quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14882: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (4): Os amigos e amigas que nos ligaram ao nosso mundo (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 12 de Julho de 2015, onde nos fala dos amigos que,  de alguma maneira, foram o suporte moral de muitos de nós, combatentes, enquanto em campanha.

Caríssimos
Não foram apenas a família e as namoradas que nos ligaram ao mundo do lado de cá da guerra, como podem ver nos anexos.

Abraços
Zé Teixeira


OS AMIGOS E AMIGAS QUE NOS LIGARAM AO NOSSO MUNDO

Alguma coisa se tem escrito sobre as noivas e namoradas que viram os seus “amores” partirem para Guerra Colonial. Seguiam-se normalmente cerca de dois anos de separação em que o amor e os afectos eram alimentados pelas cartas e “bate-estradas”,  vulgo aerogramas. Tempo de sofrimento. Tempo que nunca mais passava.

Um camarada meu recebia um montão de cartas sempre que a avioneta chegava com notícias frescas. A sua namorada assumiu o compromisso de lhe escrever todos os dias e ...ele correspondia de igual modo. Teve azar o Miguel. Uma mina traiçoeira roubou-lhe uma perna. Os seus gritos de dor eram entremeados com gritos de desespero porque pensava que ela, a sua querida, não ia querer um manco como marido. Felizmente o drama acabou bem. Hoje são um casal feliz.

E, quantas vezes, o tempo que teimava em não passar, fazia arrefecer o calor desse amor jurado e selado com beijos de saudade. Namoradas que, cansadas de esperar, por quem nunca mais chegava, mandaram o parceiro dar uma volta ao bilhar grande, para desgosto e sofrimento deste. O contrário, creio bem, que também aconteceu.

Os que conseguiram vencer esta difícil etapa tiveram com certeza uma recompensa proveitosa.
As madrinhas de guerra e o seu excelente papel no apoio aos seus afilhados. Algumas, deixaram-se apanhar pelo “cupido” e transformaram-se com o andar dos tempos em namoradas e até esposas. Outras, assumiam o papel de madrinhas de guerra como uma missão humana quando não patriótica. Elas eram raparigas novas cheias de vida, quantas vezes com compromissos de namoro assumidos com outro, eram mulheres casadas e até velhinhas.

Recordo o caso da madrinha de guerra de proveta idade, já avó e viúva que decidiu entrar nesta roda. Deu o seu nome a uma revista fofoqueira da época e lá lhe apareceu um candidato. Ao fim de algum tempo o “atrevidote” pediu-lhe uma fotografia, que teimava em não chegar. Depois foi mais longe e pediu em namoro. Claro que recebeu uma carta da senhora a dizer que aceitava o seu pedido de namoro.

Aproveitou para lhe enviar uma fotografia pessoal e informou-o do seu estado civil. Calculem o estado de espírito com que ficou o nosso camarada.

Havia ainda os amigos e amigas, sem qualquer rótulo, que nos acompanharam com a sua palavra escrita, naquele tempo de sangue, suor e lágrimas.

Há dias em conversa com uma amiga e esposa de um camarada combatente na Guiné, ao tempo, estudante na ESBAP – Escola Superior de Belas Artes do Porto, hoje uma conceituada pintora da nossa praça, disse-me ela que, em determinado ano escolar, os rapazes da sua turma desapareceram. Apenas ficou um porque era deficiente motor. Os outros “voaram” todos para a Guerra Colonial. A turma ficou vazia. A colega e amiga, tomou a iniciativa de manter uma ligação de carinho e amizade com os desventurados estudantes que desde há vários anos eram os seus amigos do dia-a-dia, assumindo o compromisso de lhes escrever a contar as novidades da escola e da terra. A linguagem que utilizou foi a que eles como estudantes de Belas artes melhor entendiam. O desenho com arte e imaginação, como se pode ver nas imagens.

Um dos colegas com quem ela se correspondeu, muitos anos depois, recordou esta forma de estar e devolveu-lhe com carinho alguns dos belos desenhos que recebera na selva africana, que aqui se reproduzem.

Eu fui dos que tive a sorte de ter alguém que de vez em quando me presenteavam com notícias frescas do meu País. Muito lhes devo pela sua presença fraterna e amiga que de vez em quando, dava sinais de vida, a lembrar-me que eu não estava só. A sua forma de escrita era diferente. Liberta de sentimentos amorosos e preocupações, enviavam notícias, comentários, contos e ditos, enfim!
Transportavam-me de novo ao meu mundo.

Acabada a guerra. Regressado ao ninho de afectos. Abraços distribuídos. Algumas cenas do outro mundo, contada. E a vida recomeçou. Cada um de nós seguiu o seu caminho. A amizade e a gratidão, essas ficaram cá dentro de nós, estejam eles ou elas onde estiverem.

Nunca mais pensei nesses amigos e amigas como os tais que se preocuparam com o meu bem-estar durante a guerra. Apenas a amizade ficou mais solidificada.

José Teixeira





(Cortesia de uma amiga que, ao tempo da guerra colonial, era estudante de belas artes. JT)
____________

Nota do editor

Primeiros postes da série:

26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 63/74 - P14881: Convívios (696): Rescaldo do encontro do pessoal da CART 6250/72, levado a efeito no passado dia 11 de Julho em Oliveira do Bairro (António Murta)

1. Em mensagem do dia 13 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), fala-nos do último convívio do pessoal da CART 6250, levado a efeito no passado dia 11 em Bustos - Oliveira do Bairro.




Almoço-Convívio da CART 6250 de Mampatá (1972-74)


No passado dia 11 de Julho de 2015, teve lugar em Bustos - Oliveira do Bairro, mais um almoço-Convívio da Cart 6250 de Mampatá e eu estive presente como convidado, uma deferência especial do Carvalho de Mampatá que muito agradeço.

Foi a primeira vez que participei num destes eventos e fiquei muito satisfeito. Desde logo, por poder abraçar os ex-camaradas de infortúnio e de farras, mais de 40 anos depois da separação na Guiné. Referindo apenas alguns, dada a impossibilidade de os referir a todos, dou nota dos seguintes camaradas presentes: o próprio Carvalho de Mampatá e a esposa Fátima, o José Manuel Lopes da Régua, o Pereira Nina da Covilhã (ex-Fur Mec) e a esposa, o Leça (José Eduardo Alves, ex-Condutor auto) e a esposa, e o Comandante Luís Marcelino, que teve de se ausentar cedo devido a compromissos, mas que não se furtou a honrar com a sua presença todos os ex-camaradas e suas famílias.

Foi uma tarde muito animada e rica de são convívio, não faltando as eternas discussões na tentativa de recuar no tempo até aos belos anos da nossa juventude, ainda que perturbada pelo belicismo que nos agarrava ali na Guiné.

No final, pediu-me o Carvalho de Mampatá que desse eu a notícia aos Grã-Tabanqueiros e, assim, agradeço que a publiquem se antes não vos chegar pedido semelhante de “cronista” mais legítimo.

Junto algumas fotografias (se acharem muitas, eliminem algumas, por favor).

Um abraço para toda a Tabanca Grande.
António Murta.


O Comandante Luís Marcelino despede-se de todos, chamado a outro compromisso. O Zé Manel Lopes bate-lhe no ombro mas está pesaroso, tal como os demais.

Olha o gajo! Não deixa passar nada!... – parece dizer o Carvalho de Mampatá.  

Ah! O belo queijo da Serra!, deleita-se o Pereira Nina.

O nosso poeta de Mampatá, José Manuel Lopes, e o nosso fermero Carvalho de Mampatá.  

Zé Manel Lopes e o Leça

O Andias, animador de serviço, impõe a sua prosápia sem admissão de recurso.   

Animação musical.

O baile: só neste enquadramento, três pares de senhoras dão um pezinho de dança. Os senhores seus companheiros estão à parte a discutir se em Abril/74 a guerra colonial estava, ou não, perdida.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14855: Convívios (695): Mais um Encontro do pessoal da Magnífica Tabanca da Linha, dia 23 de Julho em Cascais (José Manuel Matos Dinis / Jorge Rosales)

Guiné 63/74 - P14880: Os nossos seres, saberes e lazeres (106): Tomar à la minuta (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 12 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
Onde vivo passa regularmente o comboio que vai ou vem do Entroncamento, tudo começou com o ramal da Lamarosa-Tomar, em 1928, e depois de mil peripécias de uma cidade pujante de agricultura e indústria insistir, décadas e décadas a fio, para que Lisboa lhe desse o necessário caminho-de-ferro.
Saio de casa e ali bem perto na Estrada de S. Lourenço ou do Padrão tenho belos monumentos maltratados e em espaços pouco amigáveis para uma visita com tempo, a velha estrada Real é bastante cruel com os pedestres, não se recomenda tais passeatas, o pedestre pode ser colhido mortalmente por veículos ligeiros ou pesados. É por aqui vamos agora passear, com a promessa de recomeçar na Mata Nacional dos Sete Montes.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (8)1

Beja Santos


Arnaldo C. Coelho, primo da minha tia-avó Lucília, envia-lhe notícias de Tomar no fim da monarquia, para o seguinte endereço, África Ocidental, Luanda, Lucala. Anos depois, em Malange, nasce a minha mãe. Guardo numa caixa de sapatos postais maravilhosos, desde esta época até aos anos 1930, uns dirigidos à menina Gigi, a minha mãe, outros para a minha avó, até em férias na Figueira da Foz, e até encontrei um postal endereçado à Rua Newton, Bairro Brás Simões, depois Bairro de Inglaterra, hoje integrado no Bairro das Colónias, onde eu nasci. Pais, irmãos, sobrinhos e primos, todos se correspondiam; e eu acabo por ser um felizardo, herdei bilhetes-postais de Tomar, com o convento, a Corredoura, os jardins da Avenida Marquês de Tomar, a Fábrica do Papel do Padro, este timbrado com um selo com a efígie do rei D. Carlos.



A epopeia do caminho-de-ferro chegar a Tomar começa na monarquia constitucional e conhece concretização em 1928, o caminho-de-ferro veio pela Lamarosa. Puseram-se inúmeras hipóteses: de Tomar pela Lousã, de Tomar pela Foz do Alge e Pedrógão, de Tomar por Dornes, de Tomar por Ourém, de Tomar por Torres Novas. Ganhou a ligação ao Entroncamento. A estação ferroviária de Tomar foi construída na Várzea Grande, após a decisão de construir o ramal Lamarosa-Tomar. Em Lucala, em Vila Salazar, em Malange, em Luanda, os meus avós iam conhecendo esta caminhada por bilhetes-postais, hoje assombrosos.


Pego no fio à meada de novo no aqueduto do Convento de Cristo, ou dos Pegões, Filipe I quis obsequiar o local onde foi coroado com uma conduta majestosa, é uma estrutura aparentada aos aquedutos de Elvas e Évora, temos aqui 6 quilómetros, 180 arcos de volta perfeita, 2 mães d’água. E quando o aqueduto desemboca no convento é num tanque de rega. As obras do aqueduto findaram em 1619. E agora desço até à estrada de S. Lourenço, ainda não falei das maravilhas próximas de onde habito.





Aqui ficam imagens da fonte de S. Lourenço, parte integrante do complexo de S. Lourenço, há a capela, o padrão e mais à frente temos outro padrão, o de D. Sebastião. Até às autoestradas e ao desafogo viário que leva até Coimbra e outras Beiras, esta era a estrada de Lisboa e seguramente um dos eixos fulcrais da circulação Norte-Sul. O que é deplorável é o abandono, o esquecimento, a degradação dos monumentos. Andar a pé aqui nas bermas correm-se riscos de vida, não são poucos os atropelamentos e estamos a falar da entrada de uma cidade, e estamos a falar de monumentos de grande carga simbólica. Compreende-se o carinho que merecem o Convento de Cristo e a sua charola, as muralhas do castelo, o centro histórico. Mas é inaceitável esta marginalização de monumentos indelevelmente ligados a um período áureo de Tomar.




Em 10 de Agosto de 1385, as hostes do Condestável D. Nuno Álvares Pereira e as do Mestre de Avis encontram-se aqui e depois marcham para Aljubarrota. Os reis da casa de Avis estreitarão laços com Tomar, logo D. Duarte e o Infante D. Henrique, regedor da Ordem de Cristo, vive perto da charola e ativa o Paço dos Estaus. Estamos portanto numa área nobre, a estrada de S. Lourenço ou do Padrão, foi sempre bastante arborizada, era um regalo para o olhar e para dar sombras frescas. O professor José-Augusto França acha que aqueles azulejos adossados à capela são coisa indecorosa. Falando por mim, acho-os enternecedores, é uma azulejaria inocente, e ainda por cima tem o condão de chamar à atenção para os automobilistas, é extremamente difícil parar aqui. E para visitar a capela tem que se contactar previamente o turismo.


Sigo agora de perto o que se escreve na brochura “Tomar: lugares e memórias”, que O Templário editou em Agosto de 2008. Aqui se diz que o denominado Padrão de D. Sebastião foi erguido em 1567 para comemorar a edificação e consolidação da estrada Real entre Lisboa e Porto. O monumento é formado por alto plinto retangular, na face virada para a estrada grava-se uma inscrição alusiva à sua edificação, e o latim trocado por miúdos reza: “O juiz de fora, tendo dado princípio a esta obra no reinado de D. Sebastião I, terminou-a ao largar o cargo no ano do nascimento de Cristo de 1567”. E a informação ainda diz que, sobre este pedestal, e tendo a separá-lo uma moldura, ergue-se o fuste escalonado, em forma de pirâmide, rematado por simples ábaco coroado de um pequeno coruchéu. É tempo de pôr os olhos em coisas da mãe natureza, até porque Tomar é pródiga em arvoredo e lazeres para os passantes. Há um parque inconfundível, à beira da encosta onde se assoma o castelo, a Mata Nacional dos Sete Montes, da Várzea Grande já falámos, mas a Várzea Pequena e o Mouchão têm estado silenciados. E estas belezas naturais dialogam com marcas de progresso industrial, a cidade teve saboarias, fiação, moagens. Há belos edifícios recuperados e que são contadores de História, são bem dignos de uma visita demorada, a partir dos Lagares d’El Rei.

(Continua)
____________

Nota do editor

1 - Vd. poste anterior de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14849: Os nossos seres, saberes e lazeres (104): Tomar à la minuta (7) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14865: Os nossos seres, saberes e lazeres (105): Sou reformado a tempo inteiro, mas... nas horas vagas escrevo, pinto, aperfeiçoo o Inglês e sou secretário geral da Anetta – Associação Nacional das Empresas e Técnicos de Trabalhos em Altura (José Melo)

Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

1. Continuação da apresentação do trabalho do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72), intitulado "3 anos nas Forças Armadas", enviado ao nosso Blogue em 28 de Junho de 2015:


3 anos nas Forças Armadas (2)

Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Tibério Borges

Lembro-me alguns pormenores da minha chegada a este quartel. Fizeram-me e a outros a recepção da praxe. Na altura não entendi este método e não fiquei bem disposto. Sei que nos sentaram à volta duma mesa de sala de estar, sem comer, enquanto eles, os organizadores desta cena, comiam lautamente. Depois perguntaram se o barman podia fornecer martini em nosso nome. Eu que não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e mal disposto com esta recepção a resposta foi um não. Tive pena, passados tempos, de não ter ido na jogada. Teria sido mais engraçado.

Outro episódio foi o de um preso ter arrombado o tecto da prisão para fugir. O episódio foi comunicado ao comandante que com a sua experiência pediu calma e mandou uma viatura com alguns soldados mas sem armas a casa do fugitivo para o trazer de regresso. Ainda me lembro de lhe ter dito para não me criar problemas e regressar ao quartel mas ele foi peremptório na resposta que regressava só porque não vinham armados como de outras vezes. E veio nas calmas.

A disciplina era muito rigorosa mas havia quem se estava a marimbar para a vida. Morrer por morrer Marquês de Pombal.

Mas a companhia foi-se formando. Muitos treinos debaixo de chuva, frios, vento… fora deles eram outra vida fora do quartel. Os continentais alferes como eu dormiam fora do quartel. Já nem me lembro onde ficava se dentro ou fora. Esta minha memória está de rastos. Sei que andava a namorar e todo o tempo que tinha era para estar com a minha namorada. Não foi fácil este namoro. Mas aconteceu.

Finais de sessenta e nove, Ponta Delgada mais parecia uma aldeia e sem condições. O pouco que havia de restauração fechava depois das horas de expediente. Vida nocturna só em particulares. Quem tinha o privilégio de entrar num grupo estava safo. O contrário era uma situação difícil pois o micaelense era demasiado fechado. Apenas um pequeno grupo desta sociedade tinha regalias porque eles próprios as criavam. Havia muito sangue azul. Mas havia pequenos grupos já da futura classe média que se reuniam para patuscadas cujo convívio são era muito agradável. O sair de casa à noite era um prestígio. Tudo era diferente comparativamente com 2008 onde o inverso existe. Foi passar dum extremo ao outro depois do 25 de Abril de 1974.
Se lerem “Gente feliz com lágrimas” vão entender bem a sociedade que existia na altura.

O que é certo é que depois da companhia formada embarcamos rumo a Setúbal onde tirámos o IAO cujas iniciais já não me lembro o significado. Era o passo anterior à ida para a Guiné, local destinado à nossa companhia. Já nem me lembro porque não era batalhão.

Setúbal era na altura uma cidade simpática porque conseguimos entrar num pequeno grupo local com o qual passamos bons momentos. O mundo era diferente, muito diferente de Ponta Delgada. Havia muitos locais onde se podia comer. E lembro-me de uma vez termos ido comer a uma tasca onde começamos pelo pão enquanto se esperava pela refeição. Foram vinte e dois papos-secos que quatro ou cinco pessoas devoraram num pouco. O homem da tasca ficou estupefacto a olhar para nós pois não sabia que éramos açorianos.

Em Setúbal

O mundo aqui era mais largo. Disso já me tinha apercebido quando vim estudar para o continente. Em vésperas de embarcar de Lisboa para Bissau o nosso capitão Magalhães deu-nos a noite livre mas marcou uma hora para formar e ninguém podia faltar. Era ver toda a malta ir já não sei como para Lisboa. Fomos para a “night”. Percorremos uma série de pubs e sei lá que mais. Bebeu-se, comeu-se e depois cada um terminou-se. Também já não me lembro como regressamos a Setúbal. Só sei que no dia seguinte, 11 de Abril de 1970, estávamos em Lisboa a fazer a marcha de despedida às altas patentes.

 Desfile antes do embarque

Depois de estarmos no navio, o Ana Mafalda, tivemos oportunidade de ver um mar vasto de gente com lenços brancos, gritando de dor a despedida do seu ente querido que o mais certo era não o tornar a ver. Era arrepiante constatar esta dura realidade. Era deprimente. Era este cenário que Salazar evitava publicar. Largamos debaixo de gritos profundos de dor e rumamos a mar alto com destino a Bissau.

Despolitizado, como éramos todos, não tinha a noção da verdadeira realidade. Lembro-me que quando tinha aulas nos Jesuítas, ali para os lados de Sete Rios, pois apanhava o comboio em Sta Iria, falava-se a boca fechada ou dava-se a entender muito sobre o regime de Salazar. O Cardeal Cerejeira era muito badalado. Havia uma revista que era muito lida pelo clero e que era muito discutida. Soube mais tarde que a PIDE expulsou de Portugal padres que pertenciam à Congregação onde estudei, Sagrados Corações de Jesus e Maria. Os meus professores eram holandeses.

A bordo do Ana Mafalda

Uma semana em alto mar deu muito para pensar e escrever. Na altura estava a namorar e eu escrevia longas cartas. Tinha tido quase dois anos de filosofia e isso dava-me campo para de uma frase expandir as minhas ideias. Lembro-me de ter tido um diário de 4 anos sem falhar um dia mas como apanhei meu pai a lê-lo e achei que aquilo era só meu decidi queimá-lo. Mais tarde arrependi-me mas já era tarde. Muitos pormenores da minha vida desapareceram, simplesmente. Mas eu estava em alto-mar. E neste percurso lembro-me de um soldado se querer atirar borda fora. Foi uma situação crítica e foi dado conhecimento ao capitão.

Foi um tempo de antevéspera à crueza duma guerra sem sentido como todas as guerras. Já o Padre António Vieira dizia: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
A nossa literatura está cheia de escritos sobre a corrupção de quem lidera a nação. O mesmo Vieira escrevia: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os seus imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos". Está muita coisa inventada e dita. É uma questão de interpretação. E tudo isto dito no século dezassete.

E mais. O Vieira era o imperador da língua Portuguesa segundo Fernando Pessoa. Sobre as conquistas pelos holandeses de terras portuguesas no Brasil: “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos Alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhámos, as hajamos de perder assim! Oh!, quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!”.
Para quê mais comentários? E no Séc XIX ainda teimávamos em ficar com terras africanas.

E lá íamos a caminho de África teimar em combater por ficar com aquilo que não era nosso. Uma semana num barco a caminho de Bissau. Soldados mal acomodados como gado de exportação. E para tudo se inventava uma desculpa esfarrapada para não se dar melhores condições a quem ia defender a Pátria. Mas seria realmente a Pátria que ia defender? Não. Ainda hoje vivo revoltado com toda esta situação. A Pátria grita por justiça! Abram os olhos! Ex-combatentes! Agora é altura de defender a Pátria. Mas somos nós que tomámos as rédeas do rumo da Pátria.

Estava um calor húmido terrível. Antes de desembarcarmos ficamos horas esperando ordem para o desembarque. Tudo era estranho. Outro mundo. Tudo diferente.

(Continua)
____________

Nota do editor

Primeiro parte inserta no poste de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14878: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXIV: janeiro de 1974: (i) flagelação a Finete, na margem norte do Geba Estreito, frente a Bambadinca, causando 5 mortos civis e a destruição de 25 moranças; (ii) ataque, com granada de mão defensiva, ao edifício dos CTT, de Bambadinca; e (iii) o jornalista e escritor sueco Christopher Jolin (1925-1999) visita Bambadinca e Nhabijões



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Pel Rec Daimler 2046 (maio de 1968/fevereiro de 1970) > O edifício dos CTT, contrariamente à capela, a escola (e a casa da professora), e o posto administrativo (e casa do chefe de posto),  ficava fora do recinto do quartel de Bambadinca... Mais exatamente, segundo a precisosa descrição do Humberto Reis, ficava no lado da rampa que, descendo do quartel, atravessa a tabanca de Bambadinca, dando acesso do lado esquer4do ao porto fluvial (e destacamento da Intendência) e do lado direitoa estrada (alcatroada) para Bafatá... edifício dos CTT ficava do lado oposto da casa e loja do Rendeiro (, comerciante, branco, da Murtosa)...

O insólito foi o ataque, à granada (de mão. defensiva) perpetrado contra o edifício, em 18/1/1974, às 20h45, embora sem consequências...  Tudo indicava que havia, por esta altura, uma célula ativa do PAIGC na localidade de Bambadinca... Foram encontradas mais duas granadas, do mesmo tipo, chinesas, que não rebentaram...

Foto: © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]




Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > 1997 > "O antigo edifício dos correios... Mas legendas para quê ?! Está lá escrito na parede com as mesmas letras de há 35 anos. Daqui telefonei para Lisboa umas 3 ou 4 vezes. In ilo tempore, em que se pedia a chamada com dois dias de antecedência e com hora marcada!"... O edifício ficava na tabanca de Bambadinca, fora do recinto do quartel e posto administrativo, esclarece o Humberto Reis.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá). Todos os direitos reservados.


 1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974); economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; foto atual à esquerda].

O destaque do mês de janeiro  de 1974 (pp. 81/84) vai para:

 (i) o ataque, no dia 12, em pleno dia,  contra a tabanca e destacamento de milícia de Finete, no regulado do Cuor, na margem norte do Rio Geba Estreito, a escassa distância de Bambadinca, sede do batalhão;

(ii)  as baixas foram importantes: 5 mortos (civis), 25 moranças totalmente destruídas bem como grande parte da colheita de arroz;

(iii) atentado, a 18, às 20h45, contra o edifício dos CTT de Bambandinca, edifício que ficava fora do perímetro de arame farpado; o facto era inédito, por se tratar de um objetivo civil, localizado a escassas dezenas de metros do quartel (e da porta de armas, a norte); foi utilizada uma granada de mão defensiva, de origem chinesa;

(iv)  flagelação, a 9, do destacamento do Mato Cão, guarnecido pelo Pel Caç Nat 52; 

(iv) flagelação, a 20, do destacamento de Missirá (gurnecido pelo Pel Caç Nat 54 e Pel Mil 202);

(v) flagelação, a 31, do Xitole, com 4 canhões s/r; destruídas 8 moranças;

(vi) flagelação,a  20, do Xime;

(vii) o jornalista sueco Cristopher Jolin (**) visitou Bambadinca e o reordenamento de Nhabijões;

(viii) apresentaram-se às autoridades 9 elementos pop sob controlo IN, 6 dos quais estavam, coercivamente,. a receber treino no centro militar do Boé;











História da Unidade - BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) - Cap II, pp. 81/84
________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14535: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXIII: dezembro de 1973: flagelação do Xime, com foguetões 122 mm: sete mortos civis



Christopher Jolin, discursando
em 1973, em Trafalgar
Square, Londres,
num "meeting" organizado
pelo Euopean Freedom Council.
 Foto: Cortesia da Wikipedia
(**) Christopher Jolin (1925-1999) foi um joinalista, escritor e comentador político, sueco, ligado à ireita nacionalista, com posições nalguns casos próximas da extrema direita xenófoba e antissemita...Vd, aqui, em sueco, uma entrada sobre ele, na Wikipedia.

Da tradução que o Google me fez do sueco para inglês (, sempre é melhor do que do sueco para português), percebi o seguinte:

"Jolin wrote in 1972 the book 'Left rotation: threats to democracy in Sweden', where he ran the thesis that the extreme left have infiltrated the state TV and radio. During this time, Jolin also participated extensively in the anti-communist magazines Arguments for Freedom and Operation Law and Sweden, and the Swedish National Association of Free the Word. Jolin also spent time in the circle of SNF's Chairman Ulf Hamacher. Jolin, who enjoyed some respect from the parliamentary right, later became notorious as the extreme right and anti-Semitic."

O nosso grã-tabanqueiro luso-lapão Joseph Belo talvez nos possa dizer algo mais sobre este homem
 que visitou Bambadinca e Nhabijões em janeiro de 1974, 
e que muito provavelmente não deveria  gostar da teoria do lusotropicalismo do Gilberto Freyre, Era, se bem entendi, contrário à "miscigenização", leia-se "mestiçagem".

Guiné 63/74 - P14877: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (11): De 23 a 24 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 7 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 11.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

11 - De 23 a 24 de Maio de 1973

23 de Maio de 1973 - (quarta-feira) - Cumbijã

Mais uma vez tenho o grupo de reserva. Ontem à noite mandei uma mensagem para Aldeia Formosa para saber se continuamos aqui: afirmativo. Continuamos, portanto, (...).

De manhã recebi correspondência para o meu pelotão e cerveja, mandada pelo nosso Cap. B. da C. que nos levantou um bocado o moral, sobretudo pelas suas palavras, e bem que precisávamos, pois há nove dias que saímos de Nhala e vivemos quase como animais. Junto à encomenda que nos enviou, vinha um aerograma que dizia:

“Meu caro Murta: 
Estava ansioso por saber notícias vossas, embora soubesse que não tem havido problemas com o nosso pessoal. (...) Já falta pouco para isso acabar e tentarei dentro das limitações recebê-los cá o melhor possível. Poderá parecer-lhe estranho, mas todo o pessoal daqui [Nhala] sofre visivelmente com a vossa situação. Se precisar de alguma coisa diga para aqui (...). Envio-lhe 5 cx. de cerveja por pelotão e 500$00. Das cervejas ofereço particularmente 2 a cada homem. O resto será vendido em cantina. O dinheiro será para financiar de momento o pessoal completamente teso, ao menos para cerveja. Depois apresentará contas. Desculpe não poder mandar mais nada mas nas condições de limitação económica em que nos encontramos, foi o que se pôde arranjar. Coragem, que é pouco mais.
Peço-lhe que transmita um voto de apoio e noção da situação a cada um dos seus homens. Um grande abraço do vosso melhor amigo, B. da C.".

[Ainda pensei não publicar esta carta, por respeito e protecção do recato do autor. Mas, se o fizesse, não se perceberia quão benéfica ela foi junto dos meus soldados e até em mim, tão carenciados de uma palavra amiga. Para se perceber melhor devo dizer que, a caminharmos para o décimo dia sem tomar banho e sem mudar de roupa, tínhamos que cumprir com as obrigações operacionais, suportar o calor inclemente, comer insuficientemente e quando calhava e, no final, não nos podíamos refrescar com uma cerveja por falta de dinheiro... É fácil de entender como seria o estado físico e psicológico de todos, propício, ainda, a atritos e quezílias que agravavam ainda mais o estado geral. Outros estariam na mesma situação ou, até piores, ali e por toda a Guiné, mas a mim o que importava era defender o meu grupo de combate, sabendo que havia alternativas àquela situação desumana, tal como se veio a verificar.

Depois desta atitude nobre e solidária do nosso comandante de Nhala, outras se seguiriam no futuro, já com a Companhia toda reunida mas sofrendo, periodicamente, da escassez de tudo, devido à falta de reabastecimentos. Certo dia relembrei-lhe que a falta de tabaco na Cantina de Nhala, estava a raiar o insuportável. (Quem não fuma não poderá entender isto!). Disse-lhe, ainda, que o pessoal estava em vias de se recusar a sair para o mato, amotinando-se. E que eu próprio, que comprava o tabaco por grosso e não à unidade, estava a ficar sem ele pois estava, já há algum tempo, a distribuí-lo aos fumadores do meu pelotão para serenar os ânimos. Em pouco tempo uma avioneta fretada foi a Buba deixar-nos o tabaco e outros bens essenciais. Toda a Companhia pareceu refrescada por um bálsamo. Poderia dar outros exemplos da generosidade e solidariedade do nosso capitão, mas eles surgirão a seu tempo.

Com estas palavras de gratidão e, porque não dizê-lo, de homenagem genuína, poderão ficar confusos aqueles que conheceram o modo infausto como ele acabou a comissão, mas esses derradeiros acontecimentos em nada beliscam ou anulam, tudo o que eu disse atrás sobre o homem de carácter íntegro e de grande formação humana. Com fraquezas, naturalmente, como qualquer ser humano].

************

Desde que aqui chegámos a Cumbijã que me tem doído a cabeça. (...). Hoje já não suportava mais e resolvi pedir ao Cap. Horta (?) para ir ao médico a Aldeia Formosa. Tenho o sistema nervoso arrasado e grande fraqueza geral. Meti-me na coluna que vinha de Nhacobá com a Engenharia e, caso curioso, a dor de cabeça começou a passar-me com a aplicação de álcool puro na cabeça. Já tenho o organismo cheio de Acetalgina.

À saída de Mampatá houve um acidente mortal: um rapazito da Engenharia, (são rapazitos e quase crianças muitos dos assalariados - quase todos capinadores -, caiu da viatura em que seguia, sentado no taipal, e bateu com a cabeça no chão tendo morte imediata. Embora não me impressionasse nada, porque já nada me impressiona, fazia pena o pobre do rapaz. Atravessado na estrada, braços debaixo do ventre, coberto de pó, (...). Levámo-lo connosco para Aldeia Formosa.

À chegada a Aldeia Formosa falei com o médico, que me deu um medicamento para os intestinos. Tomei banho e vesti uma farda que me emprestou o camarada alferes José Maia da 3.ª CCAÇ. Depois de jantar ouvi música e fui para o quarto dos oficiais onde dormi. Qual quê?!... Até à uma da madrugada diverti-me com as canções e os disparates dos meus camaradas de Aldeia Formosa. Era disto que eu precisava. Quase todos eles estão marcados pela situação. São crianças barulhentas e todos estão completamente “apanhados”.

[Para além do Maia, sempre sereno, recordo com saudade o António Marques da Silva com a sua boa disposição, o Amado João e a sua bonomia, e o Manuel Mota que era o cúmulo da irreverência].

Eu em Aldeia Formosa num domingo de Julho de 1973, vindo de Cumbijã para tratar de papéis. 

Aldeia Formosa - 1974, vendo-se à esquerda a pista, ao centro o quartel e à direita a tabanca.

Aldeia Formosa - 1974: Porta de armas vista do interior do quartel.

Aldeia Formosa - 1974: Edifício do Comando ao centro.

Aldeia Formosa - 1974: Aspecto da pista.

Aldeia Formosa - 1974: Tabanca e paiol.


24 de Maio de 1973 – (quinta-feira) – A. Formosa / Cumbijã

Levantei-me tarde, tomei o pequeno-almoço e escrevi para casa. Fui novamente falar com o alferes médico e ele receitou-me uma série de medicamentos. Às 11 horas regressei a Cumbijã integrado na escolta da água. O meu grupo continua hoje de serviço e, até agora, sem problemas. Os rapazes estão um bocado mais bem-dispostos, embora continuem sujos. À noite tive momentos altos de boa disposição, (era disto que eu precisava!), com o Cap. Vasco da Gama (de Buarcos) e restantes graduados da sua Companhia. Discutiu-se alegremente e bebeu-se muito uísque. A Companhia do Cap. Vasco da Gama sai amanhã de manhã para se instalar definitivamente em Nhacobá, aliás, foi esta companhia (a 51 de CAV), quem teve maior participação na expulsão do PAIGC.

Perto das 0 horas, depois de ter dormido, mal, durante umas duas horas, acordei com o barulho dum temporal que, de repente, se aproximava. Estava a dormir numa tenda grande de campanha superlotada, e tivemos que sair de emergência para ir esticar os cabos que a sustentavam de pé, de modo que o vento ciclónico não a arrancasse do chão. Em breve começou a chover, mas por pouco tempo e, até o vento, subitamente, deixou de soprar. A tempestade passou ao lado. Mesmo assim deixou-me com os nervos arrasados, pois se as condições já eram precárias, depois do breve temporal ficaram piores.

************

[É notório, e ao mesmo tempo curioso, que estes meus registos da época estejam tão focados nos problemas do pessoal e nos meus próprios, passando de leve as referências às actividades operacionais. Dou-me conta disso ao transcrever, agora, apontamentos que nunca relera. Mas isso tem uma explicação: se me dissessem, naquela altura, que mais tarde iria sentir a falta das notas com resenhas militares, eu fartar-me-ia de rir com tamanho disparate. Na minha cabeça, e na dos outros por certo, a guerra ficaria ali enterrada para sempre com os seus aspectos burlescos e trágicos, mal virássemos costas no regresso à Pátria. E assim foi durante 40 anos. Até conhecer a nossa Tabanca Grande e mergulhar nas histórias de quantos por lá passaram, surpreendendo-me e alentando-me a contar as minhas].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513 e Resumo dos Factos e Feitos

Maio/73, 25 - De acordo com as ordens do COMCHEFE, pelas 22h00 inicia-se o movimento de retirada da região de NHACOBÁ até CUMBIJÃ. No entanto mantem-se os patrulhamentos constantes na região e as acções de segurança aos trabalhos de Engenharia. (!!!).

Do meu diário:

25 de Maio de 1973 – (sexta-feira) - O abandono de Nhacobá

Hoje o meu grupo esteve de reserva e logo de manhã tivemos autorização para irmos a Mampatá tomar banho e, embora tivéssemos que vestir a mesma roupa, isso deixou-nos bem-dispostos.

De vez em quando, como já vem acontecendo há vários dias, ouvem-se para os lados de Guilege os rebentamentos produzidos pelas bombas largadas pela nossa aviação.

À tarde, um rapaz do meu grupo, o Celso, foi acometido de qualquer ataque (supõe-se cardíaco) que o deixou inanimado e quase sem respiração. Foi evacuado para Aldeia Formosa.

Cerca das 16h30, chegaram aqui as viaturas da 51, carregadas com o material da Companhia que tinha seguido de manhã para Nhacobá. O Cap. Vasco da Gama ficou com o pessoal instalado lá, sendo arrasados os abrigos e tudo trazido de novo para Cumbijã. Não sei bem o que se passa, mas isto está tornar-se feio. Consta-se que Guilege foi ontem tomada pelo PAIGC depois de as nossas tropas terem abandonado tudo. Hoje, a decisão de abandonar Nhacobá, coincide com os boatos de que aquilo ia ser atacado em massa e, também, com a chegada de um Brigadeiro aqui a Aldeia Formosa.

A minha situação aqui continua sem alteração à vista, embora eu entupa os ouvidos aos “crânios” expondo-lhes os meus problemas. Há 11 dias que saí de Nhala com o pessoal e não vejo hipótese de rendição. Estamos a ficar com os camuflados podres, a desfiarem-se e, desde há muito que cheiram a azedo e salgado da transpiração acumulada.

Cerca das 23h30 chegou a CCAV 51 abandonando, em princípio, Nhacobá. Poucas horas depois, quando o meu pessoal já tinha entregado as tendas aos verdadeiros proprietários, desencadeou-se um violento temporal, apanhando-os a dormir ao ar livre. Isto vem agravar claramente a nossa situação.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
____________

Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

8 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala

2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra
e
7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14844: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (10): 20 a 22 de Maio de 1973