CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
7 - LEVANTAR MINAS. PONTE INTERROMPIDA
5 de Maio de 1973 (sábado)
É a primeira grande saída do meu grupo de combate (GC) para o mato, em sobreposição com um GC da Companhia que viemos render. Ao todo somos cerca de 60 homens. Vamos fazer um levantamento de minas antipessoais (A/P) num troço do carreiro turra de Uane. Para o interceptar, saímos por trilhos e a corta-mato, como se fôssemos para o rio Corubal, lá muito longe.
Os “velhinhos” parecem confiantes, mas são pouco faladores, como já tinha notado antes. Se eu tiver dúvidas em relação à progressão ou relacionadas com o campo de minas, já sei que terei de estar sempre a perguntar e esperar respostas curtas. Mas esta operação para mim é muito importante, porque depois de eles levantarem as minas que lá haviam instalado, terei de ser eu a voltar lá, só com o meu GC, e instalar as minhas.
[Hoje não entendo porque ficou a zona desminada até eu voltar lá de propósito para voltar a minar].
Depois de chegados à zona minada, o pessoal ficou na orla da mata à distância e os especialistas, eu incluído, dirigimo-nos para o campo aberto onde passa o carreiro, a fim de o localizar. Croquis nas mãos, procurando referências no terreno e picando sempre, chegámos ao carreiro e às minas. Não tendo anotado na altura, não recordo quantas eram mas sim que nenhuma tinha sido accionada e que todas foram levantadas sem problemas, embora com alguma demora devido às questões de segurança a respeitar. Fiquei com a impressão de que a implantação era demasiado óbvia, e tinha deixado alternativas aos turras para as evitarem. É uma lição a colher. Aproveitámos para trocar impressões sobre os problemas relacionados com a época do ano em que se implantam as minas e se fazem os croquis, para não haver grandes surpresas se as formos levantar numa época diferente. (...).
O que mais me agradou nesta operação, e porque não estava a contar, foi termos saído dali em direcção ao rio Corubal e não de volta ao aquartelamento, como era suposto. Foram mais uns 13 quilómetros por mata cerrada que ia mudando de características à medida que nos aproximávamos do rio, cada vez mais bela e luxuriante. Sem querer abusar de efusões líricas, anoto que era assim a África do meu imaginário. Muito diferente da mata grotesca e irregular, intercalada de savana árida, que já conheço. Caminho com entusiasmo, esquecido de fadigas, e tento absorver aquela beleza e a paz que transmite, só perturbada pelo latir, ao longe, dos macacos cães, segundo me informaram porque, com ingenuidade, tinha perguntado se morava para ali alguém..., e os latidos parecem de cães a sério.
Rio Corubal e ponte interrompida.
Imagem retirada da Google Earth, tal como as duas seguintes, com a devida vénia.
Saímos da mata e deparámo-nos com um terreiro magnífico. Na nossa frente, ainda meio oculta, a surpresa que nos tinham prometido à saída do campo de minas: A PONTE INTERROMPIDA!
[Só muitos anos depois saberia o seu verdadeiro nome: Ponte Marechal Carmona. E, apesar de tantos anos decorridos, ainda hoje lamento não ter podido fotografar tudo o que vi ].
Entramos no tabuleiro da ponte e quase me emociono: tão longe de tudo, perdida no meio do mato, ali está uma obra portentosa e bela, a provar que naquele sítio remoto, houve gente a construí-la, houve gente a passá-la de uma margem para a outra do enorme rio.
Ponte interrompida e troço do tabuleiro que eu explorei.
Fico sempre impressionado quando, no meio do nada, encontro um vestígio da obra humana ainda que já inútil, como é o caso desta. Caminho ao longo deste troço da ponte atento ao estado de conservação, ainda razoável, do piso e das guardas laterais, até ficar perante o corte do tabuleiro onde a ponte é interrompida. Em baixo, o Corubal corre manso, como uma massa mole e negra que impressiona. A mata, nas duas margens, entra pelo rio dentro. Não se vislumbram pontos de penetração nas margens que indiciem travessias mas, dada a largura enorme do rio, não há certezas.
Pergunto aos graduados dos “velhinhos” quem cortou a ponte, mas não sabem dizer: «Diz-se que foram os sapadores da NT para impedir a passagem dos turras, mas também se diz que foram os turras para nos impedir a ligação entre Aldeia Formosa e o Xitole, Bambadinca, etc.». A hipótese de derrocada não é referida e, de facto, os cortes no tabuleiro parecem perfeitos demais para terem origem numa derrocada. Mas também é certo que se houvesse derrocada de pegões e o tabuleiro quebrasse pelas juntas, o corte pareceria perfeito. Ficará sempre a dúvida.
Ponte interrompida numa imagem Google Eart recente (2015), onde é visível um novo corte do tabuleiro, próximo da margem oposta. É por demais evidente que se trata de uma derrocada actual. Donde, apesar da longa separação temporal entre o primeiro corte e este, é de admitir que, afinal, a ponte ruiu simplesmente.
Chegamos a Nhala já tarde e exaustos. Para primeira saída para o mato, foi uma caminhada dura. Durante a formatura da ordem para verificações de segurança, antes do merecido descanso, tenho um dissabor com o meu GC que me deixou furioso. Os soldados andaram todo o dia carregados com as granadas de morteiro às costas e não levaram o respectivo tubo. Em caso de necessidade, apenas poderíamos municiar o pelotão “velhinho”! Como foi possível? Os furriéis não souberam responder, mas eram responsáveis por secções de homens e armamento. Certo é que o principal responsável fui eu. Mas o que mais me enfureceu foi ninguém me ter dito nada, a ver se passava, pois não acredito que ao longo de todo o dia não se tivessem apercebido da falha. Como lição valeu, e fica registada. Terei de estar mais vigilante.
(Ao transcrever notas como estas, bagatelas com mais de 40 anos, interrogo-me amiúde: que interesse tem tudo isto? E interessa a quem? Mas depois penso que é engraçado rever estas vivências com os olhos e o senso de quem já passou a barreira dos 60 anos. Éramos quase adolescentes, embora muitos com grandes responsabilidades. E pode ser que venha a ter ainda mais interesse para os meus descendentes. Sim, porque embora eu publique tudo isto no nosso Blogue, quiçá enfastiando os meus queridos camaradas, a razão última destas transcrições, (adiadas de ano para ano), é constituir uma espécie de espólio diarístico – não sei se lhe poderia chamar “diário” – a que juntarei as minhas fotografias, para os meus descendentes saberem algo mais desta fase da minha vida. Que nunca interessou à minha filha nem à restante família, nem aos amigos).
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala