CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
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Início de Maio de 1973 - Os devaneios e a crueza da guerra
Nos primeiros dias de Maio de 1973, associei-me a outro camarada e comprei um “estúdio fotográfico” a uma “sociedade” de alguns graduados da Companhia que viemos render. Não temos qualquer formação em fotografia mas o gosto e uma mini formação dada pelos antigos donos devem ser suficientes e, como eles dizem, aprendendo com os erros, pode ser que consigamos ter sucesso.
[Grande ingenuidade! Além do mais, nesta fase da comissão nem sequer possuía máquina fotográfica e o outro camarada também não. Acreditámos que seria suficiente processar os rolos dos “clientes” e depois vender-lhes as fotografias. É certo que, nalguns casos, pedíamos uma máquina emprestada e fazíamos tudo. Grande parte das fotografias em papel que possuo hoje, fui eu que as fiz e processei. Mas a ideia era aguentar a situação até às minhas primeiras férias e na Metrópole comprar uma máquina].
Pessoalmente, ainda que sem meios, sempre tive o gosto pela fotografia, talvez por as artes em geral fazerem parte do meu universo desde miúdo. Se conseguirmos pagar o investimento, tanto melhor. A maioria do pessoal da Companhia, como é evidente, são soldados sem grandes recursos, mas todos gostam de enviar uma ou outra fotografia à família e, para isso, arranjam-se sempre uns tostões. O “estúdio” está instalado numa pequena palhota da tabanca de Nhala, mas próxima do aquartelamento. Dispõe do equipamento e “mobiliário” essenciais e dos produtos reagentes e papel que, quando acabam, se mandam vir de Bissau. O ampliador eléctrico está em boas condições, apesar da muita humidade. Já percebi que os líquidos (revelador e fixador) devem ser usados a temperaturas controladas, mas aqui, mesmo de noite, é melhor esquecer o termómetro. Como também não há água corrente, vai ser preciso muito engenho e paciência nas lavagens do fim do processo.
[O tempo mostrou que o engenho e a paciência não foram suficientes. Com o passar dos anos as fotografias foram ficando cada vez mais brancas, resultado das más lavagens, com algumas boas excepções].
Mulheres de Nhala em data provável anterior a 1973. Revelei e fixei esta fotografia (e outras), a partir de restos de negativos deixados pelos anteriores donos do “estúdio”.
Autor desconhecido.
Estamos no início de Maio, recém-chegados ao interior da Guiné, e já a ideia de fazer do aquartelamento de Nhala a nossa casa, aconchego e conforto a cada regresso operacional, começa a parecer um devaneio. Mais ainda a ideia de fazer fotografia ou ter sossego para qualquer outra actividade lúdica: só devaneios.
Pairam negras e espessas nuvens sobre o futuro próximo da nossa Companhia e de todo o Batalhão. Batalhão inicialmente instalado para substituir no terreno o BCAÇ 3852, (que vai ter de prolongar a sua comissão), mas que já tem instruções para passar a actuar como força de intervenção, orientada para a região de Nhacobá. Ora, as notícias que nos chegam diariamente dessa região - aqui tão próxima - são as mais desanimadoras: minas, flagelações, contactos directos, mortos e feridos. Começou por falar-se na saída de um grupo de combate de Nhala em reforço de uma unidade dessa região, mas não vai ser bem assim: todos sairão, alternando-se.
[Julgo que foi neste período de grande constrangimento, que o Cap. B. da C. me comunicou uma informação que me deixou de rastos: a nível do território (todo?) estava a ser organizada uma grande equipa de sapadores e especialistas de minas e armadilhas para intervirem numa operação prolongada de desminagem nas matas do Cantanhês. Na altura nem sabia para que lado ficava isso, mas o meu nome estava indicado para integrar a equipa. Para me animar, o capitão disse-me que ia fazer todos os possíveis para o meu nome ser retirado. Não recordo o desenvolvimento desta acção no Cantanhês, tão pouco se chegou a acontecer, mas a verdade é que eu nunca fui convocado].
Nhala, Maio de 1973 – Eu e o meu estado de alma. Que era mais ou menos o retrato de todos, porque eu não era mais egocêntrico do que os outros.
[O meu estado de alma era tal, que em 10 de Maio de 1973 escrevia para a Metrópole uma carta azeda que, só hoje, dez anos passados (1983), me apercebo de como deveria ter sido duro lê-la cá, a frio, sem ter a noção do moral que imperava em Nhala quando ela foi escrita. Depois de fazer alguns comentários a umas notícias sobre o 1.º de Maio em Portugal (o último em ditadura) acabadas de receber numa carta que tinha à frente, dizia assim:
“ (...) Ultimamente ando com os nervos arrasados não sei porquê (!), e só me apetecia deitar a baixo, de uma vez para sempre, esta merda aqui e essa merda aí e toda a merda entre aí e aqui”.
Isto a uma dezena de dias de ter chegado a Nhala, pois as decepções e as más notícias estavam a acontecer com um ritmo vertiginoso. Creio que foi a partir desta carta que deixei de escrever para casa e para a namorada, atitude inqualificável, mas que na altura era a minha vontade de rotura com tudo e com todos, excepto os camaradas de infortúnio que tantas vezes me animaram. Recordo que, muito mais tarde, foi o Cap. V. da G., Cmdt. da Companhia de Cumbijã, que entretanto aí tinha conhecido, que, num regresso de férias da Metrópole me abordou em Nhala, onde me encontrava na ocasião, e me deu um duro e merecido correctivo, instigando-me a que escrevesse rapidamente para casa, onde todos estavam desesperados. Isto porque, antes de ter deixado de escrever, dissera ao meu pai que conhecera ali na zona o capitão V. da G. que era de Buarcos e que em determinada data estaria de férias na terra. E o meu pai, coitado, procurou-o para saber se algo me tinha acontecido. Ainda hoje tenho uma enorme dívida de gratidão para com o V. da G].
14 de Maio de 1973 (segunda-feira)
Até agora tudo normal, mas vai mudar. Dois grupos de combate hão-de ir para Aldeia Formosa: fizemos sorteio e calhou-me o azar a mim e ao alferes T.B. Em princípio previa-se que íamos tomar parte, directa ou indirectamente, numa operação de grande envergadura. Fala-se em 1500 homens.
15 de Maio de 1073 (terça-feira)
Saímos à tarde para Aldeia Formosa sem outro armamento que não fosse a G3, pensando requisitar à chegada a Aldeia, pelo menos morteiros de 60 mm, lança-granadas, granadas para as respectivas armas e dilagramas. À passagem por Mampatá fazem-nos descer da coluna, a mim e ao T.B. com os nossos Grupos de Combate, mais dois GC dos “velhinhos” de Nhala (CCAÇ 3400), e dizem-nos que iremos ficar aqui por tempo indeterminado. Em pouco tempo arrasei os poucos nervos que me restavam: ficamos aqui sem saber por quanto tempo, sem o armamento necessário, a maior parte do pessoal sem dinheiro e todos apenas com o que trazemos vestido. Soubemos depois que vínhamos reforçar a Companhia de Mampatá em serviços ao aquartelamento, na segurança às máquinas da Engenharia na estrada (para Nhacobá) e no reforço do aquartelamento de Colibuía (entre Mampatá e Cumbijã). À noite houve que sortear a ida de dois grupos para Colibuía e dois para ficarem em Mampatá: foi o T. B. com o seu grupo e mais um grupo da CCAÇ 3400 de Nhala e fiquei eu com o meu grupo mais outro da CCAÇ 3400 comandado por dois furriéis. Fiquei para os serviços ao aquartelamento e escoltas a Aldeia Formosa, e o outro grupo para a segurança às obras da estrada de Nhacobá. Posteriormente trocaremos de funções.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida