sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Vai-se a uma instituição universitária à procura de uma potencial leitora que amenize a vida de um cego culto que pretende os serviços de alguém que goze de boa dição, e enquanto se espera lê-se num jornal da respetiva associação de estudantes um texto magnifico, fala-se de uma África que corre nas veias de alguém que se ri de todos aqueles que supõem que África não tem História. O que deu para pensar a quem ali foi que teve também almoços como aqueles, com moamba, funge, pirão, brancos, mestiços e pretos à volta, tudo em risada desbocada. E assim se cozeram duas falas e o produto é o que se segue.

Um abraço do
Mário


Diário de Ébano, por Sofia Yala Rodrigues

Beja Santos

Há bem mais de 30 anos que eu não entrava na Faculdade de Letras de Lisboa. A fachada, concebida por Almada Negreiros, mantém-se intocável, felizmente. O átrio principal mudou muito, é um convidativo espaço de marketing lucrativo e de causas, as paredes bem pintadas, desci até ao piso inferior, depois de olhar nostalgicamente para as vitrinas onde se afixavam as pautas, onde se anunciavam as conferências, as datas das frequências e dos exames, a sobriedade do passado desapareceu, é tudo rutilante, um quase chamamento de relações públicas. No piso inferior, foi confrontado com vendas de livros, novos e usados, atravessei um corredor infindável até chegar à associação de estudantes, era esse o meu objetivo. Sempre tentado pelas bancas, lá comprei António Carreira, André Álvares de Almada e mais uns papéis, a Guiné é o meu fado. Procurava uma jovem com cultura e boa dicção, para ler a um cego exigente, alguém que não gosta de vacilações na voz. A menina que me ia atender estava em derriço numa chamada telefónica, mandou-me sentar e eu obedeci. E estes casos, como nas esperas dos consultórios, tenho um impulso automático e saco de um livro, desta feita chamou-me à atenção o jornal da associação com o nome “Os Fazedores de Letras”, mais a mais com um título provocatório na capa “como se Deus sofresse de um reumático do Diabo”. O telefonema era interminável, embrenhei-me na leitura deste jornal referente ao mês de Setembro, a menina com os cotovelos no balcão continua a falar de ordens de batalha no campo dos estudos, entra gente e logo recua, apercebem-se da indisponibilidade da rececionista. E é nisto que um texto me engole por inteiro, uma África plena, uma saudade luxuriante, quem quer que tenha escrito esta belíssima página tem África no sangue e no coração e senti-me no dever (entenda-se no gostoso dever) de transcrever para gente ofuscada por África este...

Diário de Ébano
Sinto o cheiro a óleo de palma, oiço as conversas e vejo o Sol a atravessar a persiana do meu quarto. Ao fundo do corredor uma melodia de vozes femininas e o barulho de água a escorrer na cozinha. Falam em Kinkongo, concluo que é razão para saltar da cama e correr pelo corredor como uma louca. Ao chegar à cozinha perdi o Alzheimer temporal, como é óbvio. É Domingo porque a cozinha cheira a Fubá e a minha tia Ngundu está a fazer funge ou fu fu, como dizem os meus primos franceses. O Kiluanji também veio, consigo ouvi-lo cantar para os pombos na varanda.

Na minha casa come-se funge somente ao Domingo, porque é o único dia em que conseguimos reunir a família e sentar à mesa sem horas e sem compromisso. O meu pai insistentemente conta que no Kakongo comia funge todos os dias, tenho a certeza que na altura devia ficar farto mas hoje ele conta essa história sempre em tom saudoso.

Voltei, a saltitar de felicidade, para o meu quarto, arranjei-me e por fim peguei no meu pente favorito e penteei o meu cabelo o melhor que podia para reavivar o meu afro que agora estava parecido ao da Kathleen Cleaver ou da Angela Davis. Sou linda e serei uma guerreira, tal como elas. Olho para a janela e parece feriado, Domingo à portuguesa, a minha vizinha do rés-do-chão está a ver “Portugal em festa”, a senhora adora partilhar os sons televisivos pela vizinhança.

Enquanto todos falam à mesa, apenas consigo olhar para a beleza do feijão do óleo de palma, a perfeição do funge e o lindo peixe seco e o molho envolvente a fluir no meu prato cheio de vida. A mesa está repleta de iguarias e por isso tenho que acabar de comer este para a próxima rodada. Quando dou por mim, estão a falar sobre História. O meu tio Jonas é professor numa escola secundária e tem muito gosto em lecionar e em partilhar com a família todos os acontecimentos ao longo da semana. Desde que sou pequena que Jonas faz questão de transmitir e fazer despertar a minha identidade cultural. Agora entendo-a perfeitamente. Conheço o império de Benim, o império Songhai, o império Monomotapa, o império do Congo. O meu tio é o meu herói, porque sempre que oiço a parte dos “Descobrimentos” na escola dá-me vontade de rir, mas ele ensinou-me que a vida é feita de perspetivas. Muitos jovens como eu, só sabem a história que é lecionada na escola, nunca saberão o que foi o pan-africanismo, no máximo saberão que estas pessoas não tinham alma e que pertenciam a correntes de dor e de servidão. Acordei de mais um prato delicioso, agora olho para o rosto negro do meu tio, olhos desenhados e lábios contornados, feições de guerreiro que me relembram os velhos contos da minha avó “jovens de corpos estéticos da cor do ébano, verdadeiros guerreiros do Deus da Terra”.

Desvia o olhar com um muxoxo e disse que estou com olhos de mvumbi ankengele, parei de olhar e comecei a rir. Começou a contar que enquanto transferia conhecimentos sobre o mundo a uma turma, o seu jovem aluno André, baralhado com a história sobre o reino de N’zinga disse: “O meu pai sempre me disse que África não tem História”. Olhamos uns para os outros e a mesa transformou-se numa explosão de gargalhadas, até a minha tia Ngundu começou a rir, o que é bastante raro. Todos afirmamos: “Como será possível alguém existir e afirmar tal coisa?”.

Sofia Yala Rodrigues


Imagem extraída do blogue Coisas da Vida, com a devida vénia

Depois sou atendido, conto a minha história, a rececionista toma conta do meu caso, estou mais ausente que presente, porque em minha casa é Sábado, vai haver funge aprimorado pela avó Ângela, batem à porta e entram mestiças, pretas e brancas ruidosas, nasceram ou viveram em Lucala, Vila Salazar, Malanje, são grandes amizades que deixou Angola nas minhas ancestrais, riem desbocadamente, as bocas avermelhadas pelo óleo de palma, é impossível seguir aquelas conversas, fala-se de missangas, malaguetas, obras em marfim, há fotografias que passam de mão em mão, entre exclamativas, risinhos de assombro. Este foi o meu diário de Ébano, que vim imprevistamente reencontrar à entrada de uma associação de estudantes, e rio-me para dentro, a nossa África tem história, aquele de que sou portador no sangue e mais aquela que são os laços estabelecidos lá no num ermo da margem direita do Geba, em que recebi o nome de família, numa terra que está adubada em sangue, em sofrimentos mil, e de onde verdadeiramente nunca saí. Percebo muito bem do que é que Sofia Yala Rodrigues faz mofa, daquele passado, presente e futuro em que ignora África, os seus odores, fragâncias, lianas nas florestas, palmares soberbos, pedaços de Éden, é nesse ambiente que se ergueram culturas, idiomas e se multiplicam artes que os ocidentais provincianos chamam por arte tribal.

Que privilégio ter um diário de ébano, comentei para mim, sonhador, quando saltei para o autocarro e me atirei para a chamada civilização superior.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15266: Notas de leitura (768): “Jarama", por Albino Barbosa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15282: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte XVI: A tabanca, a bolanha e o porto fluvial de Bambadinca ("cova do lagarto", em mandinga)


Foto nº 1 > Bambadinca, vista do depósito de água: lado norte / nordeste: tabanca, estrada para o rio e acesso à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá


 Foto nº 2  > Vista do quartel de Bambadinca: lado norte /noroeste (?)


Foto nº 3 > Tabanca de Bambadinca e rio Geba: Vista do lado norte / nordeste: a rua principal, com o edifício dos correios ao centro, e o início da rampa de acesso ao quartel e posto administrativo... Bambadinca, alémdos CTT,  tinha escola primária, capela e diversos estabelecimentos comerciais.


Foto nº 4 > Quartel de Bambadinca: vista de norte / nordeste de parte da tabanca e ao fundo o rio Beba


 Foto nº 5 > Quartel de Bambadinca: vista da grande bolanha, a sul/sudeste...


 Foto nº 6 > Bambadinca: porto fluvial



Foto nº 7 > Bambadinca: porto fluvial... Cais acostável


Foto nº 8 > Bambadinca: porto fluvial,. Cais acostável (foto anterior a novembro de 1969, quando a velha autogrua Fuchs foi substituída por uma autogrua Galion)




Foto nº 9 > Bambadinca: porto fluvial... Entardecer


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca >  Pel Rec Daimler 2046 (1968/1970) >  Tabanca, bolanha e porto fluvial (no Rio Geba Estreito)


Foto (e legenda): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Continuação da publicação do belíssimo álbum fotográfico do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968 / fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1904 e BCAÇ 2852) (*).


[foto atual à esquerda o Jaime Machado reside em Senhora da Hora, Matosinhos; sua avó paterna era moçambicana; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]

Sobre as fotos do porto fluvial de Bambadinca (nºs 6 a 9), vs, os postes P13918 e P13956. Estas fotos são já da época do comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70). (**)

São fotos anteriores a novembro de 1969... Já aqui recordámos que, a partir de 24 de novembro de 1969, a administração do porto de Bambadinca passou a dispor dum autogrua mais potente, a Galion, que veio substituir a auto grua Fuchs (que se sê na foto nº 8).

Na história do BCAÇ 2852, lê-se que no dia 25/11/1969, o 2º comandante do BENG 447 visitou a sede do batalhão, visita essa que só pode estar relacionada com a entrega da autogrua Galion, permitindo melhorar as operações de carga e descarga no porto fluvial de Bambadinca.

A autogrua Galion veio de LDG de Bissau até ao Xime (, agora com um novo cais de acesso, a partir de outubro de 1969, se não erro) e depois foi escoltada pela CCAÇ 12 até a Bambadinca, numa viagem cheia de peripécias que nos obrigou a dormir no mato, devido a um enorme atascanço a meio do troço (,ainda não havia estrada alcatroada!)...

Nessa dia, 24 de novembro de 1969, o nosso querido camarada e amigo Tony Levzinho celebrou as suas 22 primaveras com a companhia infernal da mosquitada,

Xime e Bambadinca "alimentavam o ventre do leste"... Por aqui passaram milhares e milhares de homens, e grandes quantidades mantimentos, munições, viaturas e outro material de guerra. (LG)

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29 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13956: (Ex)citações (253): de facto sou eu, estou a preparar o embarque de um jipe Willys com destino a Bissau (devidamente canibalizado)...E aproveito para recordar a BOR, embarcação civil que fazia transporte de tropas com uma pequena escolta de fuzileiros (Ismael Augusto, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15281: As Nossas Tropas - Quem foi quem (13): comodoro Alberto Magro Lopes, comandante da Defesa Marítima (CDM), CTIG (1971/72) (Manuel Lema Santos 1º ten RN, imediato no NRP Orion,1966/68)


Foto nº 3


Foto nº 3 C

O gen Spínola com um grupo de marinheiros [, condecorados]. Circa 1971

Foto (e legenda) : © Ernestino Caniço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem do Manuel Lema Santos [, 1º tenente da Reserva Naval, imediato no NRP Orion, Guiné, 1966/68; membro da nossa Tabanca Grande desde 21 de abril de 2006] [, foto atual à esquerda]:


Data: 22 de outubro de 2015 às 11:02
Assunto: Foto com comodoro Luciano Bastos ?


Caro Luis Graça,

Correspondendo ao teu voto de saúde: caminha-se, um dia de cada vez, enquanto a saúde o permitir. E não é nada mau...

Em relação às fotos que estão publicadas no poste P15275 (*),  refiro apenas a nº 3 que julgo ser a foto base. As outras serão recortes ampliados daquela.

Todos os condecorados são fuzileiros (alguns sargentos), julgo que com excepção de um militar do Exército (o segundo do lado esquerdo). Não consigo identificar nenhum.

O general António de Spínola está acompanhado, à esquerda, pelo comodoro Alberto Magro Lopes, Comandante da Defesa Marítima [CMDM] da altura, cargo que exerceu entre 25FEV71 e 06MAR72.

Conheci-o bastante bem pois anteriormente, ainda em CMG, foi Chefe do Estado-Maior do Comando Naval do Continente onde eu, entre AGO68 e MAI70, desempenhei as funções de ajudante de ordens do Vice-Almirante Francisco Ferrer Caeiro, Comandante Naval do Continente e da Base Naval de Lisboa. (**)

Como sabes estive na Guiné de 1966 a 1968, onde ele próprio tinha sido CDM Guiné entre 11SET64 e 11SET67.

Espero corresponder à informação que solicitaste.

Abraço para todos,

Manuel Lema Santos

Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

1. Parte XVIII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XVIII


1- Extinção da Companhia de Comandos do CTIG 

Um Allouette mergulhou numa bolanha, no sector de Tite, não se sabia ainda se fora atingido ou se fora um acidente. Desencadeou-se uma autêntica batalha, daquelas que só se vêem nos filmes. 
O grupo guerrilheiro, talvez por ser pouco numeroso, não se atreveu a sair da mata. Um grupo reduzido de Comandos foi rapidamente transportado para o local, para proteger o heli, sob fogo da mata. O Coronel Kruz Abecasis, Comandante da Base Aérea, ele próprio a pilotar o Dakota, meteu os páras dentro do avião, largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo! 

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos Allouettes foi transportado noutro heli para o local com o equipamento necessário para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu? 

Entrámos em Maio. Dia a dia, a Companhia de Comandos aproximava-se do fim, quase todas as semanas lá se ia mais um ou dois com a comissão terminada. Feitas as contas aos efectivos e às previsões para as saídas dentro dos próximos três meses, o capitão propôs ao Comandante Militar concentrar o pessoal remanescente num grupo e fechar as instalações da Companhia. 

Em Lamego estavam a formar-se companhias de Comandos. Lá para Agosto chegaria a Bissau uma, e um ou dois meses mês depois esperava-se outra. O capitão mostrou-lhe o relatório com o despacho do Brigadeiro Comandante Militar. Proceda-se. Foi o que fez, reuniu-se com os chefes de equipa e comunicou-lhes que, por insuficiência de efectivos, a Companhia de Comandos do CTIG iria ser extinta. 

E agora qual vai ser a nossa situação, voltamos para as nossas unidades de origem, como vai ser? 
Mantemo-nos aqui até ver, à ordem do Comandante Militar, o nosso capitão vai ser colocado no QG, mas tanto quanto sei não pretende lá ficar.

No dia 20 de Junho procedeu-se à cerimónia do encerramento da actividade da Companhia de Comandos do CTIG. Os que sobraram dos outros grupos passaram para o Grupo "Diabólicos". 
Às 09h00 estava o pessoal formado na parada de Brá. Os que estavam prestes a acabar a comissão, o pessoal da secretaria, da manutenção e os que tinham ainda alguns meses até ao final da comissão.

Os “últimos” da Companhia de Comandos do CTIG 

Comandos com a comissão terminada ou em vias de a acabar 


A foto apanhou-os em sentido, o Sargento Cordeiro, os Furriéis Ázera e Valente de Sousa, o Black, o Jamanca, os resistentes todos, continência ao Capitão, o Guião nas mãos de uma escolta, o pessoal de apoio ao lado. 




Furriel Valente de Sousa recebe o guião das mãos do Furriel Guedes. 

O Capitão Leandro mandou ler alguns louvores que o Governador e o Comandante Militar concedeu, despediu-se, direita volver, destroçar. 


O último desfile em Brá. Acabava assim a CCmds do CTIG. 

Tudo na mesma como até aqui, só somos menos, o resto tudo igual, instrução todos os dias, horários habituais, mais unidos que nunca.   Vários comandantes de Batalhão tinham solicitado ao Comandante Militar que o grupo ficasse em permanência nas respectivas sedes, o Brigadeiro decidira manter, para já, o grupo em Bissau às suas ordens directas. 

Dias depois, para não perderem a forma, foram até Canjambari, sector de Farim. Desembarcaram do Dakota em Farim, apanharam uma coluna para Jumbembem e, logo a seguir, outra para Canjambari. 

Saíram daqui mal a noite caiu, aproveitando a escuridão. Viu-se logo, desde o início, que era mais uma operação sem objectivo definido. Quando chegaram ao rio, nem o local da cambança o guia descobriu. Num local que lhes pareceu mais estreito, socorreram-se de uma corda para passar para o outro lado, uma operação dentro da operação, demorou horas, escuridão quase total. 
Há jacaré aqui, lembrou-se um de perguntar. Hááá… manga deles, afirmaram convictos os dois milícias que os acompanhavam. Quando se ouviu um chlap na água que lhes pareceu suspeito, a travessia acelerou, todos ansiosos por alcançar a outra margem. 

Cambado o rio, internaram-se no mato por um trilho, andaram e andaram. O guia, a tremer todo, dizia não saber como dar com o trilho de acesso ao acampamento, ou não queria levá-los lá, o que deu no mesmo. 

Voltou tudo à calmaria, aproveitaram o local para descansar um pouco, alguns passaram mesmo pelas brasas, os outros alerta até que o dia abriu os olhos a todos ainda não eram 6 horas. Em movimento, pela mata dentro, ribeiro ao lado, um jacaré na água, macacos a ganirem, aos saltos nas árvores, trilhos fora, sinais recentes de passagem, o costume. 

Passou-lhes uma Dornier eram para aí 11 da manhã, entraram em contacto rádio, seguiram para oeste conforme indicação do PCV, 5 kms no máximo, uma bolanha e aguardaram aí, onde foram recolhidos. 

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2 - Mansoa

Mansoa ficava a uns escassos 60 quilómetros de Bissau, uma estrada alcatroada que se fazia com o ponteiro do conta-quilometros a bater nos 80, 90, um depósito inteiro antes, uma paragem em Nhacra para ver o óleo, combustível, arrefecer uns minutos, arrancar depois, pé na tábua outra vez, passar a ponte sobre o rio e estava-se na entrada da povoação. 
Era uma cidade para os padrões locais, uma povoação estratégica, a unir Bissau a Bissorã por um lado, a Mansabá pelo outro, o Olossato acima, o K3 na estrada para Farim. As outras ligações de Mansoa para leste, Bafatá, estavam desactivadas. Era um dos vértices do muito falado triângulo do Oio, famoso pelo trabalho que o IN dava às NT. 


Os guerrilheiros até à data dentro do tal triângulo, Mansoa, Bissorã e Mansabá, pareciam querer sair dele, alargar a guerrilha a outras paragens, aproximar-se de Bissau. Começaram a andar às voltas da tabanca de Mansoa, flagelações de longe primeiro, uma ou outra morteirada uns dias depois. Achando que lhe dava jeito dispor de mais uma força operacional, o comandante do batalhão de Mansoa pediu ao Comandante Militar que o grupo se deslocasse para lá.

Já se conheciam de outras guerras. O Tenente-Coronel Lemos comandava um batalhão martirizado que estivera uns tempos em intervenção, a apagar focos da guerrilha, as companhias dispersas por onde calhou, até estacionarem em quadrícula no sector de Mansoa. 
Encontravam-se outra vez, com outro coronel a assistir, o comandante do agrupamento, um homem macio, afável, num corpo grande, uma imagem passiva, de escassas palavras, sim, talvez, boa ideia, hum, ah, da boca dele não se ouvia muito mais. 

O tenente-coronel descreveu a situação, o que o batalhão encontrara quando chegara, não muito confortável, acentuou, e conseguira, disse, mantê-los dentro do triângulo, à caça deles quase todos os dias, e eles agora outra vez a darem sinal, como se o triângulo já lhes fosse demasiado apertado. Estão aqui, às nossas portas! Sempre devem ter estado, se calhar, alvitrou para o lado. 
O seu grupo fica por determinação do nosso Comandante Militar aqui às minhas ordens, para o que for preciso

Alojaram-se na povoação, um pré-fabricado para as praças, um quarto para os furriéis. E ficaram à espera, prontos para o que desse e viesse.  Era uma zona propícia a muita informação, notícias chegavam a toda a hora, viam-se ansiedades nalguns rostos, razões não lhes faltavam, mas a povoação de Mansoa mantinha-se até agora fora do alcance do fogo inimigo. O maior barulho que ouvira, aliás, uma semana já passada, fora afinal, um grande estrondo de um raio a atingir o posto rádio, disseram os que viram, ele, sentado debaixo de um alpendre num final de tarde, só ouviu o barulho e viu militares e civis a correrem, chuva da grossa a desabar-lhes em cima. 
Deixou-se ficar, estava na maré de não correr por aí além, as forças, que já não eram muitas, para quando fossem precisas. A chuva passara, o ar clareou, os militares e os civis regressaram, a rirem-se, para as coisas que estavam a fazer. 

No 14-04, Alegre ao lado, pé na tábua para Bissau, matar saudades das ostras e do frango assado do Fonseca. A época das chuvas que começara timidamente em meados de Maio, estava agora em pleno, chuveiradas frequentes, das grossas, logo o sol a aparecer, a estrada secava num raio, até fumo nascia do alcatrão. 
Em Bissau deu as voltas que tinha a dar, encontrou gente conhecida, conversa até se fazerem horas, o Alegre e o Furriel Valente de Sousa a chegarem. 
Embora que se faz tarde, outra vez para Mansoa, nem pararam em Nhacra, o motor do jeep no máximo, sentia-se o calor do motor, tens visto o óleo, claro meu alferes, não só visto, atestado também. Já de noite, à chegada a Mansoa, polvorosa no ar. Que aconteceu? O nosso tenente-coronel tem andado a tarde toda à sua procura. 

Você pregou-nos um susto danado, temos estado a tarde toda à rasca por sua causa! Porquê? Chegou uma informação, estava montada uma emboscada na estrada para Bissau, a seguir à ponte! Contactámos o QG, andaram e devem estar ainda à sua procura, não o encontraram em lado nenhum. Não volte a sair assim, quando sair avise-me antes, e leve o grupo todo consigo!

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3 - Valium 

Mansoa era uma povoação já com muita gente, com muito movimento, a estrada para norte a rasgá-la em duas, casas maiores de um lado e doutro, atrás as do pessoal nativo, vielas estreitas, uma ou outra esplanada onde se servia muita cerveja e mancarra. Via-se tudo em 2 horas, desde que se parasse meia hora em cada esplanada, desculpando o exagero. 
Dois ou três soldados do grupo começaram a ser vistos na loja de uma família libanesa com três meninas, de idades próximas das deles. Mas, pelos vistos, não tiveram grande a sorte, quando por lá apareciam, parece que elas se evaporavam. Depois passaram a rondar a tabanca, cheiravam-na à procura das bajudas, de alguma mais interessante, se não houvesse, outra qualquer que lhes desse corda, umas cervejas pelo meio para desinibir, tantas que às vezes transbordava para fora da boca, impropérios no meio.
 
Um soldado desses, um valente alentejano, deve ter acordado naquela manhã cheio de sede. Tinha começado a beber logo ao acordar, acrescentara-lhe bem ao almoço, prosseguira durante a tarde a conversa com as loiras, começou a ver morenas por todo o lado, não resistiu a uma, passou-lhe os lábios pela cara, a mão pelas mamas, entusiasmou-se demais, estava visto. 
Burburinho, o dono dela aos berros, não toca nela, a tabanca agitada, anda daí, os camaradas a puxá-lo, qual quê, só quero esclarecer, está tudo esclarecido, anda daí, não saio daqui sem esclarecer o assunto, a algazarra a aumentar. 

O Furriel Ázera chamado ao barulho aplicou-se com tanto cuidado a acalmar que a coisa esfriou. Meteram-no na camarata, talvez um sono lhe fizesse bem, enganaram-se, apareceu na esplanada, parecia que tinha o diabo no corpo. 

Elementos do grupo em Mansoa. Julho 1966. 

Quando deram por ela, Portugal estava a perder por 3 a zero, os coreanos com foguetes no rabo, apareciam aos milhões por todo o campo. A esplanada fria, o entusiasmo a ir-se, correra tudo tão bem até este jogo. A primeira parte ainda a meio e o Eusébio enfiou a primeira. A confiança não era muita, os aplausos e gritos que se ouviram foram mortiços. Já muito próximo do intervalo, penalti, outra vez as redes dos coreanos abanaram. Eusébio, claro, quem havia de ser? 
Aqui as palmas e os gritos já tinham outra força. A segunda parte a começar, e a bola não havia maneira de largar as chuteiras dos nossos. A todo o momento se esperava o empate. Não demorou muito. Cervejas em cima das mesas a festejar outro golo de Eusébio. Começa tudo de novo, diz um. Unhas a ficarem mais curtas, ó Eusébio arruma essa merda, o Eusébio pega na bola e enfia-a outra vez lá dentro. Depois o José Augusto também quis molhar a sopa, todos aos saltos a gritarem na esplanada, turras se calhar também no mato, nem trovoada nem nada, a esta hora a guerra é outra, golo, goooolo! 

O rádio não se calava, seria o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Nuno Brás, o Alves dos Santos ou todos ao mesmo tempo, que é que interessa, aplausos por todo o lado, mais duas cervejas, uma grade faz favor, pago eu. 

Eu, se os nossos ganharem, atenção pessoal, bebo uma à saúde de cada um de nós, o alentejano outra vez ao ataque, e depois vou ao homem da bajuda esclarecer o assunto, e mais umas palavras que ninguém percebeu. 
Uma grande salva de palmas, afinal tudo tão fácil quem diria, palmas de Mansoa a ouvirem-se em todo o lado.

O tenente-coronel tinha-se resolvido pela ofensiva, com o staff atrás, chamara-o para uma saída para uns dias depois. Sairiam de Mansoa, manhãzinha cedo, na estrada para Bissau, passariam a ponte guardada por uma secção, apear-se-iam aí, mato dentro, iriam conferir trilhos. 
Ao sair da reunião, duas escadas logo abaixo, o Furriel Ázera aguardava-o para lhe dar conta do que se estava a passar. Para a camarata à procura do alentejano, estes tipos não são capazes de resolver os problemas deles, nem uma borracheira. Viu o soldado a resfolegar, agitado, palavras sem sentido mais que as outras. Chame o médico, Ázera! Ele é que sabe como fazer! 
Médico em acção, um valium para cima, uma injecção para ser mais rápido. Para quê, logo mais desperto o alentejano. Dormir bem é o que precisas, não, eu só quero esclarecer, quase a chorar, só esclarecer, mais nada, está tudo claro, não é necessário tanto esclarecimento, só dormir. Enfermeiro ao lado do médico, e o nosso valente não sossegava. Não deixe, meu alferes, não deixe o gajo dar-me a injecção! O enfermeiro com o dedo na seringa a desperdiçar líquido, não deite mais fora, é tudo para aproveitar, apartou o médico. 
Cerveja nos olhos, o meu alferes não vai deixar, pois não? 
Uma injecção só, não custa nada e vai fazer-te bem, calças para baixo anda, o meu alferes não vai deixar-me apanhar uma injecção, pois não? Dois camaradas ao lado, as calças já em baixo, nem a minha mãe era capaz de me fazer isto, o enfermeiro a tirar-lhe a agulha, algodão em cima, o choro convulsivo a esmorecer, o ronco pesado toda a santa noite, disseram os outros de manhã. 

(Continua)

Texto e fotos: © Virgínio Briote
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Nota do editor

Poste anterior da série de 15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

Guiné 63/74 - P15279: Manuscrito(s) (Luís Graça) (66): No melhor pano cai a nódoa...

Deus dá a nódoa conforme o pano


por Luís Graça


No melhor pano cai a nódoa,
diz o povo,
mais o do campo do que o outro povo,
o da cidade.
E com razão…
ou talvez não ?
Opto pela dúvida metódica,
não sei se cai mesmo, afinal,
a nódoa,
no pano,
no melhor pano,
seja velho ou novo,
como cai a maçã de Newton,
no chão,
por força da gravidade
ou por mor do pecado original.


Por um questão de memória
e de verdade,
pergunte-se:
- O que é que cai (ou caía)?
 A nódoa, o pano ou o povo,
ou todos os três,
no turbilhão da história ?


Reformulando o ditote
de que, se calhar, nem é do povo  a autoria:
é a nódoa que cai no pano
ou é o pano que cai na nódoa ?
Seria o pano fêmea
e a nódoa macho ?
Se sim, então porque dizes “o pano” ?,
ou porque escreves “a nódoa” ?


Tu, sortudo,
que és pano, limpo, alvo,
de linho, seda ou até de algodão,
tu que és pano de veludo,
brocado,
bordado a prata ou ouro,
posto à mesa do rico ou do governante,
por que é que deverias ser
estático,
passivo,
servil,
expectante,
objeto,
recetáculo ?
E tu que és nódoa,
suja,
repelente,
nauseante,
de vinho ou azeite,
de sémen ou de sangue,
de vómito ou de pecado,
por que é que deverias ser
dinâmica,
proativa,
predadora
sujeito,
ator,
vetor ?


Diz o demagogo ao povo:
- Dai-lhe asas de vento, dai-lhe,
ao pano,
que ele voa,
que ele é capaz de voar,
como o tapete mágico
da lenda das mil e uma noites!
E desintegrar-se-á em mil e um bocados,
em mil e um orgasmos,
em mil e uma nódoas,
numa espiral de entropia
que o levará a um fim trágico.


Segrega o confessor ao pecador,
com o típico mau hálito da boca dos confessores:
- Cuidado, meu filho,
que a nódoa pode ser oportunística,
como a serpente da árvore do paraíso,
e estar ali especada,
emboscada,
traiçoeira,
como a flor carnívora
à espera da sua vítima,
o pobre do incauto inseto.
Ou como a orquídea-abelha
à espera do zangão
para ser fecundada,
acrescenta o biólogo.


Sociólogo, filólogo ou teólogo,
atiça, provoca, alvoroça, desafia o povo,
sem evocares o seu nome em vão
e muito menos o de Deus:
- Se no melhor pano cai a pior nódoa,
por que é que no pior pano
não cai a melhor nódoa ?
… Afinal o sujo faz parte do continuum do limpo.


Na seda mais fina é que a nódoa pega,
há também quem o diga e ajuramente,
burguêsmente,
o que vale é que
a nódoa que põe a amora.
com outra, verde, se tira
.
Eu prefiro a bosta de abril
que tira manchas mil
.
Mas cuidado com outros meses do calendário,
que a nódoa de janeiro
não a tira o ano inteiro
.
E depois há nódoas e nódoas,
algumas indeléveis:
nem toda a água do mar
pode certas nódoas tirar.
E, abrenúncio!,
nódoa de gordura
é alma… que cai no inferno
.



Fique o poema provisoriamente inconclusivo,
arremata o poeta,
que não é limpo de geração:
- Não há pano sem nódoa,
não há nódoa sem pano,
não há ponto sem nó,
não há povo sem dichote
(nem povo que queira e ame o chicote!).
Não há aquém sem além,
nem há xis sem corações,
mesmo que se vejam as caras
e não se vejam os corações.
Mas o pior é que, às vezes,
não há mesmo ninguém
que goste de nós!
Mais:
não há sábio sem louco,
nem médico sem doente,
nem Deus dá nozes
a quem não tem dentes,
porque isso seria indecente,
da Sua parte.


Enfim, e já que Ele para aqui foi chamado,
por causa da  nódoa original, primordial,
do pecado,
é bom que se saiba
que Deus, Misericordioso,  dá a nódoa
…conforme o pano!

Lisboa, v5 22out2015

© Luís Graça

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15248: Manuscrito(s) (Luís Graça) (65): O Tempo Parece Querer Mudar... (Coleção de citações do diário de Tomás de Mello Breyner, c. 1902-1904)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15278: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (VI e última parte): 40 anos depois, entro eu mais o Xico Allen na famosa base IN do regulado de Mansomine, onde muito provavelmente repousam os restos mortais de camaradas nossos como o Agostinho Francisco da Câmara e o Fernando da Costa Fernandes


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Uma bomba da FAP (Força Aérea Portuguesa), das muitas que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra colonial, e que não chegaram a explodir (Foto nº 1). Na foto nº 2, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes. Em finais de 1967, Sinchã Jobel passou a ser uma ZLIFA (Zona Livre de Intervenção da Força Aérea).

Fotos: © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]



Foto nº 3



Foto nº 4



Foto nº 5

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Aspectos da atual tabanca, sita no local da antiga base do PAIGC. Fica a 200 metros da antiga base do PAIGC.


Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


Foto nº 6

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Mule Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra colonial, e que hoje mora lá. É irmão do Darami.



Foto nº 7

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Darami Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra colonial, e que hoje mora lá. É irmão do Mulé.


Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]




Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Antiga base do PAIGC. Está-se ainda em plena época seca. Ainda existem árvores de grande porte.


Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]



Foto nº 11


Foto nº 12

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Vestígios ainda bem visíveis, nas árvores, dos bombardeamentos feitos pela Força Aérea Portuguesa.


Fotos: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição: LG]




Foto nº 13

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de abril de 2006 > Local onde se situava o posto de vigia ou sentinela dos guerrilheiros, segundo indicação do Dirami.



Foto nº 14

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Local onde se situava o poço, agora tapado, para onde eram lançados os cadáveres.

Fotos: © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados

1. Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA ref, ex-alf mil (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Em abril de 2006, (re)visitou Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen...


Última parte desta série, "Jogos de Cabra-Cega: Sincha Jobel", com a reedição de alguns postes do A. Marques Lopes, que tem por objeto central a descoberta e a tentativa de destruição, pelas NT, de Sinchã Jobel, uma base ("barraca") do PAIGC, em pleno coração da Guiné, na zona leste, no regulado de Mansomine, entre Mansambá e Bafatá.


São os postes nº 35, 36, 39, 40, 45 e 763 (*), originalmente inseridos na I Série do nosso blogue, e como tal como pouco lidos e já esquecidos... Fizemos a revisão de texto (e atualizámos o texto de acordo com a ortografia em vigor). (*)

Estes "jogos de cabra-cega" fazem parte da trama do romance que o A. Marques Lopes lançou, recentemente, em junho passado, sob a chancela da Chiado Editora (capa ao lado). O autor, João Gaspar Carrasqueira, é pseudónimo literário. Aiveca, a personagem central do romance, é o "alter ego" do A. Marques Lopes. A editora meteu o livro na sua coleção "Bios", classificando-a como "biografia" e não como "romance"... Na realidade, é uma autobiografia ficcionada, de 582 pp.

Todos nos lembramos do jogo da cabra-cega, do nosso tempo de infância e de escola? "Tapam os olhos ao que é apontado para ser cabra-cega, Dão-lhe várias voltas para perder o sentido de orientação. Dão-lhe empurrões para o desorientar ainda mais e não saber para onde se virar" (, preâmbulo do livro). A vida (e a guerra) é um jogo de cabra-cega. (LG).



Pois, camaradas e amigos, eu e o Xico Allen acabámos por entrar na base do IN em Sinchã Jobel, que nunca fora tomada pelas NT, nem quando eu, sem querer, lá fui em 24 de junho de 1967 (Op Jigajoga I), nem em 31 de agosto de 1967 (Op Jigajoga II), nem em 16 de setembro de 1967 (Op Jacaré), nem 15 e 16 de outubro de 1967(Op Imparável), nem em 27 de outubro de 1967 (Op Insistir), nem em 28 de outubro de 1967 (Op Instar), nem em 19 de dezembro de 1967 (Op Invisível) e nem em 21 de dezembro de 1967 (Op Invisível II), a última que se fez para tomar essa base, comandada durante esse período por Lúcio Soares, como ele próprio me disse.

A clareira de Jobel (a tal onde sofri uma emboscada) tem agora uma tabanca (vd. fotos acima). Como chegámos lá? Fomos, eu e o Allen, até Sare Banda [vd. carta de Banjara] [Foto nº 15] e aí encontrámos um homem que nos acompanhou, indicando-nos o caminho para Sinchã Jobel.

Durante a guerra, Sare Banda era uma grande tabanca, fruto do reordenamento da zona, e onde esteve um destacamento da CART 1690. É agora pequena, vendo nós pelo caminho já várias outras tabancas, explicando-nos o homem que nos acompanhou que muita gente saíu de Sare Banda para formar outras tabancas. Naturalmente, é claro.

E chegámos a Sinchã Jobel, com alguma dificuldade, é verdade, pois existe para lá um simples carreiro. E eu cheguei à conclusão que seria mais fácil ter chegado à base se as NT tivessem ido por ali, apesar de a mata ser muito cerrada. Lá encontrámos o Dirami e o Mulé /(Fotos nºs 5 e 6), dois ex-guerrilheiros daquela base e agora moradores na tabanca de Sinchã Jobel.




O organizador desta viagem, do Porto a Bissau, em abril de 2006, foi o Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]. Levou o jipe, que lá ficaria para futuras viagens. O grupo regressaria depois de avião. Acompanhou, em 22 de abril de 2006, o A. Marques Lopes neste "raide" até à mítica Sinchã Jobel. (LG)


Durante a guerrqa, a FAP bombardeava com regularidade a zona... Houve bombas que não rebentaram. Disse o Dirami que conseguiram rebentar várias, mas aquela que vimos [ Fotos nº 1 e 2] não tinham conseguido... e lá está ainda. Muitas delas, eu já sabia, rebentavam nas árvores, outras batiam nelas e caíam sem rebentar, porque já não caíam da forma adequada para rebentarem as espoletas. [Fotos nº 78, 9 e 10].

Duas coisas nos indicou o Dirami:

(i) uma, está ele de cócoras, "ali em frente, no tronco daquele poilão era o posto de vigia" [Foto nº 13] (as NT disseram que eles estavam em cima das árvores, mas o que sucedia é que o vigia começava logo a disparar assim que nos via entrar na clareira);

(ii) outra, está ele a dizer-me (vd. foto do cemitério, tirada pelo Allen) [Foto nº 14], "aqui, por baixo destes arbustos está um poço, para onde lançávamos os mortos, pois não havia tempo para fazer covas individuais", e está lá o poço, coberto de arbustos e já tapado com terra;

(iii) e - eu cá para mim - que "lá estarão os corpos do soldado Agostinho Francisco da Câmara, morto em 16 de outubro de 1967, e do alferes Fernando da Costa Fernandes, morto em 19 de dezembro de 1967 de dezembro de 1967, corpos esses que não foi possível recuperar durante as operações feitas nessas datas".

E ficou-me também a pena de as cabeças pensantes que mandavam na guerra terem insistido em várias operações, a começar nas bolanhas de Sucuta e Canhagina [vd. carta de Bambadinca] e na travessia do rio Gambiel, quando teria sido mais fácil e, se calhar, eficaz terem feito o caminho que eu fiz agora, tanto mais que em duas daquelas operações entrou a tropa especializada dos comandos. Coisas.

Abraços, A. Marques Lopes



Foto nº 15

Guiné > Região de Bafatá > Sare Banda > 2001 > Altamiro Claro, ex-alf mil op especiais, da CCAÇ 3548 / BCAÇ 3884 (Geba, 1972/74), e ex-presidente da Câmara Municipal de Chaves, em Saré Banda (vd. Carta de Banjara).

Foto: © Altamiro Claro (2007). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


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Postes anteriores:

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15150: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte IV): Op Insistir (27/10/1967): com a 5ª CCmds e dois 2 grupos de combate de cassanhos, da CART 1690

6 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14707: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte III): Op Jigajoga 2, 31/8/1967, e Op Jacaré, 16/9/1967... Fotos de Banjara

5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14700: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II): Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui"...

3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João