sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16788: Notas de leitura (907): “Histórias Coloniais”, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2016:

Queridos Amigos,

Trata-se de um trabalho poliédrico sobre levantamentos, marchas de protesto, resistência à brutalidade dos anos 1930 aos anos 1960, nas colónias portuguesas, não escondendo paradoxos e contradições, sobretudo quanto ao número de vítimas.

Estranhamente, e quanto à greve do Pidjiquiti, não fazem referência ao detalhado relatório que o Comando da Defesa Marítima da Guiné fez logo a seguir para Lisboa, observaram tudo à distância de centenas de metros, como se sabe. Concorda-se com os autores que Amílcar Cabral colheu o ensinamento que era inviável na Guiné, naquele período tentar a subversão urbana, ficou Rafael Barbosa e um grupo na subversão, a direção do PAI partiu para Conacri, preparar a logística da guerrilha e os apoios internacionais.

Um abraço do
Mário


Conflitos sociais que preludiaram os tempos anticoloniais

Beja Santos

“Histórias Coloniais”, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2016[1] é o livro póstumo de dois investigadores que se debruçaram sobre matérias das lutas de libertação nacional. Como referem na apresentação, este acervo de ensaios descreve conflitos sociais significativos e determinantes em todas as antigas colónias portuguesas. E definem: “Significativos, porque mostram a violência e brutalidade associadas a uma dominação colonial insensível aos problemas das populações. Determinantes, porque estes conflitos sociais contribuíram para a formação da consciência nacionalista tendo acelerado a marcha das populações para a independência ou para a integração dos territórios nos países a que pertenciam”.

Os investigadores escolheram os seguintes conflitos para análise: a revolta de «Nhô Ambrose», Cabo Verde; o massacre de Batepá, S. Tomé; a invasão dos Satyagrahis, Goa; a revolta de Viqueque, Timor; a greve do Pidjiquiti, Guiné; a manifestação de Mueda, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, Angola e o motim 1-2-3, Macau. Conflitos que se situaram entre 1934 e 1966.

O que se pode entender por significativo e determinante nestes conflitos?

“Nhô Ambrose” é um conflito social que assumiu uma enorme carga simbólica, à volta da fome num contexto de secas e da crise 1929, de profundo desemprego, em que o porto de Mindelo perdera enorme atividade. No dia 7 de Junho de 1934, um grupo que foi engrossando, de homens, mulheres e crianças, arvorando um pano preto a servir de bandeira, percorreu algumas ruas da cidade de Mindelo, assaltaram estabelecimentos, as autoridades declararam o estado de sítio na cidade, houve dois mortos e vários feridos. Baltazar Lopes irá reconstituir a tragédia da fome e do protesto no seu romance "Chiquinho". Anos mais tarde, Amílcar Cabral recordará os acontecimentos.

O massacre de Batepá é um dos acontecimentos mais hediondos do período colonial português na segunda metade do século XX. Os autores detalham o trabalho nas roças, realizado por trabalhadores forçados, trazidos de Angola, de Moçambique e de Cabo Verde. Faltava mão-de-obra, pensou-se então integrar os forros, descendentes de brancos e de escravos alforriados no século XVI nessas atividades. O Governador Carlos Gorgulho inventou uma revolta comunista e exerceu uma repressão sem precedentes, a tal ponto que os relatórios da PIDE comentam negativamente os excessos, duvidando de qualquer caráter comunista nos protestos e enunciando provas de brutalidade e violência: os prisioneiros foram torturados com varapaus, tiras de borracha e chicotes; obtinham-se confissões através da intimidação, da tortura e de falsas acusações; quando os prisioneiros sucumbiam, Gorgulho determinava: "atirem essa merda ao mar para evitar aborrecimentos". O Ministro Sarmento Rodrigues indignou-se e agiu para afastar Gorgulho do governo de S. Tomé. O déspota queixou-se a Salazar, acabou condecorado.

Se é claro que o que se passou em Goa com a invasão dos Satyagrahis anuncia a firme determinação da União Indiana em ocupar o Estado da Índia, como aconteceu em Dezembro de 1961, a revolta de Viqueque tem pontos nebulosos como a instigação da Indonésia que semeou sentimentos de dissidência entre timorenses. Houve mortos em número ainda hoje impossível de determinar e deportações para Angola. É sabido que vários rebeldes deportados estiveram entre os 36 fundadores do partido APODETI – Associação Popular Democrática Timorense, que, desde o início, declarou que um Timor independente só podia ser economicamente viável se fosse apoiado pelos seus irmãos da Indonésia.

A greve do Pidjiquiti continua ainda hoje a ter versões díspares. Os investigadores citam várias fontes mas estranhamente não referem o importante relatório do Comando da Defesa Marítima feito em cima dos acontecimentos e com observação direta, visto que as suas instalações estavam a escassas centenas de metros do palco do tiroteio e do massacre. O PAIGC tirou lições da repressão, tentou utilizar a greve como acontecimento seu, o que nunca foi verdade.

A manifestação de Mueda envolveu os Macondes que desejavam negociar o regresso massivo de compatriotas seus a Moçambique. A população da região estava descontente pelos baixos preços a que eram pagos os seus produtos, bastante inferiores aos praticados no Tanganica. As autoridades detiveram alguns Macondes e começou o tiroteio. Mais tarde, Eduardo Mondlane, fundador e primeiro presidente da FRELIMO, sublinhou que os incidentes de Mueda tinham sido um importante ingrediente para lançar os Macondes na luta pela independência.

O que se passou na Baixa de Cassange está hoje altamente documentado, foi o ensaio geral da guerra colonial. E como observam os autores, a repressão brutal da luta dos cultivadores de algodão contribui para cavar ódios raciais que explodiriam em atos de barbárie e morticínio, desencadeados em Março e Abril de 1961, em todo o norte de Angola.

O motim 1-2-3 foi assim designado pelo facto de a imprensa norte-americana se referir aos acontecimentos pelo mês e dia dos grandes protestos dos chineses de Macau, que constituíam afinal 95% dos 270 mil habitantes do enclave. Tudo começou em 15 de Novembro de 1966, um grupo de chineses não se compadeceu com a burocracia para o início de obras de reparação e ampliação de um velho edifício para aí se instalar uma escola. Exerceu-se repressão, os chineses praticaram desmandos e depois de um laborioso período de negociações, a autoridade portuguesa ficou reduzida ao mais simbólico e com cláusulas vexatórias: as autoridades portuguesas foram obrigadas a entregar os agentes secretos da Formosa, mais tarde executados; proibidas associações opostas à República Popular da China; pagamento de indemnizações superior a 2 milhões de patacas, às vítimas da repressão.

Os autores recordam o acervo de documentos novos que foi possível consultar depois do 25 de Abril, bem como a recolha de testemunhos presenciais.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16774: Agenda cultural (517) Acaba de sair, "Histórias Coloniais", livro póstumo de Dalila Cabrita Mateus (1952-2914) e e Álvaro Mateus (1940-2013) . Edição: A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016

Último poste da série de 28 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16770: Notas de leitura (906): “António Carreira, Etnógrafo e Historiador”, por João Lopes Filho edição da Fundação João Lopes, Praia, Cabo Verde, 2015 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16787: Parabéns a você (1169): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16781: Parabéns a você (1168): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16786: Agenda cultural (526): Porto, Unicepe, 5 de dezembro de 2016: às 18h15: apresentação do livro do nosso camarada Paulo Salgado "Guiné: crónicas de guerra e amor".


1. Mensagem do editor António Lopes, com data de 29 de novembro  último:

Amigos,

Desta vez convido-os para estarem na UNICEPE, Porto, no dia 5 de Dezembro, pelas 18h15
para acompanharmos a Paulo Cordeiro Salgado, com a sua obra GUINÉ - Crónicas de Guerra e Amor.

Atentamente,


Lema d'Origem - Editora, Ldª
NIPC: 509 059 473
Endereço de email; editora@lemadorigem.pt
URL/ http://lemadorigem.pt
Facebook: https://www.facebook.com/LemadOrigem

Guiné 63/74 - P16785: Manuscrito(s) (Luís Graça) (103): E no 1º de dezembro, a banda a tocar o Ti Zé da Pera Branca...


E no 1º de dezembro,
a banda a tocar
o Ti Zé da Pera Branca

por Luís Graça





(...) E no 1º de dezembro, a banda a tocar
o Ti Zé da Pera Branca,
que era uma paródia  do hino da Restauração,
o hino que um punhado de patriotas,

vagamente monárquicos e republicanos do reviralho,
fazia seu, na tua aldeia,
quiçá para acicatar o Franco de Espanha
e o Salazar de Portugal...


... mas a gente sabia lá 

quem era o Franco, o Salazar
e os grandes deste mundo!
Na escola, só sabíamos do tal Vasconcelos,

que seria defenestrado 
na manhã libertadora do 1º de dezembro,
para exemplo dos traidores da pátria,
os lacaios que  tinham servido os Filipes,

durante a longa noite de sessenta anos,
como te ensinava a tua professora.
Fonte: portugal. Ministério da Educação Nacional -
Livro de leitura da 3ª classe . Carvalhos :
 Liv. dos Carvalhos, imp. 1958. 1 vol., p. 159

Fazia frio, de tremer o queixo, 
nas efemérides do 1º de dezembro de 1640,
e ias agarrado ao capote do teu pai,
a gritar morte ao traidor,

atrás da banda,
pelas ruas e vielas da tua aldeia:
Vais Com Cuspo e Selo, Vais, 
Vasconcelos!
Morte a Castela

e aos seus serviçais!


Sabias lá tu, meu menino,
quem era a pátria,
e o pai da pátria?!
E os seus heróis,
mais do que homens,
menos do que deuses,
sabias lá tu
quem era eles, os heróis 
e os traidores?!

Sabias lá tu quem era o senhor,
professor,
doutor,
Salazar,
o rapa-o-tacho,
a colher de pau
que a tua mãe usava na cozinha ?!


Não sabias, pois claro,
mas tinhas-lhe medo,
ao cara de pau,
de nariz aquilino, 

especado na parede da tua escola do Conde de Ferreira,
olhando-te de soslaio,
vigiando-te e punindo-te,
que os símbolos do poder, 

–   Ouve lá, menino ou menina!  ,
eram como o código de barras da zebra: 
–  Ou memorizas ou morres, 
logo à primeira,
mal nasças, ó zebrinha!


De um lado, o Craveiro Lopes,
que irá a marechal de opereta,
e do outro o Salazar,
ou era ainda o Óscar Carmona,
o dos bigodes farfalhudos ?


Não te esqueças dos nomes 
dos altos magistrados da Nação
que tos podem perguntar, em Lisboa,
no teu exame da admissão! (...)



Excerto de:

Luís Graça - Autobiografia: com Brughel domingo à tarde
(poema, inédito, 2005, c. 40 pp)

Guiné 63/74 - P16784: Agenda cultural (525): comemoração do 1º de dezembro: 5º Desfile Nacional de Bandas Filarmónicas: Lisboa, av da Liberdade, hoje , a partir das 15h: 1600 músicos, 35 bandas e agrupamentos de todo o país... Desfile culmina com a interpretação conjunta de 3 hinos patrióticos, Maria da Fonte, Restauração e Nacional



Lisboa, praça dos Restauradores, 29 de novembro de 2015. Comemoração do 1º dezembro 1640. 27 bandas, oriundas de todo o país tocam o hino da Restauração.

Vídeo (1' 01') Alojado em You Tube > Luís Graça




Hino da Restauração (letra)

Portugueses, celebremos
O dia da Redenção,
Em que valentes guerreiros
Nos deram livre a Nação.

A Fé dos Campos de Ourique
Coragem deu e valor
Aos famosos de Quarenta
Que lutaram com ardor.

P'rá frente! P'rá frente!
Repetir saberemos
As proezas portuguesas.

Avante! Avante!
É voz que soará triunfal
Vá avante,  mocidade de Portugal!
Vá avante,  mocidade de Portugal!



DESFILE NACIONAL DE BANDAS FILARMÓNICAS | COMEMORAÇÕES DO 1º DE DEZEMBRO

Fonte: Sítio da Câmara Municipal de Lisboa (com a devida vénia)


O desfile vai juntar cerca de 1600 músicos, de 35 bandas filarmónicas e agrupamentos de todo o país, que se reúnem em Lisboa para desfilar na Avenida da Liberdade, terminando com uma atuação conjunta nos Restauradores.

A apresentação do 5º Desfile Nacional de Bandas Filarmónicas é também uma homenagem a esta prática musical com mais de 200 anos que, um pouco por todo o país, continua a desempenhar um importante papel na formação cívica e musical de crianças e jovens.
 (*)

O desfile tem início às 15 horas, na Avenida da Liberdade, junto à Estátua dos Combatentes da Grande Guerra e termina nos Restauradores, com todos os grupos reunidos para interpretar o Hino da Maria da Fonte, o Hino da Restauração e o Hino Nacional, sob direção do Maestro da Banda Sinfónica do Exército, Tenente Duarte Cardoso. Acesso livre.

Esta iniciativa é uma parceria entre a Câmara Municipal de Lisboa, a EGEAC e o Movimento 1º de Dezembro. (**)


ALINHAMENTO 5º DESFILE NACIONAL DE BANDAS FILARMÓNICAS



Tocá a Rufar
Grupo de Bombos de Atei
Banda Sinfónica do Exército
Banda Anfitriã: Associação para o Desenvolvimento Social e Cultural de Marvila (Lisboa)


Açores: 
Sociedade Filarmónica União e Progresso Madalense (Pico – Madalena)

Aveiro: 
Banda Musical de S. Tiago de Lobão (Sta. Maria da Feira)

Beja: 
Banda da Sociedade Filarmónica União Mourense “Os Amarelos"  (Moura)

Braga: 
Banda Filarmónica de Santa Maria de Bouro (Amares)
Banda Marcial de Arnoso (Vila Nova de Famalicão)


Bragança: 
Banda Filarmónica do Brinço (Macedo de Cavaleiros)
Banda de Música 1º de Maio (Mirandela)


Castelo Branco
Filarmónica Retaxense (Castelo Branco)
Filarmónica Recreativa Cortense (Covilhã)
Sociedade Filarmónica Oleirense (Oleiros)
Sociedade Filarmónica de Educação e Beneficência Fratelense (V. V. Rodão)


Coimbra: 
Sociedade Recreativa Instrutiva e Beneficente Santanense (Figueira da Foz)
Filarmónica Sangianense (Oliveira do Hospital)


Évora: 
Banda Filarmónica da Casa do Povo de Nª Sra de Machete  (Évora)
Banda da Sociedade União Alcaçovense (Viana do Alentejo)


Faro: 
Banda Musical de Tavira

Guarda: 
Banda Academia de Santa Cecília – S. Romão (Seia)
Sociedade Musical Estrela da Beira - Seia


Leiria: 
Sociedade Filarmónica Maiorguense (Alcobaça)
Banda Recreativa Pedroguense (Pedrogão Grande)


Lisboa: 

Associação Musical de Cabanas de Torres (Alenquer)
Sociedade Filarmónica 1º de Dezembro da Encarnação (Mafra)


Portalegre: 
Banda Juvenil do Município do Gavião
Sociedade Musical Euterpe de Portalegre



Porto: 

Banda Musical de S. Vicente de Alfena (Valongo)

Santarém: 
Sociedade Filarmónica União Maçaense (Mação)
Sociedade Filarmónica Gualdim Pais (Tomar)

Setúbal: 
Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (Almada)

Viana do Castelo
Banda Filarmónica da Associação Musical de Vila Nova de Anha (Viana do Castelo)

Viseu: 
Sociedade Filarmónica da Fraternidade de São João de Areias (Sta. Comba Dão)

Guiné 63/74 - P16783: Inquérito 'on line' (88): A malta fazia alguma batota a nível de pelotão, sobretudo no que dizia respeito aos locais de emboscada... [Mário Pinto, ex-fur mil at art, CART 2519 (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71); e José Manuel Cancela (ex-sold apont metralhadora, CCAÇ 2382, (Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70)]


Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > ..CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71) > A primeira secção do fur mil at art Mário Pinto.

Foto (e legenda): © Mário Pinto(2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dois comentários ao poste P16780 (*)


(i) Mário Pinto [ex-fur mil at art, 

CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá" (Buba,  Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)]

Não posso confirmar se alguma vez houve batota na ninha companhia, a  CART. 2519,  e se o que vou expor pode ser considerado batota.

No princípio da nossa comissão,  depois da construção da nova estrada Buba-Aldeia Formosa em 1969, fomos colocados em Mampatá e tinhamos como principal missão a contra-penetração do corredor de Missirá. 

Todos os dias um Gr.Com,  reforçado com milicias e uma secção do Pelotão de Caçadores Nativos, deslocava-se para um local previamente determinado afim de emboscar por um período de 24 horas. Ao princípio foi cumprido na integra,  apesar das contrariedades que tinhamos com várias situações que aconteciam ao longo do período que nos era destinado à permanência no local. (necessidades fisiológicas, ansiedades por diversos motivos, mosquitada, calor abundante, saturação, etc.).

Tudo isto e mais algumas coisas não permitiam que a emboscada tivesse sucesso porque,  derivado ao desassossego que se apoderava dos militares emboscados,  permitia ao IN detectar-nos a longa distância e assim abortare a passagem no local ou atacarem-nos, (facto que por acaso nunca aconteceu, não sei porquê). 

Quero dizer com isto que,  uns tempos mais tarde,  começamos por nossa iniciativa a contrariar as ordens da missão. Ficávamos no corredor as primeiras horas e retirávamos para outro local, quando o pessoal começava no desassossego, mas sempre próximos do nosso objectivo, local em que pudessemos controlar a área envolvente ao nosso objectivo. 

Até porque o comandante de operações de Aldeia Formosa, na altura o major Pezarat Correia,  tinha por hábito meter-se numa DO e ir inspeccionar o local onde se encontravam as tropas. ( Eu tinha por hábito dizer que o Major andava a mostrar ao IN onde nós nos encontrávamos emboscados, mas isso é outra história.)

Apesar deste esquema engendrado por nós, conseguimos ter vários êxitos de capturas de material, como consta no nosso historial. O nosso capitão  só veio a saber deste esquema quase no fim da nossa comissão, porque esteve sempre convicto que nós passávamos as 24 horas no local pré estabelecido.



(ii) José Manuel Cancela [ex-soldado apontador de metralhadora, CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70]

Havia batota a nível de pelotão.

Por mais que uma vez saíamos do Quartel, com chuva e trovão, para irmos emboscar a três
quilómetros.

Passada a pista de aviação,fora do arame farpado, embrenhávamo-nos na mata,e era aí que passavamos o tempo.

Parece-me que todos o faziam, a nível de pelotão.
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Guiné 63/74 - P16782: Agenda cultural (524): Convite para a sessão de apresentação do livro "História(s) da Guiné-Bissau - Da Luta de Libertação aos Nossos Dias", da autoria de Mário Beja Santos, a levar a efeito no dia 6 de Dezembro de 2016, pelas 18,00 horas, no Auditório da Associação Nacional das Farmácias, Rua Marechal Saldanha, em Lisboa (Mário Beja Santos / Editores)




1. Em mensagem do dia 24 de Novembro de 2016, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), autor do livro "História(s) da Guiné-Bissau - Da Luta de Libertação Aos Nossos Dias", enviou-nos um extrato deste livro, a pedido do editor Luís Graça.


Extrato do livro “História(s) da Guiné-Bissau”, a lançar em 6 de Dezembro 

Os últimos dias de Portugal na Guiné Portuguesa

Beja Santos

A 27 de Abril, começaram em Bissau manifestações populares exigindo a libertação dos presos políticos, extinção da PIDE/DGS e a abertura de negociações com o PAIGC. A agitação crescia cada vez que chegavam jornais de Lisboa.

É um tropel de acontecimentos, parece que os próprios atores não têm comando no conjunto da peça. A 7 de Maio, Carlos Fabião, graduado em brigadeiro, escolhido por confiança de Spínola, seguramente tendo em consideração os doze anos que levara em comissões na Guiné, é nomeado como Encarregado do Governo e Comandante-Chefe da Guiné. Quando chega a Bissau, logo se apercebe que a missão de Spínola o encarregara perdera a razão de ser. Regista-se indisciplina nas Unidades, o MFA local vai tomando conta do poder, a Comissão Coordenadora estende-se à Armada e Força Aérea, qualquer esforço defensivo e dar continuidade ao processo político de autodeterminação são meros exercícios de retórica. Em Lisboa, o poder político procura negociar com o PAIGC, Mário Soares, já Ministro dos Negócios Estrangeiros, viaja para Dakar, conversa amistosa com os líderes senegaleses e com Aristides Pereira, o encontro é inconclusivo, não havia ainda qualquer compromisso formal sobre o cessar-fogo. Seguir-se-ão conversações em Londres e em Argel, todo este processo da descolonização conhece clarificação com a Lei 7/74, onde se inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos. Em 10 de Setembro, em Lisboa, ocorre o reconhecimento de jure. Em 24 de Setembro, em Madina do Boé foram solenemente comemorados o cinquentenário de Amílcar Cabral, os 17 anos do PAIGC (alegadamente fundado em 19 de Setembro de 1956) e o primeiro aniversário da independência, as autoridades portuguesas estão presentes.

A descompressão da guerra passara a ser uma realidade, a seguir ao 25 de Abril começaram encontros mais ou menos formais, de um modo geral, independentemente de casos de indisciplina, de alguma agressividade bacoca de alguns líderes militares do PAIGC, a paz em respeito mútuo alargou-se pelo território. Na sequência deste processo foram-se estabelecendo protocolos para uma retirada das tropas portuguesas e a entrada das forças do PAIGC. Para dar cumprimento ao anexo dos acordos de Argel tomaram-se medidas que vieram a ter consequências dramáticas. Vejamos como.

Dentro dos 28 pontos deste anexo, há que relevar as seguintes matérias: as Forças Armadas Portuguesas entrariam em retração e facilitariam a transmissão gradativa dos serviços da administração; a República da Guiné-Bissau obrigava-se a neutralizar os seus meios antiaéreos suscetíveis de afetar a circulação de aeronaves e de voos de reconhecimento no espaço aéreo à responsabilidade das Forças Armadas Portuguesas; as Forças Armadas Portuguesas obrigavam-se a desarmar as tropas africanas sob o seu controlo; uma comissão mista coordenaria a ação das duas partes; o governo português comprometia-se a pagar todos os vencimentos até 31 de Dezembro de 1974 aos cidadãos da República da Guiné-Bissau desmobilizados das suas forças militares ou militarizadas, bem como aos civis cujos serviços às Forças Armadas portuguesas ficavam dispensados; o governo português comprometia-se a pagar as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tinham direito quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivo de serviços prestados às Forças Armadas Portuguesas; o governo português participaria num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da República da Guiné-Bissau que tivessem prestado serviço militar nas Forças Armadas Portuguesas e, em especial, dos graduados das Companhias de Comandos Africanos.

O que se irá passar, e de acordo com a escassa documentação existente, é que as Forças Armadas portuguesas abandonaram o território dentro dos prazos estipulados, e não se cuidou de garantir a normalidade do sistema económico e financeiro da própria vida administrativa e da natureza dos serviços de primeira grandeza, a começar pela saúde e pela educação, garantia do abastecimento a todos os níveis, e uma adaptação equilibrada na transferência da ordem colonial para a República independente. Em “Crónica da Libertação”, Luís Cabral virá dizer que encontrou os cofres vazios quando chegou a Bissau, que os colonialistas tinham partido com tudo, e com esta frase parecia deixar no ar que houvera um abandono puro e simples e que as novas autoridades foram confrontadas com o vazio do poder. Obviamente que a questão é mais complexa. O PAIGC, em toda a sua ingenuidade, estimara que o modelo administrativo adotado na luta de libertação se podia aplicar automaticamente à nova situação, com correções e ajustes. Presidia a mentalidade da coletivização, nunca se dimensionou que os Armazéns do Povo transacionavam muitos bens oferecidos por países amigos e que havia uma troca com as populações fora de controlo das autoridades portuguesas que entregavam os seus produtos agrícolas.

Não há uma referência nos Acordos de Argel à manutenção da presença portuguesa num regime de transição faseado, para evitar sobressaltos no funcionamento dos hospitais, dos estabelecimentos escolares, dos portos e na própria recolha de impostos. Com sobranceria, os quadros dirigentes do PAIGC julgavam-se capacitados para pôr pessoas habilitadas em todos os postos. E havia um fator ideológico preponderante, muito mais tarde invocado como fator determinante: era preciso mostrar aos movimentos de libertação irmãos (MPLA e FRELIMO) que o sistema colonial estava a soçobrar, era irreversível, as conversações para a independência de Angola e Moçambique não podiam ser arrepiadas por manobras dilatórias.

O PAIGC parecia embalado pela Constituição do Boé, acreditava piamente numa vigorosa participação popular que faria enfunar as velas dos ventos revolucionários, e que rapidamente se poria em ação uma política económica enfocada no investimento industrial e no setor público. Acresce que a Constituição do Boé dava como certo e seguro o funcionamento das instituições: a Assembleia Nacional Popular, o Conselho de Estado, o Conselho dos Comissários de Estado, os Conselhos Regionais e o Poder Judicial. Atente-se que no artigo primeiro da Lei n.º 3/73, de 24 de Setembro, foi nomeado o primeiro Conselho de Comissários de Estado, tendo como Comissário Principal Chico Té e 15 comissários e subcomissários. Como é óbvio na generalidade dos casos, estes dirigentes políticos estavam impreparados para enfrentar a realidade de um território descolonizado à pressa e inadaptado aos sonhos de Amílcar Cabral. Aliás, o líder fundador previra dificuldades de monta para reverter a economia colonial ao modelo que ele preconizava que seria uma adaptação de economia planificada onde a experiência vivida nos anos da luta tivesse a sua quota-parte de inserção.

E vamos assistir ao esbarrondar desses sonhos, ao agravamento de tensões internas, a escolhas económicas erradas e a uma total incapacidade de proceder a uma reconciliação nacional, isto quando uma boa parte da antiga colónia tinha participado no processo de “africanização” da guerra e tomado declaradamente partido pelas propostas de Spínola.
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Notas do editor

Vd. poste de 19 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16736: Agenda cultural (513): Lançamento do livro "História(s) da Guiné-Bissau", por Mário Beja Santos, dia 6 de Dezembro de 2016, pelas 18 horas, no Auditório do Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, Lisboa... Visita (gratuita) ao Museu de Farmácia e recital de Kora com o grande Braima Galissá!...

Último poste da série de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16774: Agenda cultural (517) Acaba de sair, "Histórias Coloniais", livro póstumo de Dalila Cabrita Mateus (1952-2914) e e Álvaro Mateus (1940-2013) . Edição: A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016

Guiné 63/74 - P16781: Parabéns a você (1168): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16761: Parabéns a você (1167): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16780: Inquérito 'on line' (87): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: a votação termina no domingo, dia 4, às 18h42... E já temos 28 respostas: "emboscar-se perto do quartel" (50%) é a forma mais referida, seguida de "começar a 'cortar-se', com o fim da comissão à vista" (46%)... Comentários: José Martins, César Dias, Rogério Cardoso



Guiné  > Região do Oio > Bissorã > CART 643/BART 645 (Bissorã, 1964/66) > "Roncos": armas apreendidas ao IN, numa operação com a CCaç 564 . Fotos do álbum do fur mil manut Rogério Cardoso,  A CART 643 teve 7 Cruzes de Guerra e dezenas de louvores. (*)

Fotos (e legendas): © Carlos Brito / Rogério Cardoso (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




I. INQUÉRITO 'ON LINE':

"A BATOTA QUE FAZÍAMOS NA GUERRA"... ASSINALAR UMA OU MAIS FORMAS




Resultados preliminares (n=28 respostas, até ao meio dia de hoje)

As formas mais frequentes de 'batota'...


2. Emboscar-se perto do quartel > 14 (50%)

17. Começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista > 13 (46%)


1.“Acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo  > 9 (32%)

10. Falsas justificações para perda de material  > 9 (32%)

3. “Andar às voltas” para fazer tempo  > 8 (28%)

16. Falsificar o relatório da ação  > 8 (28%)

14. Simular problemas de saúde  > 6 (21%)


As formas menos frequentes de 'batota'...

6. Alegar dificuldades de ligação com o PCV  > 5 (17%)

9. Sobrevalorizar o nº de baixas causadas ao IN  > 5 (17%)

11. Reportar “enganos” do guia nos trilhos  > 5 (17%)

15. Regresso antecipado ao quartel p/ alegados problemas de saúde> 5 (17%)

18. Outras formas  > 5 (17%) 

4. Evitar o contacto com o IN (não abrindo fogo)  > 4 (14%)

7. Enganar o PCV sobre a posição das NT  > 4 (14%)

8. Outros problemas de transmissões  > 3 (10%)

5. Provocar o silêncio-rádio  > 2 (7%)


As formas de 'batota' ainda não referidas...

12. Deixar fugir o guia-prisioneiro  > 0 (0%)

13. Liquidar o guia-prisioneiro  > 0 (0%)


II Os três primeiros comentários dos nossos camaradas (**):



(i) José Marcelino Martins

Por serem muitas as operações desenvolvidas, por muitas subunidades, agora podem contar-se "por muitas" as batotas feitas.

Uma das causas mais apontadas, eram as transmissões que, por "esgotamento dos equipamentos" e as más condições de propagação rádio, [falhavam por vezes].

Ao ler os relatórios das operações, somos obrigados a "relembrar" algumas habilidades.


(ii) Cesar Dias

Na resposta nº 17ª  estão inseridas várias das primeiras, mas era sempre um risco não cumprir o objectivo, principalmente quando as coisas corriam mal e era necessário bater a zona com os obuzes. Isto aconteceu.


(iii) Rogério Cardoso

Pouco tempo depois da chegada à Guiné,  em 1964, soubemos de uma bronca, que se passou numa companhia, pertencente ao BCAV  490, e que serviu de exemplo ao BART 645, Águias Negras. Um comandante de  secção saiu com os seus homens para uma patrulha, mas passados 1 ou 2 km, simularam uma emboscada, sendo "a arma do inimigo a FBP", e claro voltaram para o quartel, que salvo erro era em Farim, a correr.

O cmdt do BCAV 490, Fernando Cavaleiro, que era um grande conhecedor da matéria, quis ir ao local, e assim aconteceu. Deparou com as cápsulas de 9 m/m com a inscrição Braço de Prata [BP] e,  como o crime nunca é perfeito, apanhou o infrator logo à primeira.

Segundo me contaram, mandou reunir a companhia  ou o batalhão  e deu um par de bofetadas no furriel, não sabendo eu se ele foi despromovido ou não.

Ora bem, foi esta história,  que não tenho a certeza se foi veridica, que nos chamou à atenção, e posso garantir que pelo menos a CART 643, cumpriu a 100% todas as ordens do seu valoroso cap.Ricardo Silveira,,,

Só não cumpriu a entrega dos prisioneiros na sede do batalhão,  porque os primeiros apanhámo-los pouco tempo depois com armas na mão, tendo o nome de recuperados. Então eramos nós que faziamos o interrogatório, para as saidas serem o mais rápido possivel.

Portanto o questionário,  para nós,  não se aplica.

PS _ Desculpem, mas acrescento mais, aos militares da CART 643, foram atribuidas 7 Cruzes de Guerra e dezenas de louvores, atribuidos pelo Com de Sector, tudo isto não foi conquistado com "ronha".

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(**) Últimos postes da série:

Guiné 63/74 - P16779: Os nossos seres, saberes e lazeres (188): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 29 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Ainda não completamente refeito de uma memorável digressão aos países eslavos do Sul, correspondendo ao apelo insistente de amigos que apreciam a nossa companhia, estou de regresso a Bruxelas, e ainda na fase de organizar a agenda turística já sonho andar à cata de trastes em feiras de velharias, à cata de livros em livrarias de segunda mão.
Apanhei o Maio floral em todo o seu esplendor, é um tempo apertado em que este concerto polifónico está ao dispor de quem aprecia deambular por floretas e jardins.
Aqui fica o primeiro dia da chegada, uma sinfonia de begónias, lírios e malmequeres, antes e depois de um aprazível passeio pela floresta de Soignes com as suas catedrais de faias e carvalhos.

Um abraço do
Mário


De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (1)

Beja Santos

É o regresso a Bruxelas depois dos atentados terroristas em Zaventem e da estação de metro de Malbeek. O avião aterra, saímos, e nota-se à vista desarmada que há alterações de fundo, há contingentes militares, o grau de vigilância intensificou-se. Venho por uma semana em cheio, propus ao anfitrião um aproveitamento integral da Bruxelas floral, pois estamos em Maio, explodem por todos os cantos as florescências, das árvores aos arbustos. Chegado a uma casa que me é tão familiar, em Watermael-Boisfort, mesmo na fronteira da cidade com o Brabante flamengo, uma delicada mão feminina preparou as boas-vindas com este arranjo de fruta e flores, Felizmente que há luz para registar esta intensa demonstração de ternura.




Parti pela alva para aproveitar a parte da tarde, tive imensíssima sorte, mesmo com as vigilâncias de Zaventem. Come-se ligeiro e parte-se com o pé ligeiro para a floresta de Soignes, o tal pulmão verde situado a menos de 10 km do centro da cidade e que cobre mais de 10% de superfície regional. É mentira que vá de pé ligeiro, não há canto nem recanto que não suscite a atenção, são as azálias, as begónias, os castanheiros da Índia, as rosas multicolores, as árvores de fruto, é o segundo aceno de boas-vindas, acreditasse eu no panteísmo e diria que esta Bruxelas floral não tem sombra de dúvida que este estrangeiro que por aqui se passeia ama perdidamente a capital belga.



Estas duas imagens não estão aqui por acaso, é necessário chegar à floresta atravessando um extenso bulevar, chamado bulevar do Soberano. Mesmo a arquitetura moderna tem grossas paliçadas florais, é uma sensação bizarra de tanto trânsito, tanto cosmopolitismo e sentir-se abertamente que a escassos metros a floresta espreita. Contemplava o charco e via o vento trazer os pólenes na celebração do seu mistério, por caminhos que o olho humano não deteta esses pólenes fecundam, haverá germinações num outro tempo e não se sabe a que tal distância elas irão ocorrer. O que interessa é que também atapetam as águas. Impossível não captar esta concelebração da vida, a natureza em pleno movimento na aparente quietude da paisagem.


Logo à saída de casa me despertou a atenção este pespontar de rosas, grandes gotas de sangue, andou por ali o amestramento de jardineiro ou jardineira, aliás ao meu lado sussurravam comentários sobre as vantagens de cortar as rosas velhas para rebentarem novos botões. O que gosto na imagem é o vigor da natureza como se estivesse a bater à janela, é uma ode ao bom tempo, com o calor ameno celebra-se a canção da terra.



Também não se acasalam estas duas imagens por acaso. Na linha do casario que precede a travessia da artéria principal há casas cujos jardins nos recebem de branco imaculado, uma lembrança de neve fora de tempo, é tão intenso o caramanchão de branco que seria crime fugir à imagem. E agora estamos na floresta de Soignes, bendita a luz por estes raios de sol, bendito o tempo sem céus de chumbo, tão sorumbáticos, temos boas horas para palmilhar, passam cavaleiros, ciclistas, cães ofegantes, gente a correr e a marchar e há o potentado do silêncio nestas catedrais de faias e carvalhos. E bendito este dia de Maio, já entardece e não arrefece, vamos continuar.



No retorno a Watermael-Boisfort, agora já com os pés cansados, com uma passagem pela cervejaria, aqui se deixa as últimas saudações florais, parece milagre a presença desta paleta de cores, assiste-se a um privilégio que dura escassas semanas, parece que acertei no dia e na hora. Amanhã será diferente, haverá viagem de metro até ao centro da cidade, viajo com alguém que desconfia em permanência do tempo Nórdico e que neste exato momento até questiona, à boa moda britânica, se não deve passar mais tempo a aproveitar o apogeu floral. Mas não, amanhã começa-se o dia em Bruxelas capital, o primeiro monumento será uma igreja de nome Nossa Senhora do Bom Socorro, monumento barroco, por estar perto da Grand Place foi em grande parte destruída pelos bombardeamentos de 1695 do marechal Villeroy, às ordens de Luís XIV, e reconstruída no final do século XVII. Ninguém ignora que o Norte da Europa, católico ou protestante, se laiciza a passos gigantescos e os templos religiosos recebem turistas e cada vez menos crentes. Amanhã iremos visitar uma igreja vazia, felizmente que haverá música de fundo a tentar colmatar a ausência dos cânticos dos fiéis.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16776: Os nossos seres, saberes e lazeres (187): A medicina antes do 25 de Abril - Intervenção, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM - Federação Nacional dos Médicos (Adão Cruz ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

Guiné 63/74 - P16778: Convívios (775): Almoço anual dos veteraníssimos ex-combatentes da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), em Ponte de Sôr, no passado dia 5...Este ano fomos só vinte, mas o nosso poeta Francisco Santos continua vivo e inspirado (José Colaço)



Ponte de Sôr > 5 de novembro de 2016 > Convívio anual da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Foto de grupo: à esquerda, o José Colaço, a seguir a sua esposa, em terceiro o Francisco dos Santos e a sua Emília. O Francisco é também nosso grã-tabanqueiro. Foi 1º  cabo radiotelegrafista, E é inspiradíssimo  pota popular.

Foto (e legenda): © José Colaço (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem de 7 do corrente, de José Colaço:


Foto à direita: José [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008: tem 70 referência no nosso blogue.
Luís, para arquivo ou publicação... 

Esta é uma das companhias que, por ser das primeiras a ir para a guerra,  também está condenada a ser das primeiras a extinguir-se,  isto tendo em conta as ausências que se notam nestes últimos convívios,  uns por doença,  outros com as dificuldades do peso dos anos... para não falar já daqueles que de ano para ano tomam a barca do barqueiro de Caronte. 

Este ano só picaram o ponto vinte ex-combatentes. O que nos dá ânimo é que o comandante ainda está activo e marca presença embora apresente as suas queixinhas,  os tais lapsos de memória mas ainda dá o seu pezinho de dança. O  único ex-alferes que sempre tem marcado presença,  este ano já apareceu com o auxílio de umas canadianas.

Segue em anexo um poema que todos os anos faz honra em escrever o nosso poeta,  dedicado ao convívio,  e uma foto em que estou à esquerda,  a seguir a minha mulher,  em terceiro o nosso poeta popular Francisco dos Santos e a sua Emília.

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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16777: Antropologia (25): Um sonô, o mais valioso tesouro artístico da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

1. Em mensagem do dia 24 de Novembro de 2016, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) enviou-nos este artigo sobre  o valor atingido por um sonô, ceptro real, da Guiné-Bissau.


O mais valioso tesouro artístico da Guiné-Bissau

Beja Santos

Em 1969, estava eu no Cuor e Avelino Teixeira da Mota em Bissau (era Chefe do Estado-Maior do Comando da Defesa Marítima da Guiné, recebi deste um aerograma em que a dada altura me perguntava se conhecia a existência de algum sonô na região, visto que os Mandingas do Cuor eram Beafadas mandinguizados. E explicava-me que eram os cetros reais Beafadas de que havia notícia desde o século XVII. E adiantava alguns elementos, curiosamente coincidentes com a apresentação que sobre os mesmos fez num colóquio internacional de antropologia, documento que me ofereceu mais tarde. Todas as diligências junto do régulo foram infrutíferas, mesmo em Bambadinca e Bafatá. Um velho, em Bambadinca adiantou que há muitos anos um comerciante alemão que circulava no Xime e no Xitole também procurava semelhantes objetos.

Imprevistamente, ao folhear um catálogo da conceituada leiloeira Christie’s, de um leilão de arte africana e da Oceânia que se realizou em Paris em Dezembro de 2015, deparou-se-me um sonô cuja base de licitação oscilava entre os 10 e 15 mil euros. Não resisto a mostra-vos esta jóia disputada pelos colecionadores mais exigentes de arte africana, são peças que constam dos mais importantes museus do mundo, como o Moma. Dá vontade de rir quando se diz que a Guiné-Bissau está fora do mapa da melhor arte africana.



































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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15636: Antropologia (24): Esculturas e objectos decorados da Guiné Portuguesa (João Sacôto)

Guiné 63/74 - P16776: Os nossos seres, saberes e lazeres (187): A medicina antes do 25 de Abril - Intervenção, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM - Federação Nacional dos Médicos (Adão Cruz ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

© Pintura de autoria de Adão Cruz


Introdução

Deram-me a honra de um convite para intervir, no âmbito do 11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), num debate sobre o Serviço Médico à Periferia, cabendo-me falar sobre o exercício da medicina antes do 25 de Abril.

Alguém sugeriu que era útil e interessante fazer um texto com o essencial da minha intervenção. Ele aí está, todavia liberto de todos os aspectos técnicos que só serviriam para entorpecer a leitura de quem não é médico

Pelo texto que se segue, todos ficarão com uma ideia de como era, com algumas variantes, a prática da medicina rural e de todo o interior do país antes do 25 de Abril e, portanto, antes da criação do SNS, por volta de 1989, o qual, em três décadas, como sabemos, se haveria de tornar num dos melhores e mais respeitados do mundo.

Hoje, infelizmente, encontra-se no meio do mais ignóbil processo de destruição, urdido pelo capital privado e pelas forças mais retrógradas que procuram miná-lo por todas as formas e feitio, de modo a poderem dizer que não funciona. Gente que se encontra nos antípodas dos homens progressistas que o criaram e ajudaram a desenvolver, homens de mente sã e avançada, como Miller Guerra, Albino Aroso, António Galhordas, Gonçalves Ferreira, Pereira de Moura, António Arnaut e outros.



11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), Porto, Hotel Ipanema, 12 e 13 de novembro de 2016

Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista

Vídeo com a intervenção do dr, Adão Cruz, (27 m) que nos foi foi facultado pelo próprio



A medicina antes do 25 de Abril


Quando saí da Faculdade tive duas opções de vida: Fazer clínica na minha terra, como “João Semana”, ou aceitar o convite de um colega mais velho do que eu cerca de onze anos, amigo e conterrâneo que residia nos EU, médico hospitalar de medicina interna, para ir para a América. Tinha de escolher uma destas duas opções extremas. Optei pela primeira por duas razões principais: por um lado, tinha a guerra colonial à minha frente e dificilmente poderia sair do país, por outro lado, precisava de ganhar algum dinheiro. Os meus pais fizeram muitos sacrifícios para formarem dois filhos e eu não estava disposto a sacrificá-los mais tempo.

Estávamos no ano de 1964. E assim comecei a minha actividade clínica, em Vale de Cambra, sem estágio nem tese, três anos antes da ida para a guerra colonial da Guiné. Encostei-me a um velho clínico que era um monumento de sabedoria prática e experiência. Foram esses três anos os piores e mais difíceis. Vale de Cambra, um pequeno concelho com uma área de 147 Km2, tinha talvez menos de 15.000 habitantes. Dispersava-se por nove freguesias, algumas delas abrangendo os mais remotos e inóspitos lugares da Serra da Gralheira, com pequenos povoados e populações encravadas em locais quase inacessíveis, com muitas pessoas vivendo na maior ignorância e na mais extrema miséria.

Continuei durante outros três anos, após o meu regresso da Guiné, estes já melhores, pois iniciei na altura o Internato Geral no Hospital de Santo António, para onde me deslocava todos os dias. Este facto, a experiência da guerra e alguma presença em reuniões científicas, permitiram-me uma maior competência, bem como relações pessoais e com o hospital, que me facilitaram muito a minha prestação de cuidados médicos. Não tive, propriamente, contacto com o Serviço Médico à periferia, criado em 1975. Nessa altura já eu tinha obtido a especialidade e fazia parte do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santo António.

Pediram-me para falar da medicina em Portugal antes do 25 de Abril, ou seja, antes da criação do Serviço Médico à periferia em 1975, o primeiro passo, por assim dizer, para o nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e também uma experiência valiosa e ímpar. As duas realidades, o antes e o depois do 25 de Abril, não podem comparar-se. Claro que eu não posso falar do que se passava em Portugal. Posso falar, sim, do que se passava numa parte de Portugal, que, muito provavelmente, com algumas diferenças, era o que se passava em todo o interior do país. E digo interior, porque havia uma significativa diferença com o litoral, onde existiam os poucos recursos técnicos da época. Com efeito, não havia qualquer rede hospitalar digna desse nome, e os únicos hospitais situavam-se em Lisboa, Porto e Coimbra, havendo um ou outro pequeno hospital, aqui e ali, de muito pouca eficácia, quase sempre ligado às misericórdias. De qualquer forma, os cuidados primários de saúde eram um conceito quase desconhecido, sendo notória uma profunda degradação dos poucos serviços de saúde existentes e uma enorme incapacidade de resposta às necessidades mais elementares.

Antes do 25 de Abril a assistência médica não estava assegurada, sobretudo antes do fim da década de sessenta. Competia às famílias, às instituições privadas e à caridadezinha, que a despeito de aviltar a dignidade humana, lá ia remendando as coisas aqui e ali, bem como aos débeis serviços médico-sociais da Previdência fazerem alguma coisa. Mas era sobretudo ao “João Semana”, pilar fundamental da saúde nesses tempos, que tudo se exigia. As áreas rurais dessa época tinham características comuns, o serem pouco populosas, muito isoladas, com uma população envelhecida, profundamente carenciada, com problemas de acessibilidade aos grandes centros que ficavam muito longe e com vias de comunicação péssimas, vivendo de uma agricultura de subsistência, e, portanto, profundamente vulneráveis. A saúde, ou o pouco que se poderia fazer na promoção da saúde era dependente da capacidade económica de cada cidadão, o que levava ao pagamento integral dos cuidados médicos, nomeadamente dos cuidados hospitalares, mesmo públicos. Só tinham direito a cuidados gratuitos, e obviamente de pior qualidade, aqueles que conseguissem apresentar um atestado de pobreza ou indigência passado pela junta de freguesia.

E foi nestas condições de 1964 que eu comecei a viver, de dia e de noite, 24 horas por dia, ao sol e à chuva, todas as peripécias clínicas que levaram um dia minha mãe a dizer-me: rapaz, muda de vida senão morres. Mas foram essas tremendas dificuldades e essas precaríssimas condições, que constituíram para mim uma segunda faculdade. Dizia o meu velho amigo Dr. Teixeira da Silva: você aqui vai ver tudo, desde a queda do cabelo à unha encravada. Com efeito, numa altura em que a esperança de vida era de quase menos 15 anos do que hoje, éramos senhores de todas as especialidades, desde a pediatria à ginecologia e obstetrícia, passando pela dermatologia, oftalmologia, psiquiatria etc. Em termos de material, eu tinha quase tudo o que era possível ter na altura, e muita coisa oferecida por um grupo de amigos: marquesa, mesa ginecológica, espéculos, estetoscópio, aparelho de tensões, otoscópio, oftalmoscópio, sondas e algálias, todo o material necessário a pequena cirurgia. Era frequente a incisão e drenagem de abcessos, a exérese de lipomas e quistos, extracção de unhas encravadas, circuncisões etc. Tinha ligaduras, pensos e desinfectantes variados, material para injectáveis, mala de urgência apetrechada com tudo o que era viável, e ainda fórceps e ventosa que o Dr. Teixeira da Silva me emprestava. Ele tinha também uma velha radioscopia cuja radiação nos deixava, ao fim de 5 minutos, como se tivéssemos apanhado uma descarga eléctrica. Para fazer uma radiografia, um electrocardiograma, qualquer exame mais avançado ou uma cirurgia, só no Porto, o que ficava muito caro. Fora do Porto nada havia, apenas um ou dois pequenos laboratórios de análises em concelhos limítrofes.

As pessoas viviam atormentadas com o medo da doença e viam-se obrigadas a algumas poupanças durante a vida não só para guardarem “um terço para a tarde”, como se dizia, mas também para ocorrerem ao inesperado, ou então tinham de vender terras e gados para pagar uma qualquer cirurgia ou outros cuidados de saúde mais dispendiosos. De uma maneira geral, só chamavam o médico quando viam que a coisa tinha atingido um tal estado que já não era resolúvel por si própria e pelas mezinhas caseiras. Claro que o nosso objectivo era muito mais o do alívio sintomático e a melhor resolução possível da situação, não havendo, por falta de meios de toda a espécie, nomeadamente meios auxiliares de diagnóstico, grandes preocupações de investigação e de diagnósticos precisos e etiológicos.

Uma das actividades para que mais vezes éramos solicitados era a assistência aos partos. Mas só quando a parteira habilidosa lá do lugar via o caso mal parado. Partos no hospital ou na maternidade eram uma raridade. A taxa de mortalidade neonatal andava pelos 25 por mil, a taxa de mortalidade perinatal pelos 40 por mil, a taxa de mortalidade infantil rondava os 60 por mil e a taxa de mortalidade materna atingia os 70 por 100.000. Fiz muitos partos, alguns à luz da candeia e do petróleo, em locais onde nunca passou Cristo, em que a camita de ferro da parturiente era por cima do curral da vaca. Quase todos os partos que fiz, por incrível que pareça, foram partos naturais, embora com auxílio de episiotomias, do fórceps e sobretudo da ventosa, o que a meu ver, pode pôr em causa a actual necessidade de muitas cesarianas.

As gastroenterites, sobretudo em bebés e crianças eram frequentes, e só nos chegavam às mãos em adiantado estado de desidratação que nós tentávamos resolver com a ministração subcutânea de soro, dos dois lados da barriguita, deixando a criança com dois ventres, como um sapinho. Era praticamente impossível canalizar e manter uma veia numa criança daquelas. Em adultos, lá conseguíamos fazer umas infusões com as poucas soluções parentéricas de que na altura dispúnhamos.

Caía-nos em cima tudo o que fosse infecções e todas as doenças infecto-contagiosas possíveis e imaginárias, incluindo tuberculose, febre tifóide, mononucleose, tétanos, muitos casos de sarampo, cuja vacina fora descoberta apenas um ano antes, escarlatina, varicela, coqueluche, reumatismo articular agudo e subsequentes doenças valvulares, meningites e a difteria ou garrotilho que produzia a terrível toxina diftérica. Na difteria, o que mais nos atemorizava eram as situações de obstrução respiratória, produzidas pelas placas brancas da orofaringe. Uma vez estive com o bisturi na mão, decidido a fazer uma traqueostomia (abertura na traqueia) num catraio de cinco ou seis anos, mas optei por fazer outra coisa que não era aconselhável, pois poderia disseminar a toxina, isto é, arrancar as placas da orofaringe. Felizmente correu bem, e a criança é hoje um saudável adulto emigrante na Alemanha. Infecções pulmonares, pneumonias graves, apendicites que nos chegavam algumas vezes com peritonite e que encaminhávamos para um pequeno hospital de que nos valíamos, o Hospital Conde de Sucena, em Águeda. Todavia, falar em ir para o hospital era sempre um problema e uma solução muitas vezes não aceite pelos familiares, não só porque constituía uma espécie de sentença de morte, mas também porque se temia a conta que daí adviria. Então para o Santo António nem pensar, não sei se por ser mais longe, se pela sua envergadura.

Acidentes de trabalho, por vezes com graves feridas e traumatismos, fracturas e queimaduras extensas, tudo situações que nos exigiam grande responsabilidade, muito tempo de tratamento e a aplicação rigorosa de todos os conhecimentos aprendidos na faculdade, que não eram poucos nem frágeis, pois a nossa formação, na altura, foi muito boa. A medicina no trabalho não existia, embora começasse a nascer em conceito. Havia algumas pequenas empresas, sobretudo na área das madeiras, dos lacticínios e da metalo-mecânica, mas o trabalhador era uma máquina como qualquer outra, tendo de ser reparada quando avariava. O trabalhador não tinha quaisquer direitos laborais e era-lhe negada a possibilidade de ser um sujeito activo na construção da sua própria saúde, incluindo o controle de factores que a determinavam positivamente, factores protectores, ou que a punham em risco, factores de risco, quer dentro quer fora do local de trabalho.

Frequentes situações de insuficiência respiratória e graves crises de asma, silicoses, insuficiência cardíaca grave, com edema agudo do pulmão. Ainda nos valíamos dos garrotes e da sangria. Arritmias cardíacas que classificávamos conforme podíamos, sem qualquer registo electrocardiográfico, e que tentávamos reverter quando havia repercussão clínica. Cardiopatias congénitas e outras malformações, sobretudo aquelas que eram mais susceptíveis de diagnóstico clínico. O primeiro diagnóstico que fiz, a “solo”, de uma dessas graves malformações chamada coartação da aorta, foi num rapaz de vinte anos, pouco mais novo do que eu. Foi operado em Lisboa pelo Professor Celestino da Costa, e hoje, ao fim de mais de meio século ainda é vivo e ainda vem à minha consulta. Havia AVCs e enfartes do miocárdio, com diagnóstico apenas clínico, que encaminhávamos para o hospital de Águeda ou Santo António. Ao compararmos o que se fazia na altura perante um enfarte do miocárdio, por exemplo, e o que se faz hoje em termos de cardiologia de intervenção, damos com um abismo apenas preenchido por uma monumental ignorância. No fim de contas, o resultado era o doente morrer ou ficar com o coração gravemente mutilado.

Havia amigdalites muito frequentes e repetitivas, e como na altura havia grande medo do reumatismo articular agudo (RAA), quanto mais cedo extirpássemos as amígdalas melhor. Juntávamos três ou quatro pacientes, e uma vez ou outra vinha um otorrino de Lisboa a Oliveira de Azeméis de onde era natural, e passava pelo consultório, operando-os de empreitada.

Eram frequentes as cólicas renais e biliares, bem como doenças oncológicas terminais, cancros do estômago, cancros pulmonares avançados, com punções pleurais por vezes repetidas, nos confins da serra, para esvaziar o líquido pleural e aliviar a asfixia do doente. Gangrenas, cirroses e drenagens de ascites monstruosas, limpeza e tratamento, às vezes durante meses, de feridas de toda a ordem, nomeadamente feridas cancerosas da pele onde cabia um punho, cancros da boca, do pénis e do ânus.

Para terminar, gostaria de dizer que muita coisa que hoje é quase banal no nosso país, não existia na altura. Fui algumas vezes a Madrid com dois tipos de doentes: asmáticos e doentes com patologias cardíacas valvulares. Tratava-se, obviamente, de pessoas com dinheiro, ou, pelo menos, com posses suficientes para as despesas que não eram pequenas. Quanto aos primeiros, não havia ainda em Portugal a especialidade de alergologia nem a existência de vacinas, pelo que recorríamos ao Instituto La Paz, onde trabalhava um grande alergologista, o Dr. Ojeda Casas, e de lá trazíamos as vacinas. No que respeita aos doentes com indicação de cirurgia cardíaca, que não existia em Portugal, essencialmente implantação de próteses valvulares mecânicas, valíamo-nos do Hospital de Nuestra Senhora de La Concepcion, onde trabalhava um dos mais conhecidos cirurgiões cardíacos da época, o Dr. Gregório de Rábago, o qual operou o meu amigo e colega de consultório, estomatologista, filho do Dr. Teixeira da Silva.

Adão Pinho da Cruz, 
Médico Cardiologista, 
ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, 
Canquelifá e Bigene, 1966/68





Cartaz e programa > 11.º Congresso da FNAM (Federação Nacional dos Médicos), Porto, Hotel Ipanema, 12 e 13 de novembro de 2016






Cartaz > Debate FNAM > Programa > Serviço Médico à Periferia > Porto, Hotel Ipanema, 11 de novembro de 2016, 21h30 > Intervenção: Adão Cruz - Médico Cardiologista


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16750: Os nossos seres, saberes e lazeres (186): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16775: Inquérito 'on line' (86): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: depois do 25 de abril de 1974, continuávamos a fazer patrulhamentos ofensivos, encontrávamos gente do PAIGC que vinha "visitar família no Bissorã", "partíamos mantenhas" e depois lá seguíamos à procura... do "turra"!... Além de cansados, sentíamo-nos "ridicularizados"... (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74)



Foto nº 1


Foto nº 2 


Foto nº 3 


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 (1969/74) > Pós 25 de abril de 1974 > Os primeiros (re)encontros, pacíficos, entre as NT e os guerrilheiros do PAIGC (fotos nºs, 1 e 2). Na foto nº 3, vê-se em primeiro plano o Henrique Cerqueiro, saindo em patrulhamento ofensivo com um Gr Comb da CCAÇ 13. 

Recorde-se que o Cerqueira esteve, como fur mil, no TO da Guiné, desde finais de novembro de1972 até inícios de julho de 1974, primeiro na 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72 e depois na CCAÇ 13. 

Fotos ( e legendas): © Henrique Cerqueira (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário, ao poste P16769 (*), 
de Henrique Cerqueira [, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe 
e Bissorã, 1972/74; vive no Porto]:


Em determinada altura , ou seja, já em data posterior a Abril de 74 e já depois de haver encontros com os combatentes do PAIGC, encontros amigáveis,  o nosso comando continuava a enviar grupos de combate em missões  de patrulhamento ofensivo,  ao interior do mato, tal como no tempo em que a guerrilha estava activa.

A malta, para além de estar no fim da comissão,  achava ridículo esses patrulhamentos, pois que começou  a ser comum encontramos, várias vezes,  a meio do caminho, pequenos grupos de combatentes do "IN" que vinham visitar familiares a Bissorã. (**)

E até tinha alguma graça porque quando nos encontravamos e,  após os cumprimentos de cortesia entre os dois "inimigos",  era costume nós perguntarmos onde é que eles iam. E eles respondiam que iam "visitar família no Bissorã".  Então eles nos perguntavam o que fazíamos nós por ali,  em pleno mato e longe do aquartelamento. Nós, em jeito de "gozo",  respondíamos que andávamos em busca de "turra".  E lá partíamos para lados opostos,  cansados e com a sensação de estarmos a ser ridicularizados.

Vai daí,  e até ser verificado pelas nossas altas patentes que naquela altura seriamos mais úteis na zona de aquartelamento,  a malta de quando em vez  lá acampava nas proximidades sem dar muita bronca e assim evitar algum cansaço e quem sabe alguma mina esquecida nos trilhos.

Mais tarde,  e devido a alguma "rebaldaria" da época revolucionária que se estava a instalar na população civil,  veio a ser muito útil acabar com os patrulhamentos na mata, passando antes a ser feitos dentro da localidade. 

Outra das medidas ridículas era,  na época de guerra e de quando em vez, o comandante de Batalhão em determinadas operações enfiar-se numa DO-27  [, o famoso PCV, posto de comando volante]...  Ía a determinado ponto do local da operação e mandava via rádio a malta se pôr na vertical. Isto e só porque o Comandante não tinha mesmo a noção do risco em que punha a malta ao obedecer a tão ridícula ordem.

Após o aparecimento dos mísseis [Strela] deixaram por completo de fazer esses "voos turísticos" no teatro de guerra. Era por isso que  havia alturas em que a malta cá em baixo tinha mesmo que improvisar alguns malabarismos e enganar (?) os senhores estrategas.

Um abraço, Henrique Cerqueira

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Nota do editor:



(**) Vd. poste de 3 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10220: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (12): Os primeiros encontros, em Bissorã, com o inimigo de ontem (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, CCAÇ 13, 1973/74)