mencionar também o nome de António Rodrigues!

Não fora a intervenção "ad hoc", mas que veio a ser providencial, em 2004, deste apaixonado "arquiteto sem canudo" de Aristides de Sousa Mendes, não haveria nada a consertar mais, pois o que ainda restava e foi possível salvar, teria sem dúvida desmoronado completamente e tudo teria de ser reconstruido à base de fotos e memórias.


Nova Iorque, 31 de janeiro, 2015.

PS - Em anexo dois "recortes" de jornais : "Diário de Coimbra", de 8 de outubro de 2004; e "Defesa da Beira" 1 de Outubro 2004. As imagens [do jornal "Defesa da Beira"] parecem deixar muito a desejar, mas dão uma ideia do estado da casa com o seu enorme buraco, do teto ao chão;  e nos outros recortes, tens comentários do “Diário de Coimbra” sobre o que foram encontrar. 



António Rodrigues, ao "Diáriod e Coimbra, 8/10/2004.


Recorte do "Diário de Coimbra", 8/10/2004




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