quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17715: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV - Sangue, suor e lágrimas até ao fim... Op Suspiro, a última realizada pelos "Lassas", a 5 de novembro de 1966.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) > Cambança do rio Ganjola, no decurso da Op Petardo, em 10 de junho de 1966.


Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) >  Mapa com as zonas de intervenção dos "Lassas". Durante a comissão, estima-se que a CCAÇ 763 tenha percorrido aproximadamente 16 mil quilómetros a pé, 6 mil  de viatura e mil  de LDM. Teve 10 baixas (mortais), sendo 7 em combate e 3 por doença. Sofreu 53 feridos. Dos relatórios constam ter sido feitos 45 prisioneiros e causado 40 feridos e 107 mortos ao então IN.


Infografia: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]








Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXV Parte > Cap XIV (pp. 87-93)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.

(xxi) revolta e dor pela morte do seu camarada e amigo, o fur mil Humberto Gonçalves Vaz (Op Teste, na região de Cabolol];

(xii) o cap Costa Campos deixa a companhia; a comissão está a chegar ao fim: a Op Suspiro é a última operação realizada, a 5/11/1966.




Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV:  Regresso à Guerra [3] [pp. 87-93]



Com o meu amigo Humberto já não podemos falar desta merda e do nosso velho Portugal. Agora sim, em parte estou em sintonia com ele, pois apesar de quatrocentos anos de colonização, não fize­mos aqui senão porcaria e os que não o querem ver, continuam sendo piores que os cegos. Este caso já não é de guerra é, de facto, como tu dizias, político.

Não é falta de moral, nem medo. Estou-me cagando para morrer aqui ou noutro lado qualquer! É falta de ética? Sim, é bem possível, só que agora, talvez ainda pudéssemos acompanhar o comboio e fazer algo bonito. Mas, infelizmente, não estou a ver nada. Tenho o pressentimento de que, quando alguém entender e quiser fazer alguma coisa, estaremos todos com as calças na mão e aí vai ser já muito pior para todos.

Só em pleno século vinte, começámos aqui administra­tivamente a fazer qualquer coisa. Que poderemos querer agora? Qual a cultura? Qual a história nossa aqui presente?

Recordo perfeitamente também a controvérsia quanto à utilização do termo “Velho do Restelo”. Humberto discordante, tinha uma perspectiva que roçava o incompreensível? Para quem?

Falava ele sobre o “Velho”, na assembleia que se formava na messe de sargentos. Sargentos? Porque não furriéis milicianos? Questões económicas? Interessante, a interpretação do Velho do Restelo por Humberto, dizia ele:
-Oh gentes! Deixai o “Velho” sossegado, leiam os Lusíadas, e não ponham em Camões intenções as quais ele nunca teve.

Será Camões contraditório? “C´um saber só de experiência feito,” “tais palavras tirou do esperto peito”. Esta voz veneranda é digna de ser ouvida com atenção. As palavras aos que partem, são precedidas da Mãe.
- Qual é a estrofe, Mamadu? Se não estou em erro é a 90 ou por aí, do Canto IV. E das palavras da esposa. Veja-se a visão de conjunto dos frágeis que ficam: Mães, esposas, filhos, velhos e meninos. Portanto por detrás do “Velho”, está o povo anónimo. As suas palavras são puras análises da condição humana. Segundo ele as bases da viagem do Gama são: a glória de mandar, a vã cobiça a vaidade que se apelida de fama. Impulsos que não passam de fraudulento gosto. Que se é próprio da condição humana ser insatisfeito? Dura inquietação da alma e da vida, veja-se os exemplos dados de Prometeu e Ícaro. Tenhamos em atenção que o Canto!?

-Lopêz! Vai ao meu abrigo e traz-me os Lusíadas, não vá eu confundir isto tudo!

Enquanto o impedido da messe se deslocava ao abrigo de Humberto, que se situava a norte do aquartelamento, virado para Cufar Nalu, Bernardino gerente de messe, voltava a trazer mais umas bazucas e whiskys para o pessoal. Mas entretanto o furriel Humberto ia continuando:
-O Canto IV contem 104 estrofes, pelo que a análise deve ser feita até ao final.


E mesmo com a chegada do livro, o furriel continuava a sua análise:

-Temos então que a análise que se possa fazer, sabendo o “Velho” que o homem estranho animal, que não ouve a voz do bom senso e da lógica lucidamente, ele sabe que as suas não serão ouvidas, procura então inverter os campos, veja-se… Lopez, dá cá o livro!

Folheando…
-Precisamente 100 e seguintes. Oh, gente, temos aqui então a opinião política do “Velho”, e aqui eu vejo Camões e não o “Velho”, pois estão confirmadas as duas correntes existentes no tempo, a expansão para o Norte de África em detrimento do Oriente. Não será que Camões põe na boca do “Velho” a sua própria opção? Com ela ou sem ela, aqui estamos nós, nas mesmas condições, embora com armamento diferente.
- É impossível falar com Camões! Não há duvidas que acima de tudo, mesmo considerando a corrente da época, é que ele era um grande humanista.

Sorrindo para a malta, saiu-se com esta:
-O que o Velho do Restelo critica em tom sério e austero, Gil Vicente fá-lo satiricamente! É ou não verdade?

Seriam subversivas, estas culturais conversas? Esperamos que nin­guém tenha a ousadia de nos considerar antipatriotas, pois nunca virámos a cara às nossas responsabilidades, e medo também jul­go que não o tenhamos. Aliás, valentes e loucos são todos os "Las­sas" .

Vejo-o perfeitamente, na tabanca de Impungueda, fa­zendo segurança a um comboio de barcos mercantes, para abas­tecimento a Bedanda. Eu, sentado de encontro a um cajueiro, tronco velho carcomido, mantendo a G3 assente sobre as pernas esticadas, no solo de terra vermelha. Ao lado, junto a uma palho­ta, duas crianças nuas, encostadas ao barro da parede, olham para os militares. No chão, vê-se um pau rachado em cuja ponta fendida, se encontra incrustada uma cunha de ferro, amarrada por fita de liana. Humberto de pé, à minha frente, olhando o arcaico objecto, nele pegou. Mirou-o bem, pegou-lhe pelo cabo e com movimento rápido, cravou o simulado machado, no enor­me poilão que há frente se encontrava. Aproximou-se, empurrou o capacete um pouco para trás, dobrou-se sobre os joelhos fican­do de cócoras na minha frente, sorriu e disse:
-Já viste, Mamadu!? Olha o resultado de quatrocentos anos, da nossa obra para estes desgraçados!

E apontando as crianças proferiu:
-Se não fosse a escola dos militares de Cufar, eles nem o nome de Portugal conheceriam. Olha para o instrumento de trabalho que nós damos a estes desgraçados! Vês? Mas ... há a contradição! Os pais, amigos, e irmãos deles têm armas melhores que as nossas. Como se pode comparar situações e métodos tão antagónicos?

Olhei para os miúdos, e verifiquei que Humberto estava certo. Só agora aqueles pobres diabos, podiam aprender a língua da nacionalidade imposta, há quatrocentos anos.

Assim eram muitas vezes as conversas entre estes dois furriéis.

Na semana seguinte, voltamos novamente para os lados do norte, Cabolol, e o que existe á sua volta, já se toma obses­são. Mas as coisas, vamo-nos apercebendo, não melhoram e continua tudo sem dar aquela volta necessária que se espera. A sul vamos controlando, e as populações mantêm-se relativa­mente fiéis mas, a partir de Boche-Mende, para norte, é tabu. 

Entramos então na operação Saguim, para verificar o que se passa por Cachaque. Evitamos seguir pela estrada até à ponte do rio Caianquebam, onde tínhamos sido emboscados a outra semana. Utilizamos outra forma de progressão e, pelas três da manhã, alcançamos o atalho para Cachaque, cambando o rio. Podemos agora verificar e confirmar que as coisas estão muito diferentes do que anteriormente era, pois a C.CAÇ chegou a fazer isto com dois grupos de combate. E mais, até a fazer nomadização. Agora vamos três companhias do exército e, mesmo assim, temos pro­blemas. Nós fazemos muito estrago, é verdade, mas também levamos muita pancada. Carlos tinha razão quando falava na inutilidade do Cachil.

Mas, voltemos então à Op Saguim. Após a cambança do rio, a CCAÇ e a outra companhia dispõem-se em linha e iniciam a batida no sentido norte sul. A tabanca foi cercada e a população foi reunida. Constituída por mulheres e crianças essencialmente, havendo alguns homens válidos, rece­bemos a informação que o IN não se encontrava naquela zona, mas sim mais a norte, na região de Boche-Bissã, e que, por ve­zes, transitavam por ali grupos de elementos armados, mas vin­dos de Cansalá. Desta vez regressámos sem contacto com o IN.

A oito de Março, um ano depois de aportar a Cufar, Car­los abandona os Lassas nas mãos do Bolinhas. Valha-nos São Paulo.

Quem parte não leva saudades, quem fica, tem pena de não partir. A experiência de Carlos é vista pelos cegos dos gabi­netes.

Com esta partida de Carlos, renasce uma esperança na CCAÇ 763, é possível que olhem para a nossa obra e que, em vez dos louvores e condecorações, nos coloquem num local onde se descanse um pouco, pois a continuar neste ritmo, em breve vão começar a aparecer situações graves.

Vã esperança a destes homens a quem, depois de lhe comerem a carne, irão tirar-lhe a pele e tentarão com os seus ossos refinar açúcar. Meus amigos, há três hipóteses apenas: ou morrem na estrada de Cabolol, tanto faz, ou ficam apanhados da mona e são evacuados para tratamento no Júlio de Matos, ou en­tão resistentes, antes quebrar que torcer aguentarão o pacote até entrarem directamente daqui para o Niassa.

Vontade e sorte, azar ou pouca sorte, o destino já nos está traçado.

Mamadu concentra a mente em duas forças: Ou o padre velhote orou e pediu a Deus por si e estará safo, ou então o homem grande "palhinha" de Miriam, não deixa o diabo fazer entrar bala no seu corpo. Outras alternativas não vê.

Voltamos a Darsalame, executando a Op Safanão.

Desta vez ainda entrámos nas bordinhas da mata. Não espera­vam a nossa manobra. Enquanto estavam entretidos connosco, os periquitos apareceram-lhe nas costas, e tiveram que dar às de Vila Diogo. Eis aqui a sorte, azar, ironia do destino. Os periquitos que tinham andado todo o dia na mata sem contacto e sem dar um tiro, só a sua aproximação fez o IN debandar. Quando se reuniam a nós, um tiro isolado apanha um pobre soldado em pleno coração. Mamadu, já um pouco longe do militar guerrilheiro, voltou a sentir os olhos húmidos por aquele pobre jovem.

Cuidado rapaz, ainda há muito pela frente e, se começas a ficar sentimental, é uma merda. Acorda! Isto está para durar.

Abril [de 1966]. Continuamos a obra a sul, e a manutenção da população em fidelidade. Mas há que voltar para norte. A CCAÇ começa a estar muito cansada, e as baixas vão minando o moral, influenciando e reflectindo-se no desempenho das missões, mal conseguimos arranjar dois grupos de combate, pois o resto está no estaleiro, mas vamos com a milícia efectuar a operação Toi a Camaiupa e Cachaque. Sem problemas, conseguimos falar nova­mente com o pessoal nativo de Cachaque. O chefe de tabanca informa que tinham sido levados para Cansalá por um grupo IN, chefiado por um indivíduo de nome Brandão. Mais tarde teriam fugido e regressado a Cachaque. Seria? Mamadu tomou-se incrédulo. Já não acredita em ninguém.

No regresso, no cruzamento de Cachaque com a estrada de Cabolol, monta-se uma emboscada. Nada de novo e nem viva alma. Levantamento da emboscada e voltamos a Cufar. As viaturas vão buscar o pessoal à entrada da mata de Cufar Nalu na estrada para Catió. O furriel retoma o seu velho hábito de se sentar no tejadilho do unimog, por cima do condutor. A visuali­zação da paisagem de capim seco leva-o para longas terras, para a sua planície, para confirmar o contraste. É Abril. A planície não deve mostrar a sua terra, mas sim a pujança da beleza parida no seu ventre. O furriel deixa-se levar no enlevo do seu pensa­mento, e vê os caminhos bordejantes de douradas grisandras dançando na brisa primaveril. Os montes e vales, telas verde­jantes com maravilhosas pinceladas dos arroxeados chupa-méis, alternando com a margaça e margaridas de áureo olho e alvas pétalas, mostram a beleza da Planície. Na cidade, a pequenada começará pacientemente com uma agulha, enfiando as marga­ridas em linha grossa, fazendo os seus colares e grinaldas com que se enfeitam e à boneca de trapos, que será posta em simulado altar, pedindo depois aos transeuntes e vizinhos, um tostãozinho para a “Maia”. Assim irão tentando mais qualquer coisa, para mediar o magro mealheiro. As ruas encher-se-ão de cheiroso rosmaninho, para dar passagem à procissão do Senhor dos Passos que rememorando a Via-sacra a caminho do Gólgota, percorrerá todos os Passos da cidade. A semana da Paixão termi­nará com o enterro do Senhor. É Páscoa, é Ressurreição, devia ser renovação, mas a civilização, depois de perder a Fé em Deus e no próprio homem, volta-se para a mistificação das formas e cria símbolos, embalagens ocas que, obsessivamente vai cuidando, tentando esconder o vazio em que existe.

Diz sim! Diz, Maria de Deus que eu sou um romântico, coração mole, travestido de homem duro. Podes dizê-lo, contigo eu sou obrigado a reconhece-lo, mas que mais ninguém o saiba, principalmente Tânia. Pronto, não vou pensar mais nisso! Ou vou? Eterno indeciso!...

Pensa na sua aldeia, e percorre-a através da poesia de Manel Piorna.


Recordo-te!...
Nas desalinhadas calçadas
De pedra britada.
No Rossio terreiro
Ginásio da pequenada.


Contorno-te!...
Em cada Esquina
Pilar da tua memória.
Em cada largo
A pedra marco da história.

Descubro-te!...
Em cada casa
Orgulhosa de alva brancura.
Aldeia planície
Do coração saudosa procura.

Revejo-te!...
Aninhada, ao redor da Igreja
Em penitente oração.
Vila Fernando agora...
Voltando a Conceição.

Ouço-te!...
No anunciar da Natureza
Os diversos destinos.
Repicando em festa ou dobros saudade
Os teus sinos.


Suplico-te!...
Jardim de grisandras e chupa-méis
Horizonte sem serra.
Planície! Dá-me abrigo no teu ventre...
Amada terra!


-Então meu furriel, não desce?
- O quê?
- Já chegámos?!.

Mamadu não tinha dado pelo caminho nem pela entrada no aquartelamento.

A vida não pára e os Lassas também não. Maio, Junho, o chefe de grupo armado IN Ala Na Mone e Varna Na Buta, constantes do ficheiro fotográfico, são aprisionados por um grupo de combate, numa rusga em Cantone e em Mato Farroba são aprisionados Sande Na Manan de Catunco e Sulé Na Brama de Cabedu. As operações continuam: Signo, Sonda, Sarilho, nesta operação a população de Cachaque a seu pedido, foi recolhida e levada para Catió. 

Na Op Petardo vamos para Ganjola, mas já não somos uma Companhia de Caçadores, somos um Grupo a quem outros têm de emprestar pessoal. Lá está a 1484 a ceder os seus Grupos de Combate, tempos duros, amigo Benito! Obrigado a ti e aos teus homens pelo companheirismo.

Chegamos à triste situação de só conseguirmos arregi­mentar quarenta e oito Lassas em condições operacionais. É uma tristeza!. .. Paolo chega a ir a Bissau e tomar posição, como já foi descrito. Se não fossem outras causas, o mostrar que tinha os tomates no sítio certo, podia-lhe custar uma porrada em grande. Carlos, apesar de estar fora, ainda era útil.

Na operação Petardo, foi-nos dada a oportunidade de ver um homem chorar e desistir de viver. É simplesmente horrível quando a pessoa já não acredita nos outros e em si própria. Os rios de maré são autênticas ratoeiras, para os cambar, é neces­sário esperar pelo momento certo, e saber fazer a cambança, ou seja, a passagem para a outra margem. Tem saber, não há dúvida, e só a experiência nos ensina e dá o saber. Como as margens são só lodo, a abordagem tem de ser feita de forma a haver uma distribuição do peso do corpo, por uma base o maior possível, e nunca devem vários homens passar pelo mesmo sítio; de forma, que a melhor maneira de o fazer, na generalidade é passar de gatas. Esse gatinhar terá que ser arrastante, de forma a não nos enterrarmos muito na lama, porque como nas areias mo­vediças, quanto mais força fazemos, mais nos enterramos. Foi pois o que aconteceu ao pobre soldado periquito, durante a ope­ração referida. 

Após cumpridos os objectivos, começámos o re­gresso e havia que atravessar um dos milhares de pequenos rios que enchem esta terra. Os Lassas já macacos velhinhos como o caralho e a malta da 1484, já experientes também, foram pas­sando de gatas, pondo ramos de tarrafo, para melhorar a sustentação. A ânsia do regresso, por vezes é perigosa, e já tivéramos experiências dolorosas por causa disso. Mamadu, com a sua secção em último escalão, aguardou mantendo a segurança. Praticamente tudo passado, foi a vez de Tambinha, com os seus homens do outro lado, tomar posições de segurança, para os Vagabundos de Mamadu passarem, o que foi simples e rápi­do. Só que havia um problema: um periquito, da 1499 enterrado até à cin­tura, debatia-se num descontrolo total. E para fazer parar o ho­mem? Estar quieto, não se mexer, para haver possibilidade de arrancá-lo daquela si­tuação? Era impossível! Para não lhe darem dois socos e pô-lo a dormir, como se faz aos náufragos que se estão a afogar, o fur­riel teve de gritar:
-Pára porra! Que merda é esta? Temos aqui crianças?!
-Vão-se embora! Eu morro aqui! - tespondeu o periquito.

As lágrimas caíam-lhe em catadupa, e foram as únicas palavras que lhe saíram da boca. Homem completamente no fundo, acei­tando piamente a morte.

Mamadu informa pelo rádio para na frente aguentarem um pouco. Manda cortar ramos de tarrafo, que são estendidos até junto do esgotado militar, e diz a Orlando para se esticar sobre a cama ramificada dos pedaços de tarrafo. Orlando, deitado, pede a mão ao camarada, mas sente nela uma mão vazia e sem vigor nenhum. Mamadu manda retirar a arma ao soldado e as cartu­cheiras já semienterradas. À outra malta, pede mais ramos de tarrafo, que Orlando agora vai enfiando junto às pernas do soldado, que parece ser já decepado tronco, rebentando por baixo. Trabalho pronto, vamos ao mais difícil: tentar acalmar o homem. O fur­riel, agora com voz calma e incutindo-lhe confiança, manda-o inclinar o corpo para a frente, e não fazer força nenhuma. Tem de ser rápido, pois o soldado parece estar a entrar em estado de cho­que. Pede a Orlando, que lhe agarre o camuflado com unhas e dentes. Entretanto, já uma corda humana ligada aos pés de Or­lando, estava preparada para entrar em acção.
-Atenção malta, vamos puxar o Orlando devagar até ele estar firme, e sentir que o homem está a mexer, O.K.!?
-Orlan­do, quando sentires que és capaz de o sacar, grita para dar o puxão final!
-Certo, meu furriel.
-Vá pessoal, devagar, o homem é nosso caralho! Ou ele ou nós todos juntos.

Mamadu vai entusiasmando e morali­zando os seus homens. De repente o corpo de
Orlando começa a esticar, e dá um berro:
-Força!

São momentos de sufoco. O pessoal puxa e Orlando aguenta. Não se nota nada, o camuflado do infeliz começa a rasgar e a malta começa a gritar:
-Vai! ... vai!

E foi mesmo, o corpo do homem começa a subir e o de Orlando a deslizar. Está ganho, os Vagabundos sentem-se orgulhosos, e o pobre rapaz chora, tentando pôr-se de pé. As unhas de Orlando estão rasgadas e começam a sangrar. Eis aqui com a maior sim­plicidade, a trilogia do Sangue, Suor e Lágrimas.

Mereceis melhor sorte, e regressar a casa sãos e salvos, meus valentes Vagabundos. Tenho um imenso orgulho, em ter homens com esta fibra assim. Um dia compreendereis, que a minha dureza foi e é apenas armadura para defesa de todos nós. Relembrando o seu tempo de escuteiro, Mamadu verifica a utilidade presente, dos apreendimentos de antanho. Em Cufar festejaremos com uma bazuca de 6,6 dl. 


Pela segunda vez temos novamente a porra da época das chuvas e voltam os problemas das viaturas nas picadas e nos reabastecimentos. De manhã fica-se atolado em lama, à tarde tem de se pôr um lenço na cara por causa do pó.

Mais uma emboscada na estrada maldita, mais um morto, mais uns feridos! Não interessa, estamos cá para isso, só pensamos que seja breve e sem muito sofrimento, quando nos calhar a nós. Pensamento colectivo.

A 22 de Junho [de 1966], os Lassas saem a fim de tomar parte na operação Salsifré. A Companhia, a 2 GComb reforçada com um GComb da 1484 e pessoal da Compª. Milª. 13, sai de Bedanda pelas 22H00. Progredindo pelo itinerário previamente determinado, com a 4ª.CC em 1º. Escalão, atingido o objectivo cerca das 9h00 do dia seguinte. A CCAÇ emboscou-se no itinerário Salancaur - Mejo, à direita da 4ª. CCAÇ.


Havia informações sobre uma coluna de fornecimentos para o PAIGC.
Cerca das 14h00 o inimigo fez três tiros de reconhecimento da mata em frente procurando localizar a nossa posição, não se tendo respondido. Pelas 16H00 o PCV ordenou que fosse levantada a emboscada. Com a 4ª. C.C. novamente em 1º. Escalão iniciou-se a retirada pelo itinerário previsto. O objectivo foi percorrido sem ter sido detectado qualquer coluna nem localizado algum acampamento IN. Cerca das 19h00 e quando o último GComb dos Lassas, com os Vagabundos na retaguarda se encontrava a cambar um pequeno rio, o IN abriu fogo sob as NT com armas ligeiras e uma MP. Mamadu com seu pessoal atascado na lama do rio, a merda do rádio banana sem funcionar, tentava responder de qualquer maneira. Apenas o GComb da 1484 e os outros Lassas, recuaram para ajudar à cauda da coluna, porque os meninos da 4ª. CCaç nem pararam, pois o que queriam era chegar a Bedanda. Resolvido este incidente, a Companhia reagrupou continuando a progressão em direcção a Bedanda, onde chegou cerca das 22h30, sem ter tido mais contacto com o IN.

Dia 24 os Lassas regressaram a Cufar da Op Salsifré.

Vagabundo, encontrou em Bedanda o conterrâneo sargento Ventura, também lutando naquelas paragens.

Nesta altura Baté já tinha deixado Empada e regressado a Lisboa. De certeza, os dedos calejados de tanto tocar os botões do seu “Rómio, Alfa, Delta, Índia, Óscar,” tentando desenras­car os seus companheiros.
-Poucos quilómetros nos separavam, meu amigo. Empa­da fica um nadinha a Norte! Mas, também havemos de beber um copo na nossa aldeia.

Quantos filhos teus, minha aldeia, passarão por aqui? Quantos patrícios e amigos, passarão nesta maldita terra sofrendo o mesmo ou mais ainda do que eu estou passando? Que tenham sorte! E se acreditarem, que a nossa Padro­eira se lembre deles, pois parece ser a única tábua de salvação, e, já agora, de mim também, embora eu não seja boa rês e merecedor desse dom. Não sei se, por questões militares, confio no Santo Mártir Oficial Romano, ou será que sem eu saber Tânia lhe estará orando por mim? Tudo é possível... Acreditar é difícil! Mas não é Deus grande? Não revolve a Fé montanhas? Por mim só me alegra.

Nada de distracções pois, mesmo com trovoadas tropicais, com tornados, na lama da bolanha e do tarrafo, na estrada e na mata não se pode parar, e há que realizar as operações Pinoca, Piri-piri, Patacão, Penacho I, Penacho II, Pirilampo, Pileca, Paciência, Subsídio, e a Suspiro.

Soma e segue. Na Op Penacho há mais um morto e catorze feridos. Fica a Op Suspiro, como a última operação da CCAÇ 763 em terras da Guiné, e tem de ser para os lados de onde o perigo é maior, Cabolol. É claro, embora não seja propriamente à zona quente, querem que levemos daqui uma boa recordação, pelo que nos mandam para Boche Mende, a 5 de Novembro de 1966. Seguem-se patru­lhamentos e seguranças diversas.

(Continua)

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Nota do editor:

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17714: (De) Caras (93): O (e)terno "puto" Umaru, o Umaru Baldé (1953-2004), da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, 1969) e da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1969/71)... O seu maior desejo era ser... Português! (Abílio Duarte)


Foto nº 1 > Porto, s/d > Muito provavelmente na casa do ex-alf mil Pina Cabral, cmdt do 4º Pelotão da CART 2479 / CART 11: o Umaru Baldé e o Leonel (ex-1º cabo cripto


Foto nº 2 > Porto, s/d > Muito provavelmente no restaurante onde se realizou o convívio da CART 2479 / CART 11: o Umaru Baldé, de casaco e, ao peito, a sua inseparável esferográfica, tendo por detrás uma foto da zona histórica do Porto, com a ponte Dona Maria Pia (inaugurada em 1877, é uma das obras-primas do engº francês Gustave Eiffel e da sua equipa)  em primeiro plano.

Fotos do álbum do Leonel, cedidas ao Abílio Duarte.

Fotos: © Abílio Duarte  (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné]



1. Mensagem de hoje, do Abílio Duarte [Foto à esquerda: ex-fur mil, CART 2479, mais tarde CART 11 e, finalmente, já depois do regresso à metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa Companhia de “Os Lacraus de Paunca” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70); está  reformado como bancário do BNU - Banco Nacional Ultramarino]:

Caro Luís,

Como prometi, no post P16525 (*), aqui vão as fotos, que o amigo Leonel (ex-1.º cabo cripto), me enviou, a meu pedido, que regista uma das vezes que o Umarú, Baldé esteve nos nossos convívios.

Excelente pessoa, pois na conversa que tive com ele, e ainda hoje recordo, estranho como é que alguém, que passou o que ele viveu e sentiu, fosse tão claro nos seus desejos: ser PORTUGUÊS!

O ser humano, resiste aos milhares de anos que atravessa, com uma alma que ninguém entende. O Umarú sobreviveu a muitas desventuras, que não nos passa pela cabeça, sequer entender.

Um abraço, e me desculpa por este desabafo,
Abílio Duarte

2. Comentário de L,G:

Abílio, obrigado. O Umaru Baldé (1953-2004), o "puto", está a sorrir, lá no alto do nosso poilão mágico... Ele adorava ser fotografado e rever-se nas fotos dos seus camaradas da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, março/junho de 1969) e depois da CAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Sempre o vi "puto", e traquinas, nunca o vi crescer... De resto, nunca mais o vi, depois do meu regresso a casa em março de 1971, mas também nunca o esqueci...

Nenhum, de nós, que lhe deu instrução., a ele e aos outros "putos", no CIM de Contuboel, era capaz de imaginar o pesadelo (e a tragédia) que lhes estava reservado, aos camaradas guineenses que vestiram a farda do exército português... O Umaru queria ser português, não sei se morreu português, aos olhos da lei...nem isso agora é relevante. Cultivaremos e honraremos a sua memória como um dos "nossos"...

Não tens, meu amigo e camarada,  que pedir desculpa pelo desabafo... Eu também não tenho, de momento, palavras para legendar as duas fotos que mandaste. Obrigado ao Leonel, Diz-lhe que o blogue também é dele, e estamos aqui para o receber de braços abertos, se for essa a sua vontade, a de integrar a nossa Tabanca Grande, como tu e o Umaru.
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(...) Comentário de Abílio Duarte:

Caro Luís: Num almoço aqui uns anos atrás, realizado em Coimbra, pelo nosso canarada Aurélio Duarte, o Umaru Baldé, esteve presente, não sei quem o levou, mas quem o trouxe para a Amadora fui eu.

Tenho algumas fotos em que ele está, mas não consegui encontrá-las, mas continuarei a procurar, caso o Valdemar tenha ou outro camarada nosso, principalmente o Alf Pina Cabral ou o 1º Cabo Cripto Leonel.
Vem este meu comentário, porque ao ler acima as tuas questões, veio-me á lembraça, a grande conversa que tivemos, os dois,  desde Coimbra.
Contou-me todas essas aventuras, que já estão relatadas, e das dezenas de vezes que tentou entrar em Portugal, segundo me disse que quando veio para Portugal , veio da Lbia, onde conheceu alguém que o levou a trabalhar para a construção civil, e que trabalhou para a SOMEC. aquando da EXPO 98.´

Pela primeira vez ouvi relatos do que aconteceu aos antigos nossos camaradas de armas, especialmente Fulas, e o assassínio de varios militares em armazén de Bambadinca.

Penso que o alferes a que ele se refere é o Alf Pina Cabral, que foi o seu comandante, durante a instrução em Contuboel, e que ele me contou, escreveu-lhe muitas cartas, foi com uma Carta de Recomendação, daquele Camarada, que ele veio para Portugal.

Naquela altura em que foi este almoço, ele já não trabalhava, estava doente e em casa, aqui na Amadora. Na altura deixou o seu NIB bancário para que o pudessem ajudar, o que felizmente alguns de nós o fizeram. 

Quando encontrar as fotos enviarei.

Agora un áparte, sobre uma conversa que tive com o ex-presidente Luís Cabral, quando este foi corrido pelo 'Nino', e veio, como outros para Portugal!!!  Ele e o Vitor Saúde Maria e mais alguns, ficaram como exilados politicos numa casa que aqui há na Amadora, para o efeito.

Um dia deu-me na tampa. O Luís Cabral era cliente do BNU, na Amadora, eu estava lá colocado, e cada vez que via o dito, dizia para mim, "porra este gajo anda sempre bem disposto e a rir, parece que a ele não aconteceu nada#. Então ele veio ter comigo, que estava a espera de uma transferência, referente a comissões de um negócio qualquer, tratei-me de informar e disse-lha o que havia, Ao despedir-se, pedi-lhe para me dar um minuto de atenção, e perguntei-lhe se achava bem o acolhimento que o Governo Português lhe estava a dar, comparado com aquilo que o PAIGC, fez aos soldados africanos PORTUGUESES, na Guiné.

A  resposta foi:  pegou-me na mão, olhou-me aom aquela cara de sorriso eternamente satisfeito, e afirmou: "a vida e a politica dão muitas voltas". E assim foi na sua paz de alma.

E nós,  a aguentar isto. Depois dele foi o 'Nino' que foi corrido, e também veio pa Portugal. Só os nossos camaradas que juraram a nossa Bandeira, é que ficaram indefezos, nas mãos destes criminosos.(...)

 26 de setembro de 2016 às 21:19

(**) Último poste da série > 27 de agosto 2017 >  Guiné 61/74 - P17704: (De)Caras (95): Abna Na Onça, cap 2ª linha, comandante de uma companhia de polícia administrativa, regedor do posto do Enxalé, prémio "Governador da Guiné" (1966), morto em combate em Bissá, em 14/4/1967, agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 1ª Classe (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé e Ilha das Galinhas, 1966/68)

Guiné 61/74 - P17713: Os nossos seres, saberes e lazeres (227A): De Valeta para Bruxelas: Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 4 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
A ilha de Malta ficou para trás, sai-se de manhã cedo e aterra-se horas depois em terreno familiar, Bruxelas, de que há memórias e uma permanente saudade. Emerge a Primavera, está uma tarde gloriosa, depois de um terno acolhimento de alguém que estimamos vai para 40 anos, segue-se para a cidade, procura-se o antigo e o moderno, entra-se numa zona chique e depois numa livraria cheias de pergaminhos. Foi um dia agitado com final feliz, o viandante foi obsequiado com um prato típico belga.
E mais não se diz, amanhã há muito que fazer.

Um abraço do
Mário


De Valeta para Bruxelas: 
Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (7)

Beja Santos

Um dos caprichos dos voos low-cost é esta possibilidade de num regresso se poder fazer uma paragem um pouco mais prolongada. Ao fazer-se o desenho da viagem, descobriu-se com agradável surpresa que por aqui se podia cirandar uns dias sem mais despesa. Telefona-se ao anfitrião, está disponível, pois no dia tal a horas tantas aí arribamos, como sucedeu, para alegria plural. Porque escolher esta imagem, para encetar o registo da chegada? Há uns bons anos, aqui entrou o viandante ufano por ter adquirido uma pechincha, aí por uns cinco euros encontrou na feira da ladra de Bruxelas esta Torre de Belém bem emoldurada. O anfitrião gostou, subtilmente apontou para uma parede vazia, foi instantâneo o gesto de oferta, a torre vigia quem entra e sai nesta preciosa casa sita na Citié du Logis, em Watermael-Boitsfort, na fímbria de Bruxelas.


O viandante não pode ficar insensível a este gesto de delicadeza, uns belíssimos cravos a anunciar as boas vindas. O acolhimento faz parte de todas as culturas, encher a barriga logo à entrada, oferecer um chá, o muito mais que se sabe. Estes cravos, em toda a sua singeleza, marcaram a chegada, tornaram-na irrepetível. Para que conste.


Estávamos nisto, no embelezamento com os cravos, e o viandante viu com outros olhos um móvel e alguns adornos que para ali estão, há muitíssimo tempo. Mas o que se vê neste exato momento e deslumbra foi até agora uma névoa, lembra aquela história de um funcionário que passou dezenas de anos, a caminho do escritório, por debaixo de uma janela até que um dia a viu com outros olhos de ver, se prendeu de amores. Nesta circunstância, o viandante sentiu enamoramento pela disposição dos objetos e pela coesão das cores, encontrou em tudo uma dada harmonia e zás partilha com quem quer que seja a euforia da sua descoberta.


Também faz parte do acolhimento dar de beber e comer ao princípio da tarde, tudo breve para aproveitar a luz do dia neste arranque da Primavera. Fotografou-se à esquerda e à direita, junquilhos, azáleas, tudo o que florescia. Mas o mais impressivo foi esta magnólia, nobre e generosa, mais a mais um lugar eleito para a miudagem andar na brincadeira.


Há um bairro típico em Bruxelas do nome Marolles, são diferentes os pretextos que leva o viandante a por aqui passar. São duas as ruas fundamentais deste bairro popular onde viveu e está sepultado um dos maiores pintores do mundo Pieter Bruegel, o Velho, de quem temos uma obra celebérrima no Museu Nacional de Arte Antiga. Hoje foi um passeio de nostalgia e também de descoberta de montras atrevidas, convidativas para olhar e para fotografar. Foi o que aconteceu com esta bela porta, com esta fachada de outro tempo e esta montra empilhada de cadeiras.



O pretexto, nesta fase do passeio, era vir visitar um dos ícones das livrarias de Bruxelas, Tropismes, nas galerias reais Saint-Hubert. Estamos agora num loca chique, que nasceu em 1847, um espaço de 40 mil metros quadrados com cinema e teatro, hotel e lojas para todos os gostos, desde iluminação, sapatos, indumentária, chocolates, design provocante para móveis. Aproveitou-se para fazer um alto, um bom chocolate ao fim da tarde sabe sempre bem.



As livrarias Tropismes, à semelhança do que diz um slogan publicitário, têm tudo, desde os últimos romances belgas e franceses, as mais recentes traduções de outros países, arquitetura, livros de viagens, banda desenhada, obras clássicas. O expediente do viandante era procurar um álbum de seguidores de Edgar P. Jacobs, desde menino e moço que o viandante trata com muito respeito as aventuras de Blake e Mortimer, e está atento a todos os seus seguidores, são obras que trata religiosamente. O expediente foi coroado de êxito. E aproveitou para tirar um instantâneo de um local que vale sempre a pena visitar.


E assim acabou o primeiro dia em Bruxelas, regressa-se a penates, amanhã há muitíssimo que fazer. A vida de turista tem destas complexidades.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17694: Os nossos seres, saberes e lazeres (227): De Lisboa para Lovaina, daqui para Valeta: À procura do Grão-Mestre António Manoel de Vilhena (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17712: Historiografia da presença portuguesa em África (87): A partida do T/T "Mouzinho", em 18/7/1941, em plena II Guerra Mundial, com um contingente militar para reforço da guarnição de Cabo Verde... Salazar assistiu pessoalmente ao desfile e embarque das tropas expedicionárias. Despedida emocionante, no cais da Rocha Conde de Óbidos, com uma nuvem de lenços brancos a acenar...





Diário de Lisboa (diretor: Joaquim Manso), sexta-feira,  18 de julho de 1941, p. 5,  Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivos > Diário de Lisboa / Ruella Ramos.

Citação: (1941), "Diário de Lisboa", nº 6700, Ano 21, Sexta, 18 de Julho de 1941, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_24851 (2017-8-29)




Ilha da Madeira > Funchal > s/d  [c. 1941] > "O Paquete Mouzinho. Oferecido pelo meu amigo [e conterrâneo, da Lourinhã] José B[oaventura] Lourenço [Horta] no dia em que o fui visitar ao Hospital em São Vicente. 26 de Julho de 1942."

É provável que o José Boaventura Horta tivesse adquirido a foto a bordo. E, se não erro, o amigo do meu pai, meu conterrâneo e meu vizinho (no tempo em que vivi na Lourinhã, menino e moço) era da arma de artilharia (6ª Bateria Antiaérea do Grupo de Artilharia Contra Aeronaves).




O "Colonial" e o "Mouzinho" eram paquetes gémeos, adquiridos pela Companhia Colonial de Navegação (CCN) no final da década de 1920. Faziam a carreira de África. Foi no T/T "Mouzinho" que o 1º cabo inf Luís Henriques (Lourinhã, 1920-Lourinhã, 2012) e outros expedicionários do 1º batalhão do RI 5, das Caldas da Rainha, rumaram para Cabo Verde, ilha de São Vicente, em 18 de julho de 1941, conforme notícia do "Diário de Lisboa", acima reproduzida.
A viagens dos nossos navios de transporte de tropas, para as diferentes partes do "império",  não eram isentas de risco... O oceano Atlântico foi palco de sangrentas batalhas durante a II Guerra  Mundial. Países neutrais como Portugal tinham de pintar os seus navios de pesca e da marinha mercante com gigantescas bandeiras e o nome do país nos cascos das embarcações. Onze navios, sob bandeira portuguesa, foram afundados, durante a II Guerra Mundial, não obstante as embarcações estarem claramente identificadas como sendo oriundas de Portugal, "país neutral"...


Fotos (e legendas): © Luís Henriques (1920-2014) / Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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Nota do editor:

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17711: Efemérides (264): O antropólogo e professor doutor Mesquitela Lima, natural do Mindelo, São Vicente, que eu conheci na Academia Sénior de Lisboa... Morreu há 10 anos (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


O antropólogo e professor doutor Mesquitela Lima (1929-2007), que começou como funcionário colonial, e  que eu tive o privilégio de conhecer na Academia Sénior de Lisboa



Texto de Mário Vitorino Gaspar




1. O
antropólogo e professor Augusto Mesquitela Lima nasceu a 10 de janeiro de 1929, no Mindelo,  na ilha de São Vicente, em Cabo Verde.

Neto de um antigo governador de Cabo Verde (Bernardo Mesquitela), fez o liceu, no Mindelo, e começou a trabalhar aos 20 anos, como escriturário das alfândegas. Em 1952, está em Angola como chefe de posto da Inspecção dos Serviços Administrativos e Negócios Indígenas. En 1959 vem para Lisboa licenciando-se em Estudos Políticos e Sociais do Ultramar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU, hoje ISCSP / Universidade de Lisboa).

Volta para Angola – de onde era a sua mulher – e dirige em Luanda o Museu de Angola. É fundador também, em Lunda Norte, do Museu do Dundo, da Diamang. Estudou diversos grupos étnicos, com especial destaque para os Kyaka, antes da independência de Angola, então colónia portuguesa.

Faz um Mestrado em Antropologia Cultural, na École de Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Sorbonne,  1969. Fez seguir, em 1977, o  Doutoramento de Estado em Antropologia, também em Paris, na Univeesidade X, Nanterre.

Em 1978, cria na Universidade NOVA de Lisboa o departamento de antropologi, Fez a Agregação na Universidade em 1982.Chega a professor catedrático de Antropologia Cultural da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.da NOVA. É considearado o responsável pelo aparecimento de um grupo de antropólogos que mudaram a antropologia em Portugal. Jubilou-se em 1999.

Funcionário público, investigador,  escritor, autor, tradutor e docente universitário, trabalhou para além de França, África e Portugal, também na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, México, Brasil, China e Índia,  entre outros.

Ficou conhecido pela vasta obra que publicou, com cerca de três dezenas de trabalhos científicos e 25 livros.

Mesquitela Lima faleceu, a 14 de Janeiro de 2007, vítima de pneumonia, em Lisboa, aos 78 anos, quando era Director do Instituto Superior de Gestão.

Citando a notícia necrolígica de A Semana:  "O que é 'invulgar na experiência colonial portuguesa é o cruzamento entre a experiência prática e uma formação académica que chega ao doutoramento de Estado em Paris0, diz Rui Pereira, colega no Departamento de Antropologia. 'Mesquitela Lima começa como funcionário e administrador colonial. Como fruto desse convívio diário, cria um interesse pragmático e procura ter uma formação académica de alto nível. Trabalhou com Lévi-Strauss em Paris na Sorbonne.' Ou, como diz Jorge Crespo, também colega no Departamento de Antropologia, 'volta ao terreno já com novos instrumentos de investigação, com uma preparação moderna no domínio das ciências sociais' ".

2. Conheci-o na Academia Sénior de Lisboa, onde foi professor de Antropologia. Aprendi com este Senhor. Um dia, convidou-nos, a  mim e ao Doutor Inês Gonçalves, presidente da Associação Cultural e Social de Seniores de Lisboa (ACSSL) ou Academia de Seniores de Lisboa, para visitarmos a sua casa.

Inacreditável!... Salas repletas de relíquias e de encantos. Impossível descrever. Esquecera-se de reservar espaço para si. As preciosidades envolviam-nos. E que riqueza! Notei no rosto de sua mulher, uma senhora bastante simpática, algumas reservas decerto motivadas pelo pouco espaço que restava para si e para seu admirável marido naquela casa, naquele Museu do Professor Mesquitela Lima.

O grito do Professor era “O Caois", as aulas na Academia não tinham outro tema. Disse-nos que gostaria de visitar a Índia, adoeceu, uma pneumonia. Ainda voltou à Academia.


Era conhecido mundialmente pela coleção de máscaras africanas.

Para além destas, espalhadas pelas salas, corredores e quartos, era um baú de recordações das suas viagens. Tivemos a oportunidade única de ver: – desenhos de mulheres africanas; miniaturas de peças artesanais, pinturas executadas por amigos. Tinha em cada pintor africano um amigo. Destacava-se o trono de um rei africano; livros já sem espaço (perto de 30 mil); muitas obras de vários pintores consagrados; muitas mais peças de arte adquiridas em todo o mundo e uma secretária com um computador onde um dos filhos (tinha três filhos) memorizava todo o seu espólio.

Talvez fossem as máscaras a  fascinação de Mesquitela Lima, Não é por acaso que surge, na sua obra, um poeta da sua terra terra natal. Dos seus livros gostaríamos justamente de destacar "Uma Leitura Antropológica da Poética de Sérgio Frusoni" (1992).

Quem é Sérgio Frusoni, praticamente desconhecido até então fora do Mindelo ? “Conhecendo e amando Cabo Verde, é fácil entender o sentimento” (Sérgio Frusoni). O cantor Bana cantou “Uma vez São Cente era sabe”, versos de Sérgio Fursoni (Mindelo, 1901- Lisboa, 1975)


Em homenahem ao professor Mesquitela Lima e à sua terra, aqui fica o poema de Sérgio Frusoni, em versão bilingue (crioulo e português):


Presentaçom

por Sérgio Frusoni


Quem mi ê? Um fidje de Sanvcênte.
Nascide, crióde, lá na ponta d' Praia.
Lá ondê que mar tâ sparajá debóxe de bôte,
moda barra dum saia.
Cs' ê que m' crê? Cantá nha terra!
Companhal na sê dor;
na nôbréza d' sê alma;
na pobréza d' sê vida!



Versão em português:

Quem eu sou? Um filho de São Vicente.
nascido, criado, lá na Ponta da Praia.
lá onde o mar se espreguiça debaixo dos botes,
como a barra de uma saia.
O que eu quero? Cantar a minha terra!
Acompanhá-la na sua dor;
na nobreza da sua alma;
na pobreza da sua vida!


in LIMA, Mesquitela - A poética de Sérgio Frusoni: uma leitura antropológica. Lisboa:  Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Praia: Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1992.


Mário Vitorino Gaspar, 28 de agosto de 2017

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de agosto de  2017 > Guiné 61/74 - P17708: Efemérides (263): morreu há 17 anos, a 22 de agosto de 2000, a dra. Dalila Augusta Carneiro Azevedo de Brito Barros Aguiar, psicóloga clínica, precursora no diagnóstico e tratamento do stress pós-traumático de guerra, cofundadora da associção "Apoiar", minha grande amiga (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P17710: "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", brochura de 2002, da autoria do nosso camarada Gabriel Moura do Pel Mort 19 (18): Págs. 137 a 144

Capa da brochura "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra"

Gabriel Moura

1. Continuação da publicação do trabalho em PDF do nosso camarada Gabriel Moura, "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", enviado ao Blogue por Francisco Gamelas (ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto, 1971/73).


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série 25 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17697: "Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra", brochura de 2002, da autoria do nosso camarada Gabriel Moura do Pel Mort 19 (17): Págs. 129 a 136

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17709: Notas de leitura (991): “Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

“Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Há as memórias românticas e as somânticas. A heroína desta poderosa narrativa de Abdulai Sila interpela-nos à partida: "O que devo dizer que fiz na vida se ninguém entende que o meu hoje ainda promete ser diferente do meu ontem?". No fim da vida, e quando toda a gente lhe diz que ela nada tem, contesta por escrito, não está louca, no entanto reconhece, que a loucura profética nunca suplantará a magia da narração. A literatura da Guiné-Bissau tem percorrido os caminhos mais ínvios do desentendimento e do desalento e estas "Memórias SOMânticas" falam de um sonho que não morre e que de alguém que não se resigna.
Continuo a não entender por que Abdulai Sila não é editado em Portugal, para benefício da nossa língua comum.

Um abraço do
Mário


Memórias SOMânticas: a pujança da literatura guineense

Beja Santos

“Memórias SOMânticas”, é o mais recente título de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016. Até agora, dava como dificilmente ultrapassável a obra de Filinto Barros “Kikia Matcho”, a dolorosa narrativa de um combatente que tudo dera para ter uma pátria e que depois o ignorou. Aqui há uns anos, fui procurado por uma antropóloga alemã, Tina Kramer, que me veio pedir ajuda para a sua digressão na Guiné-Bissau, pretendia recolher depoimentos sobre a reconciliação nacional e o sentir dos combatentes do PAIGC passadas estas décadas. Procurei ser útil, e a Tina partiu levando como intérprete e motorista Abudu Soncó, meu irmão no Cuor. Passaram-se os meses, e eu ansioso por conhecer os detalhes desta pesquisa em ciências sociais. A Tina veio um tanto atarantada, o Abudu vinha em estado lamentoso com o que vira e ouvira. Tinham percorrido as profundezas do país, pedido para contactar gente que habitara em locais duríssimos, como Morés, a mata de Fiofioli, Kubukaré, em Sara – Sarauol. Houve gente que se recusou a falar ou pedia dinheiro, alegando miséria extrema; houve quem fez depoimentos a soluçar, perdera pais e irmãos, ficara com incapacidade, cedo o PAIGC os esquecera, a humilhação era tal que tinham que trabalhar para compatriotas que auferiam pensões vindas de Portugal… Não é preciso acrescentar mais nada.

Esta portentosa narrativa de Abdulai Sila abre com um texto em crioulo, em português reza o seguinte: Os revezes da vida são como fogo do lixo a arder por baixo/Quem me vê de longe julga-me palmeira/Mas quem se aproxima sabe/Que eu sou um poilão grande/Nem os boabás se igualam a mim. É narrativa confessional, na primeira pessoa, uma mulher combatente, agora está presa a uma velha e esfarrapada cadeiras de rodas, guarda intactas gostosas e amargas recordações de infância, dirige-se-nos com forte convicção: “Nas noites de indecisão procurei a luz redentora, nos vestígios da luta pela afirmação procurei amparo. Cantei, louvei, celebrei a vida. Mas a vida insistia em querer iludir-me a qualquer momento, a todo o custo, não me reconhecendo o direito a interregno nessa batalha que se anunciava eterna”.

Adorava a mãe, dela guarda mensagens e sentenças, um exemplo: “O fim de uma coisa é sempre o início de uma outra”. Um outro exemplo: “Na vida há coisas que podes mudar, outras não. Concentra-te naquilo que podes influenciar com a tua ação e coloca o resto no seu respetivo lugar. Assim podes vislumbrar o fim de uma situação e o início de outra. É este o segredo da vida”.

A mãe morreu, escolheu uma nova mãe. Crescia e com interpelações dolorosas, inquietantes: será que uma mulher tem sempre que pertencer a um homem? Alguém lhe disse que a mulher foi feita para sofrer não para mandar. Depois apaixonou-se, o jovem falava-lhe de igualdade, justiça e liberdade e visionava que um dia iriam ser africanos de verdade. E partiu para a guerrilha, lá longe. Ela decidiu também partir, encaminhou-se para Conacri, foi uma habituação difícil. Voltaram-se a ver, houve desentendimento, fez-se enfermeira, mas aquele seu companheiro não lhe saía do espírito. Ela começara por trabalhar no Lar do PAIGC, sonhara ser professora, não enfermeira. Tornou-se uma enfermeira exemplar. Deslocou-se para a Frente Sul, o seu homem podia ser encontrado em Kubukaré, aí ardeu a paixão, fizeram um filho. Foi habitar em Boké, dali um dia partiram o seu homem e o seu filho, vieram anunciar que tinham morrido. “Lembro-me de ter visto o teto branco da enfermaria a fugir de mim e a mudar constantemente de cor. Era um movimento vagaroso, que se repetia sem parar. Separando-se do resto da enfermaria, o teto daquele quarto deslocava-se para cima, em direção às nuvens no céu e a meio do caminho mudava de cor. Depois voltava para o seu lugar inicial, trazendo e enchendo o quarto do ruído ensurdecedor do motor de um camião a alta velocidade. Às vezes era só o motor do camião, outras vezes vinha misturado com gritos”. A guerra chegou ao fim, ela viu a sua Guiné esplêndida e gloriosa: “Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado”.

A realidade era outra, cedo descobriu que se tinha falado em reconciliação e agora se perseguia sistematicamente os inimigos de ontem, irmãos guineenses. Ela fora uma guerrilheira com credenciais, deslocou-se por todo o país à procura de desaparecidos, aparentemente ninguém sabia de nada. Apercebeu-se que tinha havido fuzilamentos. Trabalhou intensamente num internato, queria viver a paixão da sua causa, encontrou pela frente a burocracia, a indiferença, viu o desânimo no rosto da gente. E descobriu que o seu partido já não se interessava por internatos. “Perdido o internato, os meus filhos desapareceram um após outros, até não sobrar nenhum. Mas sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História”.

E agora ela está por ali agarrada à cadeira, à procura de respostas que tardam em chegar. Foi amputada de tudo, perdeu companheiro e filho, tiraram-lhe o internato e chegou aquela blasfémia de se insinuar que os guineenses não eram capazes de tomar conta da sua terra e de construir o sonho pelo qual tinham combatido. Não entende os jovens, com os gestos obscenos, descobriu que os pais são condescendentes porque os filhos não têm profissão. No entanto, ela continua a arder em esperança, espera nesse novo mundo em que a maldade e o sofrimento não podem existir. Tem orgulho na sua história, continua a pensar que nasceram, toda aquela gente nasceu, para uma missão, sabe que vai partir em breve deste mundo, e grita bem alto aquele seu sonho que nunca envelheceu:  
“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra, e abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão. Muito além do verbo e da doutrina.
Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser herói, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando”.

Uma narrativa que muito honra a literatura da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17688: Notas de leitura (990): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17708: Efemérides (263): morreu há 17 anos, a 22 de agosto de 2000, a dra. Dalila Augusta Carneiro Azevedo de Brito Barros Aguiar, psicóloga clínica, precursora no diagnóstico e tratamento do stress pós-traumático de guerra, cofundadora da associção "Apoiar", minha grande amiga (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


A dra, Dalila Aguiar


1. Mensagem do nosso amigo e camarada Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil at art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68:


Data: 28 de agosto de 2017 às 04:12

Assunto: Homenagem Doutora Dalila Aguiar


Mário Vitorino Gaspar

Dia 22 de Agosto de 2000: faleceu a Doutora Dalila Aguiar… Foi há 17 anos.


"… É a doença da guerra,

o inferno dentro de cada homem.

O Stress de Guerra que não pode deixar de ser denunciado,

deve ser feito o balanço desta calamidade pelo Estado…"


(Doutora Dalila Aguiar, Colóquio em Portimão a 4 de Abril de 1998)

A Doutora Dalila Augusta [Carneiro] Azevedo de Brito Barros Aguiar faleceu no dia 22 de Agosto de 2000.

Tive conhecimento da existência de apoio aos ex-militares da Guerra Colonial através da RTP. Existiam os Serviços de Psicoterapia Comportamental, sendo Director dos mesmos o Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque.

No dia 8 de Abril de 1994 conheci a Psicóloga Clínica Doutora Dalila Aguiar, Informou-me que ex-combatentes andavam a organizar-se para fundarem uma Associação de apoio aos ex-combatentes que tinham problemas psiquiátricos/psicológicos provocados pela Guerra Colonial.

Recomendou-me que fosse a uma reunião no sábado de manhã. Nesta, convidaram-me para fazer parte de uma lista, sendo a Doutora Dalila Aguiar subscritora, portanto também fundadora [da Associação Apoiar].

No dia 18 de Abril do mesmo ano, foi feito o registo da APOIAR, sendo eu um dos fundadores e no dia 10 de Dezembro de 1994 foram eleitos os Órgãos Sociais para o Biénio de 1995 e 1996, ocupando eu o lugar de vogal da Direcção Nacional, mas logo de seguida motivado pelo pedido de demissão de dois elementos ocupei o lugar de secretário.

A partir de Dezembro de 1995 a Doutora Dalila Aguiar começou a acompanhar os ex-combatentes, tanto nas Avaliações, Terapias Individuais e de Grupo na sede improvisada da Avenida de Roma – sempre gratuitamente – até porque a APOIAR não possuía apoios. Todas as semanas, lia-lhe nos olhos um sorriso de amor, uma gargalhada, que se escutava no silêncio e se instalava no meu interior. Tratava todos do mesmo modo.

Quando a questionava porque marcava as terapias de todos para a mesma hora, respondia que gostava de ver os ex-combatentes a dialogar. Comecei a ter uma forte simpatia e amizade pela Doutora.

Em Novembro de 1996 foram eleitos novos Corpos Sociais para o biénio 1997/1998, e o presidente do conselho fiscal eleito foi a Doutora Dalila Augusta Azevedo Brito Barros Aguiar. Eu ocupei o lugar de vice-presidente.

As terapias não cessam, a Doutora Dalila Aguiar tinha o condão de me contagiar, com uma só palavra, um só mas grande sorriso. E a guerra que estagnava dentro de mim afastava-se. Transmitia esse Amor pelo mundo que a rodeava.




Braga > Núcleo da APOIAR > 14 de dezembro de 1996 > Colóquio


Fotos (e legendas): ©  Mário Gaspar (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Núcleo da APOIAR em Braga organizou um Colóquio, no dia 14 de Dezembro de 1996. Algumas frases da Doutora Dalila Aguiar a determinado momento:

"O conhecimento da doença Perturbação Pós Stress Traumático (PTSD) deve-se aos Americanos, que após um exaustivo trabalho de investigação, feito por Psiquiatras e Psicólogos, junto dos Veteranos da Guerra do Vietname, no próprio local, identificaram a perturbação". 

Continuavam as terapias de grupo e individuais na APOIAR e sempre que algo nos atormentava na conversa, pintava-se a paz no rosto da Dra. Dalila. Ela não só equilibrava os meus tormentos, barrando com uma simples palavra a tempestade que se adivinhava, como estampava um sorriso de paz e amor nos olhos de todos.

A APOIAR realizava Colóquios por todo o país, e nos dias 14 e 15 de Abril de 1997, com a colaboração da Câmara Municipal de Beja organizou dois, com o tema: "Ciclo Guerra Colonial Memória – Silenciada". Simultaneamente a esteve exposta uma Exposição Fotográfica da APOIAR. No primeiro dia, a Dra. Dalila Aguiar, Psicóloga Clínica da APOIAR, disse: 

"Não existem só consultas para os ex-combatentes, mas também para as mulheres e os filhos dos mesmos, que também sofrem com a guerra".

Foi oradora em diversos colóquios, deu entrevistas, mas é de destacar parte do discurso no dia 4 de Abril de 98 em Portimão, na Biblioteca Municipal, com o apoio do Jornal "Povo do Algarve" e da Câmara Municipal. O tema foi:  "Guerra Colonial – Os Traumas e a Sociedade". Referiu: 

 "… É a doença da guerra, o inferno dentro de cada homem. O Stress de Guerra que não pode deixar de ser denunciado, deve ser feito o balanço desta calamidade pelo Estado…", continuando: - "… Costuma-se dizer que as instituições não tratam das paixões da alma, neste caso é necessário que o façam", e acrescentou: – "… Instalada a doença, inicia-se o calvário para estes homens e suas famílias. Com efeito, não se pense que eles vão sofrer sozinhos. Mulheres e filhos são também altamente afectados nas suas vidas. Nestas condições, não sabemos nunca a repercussão da guerra na nossa sociedade, dado que pelo menos, pelo menos, três gerações sofrerão as suas consequências". Acabou: – "Os filmes, as fotografias e os livros começaram a aparecer, os silêncios quebram-se e as memórias daqueles que durante anos calaram dentro de si os horrores da guerra. O balanço numérico é o seguinte no final: 8.807 morreram; 30.000 ficaram mutilados fisicamente e outros desapareceram, mas o Estado Português passou certidões de óbito para arrumar o assunto. Mas onde estão? Será que morreram de facto?"

Para o triénio de 1999/2000/2001 e a 19 de Dezembro de 1998 foi eleita presidente do conselho fiscal a Doutora Dalila Aguiar. Eu, Mário Vitorino Gaspar. fui eleito presidente da direcção nacional da APOIAR.

Mais tarde adoece, e na doença continua a ser uma Mãe Coragem. Teve alta, mas mesmo doente surgiu na APOIAR continuando a prestar apoio diariamente – sem horário – saindo da sede da Avenida de Roma, muitas vezes multada – e por volta das 22 horas e mais, no escuro da noite, mas sempre com um sorriso.

Quando eu lhe transmitia que a APOIAR não possuía verbas para lhe atribuirmos uma remuneração, mas que logo que assinássemos o Protocolo o faríamos, a Doutora sorriu, dizendo "se me derem dinheiro, dou-o à APOIAR".

Mesmo na doença não transmitia uma só escapadela de dor, pelo contrário pretendia sempre que falássemos de nós. Animava-nos. Sempre disponível! Aquele sorriso de verso florido pintado no rosto. A voz carinhosa e pausada. E incentivava sempre! Proibia as tristezas e medos. Obrigava-nos a sorrir, inclusive renascia uma gargalhada escondida no nosso interior.

Voltou a ser hospitalizada, mas a doença superou o seu sorriso e simpatia, e no dia 22 de Agosto de 2000 faleceu.

Em 14 de Dezembro de 2002, na 16.ª Assembleia Geral da APOIAR, no Salão Nobre do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, foi aprovada por unanimidade uma proposta da Direcção Nacional. Foi atribuída à Doutora. Dalila Augusta [Carneiro] Azevedo de Brito Barros Aguiar o estatuto de Sócio Honorário.

A Dra. Dalila Aguiar esteve comigo – que a conheci de perto – e connosco. Vincará a sua presença na minha vida. Perdurará para sempre no meu íntimo o sorriso e o saboroso aconchego da sua palavra. É um amuleto que guardarei sempre comigo no peito, junto do coração.

"A Dra. Dalila Aguiar – com "M" maiúsculo de "Mulher e de Mãe, é Mãe da APOIAR." Manteve e vai continuar a manter intacta a dignidade, e estará sempre guardada na minha mão, e viva no meu coração e no coração da APOIAR.

Mário Vitorino Gaspar

PS - Era casada com o eng agr. Fernando Queiroz de Barros Aguiar 
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P17707: (De) Caras (92): O cap 2.ª linha Abna Na Onça, balanta, e o 1º srgt Arlindo Verdugo Alface, alentejano do Cano, concelho de Sousel, dois "irmãos de sangue", e dois "homens grandes" com quem tive o privilégio de conviver (Jorge Rosales, ex-al mil, 1ª Companhia Indígena, Porto Gole, 1964/66)


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > 1º Companhia de Caçadores Indígenas (1964/66) >  O Abna Na Onça e o Jorge Rosales 


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > 1º Companhia de Caçadores Indígenas (1964/66) > Jorge Rosales e o 1º srgt Arlindo Verdugo Alface, junto ao monumento comemorativo da chegada do explorador português Diogo Gomes em 1456.


Fotos (e legendas): © Jorge Rosales  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Dois "homens grandes" que conheci em Porto Gole

por Jorge Rosales (*)

[Ilha das Cabras, Bijagós, julho de 1966... O "comandante" Jorge Rosales, régulo da Magnífica Tabanca da Linha, já no final da sua comissão, depois de ter passado 18 meses em Porto Gole, 1964/66...  Alferes  miliciano,   pertenceu à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim. (Havia mais duas, uma Bedanda, a 4ª, CCAÇ, e outra em Nova Lamego, a 3ª CCAÇ). 

Ficou lá pouco tempo, em Farim, talvez uma semana. A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Ficou lá 18 meses. Passou os últimos tempos, em Bolama, no CIM - Centro de Instrução Militar, a dar recruta a soldados africanos. É membro da nossa Tabanca Grande desde 9/6/2009 (*)]


Depois de dez dias entre Bissau e Farim, vejo-me a caminho de Porto Gole, Geba acima, a favor da maré; ia num barco da casa “Gouveia”, que levava géneros para Porto Gole e, talvez, Xime e Enxalé  (**) …

No barco, sentia-me ansioso, apreensivo: Mafra, Cica 2, viagem no “Alfredo da Silva”, com passagem pelo Mindelo e Praia, pertenciam ao passado.

Tentava adivinhar qual a reacção do pelotão veterano de Porto Gole, à chegada do Alferes “maçarico”. Era, para mim, um salto no escuro...

À minha espera, como maior graduado, estava o 1º Sargento [Arlindo Verdugo] Alface. Foi ele que me orientou, com os seus conselhos e “palpites”.

Tinha a sabedoria de transmitir, com subtileza, a sua experiência, coisa que não vem nos livros… adquire-se. (***)

Para o Abna Na Onça, capitão de segunda linha, o Alface era o confidente, o amigo leal; fez questão de tornar o Alface seu irmão de sangue. 

Assisti à cerimónia de troca de sangue destes dois homens, com os braços unidos. 

Num fim de tarde, na sua tabanca, o Abna chamou-me para me mostrar, com orgulho, a sua assinatura: “ Abna na Onça Alface”. 

Foi, para mim, um privilégio conviver com estes dois “Homens Grandes“: um, balanta de Porto Gole, o outro, alentejano do Cano [,  concelho de Sousel, distrito de Portalegre].

O Abna morreu em combate, em Bissá, em [14 de[ Abril de 1967, como relata o Abel Rei no seu livro, “Entre o Paraíso e o Inferno“.  O Alface, também já não está entre nós, vítima de atropelamento na zona de Lisboa. 

A “Tabanca Grande“ fez-me voltar à Guiné, às suas recordações… e a mais forte, de todas elas, deu motivo a este relato. 

Jorge Rosales  (***)


2. Comentário de Cherno Baldé:

(...) O apelido do cap Abna "Na Onça" sugere-me uma grafia errada por simpatia, como diriam os entendidos na matéria. Existe o apelido balanta muito próximo,  "Na Onta",  que, provavelmente, alguém transformou em "Onça", para não variar.

De uma forma geral, o português metropolitano,  na altura, não era bom em captar e grafar os nomes indígenas, existem variadíssimos exemplos disso, como o caso de um familiar meu cujo apelido "Baldé" foi transformado em "Valdez" para não complicar. Se ele, de facto, tivesse o tal apelido, "Na Onça", hoje apareceriam muitos com o mesmo apelido,  o que não me parece ser o caso" (...).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  9 junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça

(...) Era muito amigo do mítico Capitão de 2ª linha, o Abna Na Onça, chefe espiritual, poderoso, da comunidade balanta da região, a quem o PAIGC havia cometido o erro fatal de “matar duas mulheres e roubar centenas de cabeças de gado”. O seu prestígio, a sua influência e e o seu carisma eram tão grandes que ele sabia tudo o que se passava numa vasta região que ia de Mansoa a Bambadinca (nomeadamente, importantes informações militares, como a passagem de homens e armas do PAIGC).

Jovem (teria hoje 72/73 anos se fosse vivo), era um homem imponente, nos seus 120 kg. Schultz tinha-lhe oferecido um relógio de ouro e uma G3 como reconhecimento pelos seus brilhantes serviços … Mais tarde, será morto, em Bissá, em 14/4/67, com seis dos seus polícias administrativos, todos eles residentes em Porto Gole… Nesse dia o destacamento é abandonado pelas NT: “ um dia trágico para quem estava no inferno de Bissá", como escreveu o Abel Rei no seu diário ("Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné, 1967/68, editado em 2002, pp. 68/70) (...)

 (...) Enquanto [o Jorge Rosales] lá esteve, em Porto Gole, havia um certo respeito mútuo, de parte a parte. A influência de Cabral era evidente, fazendo a distinção entre o povo (português) e o regime (colonialista). Podiam deslocar-se num raio de 10 km…. Mas a ligação com Mansoa já se perdera. O troço já não era seguro. Em Mansoa estavam os respeitados Águias Negras (BART 645, que dominavam o triângulo do Óio: Olossato, Bissorâ e Mansabá) .

Do lado do Geba, eram os fuzileiros que impunham a lei e o respeito. Lançavam uma bóia e fundeavam a LDG em frente a Porto Gole. Vinha quase tudo por rio: os frescos, a bianda, os cunhetes de munições… (excepto o correio, que era lançado do ar, de DO 27, e às vezes ir cair no tarrafo; em contrapartida, o correio expedido ia de LDG... Singuralidades de Porto Gole que não tinha uma simples pista de terra batida, para as aeronaves). Tem vários amigos fuzos, desse tempo, incluindo o comandante Castanho Pais.

Do outro lado, a nascente estava a CCAÇ 556, no Enxalé… Também conhece dois furrieís do Enxalé, de quem se tornou amigo. Também passou por Fá. E no final da comissão, esteve em Bolama, por onde passavam os periquitos… Conviveu com algumas companhias que, de Bolama, partiam para operações no continente (...).


(**) Vd. poste original: 17 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5122: Estórias avulsas (15): Homens Grandes, Jorge Rosales (ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ - Porto Gole -, 1964/66)

Guiné 61/74 - P17706: Parabéns a você (1307): António Marques Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de  27 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17703: Parabéns a você (1306): Jaime Machado, ex.alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70)

domingo, 27 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17705: Blogpoesia (526): "Por vielas e azinhagas..."; "Cada dia uma flor..." e "Três anos da minha vida...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728



1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Por vielas e azinhagas…

Me embrenho por vielas e azinhagas desta antro labiríntico.
Desço escadas e subo rampas.
Me debruço nas falésias.
Vejo o abrupto.
Desde as ameias dum castelo.
Sobrevoo por telhados.
Tantas abas, rubras, negras.
Tantas ruas.
Teia longa, emaranhada.
Tantos carros. Formigando.
Envidraçados, os eléctricos,
Levam dentro, bem sentada,
Carga loira de turistas.
Tudo miram e espiolham.
Admiram.
Batem fotos.
Fazem filmes.
Lindo sonho.
E, ao longe, a outra margem.
Que extenso casario.
Uma muralha e mais o rio.
Largo e lento.
É do sul.
Um bom vizinho.
Dá-se bem.
Só de barco.
Vão e vêm.
Fazem trocas.
Tudo vendem
Em cada lado.
Tantas tendas.
Bom mercado.
É a polis.
O castelo.
É o rio
É surreal…

Mafra, 21 de Agosto de 2017
7h39m
Jlmg

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Cada dia uma flor…

Quero em cada dia, mandar uma flor, colhida do meu jardim.
A mais linda e perfumada.
Tenha o condão de sarar a dor.
Repor o brilho no olhar.
Leve a paz. Reverdeça a secura.
Floresça a alegria e dê vontade de viver.
O tempo é negro. Impera o mal.
Foi-se a ordem. Só confusão.
Uma intempérie que não quer partir.
Ninguém previu.
Parece o fim.
Ressurja a esperança, se Deus quiser.
Que o mundo inteiro volte a ser um lindo jardim…

Mafra, 26 de Agosto de 2017
7h36m
Jlmg

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Três anos da minha vida…

Andei três anos, de arma em punho,
Arriscando a vida pela vontade da minha pátria.
Corri África dobrando o cabo de tormentas
na defesa atroz da nossa soberania
contra a vil cobiça das potências imperiais.
Tanta vez eu vi a morte à frente
a ponto de esquecer o valor da minha vida única.
Amortalhei a esperança verde que em mim despontava.
Me conformei com a sorte que o Destino me reservasse.
Por maior que seja a ingratidão sofrida,
Regressei feliz pelo dever cumprido.
Não foi em vão.
Essa é a minha glória e a dos que, como eu, sofreram…

Tapada de Mafra, 27 de Agosto de 2017
16h33m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17685: Blogpoesia (525): "Quando era pequeno..."; "Aquela mulher grave..." e "Diante do mar...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728