quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15000: Efemérides (195): O Furriel Júlio de Lemos faleceu na Guiné no dia 12 de Agosto de 1965 (Mário Leitão, Ex-Fur Mil da Farmácia de Luanda)

Mensagem do nosso camarada António Mário Leitão, ex-Fur Mil da Farmácia Militar de Luanda, dirigida ao nosso editor Luís Graça em 12 de Agosto de 2015:

Camarada,
Envio-te uma crónica que vai ser publicada amanhã no semanário CARDEAL SARAIVA, de Ponte de Lima. Dá-lhe o tratamento que entenderes, por favor.
O mesmo trabalho foi enviado pra UTW, para mais ampla difusão.

Aproveito para te dizer que o teu blog tem sido muitíssimo útil para as minhas pesquisas para a obra que poderá chamar-se "Participação limiana na Guerra do Ultramar", em vários volumes.
O primeiro refere-se apenas aos 52 Heróis Limianos que a guerra provocou.
Darei sempre notícias sobre ela.

Parabéns pela vossa extraordinária generosidade, que vai deixar para os nossos descendentes um acervo gigantesco de informação sobre a Guerra do Ultramar.

Abraço para todos do
Mário Leitão
Ex-Furriel da Farmácia Militar de Luanda


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O Furriel Júlio de Lemos morreu há 50 anos

O Furriel Júlio Lemos, no final de uma operação complicada (em que a retirada exigiu cobertura aérea de morteiros, solicitada por via rádio a um pelotão de apoio da mesma companhia de caçadores) e quando a sua unidade de combate se preparava para proceder ao atravessamento do rio Bissilon (Bissilão), afluente do Rio Louvado, na região de Tite, tomou a iniciativa de efectuar a travessia a nado, com outro camarada de Guimarães. Algo correu mal. Nunca mais foi encontrado, mesmo depois das buscas efectuadas por meios navais. Tal facto terá estado relacionado com o seu pesado equipamento e com o efeito do macaréu, verificado no momento, que agravaram as condições lodosas características daqueles rios.

(Adaptado dos testemunhos que os seus camaradas publicaram no sítio da Internet “Luís Graça e Camaradas da Guiné”)

 Ponte de Lima, 12 de Agosto de 2015

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No dia 12 de Julho de 1965 o Furriel Júlio de Lemos Pereira Martins morreu no decurso de uma operação, desaparecendo no leito lodoso de um rio guineense. Foi precisamente há 50 anos, mas parece que foi ontem que o drama da sua morte abalou a pacatez da nossa Vila. Recordo-me da tarde em que o comércio limiano fechou meias portas em sinal de pesar, como então se fazia. Eu tinha 16 anos e vinha da Vila Morais, de um ensaio para as récitas que o Teatro Académico Limiano fazia naquele tempo, nas férias grandes. Ao passar junto do mictório que dantes existia na parede nascente do quintal do então “Asilo dos Velhos” (a escassos metros do local onde está hoje a estátua de Norton de Matos), vi um grupo anormal de pessoas junto às portas do Restaurante GAIO, propriedade de seu tio Manuel Lemos, irmão de sua mãe Maria da Conceição Lemos(1). Aproximei-me e senti pessoas a chorar, algumas convulsivamente, ao mesmo tempo que ouvi alguém dizer “o Júlio LAIPUM morreu na guerra!”.

Esta cena e o ar pesado que se respirava na Pharmacia Brito, onde não se falava de outra coisa, ficaram gravados na minha memória e fizeram-me recordar aquele rapaz do Externato Cardeal Saraiva, sete anos mais velho do que eu, que fez parte do grupo de “matulões do 5.º ano” que me baptizou em Outubro de 1958, quando eu entrei para a 4.ª classe e admissão aos liceus: Júlio de Lemos, Júlio Vilar, Henrique Ramalho, Celso Barbosa, João Carvalho, Carlos Torres (TITÁ), Horácio, Alberto “TALENTE” e outros. E foi a partir desse acontecimento que eu passei a conhecer a realidade da guerra que se travava nas províncias ultramarinas e a compreender as aflições em que minha Mãe vivia, ao pensar que o filho mais velho (meu irmão Afonso Manuel) iria às inspecções militares no ano seguinte. Numa das fotografias, Júlio Martins aparece em primeiro plano (segundo a contar da esquerda) com um grupo de estudantes do externato, tirada aos 15 anos de idade (1957).

 Furriel Júlio de Lemos

Ontem, quarta-feira, 12 de Julho, um grupo de amigos do Furriel Júlio de Lemos participou numa missa por sua alma, na Igreja Matriz. Foi um lindo momento de oração pelo descanso eterno de um Amigo de juventude que só viveu 23 anos, ao qual se seguiu uma romagem de saudade até ao Memorial dos Heróis do Ultramar, junto aos Paços do Marquês, onde lhe prestaram homenagem e depositaram flores(2).

Aqui fica para a posteridade a nostalgia que nesta hora a todos nos invade. Que os vindouros saibam que o drama da Guerra do Ultramar foi uma coisa medonha que se abateu sobre os seus intervenientes e suas famílias, e que marcou as nossas vidas para sempre. Descanso eterno para o Furriel Júlio de Lemos, da Companhia de Caçadores 797, que operou no teatro de guerra da Guiné Portuguesa!
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Notas:

(1) Ver a crónica “Chico LAIPUM”, no C. Saraiva n.º 4505, de 12/12/2013.

(2) Relacionadas com o Furriel Júlio de Lemos, com a sua família e com outros temas da Guerra do Ultramar, a rubrica Gente Limiana já publicou: “Andam a morrer Veteranos”, CS n.º 4390, de 17/06/2011;
“Em nome da Pátria”, CS n.º 4394, de 15/07/2011;
“Os Mancebos de 66”, CS n.º 4430, de 20/04/2012;
“O Milo e o Zé”, CS n.º 4445, de 10/08/2012;
“As inspecções militares de 1962”, CS n.º4446, de 24/08/2012;
“Encontro dos Inspeccionados de 66”, CS n. º 4447, de 31/08/2012;
“Reunião dos Apurados de 62”, CS n.º 4457, de 23/11/2012;
“Heróis esquecidos”, CS n.º 4491, de 16/08/2013;
“Não voltaram todos”, CS n.º 4492, de 23/08/2013;
“Missão cumprida”, CS n.º 4493, de 19/09/2013;
“Páginas da História Limiana”, CS n.º 4519, de 03/04/2014;
“Dia do Combatente Limiano”, CS n.º 4540, de 04/09/2014;
“Morreram tão novos!”, CS n.º 4573, de 28/06/2015;
“Foram à guerra e não voltaram”, CS n.º 4574, de 04/07/2015.

(Artigo de Mário Leitão, publicado no semanário “Cardeal Saraiva” de 13/08/2015)
(gentelimiana@gmail.com)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14854: Efemérides (194): No passado dia 20 de Junho, em São Miguel, foram inauguradas as obras de conservação e renovação do Museu Militar Militar dos Açores e impostas ao nosso camarada Carlos Cordeiro, a Medalha Comemorativa das Campanhas e a Medalha de Cobre de Comportamento Exemplar (José Câmara)

Guiné 63/74 - P14999: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (20): Recordações "non gratas" da guerra da Guiné Operação Tridente (José Colaço)

1. Mensagem do nosso camarada José Colaço (ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), com data de 4 de Março de 2015:

Recordações da CCAÇ 557, cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa e banho idem. Se a água era racionada para beber pensem bem no que seria em termos de higiene, excepção à secção que fazia escolta à lancha de reabastecimento de agua e géneros, que aproveitavam a ida a Catió para fazerem um pouco de higiene pessoal "e outras necessidades fisiológicas".

Mas o subsector do Cachil era de facto um mundo à parte, nunca o comandante, Tenente-Coronel Matias ou os seus oficiais, fizeram qualquer chamada de atenção para a apresentação dos militares como alguém lhe chamou "a esquálida e esgroviada" Companhia de Caçadores 557.
Outras estórias há para contar mas fico por estas duas que considero mais dignas de registo.

Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. A começar da esquerda: o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Rádiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. 

As barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e Dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia. 
 
Foto tirada antes da nossa retirada do Cachil, na saída do aquartelamento para o cais. A partir da esquerda: 1.º Cabo Mecânico Burrica, que também já nos deixou, o tal Cabo que deu lixa de água ao Furriel Santos Oliveira para recuperar o tubo do morteiro 81 danificado por uma granada que ficou encravada na noite de 16/11/1964; segue-se o Condutor Russo (por ser louro); eu, José Colaço, e o 1.º Cabo Operador Cripto Bernardino Lourenço Valadas.

Um abraço
Colaço
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Último poste da série de 12 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14994: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (19): Festa de Ferrel, 2015 - a burricada... Afinal, o que é faz correr o/a burro/a, a cenoura ou o chicote?... E hoje há sardinhada na nova tabanca de Ferrel, organização do régulo Joaquim Jorge, coadjuvado pelo régulo da tabanca de Porto Dinheiro, Eduardo Jorge Ferreira... De Lisboa vem expressamente o João Sacôto (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

1. Parte X de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 10 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - X

Barro, Bigene

Isto por aqui estava tudo calmo. Agora parece que chegou a nossa vez, parece não, chegou mesmo. Isto é complicado, o nosso governo tenta manter esta merda sob controlo, estamos aqui quê, 15, 20 mil gajos, não? Não é pela Guiné, claro, esta terra não tem nada, por outro lado é preciso ver, os soviéticos querem manter o Salazar sob pressão, estás a ver, dispersão de esforços, para a malta não se concentrar em Angola, petróleo, diamantes, madeira e tal, a Guiné é água e mosquitos, fazem-me a vida num inferno, os filhos da puta picam-me até dentro dos lençóis, grandes cabrões, aqui não há mais nada, é ou não é?
É pá, falam da ONU, a ONU é outro buraco, dali não sai nada para nós, pá, o Johnsson está atolado no Vietname, os Américas nem a cabeça podem pôr de fora, caladinhos que nem cucos, votam a nosso favor nas coisas de merda, votam contra nós nas outras, querem lá saber da malta!
E Barro, o que é Barro? Um buraco, num buracão que é a Guiné, correcto?
Mas nada de grandes problemas, mais ou menos calmaria até à semana passada, percebes? Agora, aquela bronca de Farim, é que foi o caraças! Está aqui a malta metida, meia dúzia de gatos-pingados, ainda por cima meias-fodas, que não têm onde cair mortos, a ver se o tempo passa, agora chegam vocês, só me faltava mais esta!
Mas qual ajuda, qual merda! Vocês montam aqui as barracadas e tal, e depois é como os enxames de abelhas, abanam a árvore, as putas das abelhas, dá-lhes não sei o quê, parecem stukas a cair em cima de nós, e depois como é?
Depois vocês vão para o quentinho, para Bissau não é, p'rás cabo-verdianas, para o meio da coxas delas, lençoizinhos brancos que elas gostam, mosquiteiro e tudo, não é, que eu bem sei, também passei por Bissau, ainda me lembro, que é que julgas, a malta aqui nem o padeiro vê, há que tempos que já nem me lembro, ó pá, aqui só tropa, mais nada!
Ouviste, desculpa lá, cabo-verdianas, pois, obrigado, agora estou sempre a lembrar-me é da mão, sim é com esta, sou canhoto, porquê importas-te? Ah bem, era só o que me faltava vir agora um guerrilheiro de Bissau dizer-me para mudar de mão, nem a professora, a D.ª Eugénia, lá de Vinhais, boa senhora, coitada, aquilo é que era uma professora, agora já não há disso, o que é que estava a dizer, ah já sei, olha que nem a D.ª Eugénia, coitada da senhora, se cansou de falar à minha mãe, não me puxavam as orelhas, qual quê, amarravam-se a elas, foda-se, estás a ver como ficaram, espera aí, acabo já, de que é que estávamos a falar, ah a mão, claro já me lembro, estou a dizer-te, amigo, nem a D.ª Eugénia conseguiu mudar-me a mão, ouviste?
Ainda há bocadinho, antes de vocês chegarem, dei com uma revista, ai nossa senhora, uma revista qualquer, sei lá, qual Playboy qual quê, essas ficam todas em Bissau nas mãos do ar condicionado e tal, espera aí, já sei, Estúdio ou Studio, agora não tenho bem a certeza pá, era uma revista de cinema, a Ava Gardner, uma artista, sabes quem é? Sentada num banco alto, ai nossa senhora, não vais acreditar, umas pernas, o vestido um bocadinho acima, os joelhos à mostra, quando fui à sentina, baixei as calças pá, não sei como, sai-me o pau virado p'ra cima, quase encostado ao umbigo, não acreditas? Estás a rir-te, pá? Não acreditas?
Desculpa, amigo, agora a sério, desculpa pá, estavas a falar de quê? Estou meio zuca, não repares pá! Não era só eu que estava a falar, desculpa lá, mas tens que ver, estou aqui há não sei quanto tempo, há dias que não falo, há dias em que só falo comigo! Espera aí, o que é que eu estava a dizer? Ah, sim! Então, vocês levantam a caça, põem-se na alheta, depois é que é o caraças, nós é que vamos apanhar com os cagalhões em cima, foda-se, fodam-se todos mas é!
Não é trovoada, não! Não ouves, porra? Ouvidos de Bissau, claro, é só carros, não têm ouvidos para outra coisa. Aqui em Barro não há surdos, ouvimos tudo!

Pouco mais de um metro e meio, cabelo farto dos lados mais que em cima, bigode farfalhudo, Toilas, o alferes Toilas como era conhecido, comandava aquele destacamento com uma garrafa de Vat 69 mesmo à mão. O outro ao lado, numa esteira presa aos pilares da casa onde estava alojada a inteligência deste posto avançado, Barro, na fronteira norte com o Senegal.
Do quarto ao lado, onde funcionava o posto rádio, o radiotelegrafista a gritar, Bigene está a ser atacado!

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Bigene, Barro

Em Bigene bebia-se bem, capitão à cabeça. Ou comando ou não comando, o comandante à rasca com as palavras.
Não fico nem mais uma noite neste quarto, daqui a bocado, ponho-me na alheta. Ou acordava com os arrotos ou com as idas do capitão ao quarto de banho, amarrado às paredes, vómitos, água do autoclismo.

Estremunhado, parecem estrondos! O barulho da locomotiva na cama ao lado entrara em velocidade de cruzeiro. Rebentamentos? Ai são, são, calças enfiadas, botas sem meias, p'rá rua já!
Clarões para os lados de Barro. Um espectáculo magnífico e assustador, tal e qual como vira uma vez, quando numa noite de um Agosto longínquo, regressava das festas da Agonia em Viana.
Galgou as duas escadas para a sala do rádio, o telegrafista de serviço na cama, a sono solto. Não se passa nada aqui, o rádio aflito a chamar, não se calava nem o militar acordava. A pé, baixinho, só para os ouvidos do radiotelegrafista. Um pulo, o coração dele também pelos vistos, ligação estabelecida, finalmente! Barro à morteirada, há meia hora pelo menos, temos feridos.
Pessoal cá fora, todos com os olhos para Barro. Chamou o Valente, falaram à parte, outra vez para o quarto. Pepsodent, cuecas e meias no saco, água na cara, porta fora.

Para Barro, margens da picada, em coluna por um, bem espaçados, a 1.ª equipa à frente, destacada uns 50 metros, cuidados mais ainda que os habituais. Uma madrugada fresca, boa para andar. À medida que iam andando, os rebentamentos iam espaçando, até que deixaram de se ouvir.
Chegados a dois ou três quilómetros da povoação, meteram-se para dentro da mata, e deixaram-se estar ali até o dia começar a clarear. Quando voltaram à estrada, um dos homens da frente chamou a atenção para o que lhe parecia ser um papel, pregado numa árvore. Duas folhas dactilografadas, tudo em maiúsculas.

"Chamais bandidos aos que lutam pela sua terra e pela liberdade do seu povo. Vós bem sabeis contudo, que verdadeiros bandidos, são vosso patrão Salazar e a camarilha de ladrões que roubam o bom povo português, mandando os jovens da vossa pátria morrer ingloriamente por uma causa injusta e por isso de antemão perdida.
Sabeis que vossas mães, noivas, irmãos e amigos choram de dor pelos vossos camaradas que morrem neste país que não é o vosso, longe da vossa pátria e da vossa família. Os nossos chefes não estão no chão francês, estão dentro do nosso país!
Vós sois escravos de um tirano, de um velho caótico de 75 anos, peru vaidoso, que demonstrando claro desprezo pelas gerações modernas do vosso país, em conferência concedida ao chefe do "Bureau da Reuter", nas Nações Unidas, declarou que gostaria de se demitir das funções que ocupa mas que não o poderia fazer pela necessidade de dirigir a política portuguesa em África. O vosso patrão considera-se o único homem em Portugal com valor para dirigir o vosso país!
Nós não passamos fome!
Nós não passamos frio!
Porque estamos na nossa terra e a lutar pela nossa pátria.
Na vossa pátria milhares de vossos compatriotas passam fome e toda a miséria possível, vendo-se obrigados a imigrar clandestinamente para o estrangeiro para não morrerem de fome. Só para a França fugiram nestes dois últimos anos mais de cinquenta mil operários, conforme declarações oficiais francesas.
O nível de vida do vosso povo é o mais baixo da Europa e um dos mais baixos do Mundo! A tropa não vai embora?
Sim, infelizmente para vós, muitos ficam!
Não voltarão mais aos seus lares, não voltarão mais ao convívio dos seus, jamais voltarão a receber os carinhos dos pais, das esposas, dos amigos.
Ainda estais a tempo de ir pelo vosso próprio pé!"

Foram entrando devagar em Barro, povoação fantasma. Ouviam risadas de alguns nativos que se iam apagando à medida que os iam vendo, fechavam a cara, ficavam a olhar para eles.

Barro. 
Foto: © A. Marques Lopes, in Luís Graça e camaradas da Guiné.

Uma loja de uma família libanesa, daquelas que vendem arroz, agulhas de coser, frigoríficos, panos, mancarra, o que havia, sentado cá fora, cara de infeliz, chávena de café na mão, o Toilas a olhar para ele.
Calmaria em Barro era uma vez. Por acaso até estava acordado, foi um estrondo a abrir, só queria que ouvisses, não, trovoada não, pá, vai gozar com o caraças, um estrondo mesmo em cima de nós, merdas a partirem-se. Não tive dúvidas, só gritei, é malta, p'rós abrigos!
Sei lá que horas eram, nem me lembrei de olhar para o relógio. Do lado do rio não, fogo foi só daquele lado, do lado do Senegal. Respondemos pois, ai não, à morteirada para não ficarmos atrás e umas bazucadas de brinde. Para onde?
P’ráqueles lados. Queres ver as marcas dos balázios dos gajos? Uma vintena de passos dados, lá estavam as paredes da pequena casa que servia de posto de comando de Barro crivada de furos.
Não, ainda não saímos daqui, o Toilas, agitado. Como é que havíamos de os perseguir, que porra!
Temos cabrito para logo! E temos mais ali, para ocasiões especiais, como esta é que espero que não! Não pode ser tudo mau, não é? Quando voltais a sair? Esta noite não, porra! E o capitão, meteu-se muito nos copos? Aquele gajo já veio bêbado da metrópole, é um profissional do mergulho!

Cabrito arrumado com cerveja, a lua e o sono misturados, num momento parou tudo. Estás a ouvir, outra vez, ouviste? Filhos da mãe, os gajos outra vez! É Bigene, o telegrafista, como se os outros não ouvissem.
Outra vez para Bigene, a mesma caminhada, quase as mesmas horas, procedimentos idênticos. Só o barulho de helis para os lados de Bigene é que foi diferente. À entrada da povoação flagelada nessa noite, os nativos remexiam no chão, nos buracos frescos e, ou não os viam a chegar ou então faziam de conta.
Ar de apardalados, caras desanimadas, uma noite infernal. O capitão, decidido, tinha pedido apoio a Farim. Chegara há momentos uma equipa médica e mais um pide. E havia mais gente dentro das cadeias improvisadas.
Bigene estava a ser atacada de fora, mas também de dentro, as trajectórias das balas, da casa do administrador e de outras casas também, para o edifício onde os oficiais dormiam, não lhes deixavam dúvidas.
Militares num magote, a uma centena de metros além do arame farpado, rodeavam dois tipos brancos com ar de polícias e um desgraçado, àquela distância parecia cabo-verdiano, no meio deles.
São os pides que estão a interrogar o administrador do posto! Está farto de enfardar, toda a maralha já molhou a sopa no gajo, um soldado para outros que corriam para lá, no meio de grande agitação.
Diga lá, senhor Sony, como combinaram então o ataque? Recapitulando, o senhor veio até aqui, esperou junto a esta árvore o Ramos, não foi? E depois, abra lá essa cloaca, conte tudo, que a gente não sai daqui sem o senhor contar tudo, não é?
O desgraçado com marcas de sangue fresco na cara, nos braços, nas costas, os olhos exaustos! Até bocados de pele e carne lhe faltavam!
É guerra, é guerra, um militar inflamado!
O espectáculo continuava, sem intervalos, agora com mais gente, população local também, todos num magote, numa agitação ainda maior.
Um dia para esquecer, ou para não esquecer nunca mais!
O grupo tinha o regresso a Bissau marcado para dois ou três dias depois, por via marítima. No dia seguinte, ao alvorecer, partiriam para Barro, onde aguardariam instruções sobre a data e hora exactas de embarque. Durmo com o grupo na “arrecadação”.

A mulher do chefe de posto, de vestido preto sem mangas, o gabinete do capitão, o tipo a levantar-se, beijo na mão, o sentar elegante e digno dela, o capitão a passar a mão pela careca, olhos de uísque, a porta a fechar-se com estrondo, o coração aos pulos, a querer abrir a porta, não abria, a maçaneta soltou-se com a força, a mão com a maçaneta aos murros na porta, capitão, capitão, não!

Acordou sobressaltado, os estrondos enormes lá longe, outra vez Barro, toda a gente a pé, a correr para a rua, o mesmo espectáculo.

Os ataques às povoações de Barro e Bigene, fisicamente não os tinham apanhado, nunca souberam nem como nem porquê, coincidências apenas.
Alguém alvitrara que as mudanças constantes terão sido um motivo, outros que talvez o IN estivesse a jogar ao gato e ao rato. Chegaram a sair aí pelas três ou quatro da tarde, fizeram grandes desvios pelo mato para disfarçar, dispuseram-se em frente a Barro uma vez e outra em Bigene, aguardaram emboscados noite fora até o Sol nascer, que os guerrilheiros flagelassem para tentar apanhá-los na retirada, eufóricos como costumavam mostrar-se quando não tinham baixas.
Nunca aconteceu. Emboscadas, patrulhamentos, nem um contacto.
Donde vêem eles? De Sano, toda a gente falava em Sano. É de lá que os gajos vêem, é um acampamento grande!
Onde fica isso, o que é que há lá, algum guia para nos levar? Uma noite destas vamos lá acordá-los. Nem penses, comigo não contes, só com uma ordem de operações na mão, arrumara definitivo o Toilas, com um cigarro a cair da boca.

E, na noite desse dia em que chegaram a Barro, prepararam-se para irem a Sano, ao Senegal, sem mais informações a não ser os caminhos que os guias de Barro conheciam. Era o 1.º dia de Dezembro, uma data festiva. O Toilas a insistir, esta noite não pode ser, hoje até é feriado! Toilas, é uma noite muito conveniente.
Um incidente à partida, invulgar para os costumes deles. O sargento Valente pegou-lhe num braço e afastaram-se uns metros.
Estamos com um problema na equipa do Black. O Bacar Jassi recusa-se a levar o lança-rockets e as munições.
Como? Recusa-se? Sempre foi assim, desde sempre, outros carregaram sempre com o material, porque não quer, porque é que o Black não consegue que ele entenda?
Que é muito peso, só quer levar 4 munições, os outros que levem as restantes!
Cheira-me a esturro, Valente, não pode ser, o Albino leva a MG, as fitas, mais de 10 quilos!
Foi ter com o Jassi, ouviu-lhe as razões, uma birra muito estranha.
Os rockets vão, contigo ou com outros, Jassi!
Não posso, meu alferes!
Algemas nas mãos, enfiaram-no num galinheiro com suspeitos apanhados nos últimos dias, arame farpado à volta, enquanto o grupo se aprestava para sair. Um comando estar preso com turras, o Jassi1 a chorar, aos gritos!
Tudo pronto para a saída, duas secções do pelotão do Toilas incluído, e o Valente outra vez, que o Bacar Jassi queria falar com o comandante do grupo. Jassi achava ter razão, que era peso a mais, que na instrução o alferes sempre dissera para pensarem com a cabeça, mas que estava pronto para cumprir a ordem e pedir desculpa.
Enquanto o resto do grupo aguardava que o sargento Valente soltasse o Jassi, o grupo começou a sair de Barro equipa por equipa. Duas ou três centenas de metros adiante, aguardaram que o grupo se recompusesse e puseram-se a caminho, os dois guias à frente, o Jamanca logo a seguir e o grupo todo atrás.
Cerca de uma hora depois arrancou a tropa de Barro, iria ficar instalada a cerca de um quilómetro de Sano. Uma noite boa para andar, lua fraca, noite seca, um pouco fresca.
Aí pelas quatro horas viram luzes, ouviram galos, estavam perto de uma povoação, os guias a dizerem que Sano era em frente, aquelas casas que se recortavam ao fundo. Fizeram o que deviam, colaram-se ao chão, em linha, bem separados. Curvado, percorreu o grupo, parelha por parelha, tudo em ordem.
Estamos em Sano, parece não haver dúvidas, Valente.
Pois, uma povoação no Senegal, se calhar só civis, guerrilheiros o que se sabe até agora é só conversa, mais nada, histórias que têm um acampamento aqui nesta zona. Isto aqui à nossa frente é uma povoação, galos a cantarem, é melhor pensar bem, não? E o meu alferes nem ordem escrita tem!
Mais de meia hora a mirarem Sano. Ok, Valente, não vamos fazer nada2. Civis lá dentro, amanhã o Shenghor, o Touré3, os N’Krumahs4 todos, um barulho danado na ONU, o Salazar furioso, inquéritos, mais chatice, ninguém nos mandou entrar no Senegal, é, vamos mas é dar meia volta, decidiu algo contrariado.
Foi o que fizeram, não sem um perguntar, então, e os rockets voltam outra vez? E outro, nem um aviso deixamos? Achas que é preciso, o furriel Azevedo a cortar.

Regressaram a Brá todos enlameados, por fora e por dentro. A guerra era para ser feita sem alardes, com inteligência. Havia que preservar o grupo de tarefas inúteis, de algumas guerras que uns escritores de relatórios gostavam de desenhar, para depois realçarem no papel a intrepidez da acção, a argúcia do ataque, os resultados brilhantes, que em vários casos só eles viram. Quem os lia no QG, achava uma autêntica felicidade, tanto fogaréu, ataques tão violentos, tantas baixas no In e a NT sem uma beliscadura, ou então uns feridos ligeiros só.
Várias vezes ouvira apartes deste tipo, das bocas de pessoal das 2.ª e 3.ª Rep., em pleno QG em Bissau.

Já à noitinha em Brá, tão exausto que se deitara só para matar saudades da cama, antes de tomar um bom banho, a cara ainda preta de carvão e suor, a voz do Vilaça, com a corda toda, a contar histórias de Bissau, ficara colado ao colchão como um íman, a noite toda.
Quando abriu os olhos viu os dentes brancos do Sany, sentado a olhar para ele. Estava sem calças, sem botas, sem meias, em cuecas só. Sem dar por nada, o Sany tirara-lhe a roupa toda mal chegou pela manhãzinha. Saco arrumado no canto, o quarto outra vez um brinco.
Infamara Sany, herança do capitão Saraiva, era um tipo raro na Guiné daqueles tempos. Uma dedicação tão treinada que incomodava. Em frente do Sany nem se arriscava a tirar a camisa. Quando ia pegar nela outra vez, já tinha ido para lavar. Botas a reluzir, fardas lavadas a cheirar a Tide, engomadas que era um regalo, o quarto a brilhar, nunca em casa alguma em que estivera antes, vira tanta coisa tão limpa ao mesmo tempo!
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Notas:
1 - Bacar Jassi nasceu em Fulacunda, em 7 Janeiro 1944. Foi incorporado em 13 Set. 1964. Tenente da 3.ª CCmds Africanos em 1974. Fuzilado no Cumeré em data não apurada.
2 - 01/12/65, Op. "Soquete", base de Sano, zona de Barro-Bigene. Apoio do BArt 733. Com a base/aldeamento à vista, bem dentro do território do Senegal, foi decidido não atacar.
3 - Sékou Touré, Presidente da República da Guiné-Conacry
4 - Kwame Nkrumah foi Presidente do Ghana de 1960 a 1966

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

Guiné 63/74 - P14997: Convívios (701): 1º encontro da tabanca de Ferrel, 12 de agosto de 2015 - Parte I: ex-dois alferes milicianos do mesmo batalhão, o BCAÇ 619 (Catió, 1964/66) reencontram-se e abraçam-se meio século depois


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  A prova de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande: dois camaradas, alferes milicianos, do BCAÇ 619 (Catió, 1964/66) encontram-se ao fim de meio século: do lado esquerdo, o João Sacôto (CCAÇ 617), acompanhado da esposa; do lado direito, o régulo da tabanca, o Joaquim Jorge (CCAÇ 616)... Mas houve mais surpresas, que relataremos na parte II...



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Junto ao popular Riclé Bar, os dois camaradas que possibilitaram este reencontro: o Joaquim Jorge e o Eduardo Jorge, um "veteraníssimo" da guerra da Guiné (ex-al mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66) e um "pira" (ex-alf mil, PA, Bissalanca, BA 12, 1973/74)... 

O Riclé Bar, hoje gerido pela filha do Joaquim Jorge, foi fundado pelo nosso camarada, uma figura popular da terra, que é um exemplo extraordinário de "empreendedorismo social"... O nosso convívio foi realizado nas instalações do Jardim de Infância de Ferrel, uma IPSS, em cuja fundação e gestão está envolvido, inevitavelmente, o nome do nosso camarada, que passa a partir de hoje a fazer parte da Tabanca Grande,  "de jurte" e "de facto", com o nº 698... Quanto ao Eduardo Jorge, é o nosso conhecido régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, um homem sempre pronto para qualquer missão...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O João Sacôto, comandante da TAP reformado, e que veio propositadamente de Lisboa para dar um alfabravo caloroso ao seu antigo camarada de batalhão, estava encantado para a capacidade de empatia dos camaradas da Guiné: 50 anos são 50 anos,  de separação e de distância, mas ao fim de 5 minutos a velha camaradagem, amizade e cumplicidade vêm ao de cima... 

Os dois, o João e o Joaquim, só estiveram juntos em três ou quatro momentos; não sei se em Mafra, depois na formação do batalhão, na partida para Bissau, no T/T Quanza, em Bissau, e no regresso a casa... 

Depois cada um seguiu as suas vidas...  O Joaquim Jorge, profissionalmente, foi prospetor bancário, foi autarca, esteve à frente do Núcleo de Peniche da Liga dos Combatentes, liderou a luta dos ferralejos contra a tentativa de implantação de uma central nuclear na sua terra, em 1976, enfim, é um lider associativo e comunitário estimado e respeitado... Em Ferrel, na brincadeira, chamam-lhe o "dono disto tudo"... 



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  O Joaquim Jorge é um ferralejo dos quatros costados, embora tenha um avô ou bisavô paterno de origem minhota (veio de Ponte de Lima para o sul, tentar a sua sorte, com um irmão, que se instalou no concelho da Lourinhã). 

Nesta foto, vemos em primeiro plano o Joaquim Jorge junto ao monumento aos combatentes da guerra do ultramar, naturais da freguesia (que foi criada em 1985,  desanexada da freguesia de Atouguia da Baleia)... Ferrel (que incluiu a famosa praia do Baleal) deu à Pátria centena e meia de combatentes durante a guerra colonial ou do ultramar. Dois morreram na Guiné, um em combate e  outro por doença.



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Monumento aos combatentes da guerra do ultramar, erigido em 2008, ao tempo em que, se não erro, o Joaquim Jorge era o presidente da junta de freguesia de Ferrel.



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Monumento aos combatentes da guerra do ultramar, erigido em 2008 > Lápide à memória do Henrique Ferreira da Anunciação Costa, sold at CCAV 2487 / BCAV 2868, morto em combate no decurso da Op Ostra Amarga (18/10/1969, Bula). está sepultado no cemitério da sua terra. É um dos raros camaradas cuja agonia foi gravada em vídeo (por uma equipa de televisão francesa).

(Continua)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14961: Convívios (700): Encontro do pessoal da CART 1659 (Gadamael - 1967/68), a levar a efeito no dia 26 de Setembro de 2015, na Batalha (Mário Vitorino Gaspar)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14996: Bibliografia de uma guerra (77): Do meu livro "Paz e Guerra - Memórias da Guiné", excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (2) (António Melo Carvalho, Coronel Inf Ref)

1. Mensagem do nosso camarada António Melo de Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 ( e Bissum-Naga, 1969/70), actualmente Coronel Inf na situação de Reforma, com data de 16 de Junho de 2015:

Caro camarada,
Na sequência da colaboração prometida, junto envio mais um excerto do livro que publiquei recentemente sobre a Guiné.

Um abraço
António Melo de Carvalho


Do livro Paz e Guerra - Memórias da Guiné

Excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné* (2)

António Melo de Carvalho

[ … ]
Na reacção às flagelações do IN, foi o 2.º GComb que mais se destacou. Por vezes em circunstâncias muito críticas, bem vivas ainda nas nossas memórias. Mais de quarenta anos depois, em Braga. O corpo do Peixoto, durante a comissão um dos melhores cabos do 2.º GComb, comandante de uma das Equipas da Secção do Fur. Barata, tinha acabado de descer à terra. Cumpriu-se nesse dia o pressentimento que me transmitiu pessoalmente, à despedida no final do último encontro anual em Mira, em 2010. Foi dos que nunca faltou a esses encontros.
- "Meu capitão, é a última vez…"  E acertou.
O recatado luto pelo nosso companheiro de guerra prolongou-se ao sabor de uma bica, num dos cafés na proximidade do cemitério. Partilhámos vivências várias. Umas ainda frescas e em primeira mão, outras repetidas, algumas já sumidas nos recônditos do consciente.

“…aquela em que o Barata saiu de calções e botas calçadas à pressa. Os primeiros cinquenta metros foram rápidos, mas depois tivemos que amochar, porque o fogo IN era muito intenso. Enquanto aguardava a cobertura do fogo de apoio ao nosso avanço, perpassou-me pela mente um “flash” de imagens dos contrastes da vida…”, dizia-me então o Magalhães, antigo comandante do 2.º GComb, “…uns mais pertinentes que outros. Pelos meus dez anos, a minha mãe fez-me a promessa de um bom chocolate se me portasse bem durante a próxima visita de uma pessoa amiga. Foi no início da década de 1950.

As reuniões familiares eram frequentes. Algumas vezes em casa dos meus pais, em Vilarinho das Paranheiras, concelho de Chaves, e noutras ocasiões em Casas Novas, freguesia de Redondelo, também do concelho de Chaves. Pois essa pessoa era agora o chefe máximo dos homens que estavam naquele momento a fazer-nos mergulhar pela terra dentro, em busca de protecção contra o intenso tiroteio das suas armas ligeiras, pensava eu. A chicotada ainda nos feria e irritava os ouvidos, apesar dos milhares que já nos tinham passado por cima. Por sorte os regos da mancarra foram abertos paralelamente à frente Sul do aquartelamento, de onde vinha o fogo mais intenso…”.

A direcção desses valados tinha a ver com o declive do terreno. Apesar de ser muito suave, o agricultor balanta sabia que tinha de preservar a terra da erosão das águas lançadas em torrentes na época das chuvas. O saber acumulado de gerações dizia para não se afastarem muito da configuração que nós na escola designamos por curvas de nível. Quando foi planeada a implantação do quartel, não se terá chegado a este detalhe, tão importante naquele momento de reacção ao ataque. E então os regos pareciam ter sido feitos mesmo à medida, tanto em profundidade, como em largura. As abundantes chuvas daquela terra assim o exigiam. Se o declive não se aproximasse do zero, as pesadas chuvas tropicais fariam desaparecer a terra em poucos anos. Abençoado clima tropical que tanta água despejava no solo em tão pouco tempo, pensaria o Alf. Magalhães [foto actual à direita], enquanto sentia no corpo os salpicos da terra projectada pelo impacto dos tiros do IN.

“…Só nos terão detectado depois de termos progredido pelo menos duzentos metros. Por certo não esperavam este tipo de reacção. O agora líder do PAIGC, matutava eu, aquando dos meus dez anos, era o namorado da minha prima Maria Helena. As nossas mães eram irmãs. A família tinha uma grande consideração por ele e tinham medo que não me portasse à altura. Mas quando o encarei, não resisti ao medo que o seu rosto me infundiu. Fugi apavorado. Nunca tinha estado tão perto de um africano. Ainda para mais com um tom de pele tão escuro. Lá me conseguiram acalmar. Apesar de o não merecer, deram-me a oportunidade de saborear o meu doce preferido. A pouco e pouco, o contacto com esse senhor acabou por se intensificar. Por incrível que pareça, com o passar do tempo, comecei até a apreciar as visitas do namorado da minha prima, integrando-me assim no ambiente de grande simpatia e cordialidade com que o engº Amílcar Cabral era recebido por toda a família. Acabei por me tornar no seu principal fã. E a guerra não apagou esses laços com a família. Há registos que o comprovam. Nos princípios de Fevereiro de 1970, estava então a meio da comissão na Guiné, meu pai recebeu uma carta de condolências de Amílcar Cabral, com o carimbo dos correios de Paris e sem remetente, pouco depois da morte da minha mãe. Era tia e madrinha da mulher de Amílcar Cabral. Tenho pena de não ter comigo essa carta, hoje nas mãos de uma pessoa de família, porque ainda não se apagou da minha memória a confiança e admiração que aquela figura inspirava”.
[ … ]
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Nota do editor

(*) Poste anterior de 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14808: Bibliografia de uma guerra (73): Do meu livro "Paz e Guerra - Memórias da Guiné", excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1) (António Melo Carvalho, Coronel Inf Ref)

Guiné 63/74 - P14995: Os nossos seres, saberes e lazeres (110): Un viaggio nel sud Italia (1): De Roma para Salerno (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Era um sonho antigo, por razões de trabalho ou por lazer puro, cirandei ao longo dos anos entre Veneza e Milão, Florença e Pisa, Roma e outras espetacularidades conhecidas e apetecidas.
Gostava de dar uma saltada ao Sul, chegou o tempo propício. Uns pozinhos de Roma, uma fornalha que nenhuma água aplacava. E depois Salerno, escolhida para epicentro das incursões de sonhos da juventude, caso de Pompeia e não resisti à curiosidade mundana de ir até à Costa Amalfitana.
Como muitos de vós, li na juventude O Livro de San Michel, de Axel Munthe, fiquei sempre com curiosidade em confirmar aquelas belezas de Capri e arredores. Não me deslumbraram, com a suprema exceção da catedral de Amalfi.
Adiante falaremos.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (1)

Beja Santos

De Roma para Salerno

Visitei Roma pela primeira vez em 1985, vinha de uma missão da FAO em S. Paulo, Brasil, por ali andei quatro meses e meio com um projeto de educação alimentar, superentendia um chileno formado em Harvard, o prof. Hugo Amigo. Aqui arribei em 20 de Dezembro, e o encarregado do projeto submetia-me diariamente a sessões de trabalho, com base no meu relatório. Saía cedo do hotel e entrava no edifício da FAO, entre as Termas de Caracala e o Circo Máximo, tinha direito a estas vistas à hora de almoço. A 22 à noite, pedi para ir fazer compras, regressava a Portugal a 24. Um tanto à má-fila, concederam o dia seguinte, traria ainda trabalho para Portugal, era a moeda de troca. Naquele tempo S. Pedro estava aberta todo o dia mas os Museus Vaticanos tinham horário de funcionamento entre as 8h30 e as 14h. Comecei o dia na Capela Sistina, nunca me arrependia da escolha, passei todo lampeiro pelas obras de Rafael e tantas tentações por todas aquelas salas. Depois fui a S. Pedro, a tensão em que vivera todos aqueles meses com relatórios diários, reuniões intermináveis e o obrigatório trabalho de casa fizeram-me explodir em lágrimas frente ao túmulo de S. Pedro, foi uma cena de tal ordem que vieram perguntar se eu precisava de um médico.

Desta feita, a jornada centra-se em outros sonhos da juventude, Pompeia, a Magna Grécia, quero conhecer Nápoles, depois ir até Tivoli e depois Assis, e vaguear em Roma até apanhar o voo da Ryanair. Os alojamentos são proibitivos, andei à procura do mais chunga com comentários de haver higiene no habitáculo. E depois de muito consultar, Salerno era a cidade que oferecia melhores preços para ir a Pompeia, visitar a Costa Amalfitana e Nápoles. E assim se decidiu. E a 24 de Junho à noite, com um calor insuportável cheguei à Via Palestro, perto da estação terminal. Logo de manhã, atirei-me aos meus deveres.


Impressiona-me a arquitetura romana, quando se formou em Itália, no século XIX, havia que mostrar a estirpe e fazer uma cidade imperial, em 1911 os italianos conquistaram a ferro e fogo a Etiópia. As casas parecem palácios e olhar para as grandes portadas não é perda de tempo, há para ali escultura de grande valor. Ali perto da Piazza dei Cinquecento encontrei estes motivos escultóricos, comecei logo a trabalhar, veio um segurança aos gritos, as fotografias eram proibidas, tratava-se de um tribunal, pus um sorriso amarelo, esta já cá canta, Roma dá-me o que eu gosto.


Aqui está um bocadinho da fila em que me meti, duas horas de andar vagaroso, com uma garrafa de litro e meio, o calor já desabrochou, tirei muitas fotografias neste andar penitente, só vos mostro e esplendor de uma parte da colunata de Bernini, recentemente restaurada, o céu é enganador, parece translúcido com aqueles farrapos de nuvens, mas dardeja uma temperatura insuportável.


Para chegar aqui, junto da minha escultura preferida de Michelangelo, levei os encontrões da praxe, e fiquei embatucado pois esta beleza excede-me, também ela é enganadora. Circulam imensos vídeos sobre a Pietá, percebe-se que esta escultura é poliédrica, pluridimensional, para perceber como Cristo está morto e parece levitar, e este ângulo da imagem não permite ver sua Mãe no maior sofrimento deste mundo, até parece resignada. Custa sair dali. Michelangelo terá sido um homem de fé e mais do que o génio do artista o que eu lhe agradeço é a forma como comunica o sentido de dar a vida pelos outros, o núcleo da mensagem deste mármore de Carrara.



Quando se circula por S. Pedro com uma câmara tão rudimentar como a minha não vale a pena supor que é possível captar cúpulas, o baldaquino de Bernini. E não me entusiasma andar a fotografar papas, mesmo o meu querido João XXIII, embalsamado e iluminado. Assim, andei lampeiro à procura de detalhes do barroco opulento, fiquei-me por estes dois, acho-os de primeira água. Percorrido o maior templo cristão ao cimo da terra, vim gozar das delícias que a praça oferece, e não são poucas.


Apostei, veja-se a minha ingenuidade, que era possível fotografar a fonte a escorripichar para dentro do tanque. E que alegria tive quando vi que a imagem premiara tanta crença, tanta fé. Saio do Vaticano, quero um pouco de Roma, só ao fim da tarde é que parto para Salerno.



A câmara voltou a trair-me, ficaram impróprias para consumo imagens de castelos, fachadas, vestígios da Roma Imperial. Ficou incólume esta ponte sobre o Tibre e esta fonte na Piazza di Spagna, a sede atormenta-me, o calor não abranda, o melhor é almoçar, apanhar o metro e ir buscar os trastes ao albergue. O comboio parte à hora, menos três horas depois sou despejado em Salerno, pouco sei da cidade, por aqui desembarcaram os americanos em 43 depois de despejarem umas bombas, à frente da cidade estende-se o golfo com o mesmo nome.



Registei no meu canhenho que aquela igreja, mesmo à saída da agre ferroviária, se chamava igreja do Sagrado Coração de Jesus. Atraíram-me as esculturas em bronze da porta principal, tirei imagens mas estraguei-as, é um dos meus dons de amador. Por ali cirandei, gostei deste púlpito que tem reminiscências dos trabalhos da família Della Robbia, e fiquei emudecido com este sacrário, também moderno, parece um trovejar de ouro dentre um obscuro altar lateral. E ponho-me a caminho dentro do casco histórico, o quarto agora faz parte de um bed and breakfast, é simpático e tem ar condicionado. À saída dou com um jovem que é de Macedo de Cavaleiros e se diplomou na Covilhã em Economia da Energia, vem fazer aqui uma conferência. Lá fomos jantar um menu económico, estou a cabecear de cansaço e não prevejo as surpresas da manhã seguinte.



Limpo e pequeno-almoçado, a fazer fé no documento sobre as belezas arquitetónicas de Salerno, vou conhecer a sua catedral, dedicado à Virgem Maria e a S. Mateus. Já estamos no Mediterrânio Central, aqui o diálogo entre civilizações é uma constante. Gosto da cor da pedra e do vistoso que permite toda esta série de reminiscências bizantinas. E este imenso átrio de onde parece levantar-se esta espetacular torre sineira é a imagem que nunca mais me sairá da memória.



O Museu Diocesano de Salerno, acoplado à catedral, tem duas raridades de fama mundial. Primeiro, uma coleção de marfins (que se aproxima das 70 peças) que constitui o conjunto mais completo da cristandade medieval, pensa-se que do século XIII. São tão belos que os poucos que restam encontram-se no Louvre, no Museu Metropolitano, no Hermitage, em Berlim, Budapeste e Hamburgo. Só para ver estas peças justifica-se vir a Salerno. São temas do velho e novo testamento, o que aqui se mostra é a expulsão de Adão e Eva do paraíso, presumivelmente os dois a trabalhar e depois a Natividade e o anúncio dos pastores. Mas há mais, o museu conserva 11 folhas de pergaminho iluminadas do Exultet (o pregão da Páscoa) que datam de princípios do século XIII e que ilustram a oração que se recita na noite de Sábado de Aleluia. Consolado com tanta beleza, misturo-me com a pequena multidão que se passeia pelo casco histórico. Sente-se a maresia, mas apetece estar à sombra, tomar o pulso a esta pequena cidade que conheceu os horrores da II Guerra Mundial, mesmo na baixa intensidade.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14973: Os nossos seres, saberes e lazeres (109): Tomar à la minuta (11): Vinde, Divino Espírito, aqui estão os tabuleiros da nossa fé (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14994: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (19): Festa de Ferrel, 2015 - a burricada... Afinal, o que é faz correr o/a burro/a, a cenoura ou o chicote?... E hoje há sardinhada na nova tabanca de Ferrel, organização do régulo Joaquim Jorge, coadjuvado pelo régulo da tabanca de Porto Dinheiro, Eduardo Jorge Ferreira... De Lisboa vem expressamente o João Sacôto (Luís Graça)


Vídeo (1' 09''). Alojado em You Tube > Luís Graça



Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10


Foto nº 11


Foto nº 12


Foto nº 13

Peniche > Freguesia e Vila de Ferrel > Festas 2015 > 8 de agosto > A tradicional burricada na terra de Portugal que já teve mais burros por habitante...  A corrida de burros nas festas de Ferrel é uma tradição com quase meio século, atraindo largas centenas, se não milhares,  de visitantes...

Ferrel é também a terra do nosso novo grã-tabanqueiro, Joaquim Jorge,  que se vai estrear hoje como  régulo da tabanca local... Há uma sardinhada à  espera de 24 bocas... Na organização do evento participa também o régulo da tabanca de Porto Dinheiro, Lourinhã, o Eduardo Jorge Ferreira (, o tal que na outra encarnação se cobriu de glória na batalha do Vimeiro, em 21 de agosto de 1808)...

E de Lisboa vem o João Sacôto, que foi camarada do Joaquim Jorge no BCAÇ 619 (Catió, 1964/66)... Mais uma prova de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Não se veem há 50 anos...

O meu obrigado ao Joaquim pela hospitalidade e generosidade. As festas de 2015 acabaram na segunda-feira, dia 10, e o Joaquim e a Esmeralda estão a precisar de mudar de ares e de descansar...  Mesmo assim não viraram a cara à nossa sugestão, minha e do Jaime, de juntar a malta numa sardinhada, na sua terra, em pleno mês de agosto...

Obrigado também ao  Eduardo, pela cumplicidade e participação na organização. Obrigado ao Jaime Bonifácio Marques da Silva e ao João Sacôto, dois nossos grã-tabanqueiros, por terem alinhado desde a primeira hora...

Até mais logo, camaradas e amigos, por volta do meio dia...
Marcamos encontro em Ferrel.
LG

Fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados 
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terça-feira, 11 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): De 19 a 22 de Junho de 1973

1. Em mensagem do dia 6 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

15 -  De 19 a 22 de Junho de 1973


19 a 22-06 1973

Da História da Unidade BCAÇ 4513:

JUN73/19 – Forças da CCAÇ 18 detectaram e levantaram em NHACOBÁ 1 mina antipessoal IN.

Passados 15 minutos foram flagelados durante 5 minutos com cerca de 20 granadas de morteiro 60 e RPG-7 da direcção S-SW, sem consequências.  
[Este doc. Não refere a minha 2ª CCAÇ, mas estivemos todos em Nhacobá ao lado da CCAÇ 18. Há outros dados que não coincidem, mas podem ser falhas minhas].

Do meu diário:

19 de Junho de 1973 – (terça-feira) – Aldeia Formosa; Nhacobá e o nosso segundo ataque.

Missão: protecção às máquinas que trabalham em Nhacobá. Na estrada já pouco falta fazer. Para Nhacobá foi toda a minha Companhia juntamente com a CCAÇ 18 (Companhia africana). Até lá, tudo foi rotina: saída de Aldeia Formosa em coluna, chegada a Cumbijã e caminhada a pé até Nhacobá. Seguiu a “18” à frente, logo seguida do meu grupo e depois os restantes. Todo o caminho esperei uma emboscada ou coisa parecida, mas nada aconteceu. A chegada a Nhacobá foi demorada, devido à lentidão da picagem da estrada. Apesar de termos chegado a Cumbijã cerca das 7h30, só por volta das 10 e picos entrámos em Nhacobá.

Mal tínhamos acabado de montar o dispositivo de defesa e eis que se desencadeia infernal flagelação, partindo das palmeiras na orla da mata em frente, do outro lado da bolanha. O costume. Nós estávamos na orla da mata de Nhacobá, com a bolanha, portanto, a separar-nos no frente-a-frente. A resposta foi rápida e partiu principalmente da “18”, muito mais experiente do que nós. Dada a posição do meu grupo na orla, de vegetação muito densa, era quase impossível fazer fogo a não ser de morteiro. Mesmo este, após o lançamento da primeira granada, ficou inoperacional por se ter enterrado no chão demasiado mole, castigado pelos últimos temporais. Para usar a bazuca, só saindo a campo aberto, muito perigoso, mas como fez um soldado da “18” perto de mim, com um camarada incansável a municiá-lo, correndo para enfiar a granada e logo voltando para pegar outra, correndo de novo à frente... Gostei de ver, mas quando o apontador “decapitou” a palmeira na nossa frente, afastei-me para local mais recatado. Estavam a atacar-nos com morteiro 82 e com RPG que desfolhavam as árvores por cima das nossas cabeças. Não demorou mais de 10 minutos a troca de galhardetes, mas nós continuámos a fazer fogo, cerca de 15 minutos mais. É uma tensão enorme a que se sente e dez minutos parecem uma eternidade. Felizmente sem vítimas, tirando as palmeiras com bocados arrancados.

Para o meu grupo é o segundo ataque, sendo este, sem dúvida, o mais forte. Para os restantes grupos da minha Companhia é o baptismo de fogo. Acabado o ataque de flagelação, todos os trabalhos recomeçaram, tanto para as máquinas como para os homens que desmatavam à catanada e à machadada, o local do futuro (?) destacamento. Cerca das 14h30 acabaram os trabalhos de hoje e todos regressaram nas viaturas que já nos esperavam. Todos excepto a CCAÇ 18, pois que esta Companhia mártir terá que dormir ali esta noite.

Ao fim da tarde, já em Aldeia Formosa, assisti a um fenómeno meteorológico surreal, nunca visto, o mais maravilhoso espectáculo natural da minha vida: vento ciclónico manteve em suspensão um volume incalculável de finíssimo pó que, cobrindo tudo, não deixava ver nada para além de 10 metros. Nem os edifícios. Em contraluz, com o sol perto do ocaso, toda aquela espessa cortina de pó irradiava amarelo dourado, criando uma atmosfera opaca e imaterial. De repente, o vento aumentou mais a sua velocidade, desabando então uma chuva torrencial que, aos poucos, fez desaparecer aquela visão amarela e a seguir tudo lavou. Veio acompanhada de grande trovoada, que se prolongou com a chuva mesmo depois de o vento ter cessado. E prolongar-se-iam por muito tempo, a chuva e a trovoada, apanhando sem defesa quem estivesse no mato como, por exemplo, a “18” em Nhacobá.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUN73/20

- A 1.ª CCAÇ detectou e levantou em NHACOBÁ 1 mina antipessoal IN PMN.

- Máquina da Engenharia accionou perto do mesmo local 1 mina antipessoal, sem consequências.


Do meu diário:

20 de Junho de 1973 – (quarta-feira) – Aldeia Formosa; Descanso.

Dia de descanso. Em Nhacobá hoje não houve flagelação para a Companhia que foi substituir a “18”. Hoje já saíram de Aldeia Formosa alguns camaradas para férias. Em breve estarão na Metrópole e certamente que lá, estranharão que ninguém se atire ao chão quando uma porta bate.

Soube ao fim da tarde que amanhã irei com a Companhia para Nhacobá, mas desta vez para lá passar a noite. É a nossa vez. Não gelei, mas só por causa da minha actual indiferença por tudo, estúpida e sem sentido. Toda a gente tem medo, porque não o hei-de ter também? Não sei, mas fiquei indiferente à notícia. Só tenho pena dos meus soldados, esses heróis anónimos a quem tudo falta e de quem nunca tive uma recusa, tão pouco uma queixa. Reagiram sem medo ao último ataque que tivemos em Nhacobá. Mas..., e se tivessem? Que preparação técnica, física e psicológica lhes foi ministrada? A única preparação séria tem sido a dos últimos tempos aqui na zona. E têm cumprido.

Notícias colhidas já ao fim do dia: em Nhacobá foi accionada uma mina anticarro, que apenas partiu uma ponta da pá do Caterpillar que a accionou; da Metrópole um camarada recebeu, juntamente com um jornal desportivo, uma página do “Diário de Notícias” dando destaque à grande actividade militar aqui na Guiné. Não sei se é inédito, mas referenciava uma série de localidades ultimamente flageladas. Fiquei a saber que, para além de Nhacobá, Guidage, Guilege e Aldeia Formosa, que o jornal também cita mas que é do conhecimento de todos, foram também atacados mais de uma dezena de destacamentos. À data, parece que a Metrópole tem os olhos postos nisto aqui e, creio, não deve ser sem uma certa apreensão. Também a nós, cá, estas notícias com uma visão mais global da situação, deixa preocupados e consternados.

Soube também, e isso foi o que mais me horrorizou, que o meu “paraíso” de Nhala está em vias de ser atacado em grande escala, com mísseis e foguetões. Isto, segundo informações recebidas de lá e tendo por base documentos militares da hierarquia (Perintrps?). Ficaram, para mim, confirmados os boatos que corriam por aqui, a título confidencial [?] sobre a situação de Nhala. E é muito possível que ataquem, pois devem ter informação de que, em Nhala, estão apenas dois grupos de combate e um deles tem que fazer as saídas normais para o mato. Coisa curiosa é que há mais de dois anos que não há ali o mínimo problema com a guerrilha.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUN73/21

- Pelas 10h05 grupo IN não estimado flagelou durante 10 minutos da direcção S-SW, com cerca de 15 granadas de canhão-sem recuo, 30 granadas de morteiro 82 e RPG-7, forças da 2.ª CCAÇ que faziam protecção aos trabalhos de Engenharia causando 2 feridos graves.

- Forças da CART 6250 [Mampatá] detectaram e levantaram em Nhacobá 1 mina antipessoal IN.

- Máquina da Engenharia accionou outra sem consequências.


Do meu diário:

21 de Junho de 1973 – (quinta-feira) – Nhacobá todo o dia e toda anoite; 2.ª flagelação (3.º ataque no currículo).

Estes apontamentos, referentes aos acontecimentos da parte da manhã, estão a ser escritos dentro da mata de Nhacobá, mesmo em frente à bolanha que nos separa dos locais de onde normalmente partem os ataques para aqui.

Hoje a nossa missão é defendermos isto até amanhã de manhã. Até à chegada nada se verificou de anormal. Está aqui a minha Companhia e alguns grupos de Mampatá. Depois de fazermos a picagem de toda a zona, incluindo a área de trabalho das máquinas, instalámo-nos ao longo da orla da mata, frente à bolanha. Ontem foi a vez de a 1.ª Companhia passar cá a noite.

Há bocado, cerca das 9h15, rebentou uma mina antipessoal accionada por uma das máquinas que trabalham aqui na “pedreira” perto, mas sem consequências. Uma vez que o meu grupo tinha estado ali a fazer a picagem para detecção, saí para saber como aconteceu, onde estava a mina, dialogar com o operador da máquina e tentar perceber se o monte de terra onde a mina fora colocada estaria seguro para continuar o trabalho. De regresso ao meu grupo, fui surpreendido por um rebentamento forte e depois outro, e outro..., dentro da mata, em toda a volta. Era um ataque e eu abriguei-me como pude junto ao tronco de uma das árvores. Estava ainda longe dos meus homens e não podia fazer nada a não ser esperar. Esperei sozinho, sempre a contar com o pior, mas muito calmo. Entretanto as explosões prosseguiam, tanto no ar (RPG 7) contra as copas das árvores, como no chão à nossa volta (RPG e morteiro ou canhão). Isto é aflitivo, pois não sabemos qual a posição para defendermos melhor o corpo: deitados protegemo-nos melhor das granadas de morteiro mas, por outro lado, ficamos à mercê dos finíssimos estilhaços dos RPG 7 que rebentam por cima de nós em todas as direcções. Aflitivo é também o barulho aterrador das detonações em cadeia, que fazem os ouvidos zunir. E a pressão psicológica, não menos aflitiva, de sabermos que tudo aquilo é endereçado a nós e que a ideia deles é mesmo matar-nos.

[Recordo que, apesar de estar sereno - não tremia -, senti crescer um nó na garganta que quase me sufocava. E sabia que se entrasse em acção, isso passava logo].

Enfim, são minutos de incerteza e de esperança, e foi nesse estado de espírito que me apercebi da cadência de disparo do meu morteiro, lá para os lados do meu grupo. Ou pelo menos foi isso que me pareceu distinguir naquela balbúrdia de rebentamentos. Alarmado, levantei-me ainda debaixo de fogo e corri para o local do morteiro, onde cheguei berrando para que parassem, até porque se percebia já um afrouxamento da flagelação. O meu maior medo era que tivéssemos outro ataque durante o dia - ou à noite -, e nos faltasse material para nos defendermos, ao passo que ali, com tanta tropa, isso não me preocupava nada.

Já tinham lançado 16 granadas mas:
- “Meu alferes, não posso parar, agora que estou ali a ver as “saídas” deles! Além disso, ainda tenho aqui três granadas descavilhadas!
- Porra, manda lá essa merda e pára com isso senão estamos lixados, - disse eu sem outro remédio mas ao mesmo tempo agradado com o entusiasmo e o desplante do homem. E lá foram mais três granadas para o outro lado da bolanha, para aquela linha de mata fodida, talvez a uns 300 metros daqui, não sei bem. Começou tudo às 9 e 50 exactamente.

Nhacobá, 1973 – Fotografia colhida na orla da mata, vendo-se a bolanha e a mata em frente de onde partiam os ataques sucessivos.

Foi o terceiro ataque sofrido pelo meu grupo no espaço de 9 dias. Ora, como as nossas saídas são dia-sim, dia-não, verifico que em 4 dias e meio, fomos atacados 3 vezes. Esta flagelação teve a duração de 10 minutos (como a de anteontem), mas foi mais violenta e à base de morteirada. Da nossa parte a resposta foi imediata e com grande potencial porque estão aqui seis grupos de combate, creio. Mesmo depois de se terem “calado”, ainda batemos aquela zona durante bastante tempo. Só que desta vez não fomos tão bafejados pela sorte, como nas vezes anteriores, pois tivemos vários feridos: dois milícias (ou soldados da CCAÇ 18?), com ferimentos ligeiros na cabeça e nas costas, e dois soldados do grupo do meu camarada Alf. J. A. C. P. com ferimentos graves. Estes foram logo evacuados nas Chaimites, mas receia-se já pela vida de um deles, que tinha dois grandes buracos nas costas, (supõe-se que com estilhaços dentro) e grande perda de sangue. Quando saiu já mal falava e, infelizmente, foi sem que um dos nossos auxiliares de enfermagem tivesse chegado junto dele para o assistir.

[Hoje, (Agosto de 2015), devo referir um episódio relacionado com estes dois feridos graves e que não foi registado no meu diário. Antes, dizer que felizmente, ambos regressaram um dia de Bissau e que, por determinação louvável do Cap. B. da C., não mais sairiam para o mato. Ficaram com o encargo das messes e respectivos bares até ao fim da comissão.
É referido atrás, no meu diário, que estes feridos não tiveram assistência de enfermagem antes da evacuação, mas não recordo o motivo de não ter aparecido o auxiliar de enfermagem do 1º grupo de combate a que pertenciam. Recordo, sim, um episódio relacionado e que, na altura, me deixou irritadíssimo e que se passou assim: após aquele diálogo entre mim e o apontador do morteiro do meu grupo que queria lançar as granadas todas, ainda durante a flagelação mas quando já dava o diálogo por encerrado, começámos a ouvir gritos aflitos que, pareceu-me, reclamavam um morteiro. Reconhecemos a voz do alferes do 1º grupo, já citado, que se encontrava bastante afastado de nós e que parecia dizer com insistência: “— Trás morteiro! Trás morteiro!”. Meio perplexo, porque ele também tinha morteiro e porque a flagelação dava sinais de parar, ainda admiti que tivesse perdido o morteiro enterrado no chão e que quisesse continuar o contra-ataque. Não dava para perceber, nem havia muito tempo para isso. Eu, com o apontador e o municiador do nosso morteiro, pegámos nas granadas e no tubo e corremos como malucos pela mata fora, - julgo que já sem rebentamentos à volta -, para chegar ao local de onde partiam os apelos. Ainda não tínhamos chegado bem, quando o alferes, vendo-nos e percebendo o equívoco, berrou furioso: “— Não é o morteiro, é o enfermeiro!...” Eram os nervos à flor da pele. Fiquei ainda mais furioso do que ele, até por não saber porque não tinha enfermeiro. Mandei de volta o morteiro e as granadas e a ordem para vir rápido o nosso cabo enfermeiro, mas já não chegou a tempo, pois os feridos tiveram de ser evacuados para A. Formosa. Ainda recordo o Alf. J. A. C. P. de joelhos no chão amparando o seu soldado ferido nas costas. Eram realmente dois ferimentos impressionantes].
Segue o meu diário.

As árvores, junto do local do rebentamento da granada de morteiro que feriu os quatro soldados, estão crivadas de estilhaços por onde, agora, corre seiva. O alferes pode considerar-se feliz: estava atrás de uma árvore a uns seis metros do local onde caiu a granada e não sofreu absolutamente nada. Também à mesma distância e atrás de outra árvore se encontrava o ferido mais grave, só que não estava deitado mas sim de joelhos. Um erro que lhe saiu caro.

Pouco antes desta flagelação, a nossa aviação tinha largado bombas não muito longe daqui mas, por azar, tinha-se afastado, talvez para trazer mais. Já depois de tudo ter acabado, apareceram novamente e estiveram a bater a zona, tendo algumas das bombas caído quase junto a nós, um pouco para a direita. Seguiu-se o vaivém do costume e por longo tempo: iam a Bissau buscar os seus ovos mortais e vinham depois aqui desovar, regressando de imediato para trazer mais. Isto dá-me alguma tranquilidade, já que temos que aqui passar a noite.

Entretanto, também os obuses de Cumbijã faziam o batimento da zona, mesmo na nossa frente, seguindo as indicações que pela rádio lhes eram transmitidas por um dos grupos de Mampatá (creio que do camarada Farinha), que estão aqui connosco.

Chegou há momentos até mim a informação de que, ali atrás, junto aos trabalhos da Engenharia, foi encontrada uma “Viúva Negra”. Mais uma mina que escapou às picas. Fui inteirar-me do ocorrido: um soldado agachou-se encostado a uma árvore para se sentar e, ao pôr a mão no chão, sentiu a terra fofa e algo duro por baixo. Teve um estremecimento e um palpite certeiro: ia sentar-se em cima de uma mina antipessoal. Ergueu-se e tratou de que a pessoa certa fizesse o levantamento da mina. São neste momento 13 e 55. Às 14 e 30 acabarão os trabalhos de Engenharia e certamente sairemos daqui para uma posição mais recuada onde passaremos a noite.
[Penso que a ordem era dormirmos dentro de Nhacobá, mas como tínhamos de ser nós a usar o bom senso para nos defendermos, afastámo-nos para as imediações].

(Apontamentos continuados já em Aldeia Formosa, no dia seguinte). Afastámo-nos cerca de 500 metros de Nhacobá e instalámo-nos paralelamente à estrada para Cumbijã, 15 metros dentro da mata. Ainda de dia, vimos aproximarem-se três Fiat que, de repente, picaram em direcção a Nhacobá e todos largaram fiadas de bombas que rebentaram no solo com um fragor assustador.

São quase 18 horas e eu como alguma coisa da ração de combate. O pessoal, como sempre, acomodou-se sem cerimónias num longo cordão humano. Está aqui toda a 2.ª Companhia. Aproveitando o entardecer sereno, tento cortar capim com a faca de mato para acondicionar, sob o pano de tenda, o local da pernoita. Digo, tento, porque tenho uma rotura no pulso esquerdo e quase não posso fazer força. Para piorar, ao agarrar o capim com essa mão, sou picado por uma abelha mesmo entre os dedos. Faço nova tentativa, mas de novo aperto outra abelha juntamente com o capim: nova picadela. Receando ficar com mão inchada, desisti. Tudo corre mal hoje! Resolvi então descansar um bocado, pois já não me seguro de pé com o cansaço e o sono. Previno o rapaz das transmissões e o enfermeiro que estão junto a mim, e deito-me no chão todo abotoado, embrulhado no pano de tenda e com meias grossas enfiadas nas mãos. Transpiro sem parar, mas só assim consigo evitar um pouco os malditos mosquitos.

Nhacobá, 21 de Junho de 1973 – Eu, junto do capim das abelhas, na mata onde passaria a noite.

Sem legenda.

Acordo já de noite e está tudo calmo. Tento dormir mais umas horas, mas o zum-zum dos mosquitos é desesperante e já estou cheio de picadelas. Até nas costas me picaram através do pano de tenda e do camuflado.
[Havia um soldado que, modulando a voz para imitar o zumbido dos mosquitos, dizia: “Tennnnnnssssssss..., companhia!!!”. Conseguia animar todos à volta e animar-se a si próprio para que as picadelas não doessem tanto].

Como se aproxima o temporal do costume, a estas horas, prefiro sentar-me enrolado de novo e esperar. Não tardou nada para que viesse a chuva, mas desta vez não durou mais de uma hora. Enquanto choveu estive de costas contra uma árvore e sentado nos calcanhares, para evitar a enxurrada por baixo de mim. O dilúvio entrava-me pela cabeça e pelas costas e escorria-me continuamente pelo cu. Tive de alhear-me e manter-me quieto, enquanto por cima de nós, para ajudar, desabava uma potente trovoada. A cada relâmpago as árvores na nossa frente, subitamente iluminadas, pareciam agigantar-se e tombar sobre nós, ameaçadoras, para logo parecer que se afastavam com o regresso do negrume da noite. Isto não é mesmo para meninos. Cessou a chuva mas os relâmpagos ainda persistiram por muito tempo, até que gradualmente se afastaram, permanecendo ziguezagueando lá longe como fitas de luz azul.

À minha volta não vejo nada nem ninguém. Acabados os relâmpagos, parece que fiquei sozinho. Será que todos dormem? Faço-me novamente num rebuçado, todo encharcado, e durmo várias horas seguidas mas com pesadelos. Vi vários vultos no meio da bolanha de Nhacobá a prepararem um morteiro e ouço, quase a seguir, uma brutal explosão junto de mim. Dou um salto e tiro à pressa o lenço de seda que me protegia a cara e pergunto ao rapaz das transmissões onde foi a explosão. Ele, assustado com a minha atitude, demorou a responder, mas depois lá disse que não tinha acontecido nada. Realmente, reparo, e à volta está tudo tranquilo. Tento adormecer novamente, mas os mosquitos são aos milhares e dão-me cabo dos nervos. Quase enlouqueço com tal tortura.

Volto a acordar e tudo continua calmo. Desta vez até a noite parece menos feia. Lá no alto está a lua um pouco pálida, mas com a sua fraca luz, já impede que os arbustos e as palmeiras, ao mexerem na escuridão, me pareçam figuras fantasmagóricas. Esta maldita noite parece não ter mais fim. Adormeço novamente e, desta vez, têm que me acordar, pois já é dia e temos que sair imediatamente para Cumbijã.

(22-06-73). Preparamos tudo e lá seguimos estrada fora, cheios de precauções e carregados com caixotes de granadas que nos entregaram ontem num reabastecimento tardio.
[Afinal não era preciso poupar nas granadas!].
Finalmente, chegamos pelas 7 e picos a Cumbijã, já todos transpirados e esgotados. Aguardámos a coluna normal da manhã e regressámos a Aldeia Formosa nas viaturas que trouxeram a 3.ª Companhia que nos vem substituir. Chegamos a Aldeia Formosa, temos o resto do dia para descansar.

À tardinha vem-me avisar que o Oliveira (Tarouca) se está a sentir mal e já não fala. Corro a arranjar uma Berliet e peço ao Capitão de Operações J. C. que me previna o médico. Saio na viatura com os meus furriéis em direcção à escola de Monsanto, onde tinha o meu grupo instalado, e trouxemos o rapaz para a enfermaria onde já nos esperava o médico que, depois de o auscultar-analisar, lhe receitou uma série de medicamentos que depois os enfermeiros se encarregarão de lhe ministrar. Suspeitam de princípio de paludismo com uma infecção renal. Vai ficar algum tempo na enfermaria até recuperar.
[Admiração é não termos ficado lá todos na enfermaria!].

Soube ainda hoje que os dois soldados do grupo do Alf. J. A. C. P., ontem feridos em Nhacobá, devem estar fora de perigo, porque quando foram evacuados de avião daqui para Bissau, já falavam calmamente. Soube também que a 3.ª CCAÇ, até à noite, ainda não tinha tido problemas em Nhacobá.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14971: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (14): 15 a 18 de Junho de 1973