terça-feira, 30 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2015, o nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67), enviou-nos a continuação do seu trabalho a que deu o título de "Guiné, Ir e Voltar".


GUINÉ, IR E VOLTAR - II

Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem, alguns com máquinas fotográficas, não estavam ali para o fotografar, nem para lhe dar as boas-vindas, festejava era a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber o porquê de toda aquela agitação e da romaria em volta do aparelho. Caixas de uísque e tabaco, grades de cerveja espalhadas pelo chão e todo o pessoal a rodear um saco, o saco do correio. A pressa em abri-los, maços e maços de cartas nas mãos, Carlos Correia, Manuel Revés, ó Tomé, as mãos estendidas, estou aqui, meu furriel!

Em Cuntima, a Dornier acabada de aterrar. © Foto do autor.

É o alferes que vem substituir o Monteiro, não é? Bem-vindo a Cuntima! Um tipo de mão estendida, calções, camisa de caqui e havaianas, capitão Pato Anselmo, comandante da companhia. Estes são os seus camaradas, o alferes Adilson, mais conhecido entre nós por Didi e o alferes Ferreira, aquele ali é o doutor Lourenço, um açoriano da Terceira. Adilson, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar a cidade, os aposentos do hotel onde vai ficar, a casa de banho, mostre-lhe tudo.

Cuntima com o edifício do posto administrativo à direita. © Foto do autor.

Cuntima era uma rua, casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima e casitas de adobe atrás. A rua, uma recta de 200 a 300 metros, era a estrada de terra que ligava a fronteira com o Senegal a Farim, cerca de trinta quilómetros, com passagem por Jumbembem, mais ou menos a meio do trajecto.
No lado nascente, em frente a um antigo celeiro, que agora era a camarata do pelotão do recém-chegado, ficava a casa do comando, com um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e um compartimento que servia de posto de socorros e de capela quando vinha o capelão. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos, moradia de alguém importante na terra.
Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão, o médico e o 1.º sargento Torres, um senhor a rondar os 50 anos que se fazia acompanhar da mulher, a única senhora branca que ali habitava. À entrada, à frente do bar, o Fininho servia cerveja, uísque, leite condensado, água Perrier, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia num frigorífico a petróleo com aspecto de já ter arrefecido o suficiente para a reforma.
No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.
O Adilson era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com morte de familiar e heranças forçaram-no a vir a Portugal. Não havia forma de fugir, tinha que ser. E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme.
Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, não tem praias, mas tem bolanhas1, palmeiras, bajudas2, calor, que queres mais, o Ferreira, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, ar de indiano, à gargalhada.
Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos3 e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o café, o quiosque.
Guiné Portuguesa? Que é isso? Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, isto não é Portugal, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia.
Tirando a tropa, vivem em toda a Guiné para aí 50 brancos, no máximo, o resto da população são naturais da Guiné e algumas centenas de emigrantes que fugiram às secas de Cabo Verde! Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que acabas de entrar. E toma nota, há gajos em Lisboa que engordam com este negócio, a mercadoria somos nós. Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores. A minha posição é esta, muito clara, sou totalmente contra esta guerra, mas cumpro os meus deveres de oficial do Exército Português.
Depois desta introdução o Didi despediu-se e os outros mudaram o disco, começaram a querer saber novidades da metrópole.

O Tenente-Coronel de Farim insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, claro que sim, mas via-se-lhes na cara que a vontade não era muita, as pernas, contrariadas, a arrastarem-se, em fila de pirilau4, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito.
O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ferreira, e mais um episódio a sair aos bochechos.
Ao fim de uns dias, o alferes maçarico5 era um veterano de guerra, esteve no Como6 aqueles dias todos, os turras chateavam-no a toda a hora.
Ao jantar, à luz do petromax7, a presença do capitão baixava o tom das conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com voz baixa, ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Bedanda, Cacine, Cameconde. Flagelações, emboscadas, ataques, minas, baixas.

Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, o capitão deitou-lhe uma mão no braço, venha daí, vamos até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Mágicas, estas noites de África, não?
Porta fechada, viu-o estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha, o dedo a apontar.
A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Agora para cima, emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Esta madrugada, neste trilho tem que lá estar entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia e saia da zona rapidamente. Fale com o Furriel Covas, ele trata da logística. Boa noite.
A caminho do barracão, antigo celeiro, onde pernoitava com o seu pelotão, Faquina Fula e Faquina Mandinga, nomes absurdamente estranhos, misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que ainda trazia de Bissau.
Pôs o Furriel Covas ao corrente da missão, pediu-lhe que fosse ele a comandar.
Era a sua primeira saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Mafra, Carregueira e Santa Margarida e a G3 tinha-a experimentado pela primeira vez ontem, na pista, contra as garrafas vazias de cerveja dependuradas no arame farpado.
Deixe estar, meu alferes, eu trato de tudo, fique descansado.
Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, lá para o fundo, Bécaud cantava baixinho "Et maintenant", de outro saía música árabe e ressonava-se por ali fora com força. E Faquina Fula com Faquina Mandinga na cabeça, sempre a rodar, até adormecer.

Quando o Furriel Covas o acordou, mal se pôs a pé a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, ainda noite, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço e marmelada.
Puseram-se a andar, ainda não eram cinco da manhã. Dois guias naturais da zona abriam a coluna do grupo de combate, armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Furriel Covas, o pessoal não pode levantar os pés em vez de os arrastar? É, poder podem, os olhos pequeninos do furriel para ele.
Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o trilho é depois daquela bolanha, ali em frente.
Pouco passava das 7 instalaram-se ao longo das margens de um carreiro, uns deitados, outros de joelhos, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim e ficaram a aguardar que os turras aparecessem.
O tempo a passar, turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a passar pelas brasas, o sol bem alto a queimar, moscas grandes, peludas, a pousarem neles, e nem se ouviam. O Covas aproximou-se, apontou para o relógio, é quase meio-dia, hora de levantar a emboscada, vamos?
Curvado nas margens do caminho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viu pegadas e sinais de rodas de bicicleta.
Sim, pessoal passou aqui. Ontem, sim, pode ser, sinal fresco ainda, arriscou-lhe um milícia guineense num português difícil.
Este é um caminho que eles utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais, pensou. Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.
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Notas:
1 - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
2 - Rapariga, donzela, moça virgem
3 - Cais da Rocha Conde de Óbidos, de onde partiam os navios com tropas para África
4 - Coluna por um
5 - Designação pejorativa que era dada aos acabados de chegar. Com o tempo passaram a chamar-se piriquitos.
6 - Operação ‘Tridente’. No Como gastaram-se 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia, 550 granadas de morteiro, 8900 rações colectivas de combate e 4000 rações individuais, no meio de 15.500 garrafas de cerveja, 22.900 litros de vinho e do fumo de 10.100 maços de tabaco.
7 - Candeeiro a petróleo.

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Os dias em Cuntima

Andamos a enlatados, lulas, sardinhas e atum, há 3 semanas sem reabastecimentos. Não há frescos, acabou a cerveja e o vinho, há batatas e arroz. A proibição é absoluta de insistir com a população para vender galináceos ou cabritos. A situação não é inédita, já ocorreu antes e houve problemas com as queixas da população.
O Didi chegou agora de férias da metrópole.
Então como está Lisboa? O que é que se diz por lá?
O que se diz por lá, pá? O que é que querias que se dissesse? Que se falasse da Guiné e da malta? Guerra é aqui, pá, lá não há guerra! Na metrópole ninguém quer saber da Guiné para nada, querem lá saber da maralha. E em Bissau é a mesma coisa, não há lá guerra nenhuma, há é lá uns gajos empregados no QG que fecham a guerra deles às 5, saltam para a piscina, jantam no Grande Hotel e o resto da noite passam-na a jogar bridge na Associação Comercial.

A CCav 489 formada na estrada que atravessava Cuntima. © Foto do autor.

Estou aqui há pouco mais de dois meses, tiros só ouvi os da minha G3, quando a estive a experimentar contra as latas e garrafas, junto ao arame farpado.
Até agora tenho tido uma vida pacata, sem problemas. A calma é que é excessiva, pesa um bocado. Do posto de radio ouvem-se comunicações de várias unidades próximas relatando a ocorrência de rebentamentos de minas, contactos com a guerrilha, mortos, feridos evacuados.
Isto é mesmo um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga8, o ar abandonado de todos, tudo precário.

Poço de água aberto pela Companhia. © Foto do autor.

Há dias dei por mim a lembrar-me de qualquer coisa que, em tempos, li sobre a entrada do Exército Português na 1ª Grande Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches, não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, mal equipadas, mal armadas, desfalcadas de oficiais, as forças portuguesas ainda enfrentaram a falta de rendição das tropas na frente de batalha. De 9 para 10 de Abril, exactamente no dia em que iam ser rendidas, um ataque alemão pôs fora de combate o corpo expedicionário português. O aço alemão vinha de todo o lado às toneladas, as nossas tropas defenderam-se como puderam, mas não conseguiram evitar o desastre de La Lys.
Quem pagou? As tropas, claro. Um massacre9, os gases, as amputações, as vidas desfeitas. Depois despacharam-nos para a terra, umas lápides nas casas de alguns que morreram, nomes em ruas e monumentos a enfeitar praças de cidades, e depois nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos ainda.
Quantos dias faltam para a gente se ver livre desta merda? É o que se ouve a toda a hora, estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco da fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que vêem crescer nas fotografias, de tudo o que deixaram no Alentejo10 deles.

Grupo de combate com o antigo celeiro que lhes servia de camarata, atrás. © Foto do autor.

Depois de jantar uma sopa com batatas, arroz e uma rodela de chouriço, papaia e manga, sentamo-nos um pouco nas traseiras da casa que nos serve de messe, a olhar as estrelas. O calor sente-se, a humidade escorre pelo peito, pelas costas, todo o corpo escorre água. É tempo de aguardar que refresque um pouco antes de ir dormir. Ficamos ali, calados, a ouvir os ruídos da mata que nos cerca. Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras, num cadeirão de madeira, com a mata em frente. Olho o céu com tanta luz que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do barracão esmoreçam. A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, a recortar-lhe os traços.
A gente, mê alferes, quando chega fica assim, mais saudosa, depois, com o tempo, habitua-se, também não tem outro remédio, não é?
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo dos pensamentos, amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar os queixumes do capitão à mesa.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se aí no seu peito. Essas queixas não têm razão de ser na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo.
Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos.
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Notas:
8 - Dizia-se do suor característico dos nativos. Estes, por seu lado, diziam que branco cheirava a morto.
9 - Entre mortos, feridos e prisioneiros, o corpo expedicionário português sofreu mais de 7 mil baixas, sem contar com as registadas em África, onde só em Moçambique morreram 4811 militares. Notas recentes indicam que as baixas atingiram cerca de 36% dos mobilizados.
10 - Os soldados e cabos do BCav 490 eram, na sua maioria, originários do Alentejo.

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As noites

Ao fim do dia havia que preparar os petromaxes e acendê-los. Equipas deslocavam-se até ao arame farpado, conferiam as protecções, depois juntavam-se para jantar. No fim ficavam por ali um pouco à conversa até o amanhã de um e depois de outro. As noites entravam rápidas, o silêncio chegava com a noite, entrecortado por uma ou outra fala mais alta que logo esmorecia enquanto, de vez em quando, o vento trazia dos lados da fronteira os tantans de batuques de algures do lado de lá.
Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão entreaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão em frente, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida. Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.
As matas, escuras, misteriosas, rodeiam todo o aquartelamento-povoação.
Quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, cem metros chegava. Dedos com vontade no gatilho, entrarem, uma chacina nos tugas. Se não tivessem medo também. Algum dia vão perdê-lo.
De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Oeiras, Carcavelos, a areia do Guincho pelo ar, e o vento a levar-me por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, a ver o eléctrico, o 6, a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques.
A circunvalação, a via Norte, a recta do Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos às costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim.
E o sossego daqueles fins de tarde do último Setembro na praia dos sargaceiros, as marés cheias por volta das sete, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas, só agora?

Aqui não há mar, jornais da metrópole há, de há semanas, rodam entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Virgílio, o Vicente, o irmão do Matateu, o Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio 28 de Maio em Braga, nunca vira uma defesa assim!
E como é que ela vai reagir à carta? Que ideia, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera. Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes, da metrópole.

Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama.
Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira.
Silêncio, ninguém para o socorrer, só a sentinela a chegar-se.
Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada. Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos. Temos que estar sempre atentos!
Sangue na cabeça? O meu alferes bateu com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.

Posto de Comando e posto médico. Doentes que aguardavam a consulta. © Foto do autor.

Posto médico, manhã cedo, com nativos da tabanca e outros vindos do Senegal em fila para a consulta, o médico a atendê-los, cheio de paciência, para um ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro com a mão num frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro.
O que estás aqui a fazer? Praxado esta noite, ah?

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

Guiné 63/74 - P14813: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (9): De 16 a 19 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 25 de Junho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

9 - De 16 a 19 de Maio de 1973


16 de Maio de 1973 (quarta-feira) - Tudo é instável e provisório

O meu Grupo de Combate entrou de serviço às 6 horas da manhã. Entreguei-o à responsabilidade dos meus furriéis e, aproveitando uma coluna, fui a Aldeia Formosa pedir contas ao Cap. J. C. Cmdt de Operações) e falei também com o Major D. M. para saber qual a nossa futura situação e para me arranjar o armamento necessário. Fiquei a saber que não continuaremos aqui em Mampatá depois da “grande operação” (3 dias), [BALANÇO FINAL], e que o armamento só me será entregue à tarde, porque chegará num avião (Nord-Atlas) por volta das 17 horas. Fiquei para almoçar lá, regressando a Mampatá quase de noite com uma escolta e trazendo 2 morteiros de 60 mm e 2 bazucas (LGF).

Em Aldeia Formosa reina a confusão, devido ao do excesso de tropas e, talvez, falta de organização, tudo por causa da “grande operação”. Será o objectivo da “operação” a entrada em Nhacobá? [Naquela altura ainda era uma base do PAIGC e respectiva tabanca]. “O problema das estradas”: focar e desenvolver. [Nunca cheguei a desenvolver o tema mas, neste caso, não tinha muito que saber: alguém traçou uma estrada que vinha de Mampatá, passava por Colibuia e Cumbijã e entrava Nhacobá adentro. Estrada estratégica e de custos humanos muito elevados. Mas não tinha nada que saber!...].

À noite, uma trovoada colossal e bastante chuva. A trovoada é mesmo por cima de nós e eu estou sentado sozinho no alpendre da messe de sargentos enquanto eles, lá dentro, jogam às cartas, creio. Mas eu estou a precisar disto. Parece que estas descargas eléctricas me ajudam a descarregar a minha própria tensão. Por vezes cai um raio mais próximo e, nesses instantes, deixo de ver tudo à minha volta, enquanto o trovão ribomba com tal fragor que parece estremecer a terra e pulverizar tudo. De repente, um raio cai na minha frente sobre uma árvore enorme nos limites da tabanca, a não mais de cem metros. No clarão produzido ainda dá para perceber uma projecção de fogachos a partir do centro da árvore e o som de madeira a rachar. Quase a tactear, com a vista baça, saio dali e junto-me aos demais no interior. Chega de terapia. É um risco muito alto continuar lá fora.

1973 – Mampatá numa tarde de paz. Nem ciclones, nem tiros

17 de Maio de 1973 (quinta-feira) – Entrada em Nhacobá.

Da História da Unidade do BCAÇ 4513 transcrevo, eliminando algumas abreviaturas, a actividade operacional relativa a este malfado dia, pois que, por falta de informação concisa e disponibilidade de tempo, as notas do meu diário são parcas. É uma descrição tão sucinta e seca, - certamente como deveria ser -, mas que bem poderia descrever uma excursão lúdica da rapaziada a Nhacobá. Todavia, tratou-se de um verdadeiro embate militar, quer pela acção da CCAV 8351 no terreno, quer pelo impacto e significado em toda a zona : entrou-se em Nhacobá e expulsou-se o inimigo. Antes de transcrever, devo referir que só conheci a História do BCAÇ 4513 muito recentemente, mais de 40 anos depois do regresso e por gentileza do nosso camarada e Grã-Tabanqueiro Antero Santos (CCAÇ 18-Aldeia Formosa), a quem estou muito reconhecido. Interessante como só agora, ao lê-la, fiquei a conhecer detalhes e ocorrências passadas ali à minha frente mas que, naquela altura, de grande movimento e confusão, escapavam à corrente de informações passadas de boca em boca. Talvez por isto, noto algumas discrepâncias entre a referida História da Unidade e os meus escassos apontamentos. Ou nem só por isso:

“Para cada acontecimento os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um”. (Tucídides – historiador grego, 460 a.C. / 395 a. C.).


Da História da Unidade:

“17 (de Maio) – OPERAÇÃO “BALANÇO FINAL”. — Forças da CCAV 8351 atingem NHACOBÁ e capturam 13 elementos da população (7 homens, 2 mulheres e 4 crianças) e 1 SIMONOV. Às 12h00 e às 12h15 estabelecem-se contactos com Grupo IN estimados em cerca de 40 elementos, tendo as NT sofrido 3 feridos graves e 3 feridos ligeiros. O IN sofreu 4 mortos e vários feridos prováveis. Capturou-se 1 SIMONOV e material diverso.

- Este Grupo IN ao fugir encontra-se com a 3.ª CCAÇ. Estabelecido o contacto as NT sofrem 1 ferido grave e 5 feridos ligeiros e causaram 4 mortos confirmados, vários feridos prováveis e capturam 1 RPG, 3 espingardas KALASHNIKOV e diverso material.

- Devido a forte temporal, o NORD-ATLAS que veio efectuar a evacuação, manteve-se na pista de A. Formosa durante toda a noite e só ao alvorecer descolou.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos da estrada”.



Do meu diário:

Hoje, e até às 18 horas o meu GC continuará de serviço em Mampatá. Acordei com mais dois camaradas alferes de Mampatá, ao som de obuses (15 a 20 minutos), por volta das 5 horas da manhã. Mesmo no decorrer do dia não soube se tinham sido as NT a “embrulhar” ou a baterem zona, mas teve decerto a ver com a posterior entrada das NT em Nhacobá.

Soube que o camarada T. B. e restante pessoal em Colibuia não conseguiram dormir toda a noite, por causa das águas das chuvas. Colibuia não tem condições.

À tarde passaram aqui em Mampatá duas Chaimites a toda a velocidade, com feridos para Aldeia Formosa. Houve “contactos” com o IN entre Cumbijã e Nhacobá, tendo havido 5 mortos turras (a História da Unidade diz 4) e captura de material.

À noite um tornado limpou todo o pó aqui da zona e depois choveu muito. Com o vento caiu o telheiro das oficinas auto em cima de uma Berliet.

1973 – Emissor Regional de Mampatá e o marco do correio

18 de Maio de 1973 – (sexta-feira) – Nhacobá ainda a “arder”.

Da História da Unidade:

“18 (de Maio) – Novo contacto IN da CCAV 8351 que sofreu 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. O IN fugiu desconhecendo-se se com baixas.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada”.


Do meu diário:

Chuva gelada durante muito tempo. Hoje o meu Grupo vai fazer serviço de apoio à retaguarda (das acções em Nhacobá). Consta de percursos em viaturas entre Aldeia Formosa e Nhacobá e retorno a Aldeia Formosa, para escoltas e demais serviços, sempre que as situações o exijam.

Às 6 horas da manhã, aqui em Mampatá, entrámos na coluna que já vinha de Aldeia Formosa, com destino a Cumbijã, com o meu pelotão distribuído por uma Berliet e um Unimog. A coluna estendia-se por não sei quantos quilómetros e, em todo o percurso, nunca consegui ver a cauda e a cabeça da coluna ao mesmo tempo: muitas viaturas, muita tropa, muita Engenharia e muita pressa em acabar a estrada para Nhacobá. À chegada a Cumbijã soubemos que durante a madrugada tinha havido novo contacto da 51 do Cap. V. da G. com grupo IN: tivemos 2 mortos (a História da Unidade refere 1) e vários feridos. A situação era grave (em Nhacobá) e por isso a maquinaria da Engenharia foi já muito tarde para a “frente”. Durante todo o dia não parei senão para comer, pois a escolta a viaturas com feridos e a outras viaturas para Aldeia Formosa, e as idas ali para trazer material e rações de combate para os grupos da “frente”, não me deram descanso. a)

À noite doía-me a cabeça e estava cansado. Regressámos a Mampatá todos exaustos.

a) – Julgo que foi neste dia que assisti a uma cena terrível, passada com um dos evacuados de Nhacobá. Não tenho registos sobre isso, pelo menos nesta sequência cronológica, mas também não dava para registar tudo: eram demasiadas coisas. Mas aquela imagem nunca mais se me apagou da memória: na confusão de gente que entrava e saía da mata, muitas viaturas paradas, algazarra, enfim..., surgiu um soldado negro, provavelmente da CCAÇ 18, com um soldado branco às costas que berrava e esperneava como um louco ou como uma criança magoada mas com a força de um touro. Vinha mesmo enlouquecido. O resto não recordo, mas deve ter sido metido numa Chaimite e evacuado para Aldeia Formosa.

Certamente fiz a escolta dessa evacuação, que era uma coisa muito “engraçada” para me dar cabo dos nervos: as duas Chaimites arrancavam e eu, para as proteger, seguia atrás delas mas, quando chegavam a Aldeia Formosa, eu ainda estava a chegar a Mampatá. É certo que em caso de ataque no trajecto, eu aparecia logo com o meu grupo, mas... Mas que me irritava, irritava. Ou seria apenas a mania de contestar as ordens que vinham de cima? Digo isto agora, sei lá...

1973 – Mampatá e a estrada, ao fundo, que leva a Colibuia, Cumbijã e Nhacobá.

19 de Maio de 1973 – (sábado)

Hoje o meu Grupo ficou numa “pedreira” a proteger as obras da estrada e as máquinas da Engenharia, entre Cumbijã e Nhacobá. A estrada leva um grande avanço e as máquinas não têm descanso, mas a estrada só está alcatroada até Cumbijã. Regressámos a Mampatá às 14 horas. Dia sem incidentes.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

Guiné 63/74 - P14812: Inquérito online: O rio da minha... tabanca... O meu rio da Guiné, aquele que mais amei / odiei... Responder até ao dia 3 de julho



Rio Mansoa > Ponte destruída | Foto Carlos Fraga



Rio Mansoa > Bolanha e ponte  | Foto César Dias



Rio Corubal > Rápidos do Saltinho | Foto Albano Costa


Rio Cumbijã > Imediações de Cufar | Foto António Graça de Abreu



Rio Cacine > Corrida de sintex | Foto João Martins


Rio Udunduma > Jangada | Foto Renato Monteiro



Rio Cacheu > LFG Sagitário | Foto cmdt A Rodrigues da Costa | Cortesia de Manuel Lema Santos

Edição Blogue Luís  Graça & Camaradas da Guiné (2015). Direitos reservados


I. Mensagem enviada ontem pelo correio interno da Tabanca Grande:


Assunto - O rio da minha... tabanca

Amigos/as e camaradas:

Há um poema lindíssimo do Alberto Caeiro (um dos muitos heterónimos, como sabem, do genial Fernando Pessoa) que começa assim: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia" ... Podem lê-lo ou relê-lo a seguir, aqui, no sítio da Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro. (*)

Mas eu esta semana queria falar do rio da nossa... tabanca. Todos, ou quase todos, ou muitos de nós, também deixaram lá, na "nossa" Guiné, o seu rio de "estimação"... Em muitos casos, terá havido uma relação de amor/ódio... Não admira: estávamos em guerra, não em turismo...

Não vamos aqui discutir a diferença entre rios, rias, braços de mar... A Guiné tinha/tem, para além do deslumbrante (e de trágicas memórias) Corubal, outros rios (, de água doce e/ou salgada, ) que cruzámos, por onde viajámos, ou em cujas imediações fizemos operações ou estivemos aquartelados, do Cacheu ao Cacine... Noutros, mais pequenos (Udunduma, Caium, Armada ...), nadámos, pescámos, andámos de piroga... Enfim, quem não tem recordações dos rios, rias e braços de mar, a começar pelos nossos camaradas da Marinha ? Muitos de andámos fizemos uma ou mais viagem de de LDG, de LDM, de sintex, de piroga  e até  de "barco turra" (as embarcações civis que faziam a ligação a Bissau, nomeadamente no Rio Geba).

A sondagem desta semana é sobre "O meu rio da Guiné (o que mais amei/odiei)"... As hipóteses de resposta são;

1. Cacheu

2. Cacine

3. Corubal

4. Cumbijã

5. Geba

6. Grande de Buba

7. Mansoa

8. Tombali

9. Outro (o que corria junto do sítio onde estive)

10. Outro (não referido acima)

11. Nenhum


NÃO RESPONDAM por email, mas no blogue, "on line", ao alto, na coluna do lado esquerdo:

Só podemos dar uma resposta. A sondagem encerra no dia 3 de julho.

2. Aproveitem também para mandar fotos e histórias ligadas aos nossos rios da Guiné... Grandes e pequenos...



E se forem para férias, cá dentro ou lá para fora (, o que não está lá muito convidativo, o mundo está feio...) , mandem um "bate-estradas" (aerograma), a dizer que estão vivinhos da costa como a sardinha... (Até esta, infelizmente, está a desaparecer da nossa costa!).

Já inaugurámos a série "Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas" (**):

Um bom resto de dia... Bebam muito água... porque por estes dias vai estar uma brasa... Xicorações apertados, Luís Graça

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Notas do editor

(*) Cortesia de Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

In O Guardador de Rebanhos

In Poesia, Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

(**) Vd. poste de 26 de junho de 2015  > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 63/74 - P14811: Parabéns a você (929): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14805: Parabéns a você (928): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14810: (De)caras (22): Quando os autocarros (de Bafatá e de Gabu) chegavam ao porto fluvial do Xime com população e até com provocadores, simpatizantes do PAIGC... Um dia, já depois do 25 de abril, ía havendo uma tragédia: estava eu a montar segurança na Ponta Coli e os meus homens, fulas, quiseram fazer fogo de bazuca, em resposta às provocações da malta do autocarro (António Manuel Sucena Rodrgues, um dos últimos guerreiros do império, ex-fur mil, CCAÇ 12, Xime, 1973/74)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Pós-25 de abril de 1974 > Até aqui chegavam autocarros de passageiros!... Não dá para acreditar, diz o Valdemar Queirós, um rapaz do leste de 1969/70!... Mas com a com a nova "autoestrada", Xime-Piche (não sei se chegou mesmo a Buruntuma e a Pirada em 1974!), era já possível recorrer a autocarros de passageiros para transportar populção civil (, não tropa).

Foto ( e legenda): © António Manuel Sucena Rodrigues (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]



I. Mail que enviei ao António Manuel Sucena Rodrigues, em 26 do corrente:

António: Explica lá direitinho o que é que tu fotografaste no cais do Xime em "dia de barco"... Autocarros no Xime ? Bate certo  a bota com a perdigota ?  Não estamos a delirar ?... A verdade é que a tua foto, ampliada, não engana...

Tens a data da foto ?... Fico a aguardar o teu precioso esclarecimento. As fotos do macaréu são para outro poste..

Ab do camarada da CCAÇ 12, Luís Graça

II. Sobre a foto acima, também comentou o Valdemar Queiroz, ex-fur mil art, CART 2479 /CART 11 (Contuboel, Gabu e Piche, 1969/70) (*);

Que confusão, que grande confusão ver estas fotografias do cais do Xime.
Gente que vinha em autocarros de passageiros até ao cais para, depois, seguir de barco para Bissau ??? Em que ano foram tiradas estas fotos? 

Lembro-me, em 1969/70, como era perigoso ir de Bambadinca ao Xime. Só com grande segurança se ia ao Xime buscar frescos vindos de Bissau. Reparavamos como o Xime tinha 'embrulhado', se calhar na noite anterior.
Mas ver agora autocarro de passageiros, nem dá para acreditar. Extraordinário!


III. Resposta, pronta, no mesmo dia, do António Manuel Sucena Rodrigues  [ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74]

 Assunto: Autocarros no Xime

Luís,

1. Bate certíssimo. Nos dia de barcos destinados à população, por exemplo a Bor e mesmo a LDG (também havia barcos destinados prioritariamente a transporte de manadas de gado) havia autocarros que vinham de Bafatá (e não sei mesmo se vinham de Gabu), carregados de população (só população).

Tanto quanto pude observar, havia destes autocarros em Bafatá. Como sabes,  o cais do Xime era a única ligação da zona leste com o "resto do mundo". 

Este dia foi um dos dias de grande afluxo de população, Não era sempre assim mas quase sempre havia pelo menos um ou mesmo dois autocarros. Nunca andei em nenhum, eram civis e não tinham nada a ver com a tropa.

Esta foto deve ter sido tirada em março ou abril de 74.

Tínhamos um pelotão permanente, durante o dia,  montando  segurança na Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, daí ser possível viajar com alguma segurança na estrada [alcatroada].

Conheci a estrada Xime, Bambadinca, Bafatá sempre alcatroada e certamente havia pouco tempo, uma vez que ainda não tinha "remendos" e estava em bom estado. Já bem depois do 25 de abril, fomos um dia a Pirada (???) apenas passear (os capitães conheciam-se). A estrada era toda alcatroada até Gabu.

2. Tenho um pequeno episódio passado na Ponta Coli depois de 25 de abril, com um destes autocarros carragados de "revolucionários de ocasião" e em que me vi perdido para evitar um catástrofe humana. 

Foram nitidamente ao Xime apenas para provocar os militares da CCaç 12, que eram fulas e anti-PAIGC. Eu estava de serviço na Ponta Coli, de segurança à estrada, com cerca de 10 homens. Não havia barco nesse dia, logo não havia justificação para o autocarro estar ali. O autocarro aproximou-se, reduziu a velocidade sem parar (felizmente), e a rapaziada "revolucionária" irrompeu das janelas com os maiores insultos e provocações aos militares da CCaç 12. Estes ficaram indignados e quiseram mesmo abrir fogo. 

O autocarro seguiu até ao Xime enquanto eu os tentei acalmar. Passado cerca de 15 a 20 minutos regressaram com os mesmos insultos e provocações. Passei por dificuldades ainda maiores, pois os meus homens quiseram abrir fogo de bazuca. Eu era o único branco que estava ali e por isso indiferente às rivalidades políticas dessa ocasião. Não sei como consegui acalmá-los. O autocarro aumentou de novo a velocidade. Tinham ido ao Xime apenas para provocar desordem. Estávamos em plena época revolucionária.

Foi por muito pouco que a situação não descambou para uma catástrofe.

Tenho mais fotos do Xime que em breve enviarei.

Um abraço, Sucena Rodrigues (**)

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 Notas do editor:

(*) Vd, poste de 25 de junho de  2015 > Guiné 63/74 - P14797: Memória dos lugares (294): O porto fluvial do Xime, no final da guerra (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)

Guiné 63/74 - P14809: Blogoterapia (271): Não sabia que o tempo passava tão depressa (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 19 de Junho de 2015:

Carlos e Luís
Este é um pequeno texto de agradecimento a toda todo o blogue, que marcaram o dia 17 de Junho de forma tão gratificante para mim, tanto no luisgraça como no facebook.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

************

Não sabia que o tempo passava tão depressa.

Juvenal Amado atrás do cão da sua avó, com tias, tios, primo Hélder e a mãe

Em crianças estamos sempre desejosos de sermos adultos, depois a vida, os afazeres, as preocupações e as metas a atingir sorvem-nos o tempo, e os anos começam a passar cada vez mais acelerados.
O tempo é pautado pelas horas que parecem passar mais lentas na medida que nós esperamos por algo, que tem hora marcada. Eu exemplifico; no trabalho esperamos pela hora do almoço e pelo fim da jornada. Mas o dia não acaba aí pois há o filho que tem que ir à ginástica, à explicação de matemática, o jantar, o telejornal e finalmente aquele filme ou série da qual nos tornamos fãs, por vezes vá se lá explicar porquê. Assim passamos muitos anos da nossa vida a correr, a desejar os fins semana, as férias e o Natal mais os subsídios e, sem querer, estamos a desejar o envelhecimento, pois isso é a passagem do tempo.
Quando chegamos à reforma e dá-se o choque ao não termos obrigações laborais, nem horários a cumprir. Ouvem-se ao longe os sons as chamadas das sirenes da fábrica onde trabalhamos, convivemos, onde conhecemos a nossa mulher e fizemos planos para o futuro, onde estamos agora a chegar. Fica-se com sentimento de perda, de repente o nosso esforço de trabalho não é necessário e aí, a nossa idade começa a pesar sobre os nossos dias e os nossos actos.

É comum ouvirmos dizer que isto ou aquilo não lhe fica bem, que já não tem idade para isso, etc. Por estranho que pareça chegámos à idade da razão, onde os conhecimentos acumulados deviam ser uma mais valia para a sociedade, mas é nesse momento que passamos a valer menos e daí para a frente a degradação social e física não pára, uma vez que o golfe, o ténis, não estão ao alcance da esmagadora maioria dos reformados deste país, que mal ganham para os medicamentos, para alimentação e para o gastos básicos.
Mas não temos emenda. Continuamos a desejar acelerar o tempo, para a rápida chegada da pensão, da Primavera, do Verão, do fim de semana em que os filhos nos visitam e aqueles dias que passamos com os netos. É uma contradição, por lado não queremos envelhecer, por outro lado estamos sempre à espera que o tempo passe com os custos inerentes.

Feito este preâmbulo, aí entram em campo os amigos em carne e osso e os virtuais, que no dia dos anos nos mandam os seus votos de parabéns. Damos por nós, que no dia anterior estávamos inclinados não dar muita atenção ao assunto, talvez como auto protecção, pois quem não quer decepções não alimenta esperanças, a passar o computador a pente fino e ler o que nos mandam, a constatar que não se esqueceram de nós, que o telefone toca e a prova que afinal o fim do mundo em sentido figurado, não está ali ao virar da esquina.
Parece impossível, mas faz-nos sentir bem mesmo as mensagens de quem não conhecemos, mas que acabam por tornar o dia especial.
Para o ano há mais, se não correr qualquer coisa de mal e nesse particular tenho que fazer aqui um reparo quanto ao efeito agregador e distribuidor de afectos que o blogue tem e da forma que ele tem aproximado os ex-combatentes de todos os locais do nosso pais, no esforço da reconstrução do nosso passado.

Muito obrigado a todos que tornaram o dia mais radioso para mim e para a minha família.
Bem hajam.

Juvenal Amado
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Notas do editor

- Cabe aqui mais um pedido de desculpas ao camarada Juvenal Amado pela demora na publicação deste seu texto.

Último poste da série de 12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14605: Blogoterapia (270): Foi há já quarenta e um anos que essas mães e esses pais cumpriram tantas promessas pelos seus queridos filhos que partiram fardados para essas terras longínquas (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P14808: Bibliografia de uma guerra (73): Do meu livro "Paz e Guerra - Memórias da Guiné", excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1) (António Melo Carvalho, Coronel Inf Ref)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo de Carvalho(1), ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 ( e Bissum-Naga, 1969/70), actualmente Coronel Inf na situação de Reforma, com data de 16 de Junho de 2015:

Caro camarada,
Na sequência da colaboração prometida, junto envio um primeiro excerto do livro(2) que publiquei recentemente sobre a Guiné.

Um abraço
Melo de Carvalho


Do livro Paz e Guerra - Memórias da Guiné

Excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1)

António Melo de Carvalho

Agora, a mata era menos cerrada. Permitia um campo de observação e tiro razoáveis, fora de hipótese há umas centenas de metros atrás. Era assim possível colocar sistematicamente a segurança imediata à frente da área que estava a ser capinada.
Desde que há uns dias tínhamos ajustado o dispositivo de segurança às novas condições da vegetação, andava com o pressentimento de que algo de novo poderia vir a acontecer, por parte do PAIGC.
A aparente falta de iniciativa dos guerrilheiros perante a nossa estrutura, não estava a condizer com a sua habitual e quase diária agressividade. À distância de mais de quatro décadas, penso que andaríamos a ser observados, com o objectivo de identificarem as nossas novas rotinas.
Todas as manhãs, como responsável pela segurança, definia com os comandantes de pelotão, os respectivos sectores a ocupar, antes do início dos trabalhos. Para isso percorria com eles, a corta mato, a frente onde cada um se instalaria.
Tinha então que palmilhar umas centenas de metros na área que iria ser capinada e na que o fora no dia ou dias anteriores. Nestas caminhadas de preparação do dispositivo, tínhamos que nos desviar dos destroços mais volumosos das árvores e arbustos cortados, e do emaranhado da arborização que ainda aguardava os golpes certeiros das catanas desse dia.

Naquela manhã de 13 de Abril de 1969, procedia aos últimos retoques na estrutura de segurança à capinação e obras da estrada, com o alferes Pires da CCaç. 2312.
O Pires era na ocasião, na ausência do seu capitão, o substituto do comandante de companhia, como oficial mais antigo. Olhos bem abertos, como sempre, em particular com a máxima atenção aos pontos onde colocávamos os pés. O Pires atrás de mim a seguir as minhas pegadas, sempre que possível. Tinha de ser garantida a ligação entre os grupos instalados. Cada grupo não podia ter dúvidas sobre o posicionamento do grupo à direita e à esquerda, e conhecer bem os respectivos sectores de tiro. Percorríamos naquele momento a corta mato, era a regra sagrada a cumprir, a área que delimitava o fim da capinação do dia anterior, da que ia ser iniciada nesse dia.
Súbito como um raio, trovão violentíssimo, saído das entranhas da terra. Ficamos esmagados e sem respiração. Só a poeira, a envolver-nos por completo, ainda em movimento, perturbava o silêncio absoluto que se seguiu.
Numa fracção de segundo a consciência desperta.
Tinha sido um tremendo rebentamento mesmo por debaixo dos nossos pés. Senti-me projectado em frente e a cair de bruços. A visão reduzida a zero com a enorme e espessa nuvem de poeira à nossa volta. Respiração sufocada pelo pó e cheiro acre dos gases da deflagração.

Apesar de meio cambaleante, levantei-me de imediato. Por instinto, movimentei as pernas para me certificar de que ainda lá estavam. Elas e os pés. Felizmente vi-as a mexer, obedecendo à minha vontade. E então lembrei-me que não vinha só. Olho para trás, à procura do Alf. Pires. Apesar da visão ainda meia turva, o quadro que se me deparava deixou-me atordoado. Na cratera da mina que esperava por nós, no intervalo da minha passada, deduzi depois, jazia uma figura de contornos imprecisos, imóvel e silenciosa, enrodilhada em poeira cinzenta. Se alguém mais nos estivesse a acompanhar naquele momento, ser-me-ia totalmente impossível identificar a quem pertencia aquele corpo. Mas estávamos só nós dois. Era o Alf. Pires. Um dos pés tinha desaparecido. O que restava da perna, a seguir ao joelho, era uma banana meia descascada. A brancura da tíbia e perónio furava entre as massas musculares, toscamente arregaçadas em escuras tiras, quais tentáculos de cefalópode depois de dominado pelo pescador. Quase cobriam o joelho. Por detrás de uma máscara de terra e pó tentava-se adivinhar um rosto. Não se distinguiam olhos, nariz ou boca. A farda, um farrapo esburacado. À primeira vista, não aparentava encobrir mais ferimentos graves. Por estranho que pareça, e para mim foi, não se via sangue naqueles instantes. Nem na perna nem no rosto, nem em qualquer outra parte do corpo. Estaria vivo, estaria já morto? Fiquei na dúvida, naquele momento. Enquanto há vida há esperança, pensaria eu. De facto havia. Um quase sopro de vida diz-me que o Pires ainda cá estava. E uma tentativa de sílabas. Quase uma palavra. E mais outra. Um fio de voz muito baixa e resignada. Daquela vida que pressenti em fase terminal, começava-se agora a perceber um ténue lamento,
Meu capitão vou morrer …, meu capitão vou morrer …,
Era o murmúrio sereno que lhe saía da boca.
[...]
Mas aqueles vinte e dois anos que, por ironia do destino, se completavam naquele dia 13 de Abril de 1969, não acabaram ali.
[...]
Assalta-me agora o consciente, a mais de quarenta anos de distância daquela manhã, a conversa recente com uma irmã do Pires. Vive em Lisboa. Foi localizada graças à internet e ao meu amigo Magalhães, antigo comandante do 2º GComb. Com ela tive oportunidade de conhecer algo mais do Pires do que os contactos esporádicos durante cerca de dois meses permitiram, no início da nossa comissão na Guiné. Cego das duas vistas, sem testículos, sem uma perna, foi evacuado do Hospital Militar de Bissau para o Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, dois dias depois do rebentamento, por sinal no mesmo voo em que regressava a Lisboa o então Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcelo Caetano, após uma visita à Guiné. Ainda falou durante a primeira metade da viagem. Depois calou a boca para sempre.
Era o mais novo de quatro irmãos. Ficaram sem mãe quando o Pires tinha dois anos. Foi a irmã, Margarida Pires, que a partir daí passou a ser sua mãe. Enquanto falava comigo, os olhos fugiam-lhe com frequência para a fotografia em ponto grande, do irmão fardado de uniforme nº1. Enchia o “hall” de entrada da casa, em Lisboa. “O ingénuo entusiasmo com que o meu irmão foi para aquela guerra!…”, lembrava ela. Era todo força e desenvoltura física. Tinha feito o curso de rangers em Lamego. Passado o primeiro ano de comissão na Guiné, veio de férias. O irmão que tinha partido para a guerra não voltou. No final desses dias de descontracção, se pudesse não regressaria. Nunca o disse explicitamente. O rosto e os prolongados silêncios, não deixavam margem para dúvidas sobre o seu estado de espírito, recordava a irmã.
[...]
Em meados de Maio de 1969, chegou-nos a notícia do fim do Alferes Pires no Hospital Militar de Lisboa. Segundo o relatório médico, a causa imediata da morte teria sido uma pneumonia dupla.
[...]
Após este contacto directo com a crueza da guerra, durante muito tempo na minha cabeça:
-Porquê ele e não eu?
Até esse dia 13 de Abril de 1969, uns tiros de arma ligeira e uma ou outra roquetada ou morteirada, sem consequências graves. Agora era o contacto com a morte iminente. Na ocasião, recebi este acontecimento como um cartão de visita das mãos do PAIGC, dando-me as boas vindas àquele palco. As rotinas estavam identificadas. Hoje tenho a certeza que o alvo da mina não era o Pires.
Foi a primeira e uma das principais situações, em que a estrela da sorte me acompanhou naquela guerra.

Afinal também havia minas fora dos trilhos!
[...]
____________

Notas do editor

(1) - Vd. poste de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14665: Tabanca Grande (464): António Melo de Carvalho, Coronel Inf na situação de Reforma, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), Grã-Tabanqueiro 688

(2) - Paz e Guerra - Memórias da Guiné, por António Melo de Carvalho (http://www.memoriasdaguine.com)

Último poste da série de 30 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14548: Bibliografia de uma guerra (72): Do meu livro “O Corredor da Morte”, rebentamento de uma mina PMD 6 (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
As memórias que o antigo presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau nos deixou foram notas, na maior parte dos casos, sincopadas e a requerer enchimento e aprofundamento de análise. Nos seus discursos encontramos, por muito que a afirmação surpreenda, um homem entusiasmado mas lúcido, ciente das limitações mas confiante que estivesse próximo um virar de página e que a Guiné-Bissau viesse a provar um ciclo prodigioso de desenvolvimento. Não foi assim, como é sabido. E a obstinação no tabu da unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se numa noite de golpe de Estado que deixou na maior das desorientações todos aqueles que tinham confiado no sonho de Amílcar Cabral.

Um abraço do
Mário


O regresso das memórias de Luís Cabral (3)

Beja Santos

Em “Memórias e Discursos”, temos oportunidade de reler algumas peças políticas de Luís Cabral entre 1973 e 1980 e de conhecer os textos esparsos que terão constituído o seu bloco de notas para a redação de uma obra de fôlego onde podia ter justificado os tempos da sua liderança política à frente dos destinos da Guiné-Bissau, Fundação Amílcar Cabral, 2012. É interessante verificar, quando se releem os seus discursos, a ênfase posta na unidade Guiné-Cabo Verde, no elogio permanente à luta da libertação, à política de não-alinhamento, à evocação dos heróis. Revela um político lúcido e bem informado, sabedor que a Bissau do pós-guerra é uma cidade com excesso populacional, incita-a a regressar aos campos. E se diz que a corrupção e o oportunismo eram armas utilizadas pelo inimigo para impedir que as populações dos centros urbanos se juntassem aos combatentes do PAIGC, dirá mais adiante, em 1978, que uma parte do património público parece estar a saque. Di-lo num discurso no dia do trabalhador, em Contuboel: “Temos que criticar aquelas pessoas que se aproveitam do trabalho do nosso povo, que roubam coisas da nossa terra. Hoje, dia dos trabalhadores, quero louvar os trabalhadores do nosso serviço da Segurança que conseguiram descobrir os ladrões que estavam dentro dos Armazéns do Povo”. Dirige uma saudação aos agricultores, aos trabalhadores das serrações, aos pescadores, refere empresas que em breve cairão no descalabro por má gestão, por roubos, por falta de matérias-primas, por megalomania.

No discurso do fim do ano de 1979, volta a referir-se a incúrias e insucessos, e põe o dedo do inimigo dentro da própria cidadela, os que não chegam a horas, os que não querem trabalhar, os faltam escandalosamente ao dever: “Há pessoas a quem podemos confiar qualquer bem do Estado ou riqueza da nossa terra porque sabemos que o vão defender e preservar e que, quando adquirimos um carro, um trator, uma máquina ou qualquer material para o nosso trabalho, é preciso estimá-lo. Há indivíduos que pegam num carro, fazem duas viagens e arrebentam-no. Muitas vezes um barco que pode durar dezenas de anos, depois de dois ou três meses é posto de lado por falta de cuidados. Se fizermos um balanço de tudo aquilo que destruímos durante estes últimos cinco anos, todos os carros, barcos, parece-me que se fosse possível recuperar esse dinheiro poderíamos fazer grandes investimentos nesta nova década que vai começar agora”. Volta a referir-se ao subemprego na capital e aos vagabundos e ladrões que perturbam a tranquilidade das pessoas.

Outra tónica que acompanha os seus discursos prende-se com os grandes projetos, grande parte deles dependentes da ajuda externa. E também não ilude o grande quadro de carências. Por exemplo: “Temos problemas graves no domínio das infraestruturas. Há ainda algodão que fica em tabancas longínquas do país por não haver estradas convenientes. Ainda temos problemas com portos, estradas, pontes, jangadas, mas também com escolas e hospitais. Mas sabemos que somos capazes de resolver esses problemas. A situação hoje, para todo o indivíduo sério, honesto e patriota, é de longe melhor do que aquela que encontrámos no momento do fim da guerra”. Mais otimismo e crença nos amanhãs, não era possível manifestar.

E depois assistimos a uma entrevista que se realizou em Miraflores em 10 de Fevereiro de 2000. É inconcebível como se publica um texto destes, é verdadeiro desconchavo, a despeito de algumas tiradas sentimentais, de recordações cheias de evocação e ternura. Luís Cabral fala da sua infância em Cabo Verde, depois da vida em Bissau, dos balbucios da luta nacionalista. Tudo decorre num tom altamente estimável, e de repente são frases cortadas, risos, reticências, tudo atinge um ritmo desmandado e questionamos qual o benefício que esta entrevista traz à imagem do lutador e do político. E tudo finaliza com azedume e ressentimento, Nino Vieira está no centro das queixas do político exilado, quando ele diz: “Aquilo que é preciso muita gente dar a sua contribuição para se fazer, um homem só pode estragar. Começasse a criar toda aquela insegurança, porque depois de um longo período colonial cria-se no indivíduo uma insegurança. Então, ele segue, que muitos seguem o caminho mais fácil para conseguir algumas coisas. Na Guiné, chegou-se a um ponto quem não andasse atrás do Nino não tinha hipótese nenhuma”. E a entrevista termina abruptamente.

Os estudiosos da luta da independência e do primeiro ciclo da governação da Guiné-Bissau deparam-se com silêncios, lacunas, desaparecimento de documentos a um ritmo incrível. Ninguém sabe onde param as peças fundamentais do julgamento dos acusados pelo assassinato de Amílcar Cabral. A guerra civil de 1998-1999 fez desaparecer importantíssima documentação, e mesmo documentação de Amílcar Cabral quando veio de Conacri também desapareceu. Fica-se com a ideia de que Aristides Pereira deixou na penumbra inúmeros factos. A historiografia recente é difusa, incompleta e por vezes incongruente. Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa precisaram de vir estudar para Portugal para legar à posterioridade os documentos valiosos que produziram. Um homem talentoso como Carlos Lopes é um alto funcionário das Nações Unidas e parece que não voltou a escrever mais. Os velhos líderes vão desaparecendo e o seu testemunho não fica registado, os primeiros-ministros e ministros também parecem esquecidos que os seus registos seriam da maior utilidade. Ficamos circunscritos aos jornais e aos blogues para conhecer a contemporaneidade. É lastimável que não se consiga pôr cobro a tanto corredor escurecido da história recente da Guiné-Bissau. Oxalá que este promissor novo ciclo da vida democrática altere esta atmosfera de medos e terríveis cumplicidades.
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Nota do editor

Postes anteriores de:

22 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
e
26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14798: Notas de leitura (731): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14806: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte III: O grave acidente com arma de fogo que vitimou o Uam Sambu, do Pel Caç Nat 52, na manhã de 1/1/1970



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 > Uma enfermeira paraquedista prepara o moribundo Uam Sambu para a evacuação para o HM 241...  O camarada, de costas, com o camuflado todo ensanguentado é o Mário Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat  52, de acordo com a identificação feita pelo fotógrafo, o Jaime Machado.  À saída da Missão do Sono, em Bambadincazinho, o Sambu foi vítima de um grave acidente com arma de fogo que lhe custou a vida. Esta foto, no meu entender, só pode ter sido tirada neste dia, trágico, para todos nós. Em todo o caso, estas legendas são "por nossa conta e risco".


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 > Não conseguimos identificar a enfermeira paraquedista que,  nessa manhã, a do primeiro dia do novo ano de 1970, veio de DO 27 para tentar salvar o Sambu,,, Em vão, ele irá morrer na viagem... Vamos tentar saber quem era a enfermeira...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  A DO 27 que no primeiro dia do novo ano de 1970, logo de manhã cedo,  veio fazer evacuação do Sambu. Do lado esquerdo, de perfil, vê-se o piloto, com "cara de puto", alferes...


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  Outro pormenor dos primeiros socorros que foram prestados ao Sambu antes de ser evacuado. Era médico do batalhão o Vidal Saraiva. À esquerda do Beja Santos, sob a asa do DO 27, com a mão direita à cintura, em pose expectante, parece-se ser o fur mil enf da CCAÇ 12, o meu amigo João Carreiro Martins,  de quem não tenho notícias há uns anos.
 

Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) >  1 de janeiro de 1970 >  Um DO 27 a levantar voo, de regresso a Bissau... Pode ser a mesma da foto anterior, como pode ser outra... Tudo indica que esta foto tenha sido tirada noutra altura e noutro lugar. Parece-me ser a pista de Bafatá, avaliar pelo casario ao fundo... (O Jaime Machado diz-me que que é Bambadinca e vem na sequência das fotos anteriores,,,).  (LG)

Fotos: © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico  do nosso camarada Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) (*), que vive em Senhora da Hora, Matosinhos [, foto atual à direita], e é contemporâneo do Mário Beja Santos.

Ao ver estas fotos, tive um arrepio, quando o Jaime Machado me disse que o camarada com o camuflado ensanguentado era o Beja Santos, o nosso "Tigre de Missirá"...  

Lembrei-me imediatamente deste trágico acidente que ceifou a vida ao Uam Sambú.  Fui pesquisar os escritos do Mário Beja Santos. Aqui vai um excerto do poste P2540, de 15/2/2008 (**)

(...) O Setúbal já nos tinha avisado que viria o Xabregas [, condutor,]  ao amanhecer, eu que não estivesse preocupado. Assim que clareou, todos de pé, arrumadas as mantas, satisfeitas as necessidades mais prementes nas redondezas, esperámos a tiritar a aproximação dos faróis do Unimog, procurando desentorpecer os músculos. Assim foi naquele amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Xabregas trouxe um burrinho, o que significava dez militares sentados, 20 a pé. Dez não, um outro saltava para o lado do condutor, mais um outro encavalitava-se junto do alferes. Uam Sambu senta-se ao pé de mim e diz a Quebá Sissé:
- Sobe,  Doutor, dá cá a mão!

Vejo o riso feliz e sempre aberto de Quebá Sissé, segue-se o estrondo inusitado de uma rajada de G3, procuro levantar-me, oiço gritos de aflição, imprecações, um coro desorientado de protestos, e é nisto que Uam me cai nos braços,  enterrando-me no assento:
- Alferes, estou morto!

Com Uam no meu colo, vejo o seu peito esburacado, os lábios num esgar de dor, o olhar a esmorecer, o sangue passa para a minha farda em abundância. O burrinho corre em poucos minutos nas mãos expeditas do Xabregas até à enfermaria. Vou a correr tirar da cama o [alf mil médico] Vidal Saraiva que se debruça atarantado sobre Uam com o peito tracejado por diferentes perfurações. 

Cá fora, desenrola-se uma outra tragédia, há quem ameace o Doutor, ouve-se a palavra assassino, ouvem-se as expressões impensadas do costume. Ora, tinha sido o mais estúpido dos acidentes, o malogrado Doutor ao subir metera o dedo no gatilho e fulminara Uam, o Doutor era a alma mais pacífica do 52, ninguém lhe conhecia azedume, aguentara estoicamente todos os comentários ao seu trabalho de cozinheiro. Percebendo que era necessário pôr termo àquela ira dementada, disse ao Domingos:
- Não quero aqui ninguém, tudo para a tabanca, tu desces imediatamente com eles e explicas que foi um acidente, quem tocar no Doutor tramo-lhe a vida.

Dita a bazófia, acerquei-me da marquesa onde o Vidal Saraiva me avisou:
- Só por milagre se salva, tem os órgãos vitais atingidos, veja o sangue aos cantos da boca, pulmões e rins têm lesões que presumo serem irreversíveis. Vamos ver como é que ele se aguenta até Bissau.

 O DO [27] chegou rapidamente e lá fomos todos a acompanhar o moribundo até à pista de aviação, Binta, a mulher do Uam, gritava o seu desespero, o Pel Caç Nat 52 assistia ao transporte de Uam num silêncio total, estarrecido. Dispersámos, o Vidal Saraiva era o mais acabrunhado entre nós. (...) 

2. Comentário do editor:

Não sei se o Beja Santos alguma vez chegou a ver estas fotos. São imagens obtidas a partir de "slides". O Jaime e o seu pessoal sairiam de Bambadinca um mês e picos depois,  sendo rendidos pelo J. L, Vacas de Carvalho, e o seu Pel Rec Daimler 2206.  Os "slides" eram revelados no norte da Europa (Suécia, por ex.). E o correio era moroso. De qualquer modo,  gostaríamos de ter um "feedback" do nosso querido amigo e camarada Beja Santos, além de incansável e generoso grã-tabanqueiro,  para quem mandamos um alfabravo fraterno, extensivo ao autor das fotos. O Mário e o Jaime foram contemporâneos de Bambadinca, com uma pequena de diferenças de meses. Eu também estive com eles, lá, na mesma altura, desde julho de 1969... O Jaime saiu em fevereiro de 1970, e o Mário, dois meses depois, em abril de 1970, se não erro.


3. Há mortos que nunca se enterram

(...) Acerca do tema que agora circula no blogue (..), queria também dizer o seguinte: mortos que ficam são os que matamos com as nossas mãos; mortos dolorosos são os que não podemos enterrar e que nos culpam por um determinado acto precipitado; mortos são aqueles cuja morte não percebemos como Uam Sambu que morreu nos meus braços ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, num estúpido acidente de G3. O morto que vou falar tem a ver com uma amizade profunda, o insólito da notícia no dia em que me casei pelo civil [, o alf mil art Carlos José Paulo de Sampaio, natural de Anadia, mobilizado para Moçambique, pelo BCAÇ nº 10, em 12 de Abril de 1969, morto em combate no norte de Moçambique em 2/2/1970]. (...) [Excerto de poste do Beja Santos, P1740, de 8/5/2007]
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Notas do editor;

(*) Último poste da série > 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14790: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte II: Ao serviço do BART 1904 (de maio a setembro de 1968) e do BCAÇ 2852 (de outubro de 1968 a fevereiro de 1970)

(**) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho


Cópia do poema escrito por Beja Santos, na morte do Uam Sambu: "O pseudopoema foi escrito logo a seguir à morte de Uam, penso que a 2 de Janeiro [de 1970]. Vim para Bissau a 12, reescrevi-o e enviei-o à Cristina, tal como se pode ver, cheio de dor. Estou doente, mas comecei a dormir melhor. Digo à Cristina que estou ansioso por a ver, Suspeito que será em Fevereiro, não será assim. Saio de Bissau, e com o Pel Caç Nat 52 vamos para a operação Topázio Valioso" (BS).

Foto (e legenda): © Beja Santos (2007). Todos os direitos reservados.

Guiné 63/74 - P14805: Parabéns a você (928): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14801: Parabéns a você (927): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

domingo, 28 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)

Vigésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Glória, Lola, a Ruça (4)

Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não pegava na isca, era quase como se as canas de pesca estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt para apanhar algum sol no corpo, quando o nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos- lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua a contar-nos a sua história. Cá vai.

Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem clandestinamente, os mensageiros que os acompanhavam, no local que entendiam que era o certo, pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde alguém os ia contactar. Boa sorte.

A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.

Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira, em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam só para manterem a polícia de fronteira ocupada, enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias” profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem nada lhes acontecer.

De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes comunicam numa linguagem entre o espanhol e o português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de nós.

Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo “passadores”. Seguiram-nos.

Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente, a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra, levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um e que sigam naquela direcção onde alguém os espera, terminando com os desejos de boa sorte.


A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida número 10, que atravessa todo o continente desde Los Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo alguma água, entrando de novo em contacto nessa povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.

Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram todas as indicações de como deviam de proceder.

Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados, com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos brasileiros.

A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória, passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a maneira como a Glória lidava com crianças, decidem contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no exterior da casa.

Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já legalizados, com toda a documentação para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade brasileira. Iam economizando algum dinheiro, principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se queriam reformar e regressar ao país de origem.

Tony Borie, Julho de 2015

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)