quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18253: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 21 e 22: Tive uma sorte incrível: a minha família na tropa foi a melhor.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) >  Os camaradas (etimologicammente, os que dormem na mesma "câmara", quarto, camarata, no mesmo "buraco",  que dormem, comem, vivem e... morrem juntos), sempre presentes no dia a dia da guerra, vão substituindo a família, os vizinhos, os colegas de escola, os amigos, etc. que ficaram lá longe, na terra... São também companheiros, porque comem o mesmo mão à mesma mesa (do latim, cum + panis, o que partilha o pão connosco). 

 Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Mapa da província (1961) > Escala 1/500 mil > Região de Quínara > Posição relativa de Fulacunda,que tinha a oeste Tite e a leste Xitole, a sudeste Buba e a norte Porto Gole~. Todas as ligações terrestres, em 1972/74, estavam inoperacionais. A ligação ao resto da Guiné fazia-se por barco (a sudoeste, a através do Rio de Fulacunda, afluente do Rio Grande de Buba) e por ar (Heli ou DO-27).



Guiné > região de Quínara > Fulacunda > Mapa de Fulacunda (1955) > Escala: 1/50 mil > Tite ficava a noroeste. Era sede de circunscrição (concelho) e tina pista de aviação... Com a guerra entrou em decadência. Era o coração do "chão beafada"...

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12.º ano de escolaridade.

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande .

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 21/22


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


21º Capítulo  > O RACAL


A primeira grande estupidez que cometi, no teatro de guerra, teve um epílogo feliz, mas podia ter corrido muito mal. Foi no dia 12 de Setembro [de 1972].

O 1º pelotão, do qual eu fazia parte, tinha sido destacado para ir à lenha. De notar que o combustível para cozinhar era lenha que cortávamos nas matas circundantes do aquartelamento.

Nesse dia, estava a decorrer, próximo de Fulacunda, uma operação com forças especiais, compostas por comandos e paraquedistas, na tentativa de expulsar o inimigo da nossa zona.

No exterior do arame farpado, e paralela ao mesmo, tínhamos uma pequena pista de aviação em terra batida e um heliporto. Regra geral, uma avioneta vinha semanalmente trazer-nos correio ou um medicamento urgente. Era a outra forma de sermos abastecidos, embora também o fôssemos de paraquedas mas, na ocasião, era um helicóptero da força aérea que estava estacionado no heliporto para socorrer eventuais soldados que fossem feridos nos combates que se travavam nos arredores.

Não sei porquê, nós não tínhamos sido informados da dita operação, e o único rádio Racal que possuíamos a funcionar estava com os meus colegas no mato, no corte da lenha, de maneira que do quartel não podíamos contactar com os militares envolvidos na operação de combate, que estava a decorrer.

O meu capitão pediu que alguém fosse à procura dos meus colegas e trouxesse o dito rádio. Sem hesitar, ofereci-me para ir de jipe, e dois colegas prontificaram-se a ir comigo. Não me lembrei que iríamos por estrada quase intransitável, Fulacunda-Tite. (Esta estrada está nos meus escritos, mencionada da seguinte maneira):

“O carreiro que se vê à esquerda na foto, é uma estrada internacional que liga Conácri, capital da República da Guiné, a Bissau, capital da Guiné portuguesa, atravessa o quartel ao meio. Devido à guerra, não passam aqui pessoas ou carros, pois está minada, ainda se nota na foto um sinal de trânsito. Fui de Jeep por esse carreiro buscar um rádio correu tudo bem”.
Chovia torrencialmente - uma daquelas fortes chuvadas tropicais e podíamos até ficar atolados. O certo é que fomos os três a cerca de seis km de distância e trouxemos o rádio rapidamente.

Sendo eu um medricas, atribuí esta audácia às pastilhas que,  dizem, nos davam para não termos medo ou então era mais corajoso do que pensava. Foi o meu primeiro pequeno ato heróico (ou estúpido) mas uma coisa vos afirmo: “Tomates” tiveram os dois colegas que me acompanharam, pois durante a viagem com as armas prontas a disparar, fizeram-me sentir completamente seguro. Obrigado ao “Zé” que infelizmente já não se encontra junto de nós; o outro ainda anda por cá, não quer que diga o nome.

22º Capítulo >  E VAMOS ESQUECENDO ...


Não andarei longe da verdade se afirmar que é aí pelo terceiro mês que começámos a quebrar as promessas que fizemos antes de partir. Escrever à Ana ou à Rosa, aos irmãos, tios ou primos, amigos, ou companheiros de trabalho passa a ser negligenciado. Pouco e pouco criámos laços com aqueles com quem lidávamos diariamente e, das promessas que fizemos, que escreveríamos muito e a todos, vamo-nos esquecendo. Cumpríamos com a namorada e os pais. (No meu caso,  avó.) E, muito esporadicamente, com os outros. Pelos meus apontamentos, fui diminuindo cerca de 10% ao mês, até estabilizar mais ou menos nas 30/40 cartas/aerogramas mensais. Nos primeiros meses, eram 80/100.

Nada mudou nesse aspecto, até aos dias de hoje. Os que hoje, por qualquer razão, estão distantes, apesar de poderem contactar ao segundo, fazem exactamente o mesmo e vão esquecendo família e amigos. Connosco, uma resposta a uma carta tardava, no mínimo, 15 dias, o que ajudava e desculpava esse “esquecimento”.

Em suma, é no seio dos camaradas de armas que crio uma nova família. Tive uma sorte incrível: a minha família na tropa foi a melhor.

Não sei explicar psicologicamente o que leva a criarem-se laços mais afectuosos com este ou aquele. Dos quatro do “Refúgio dos Mórmons”, somente de um fui íntimo amigo; os outros com quem mais convivi estavam espalhados por toda a unidade.

Pensem no que seria não termos amigos, num lugar como aquele. Garanto que, embora poucos, havia quem não os tivesse. Cada um de nós é singular na sua personalidade, mas foi a convergência de muitas coisas em comum que deram origem aos vários grupos que, melhor ou pior, se ajudaram mutuamente.

Na doença, nos momentos de combate, nas dores da alma por más noticias recebidas, na falta de comida ou bebida, este e os outros grupos da 3ª Companhia, que iriam ficar conhecidos como “Os Serrotes de Fulacunda”, estiveram unidos e pude, nas condições mais dramáticas que alguma vez vivi, aprender o significado da palavra solidariedade, no seu total e completo exemplo, do que deve ser uma família. Desejo, com todo o meu fervor, que todas elas, por laços de sangue ou não, sejam como esta que me colocou no topo da mesa, no dia do meu aniversário.

Não podendo garantir categoricamente que só a eles o deva, posso pelo menos afirmar que o estar hoje a escrever-lhes estes textos, a estes homens formidáveis muito se deve.

(Continua)

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P18252: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XII: Mulheres e bajudas (4): São Domingos, "chão felupe", 1968: na festa e no trabalho


Foto nº 335 A > Bajudas em festa, em S. Domingos, 1968. [No grupo, um menino da Mocidade Portuguesa]


Foto nº 335 > Bajudas em festa, em S. Domingos, 1968  [No grupo, um menino da Mocidade Portuguesa; todos se apresentam calçados, elas,  de chinelos de plásticos, podem ser cabo-verdianas, tal como o menino]



Foto nº 336 A > Mulheres em festa, S. Domingos, 1968 [, pelo traje e colares parecem ser felupes; a primeira figura da esquerda, parece ser um homem]


Foto nº 336  > Mulheres em festa, S. Domingos, 1968 [, ao fundo, militares]


Foto nº 323 A > Bajuda felupe [, em traje de ronco], S. Domingos, 1968



Foto nº 316 A > Lavadeira, S. Domingos, 1968


Foto nº 316 A > Lavadeira, S. Domingos, 1968


Foto nº 377 A > Mãe e filha ao colo, mais bajuda, S. Domingos, 1968


Foto nº 377 > Mãe e filha ao colo, com outra mulher,  S. Domingos, 1968



Foto nº 317 >  Mulher caboiana, S. Domingos, 1968





Foto nº 317 >  Mulher caboiana, S. Domingos, 1968


Foto nº 314 > Jovem mulher balanta, [costurando,] S. Domingos, 1968


Foto nº 315 > Mulher a joeirar  o arroz, S. Domingos, 1968


Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado [, foto atual à esquerda].

Legenda:

As mulheres e raças na Guiné – Nova Lamego, São Domingos e Bissau:

 As fotos de tronco nu foram feitas exclusivamente para mostrar a variedade de modelos e formas dos seios das mulheres africanas, destas raças que conheci.

Este conjunto é apenas uma parte, tenho mais, mas apenas seleccionei estas.  Tem outras de corpo vestido, eram em ocasiões especiais de festas e roncos, em que as meninas e mulheres se vestiam a rigor.

A maioria delas são da raça Felupe, predominante em São Domingos onde passei a maior parte do tempo, também tem de Balantas e outras. As Felupes já andavam avançadas 50 anos em relação ao Ocidente, pois usavam apenas tanga e fio dental (...). Já utilizavam muitas pulseiras e colares por todo o corpo, era uma  espécie de selecção entre elas.

As fotografias a preto e branco foram capturadas entre setembro 67 até fevereiro de 68 em Nova Lamego e depois desta data algumas em Bissau em Março, e em S. Domingos a partir de abril. As fotografias, slides,  a cores só começam em finais do 1º semestre de 68, embora também tenha a preto e branco depois dessa data, ora fazia a preto e branco, ora a cores, como tinha  duas câmaras a funcionar era conforme os rolos que havia.

Algumas fotos eu estou também incluído, algumas com brincadeira de ocasião e da idade, nada era de maldade, eu conhecia as tabancas e as famílias e era lá mesmo em frente aos pais que fazia estas fotos. Depois eu dava uma cópia para cada uma delas, era isso que as motivava a deixarem fazer as fotos. Algumas não queriam mesmo, especialmente as chamadas mulheres grandes, casadas e com filhos.  Era mais fácil tirar fotos às bajudas, raparigas solteiras e ainda muito jovens.

Não afirmo que todas as raças estejam certas, era o que escrevia nas fotos, mas a maioria já era passado algum tempo, e depois os slides não dava para escrever.

As Felupes são fáceis de identificar, pela sua nudez, pelos roncos e pelos cabelos.

Espero que quem as visualizar que gostem, é esse o meu propósito. (VT)



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Cacheu / São Domingos (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor dos rios Cacheu e seus afluentes: Pequeno de São Domingos (margem norte); Caboi, Caboiana e Churro (margem sul), a montante da vila de Cacheu.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).

Guiné 61/74 - P18251: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (47): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (2)

Paisagem duriense, Património da Humanidade


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.
Aqui deixamos a segunda parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

47 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (2)


A razão de um nome… 
Porquê Pedro Milanos?

Por José Manuel Lopes 

PEDRO MILANOS é o anagrama de ARMINDO LOPES, o autor do poema que estava nos contra rótulos. (Ambos os nomes têm as mesmas letras, só que por ordem diferente).
Por trás de um nome está sempre uma história e esta é a de um homem que viveu sempre apaixonado pela sua região. No fim da década cinquenta, passava na tv um programa sobre as 7 maravilhas do mundo… 
Com cerca de 8 anos a grandeza de tais obras me deixaram encantado, particularmente as Pirâmides do Egipto e perguntei a meu pai: 
- Qual das sete maravilhas é a de Portugal? 
- Nenhuma. 
- Pois, nós somos um País muito pobre! 
- Achas!? Anda daí comigo. 

Subimos ao mirante da casa, abriu a janela e disse. 
- Que vês rapaz? 
- Vejo montes. 
- E nos montes o que é que há? 
- Vinhas. 
- E as vinhas são feitas de quê? 
-Videiras e folhas. 
- E essas videiras estão onde? 
- Na terra. 
- E a terra como está segura? 
- Bem!?...não sei como. 
- Pelos muros de pedra meu filho. Consegues contar todos os que vês? 
- Não, eles são tantos. 
- Agora imagina, quantos não haverá pelo Douro fora… Todos juntos, são uma obra muito maior que as Pirâmides do Egipto. Passam é despercebidos. 

E foram passando, até que um dia em 2001, dez anos depois da morte de meu pai, recebo a notícia pela TV de que o Douro, as suas vinhas e os seus muros, passavam a ser Património da Humanidade. 
Como ele teria adorado ter tido conhecimento disso! 

Decidi dar o nome de Pedro Milanos ao primeiro vinho feito pelo meu filho Vasco, que é enólogo e neto de Armindo Lopes.

Um brinde de camaradas ex-Combatentes da Guiné, com Reserva Pedro Milanos, na Tabanca de Matosinhos. 

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 (Outros poemas do Zé Manel) 

Heróis que a história não narra 

Por José Manuel Lopes

“Quinze dias após a nossa chegada à Guiné estávamos em Bolama a fazer o treino operacional (IAO) que duraria cerca de um mês, após o que partiríamos para o Sul da Guiné, Mampatá Forreá que seria o nosso lar nos próximos 2 anos. 
Naquele dia, fazia-se fogo real com o dilagrama e foram escolhidos os soldados para utilizar esse tipo de arma. O Instrutor do Batalão, onde fomos anexados pontualmente, que era o Alferes Figueiredo, estava a ensinar o instruendo,o Soldado António Mata da minha Companhia. 
Após o Mata ter retirado a cavilha da granada defensiva, a alavanca desta saltou imediatamente, pois a anilha de segurança tinha caído e ninguém se apercebeu disso. Instintivamente o Alferes deitou as mãos à granada que menos de 4 segundos depois lhe rebentou nas mãos. Ambos foram atingidos em cheio tendo morte imediata. Os seus corpos receberam a grande maioria dos estilhaços e protegeram todos que à volta assistiam ao lançamento do dilagrama. Houve alguns atingidos por um ou outro estilhaço, mas sem gravidade. 
O Mata era casado. A mulher quando se despediu dele já estava grávida. Meses depois nasceu uma menina que nunca conheceu o Pai, nem por foto, pois a mãe casou novamente pouco tempo depois.

Trinta anos passados, fomos à procura daquela jovem emigrante em Paris. Tal como o vínhamos fazendo com outros camaradas mortos, colocando no túmulo uma placa com um poema dos meus, queríamos fazer uma homenagem ao António Mata, sepultado em Pinhel. 
Fomos lá no verão, quando a mãe estava cá de férias. Porém, a filha ficara em Paris e sem qualquer interesse em vir a Portugal. E contacto telefónico com ela, a partir de Pinhel, ela manifestou-se sensibilizada com a nossa atitude mas confessou que não possuía qualquer ligação com o seu pai, de quem nem foto conhecia. 
Viemos a saber que o padrasto não permitiu nunca essa ligação. Manifestámos-lhe a nossa intenção na homenagem e prontificámo-nos a pagar-lhe a viagem, se necessário. 
Efectivamente, a filha do Mata acabou por aceder ao nosso desejo. Veio cá, assistiu à homenagem e viu colocarmos a placa de mármore, sobre a campa do seu pai, onde se destacava a sua foto de Combatente a encimar um poema. 
Sensibilizada com a nossa atitude, recebemos a sua emocionante mensagem: 
- “Nunca conheci meu pai, vosso camarada, mas hoje pelo menos, tive um pai em cada um devocês. Muito obrigado." 
Presentes nessa homenagem estiveram cerca de 12 elementos dos Unidos de Mampatá (Cart 6250).

Gostava de vos falar 
dos esquecidos 
dos heróis que a história 
não narra 
que as viúvas choraram 
mas já não recordam 
daqueles 
que nem tempo tiveram 
para ter filhos 
que os amassem 
descendentes 
que os lembrassem 
daqueles que nunca 
tiveram o dia do pai 
vítimas de guerras 
que não inventaram 
em tempo que já lá vai 
falar deles é prevenir 
se bem que de nada 
lhes valha 
de guerras que possam vir 
geradas pela ambição 
dos 
que nunca morrerão 
num campo de batalha."

Assistência aos feridos 
 
Puseste o pé em sítio errado

Por José Manuel Lopes

“Março de 1973. A construção da estrada alcatroada havia começado em Aldeia Formosa, 7 Km depois atravessava Mampatá e seguia na direcção da Fonte de Iroel, como uma gigantesca jibóia negra lá ia até Colibuia, seguindo paraNhacobá e um dia havia de chegar ao Cumbijã. Era como uma faca encravada nas zonas até ai controladas pelo PAIGC, atravessava o corredor de Uane, virava para Sul ao Cumbijã e facilitaria o controlo pelas nossas tropas de toda aquela área. 

A todo o custo o PAIGC tentava evitar a sua progressão e para tal plantavam minas por todo o lado a fim de destruir viaturas e máquinas de desaterro que trabalhavam na abertura da estrada. Logo ai o trabalho para detectar as minas era importantíssimo. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente dos trabalhos e depois fazia-se a segurança à engenharia e aos operadores das máquinas. O trabalho dos Furriéis de Minas e Armadilhas era importantíssimo e o Vilas Boas distinguiu-se nisso. Perdi a conta às minas que ele levantou. 

Um dia na rotina habitual os picadores da frente gritam:mina!. Todos param. O Albuquerque repete a mensagem (mina!) e dá um passo atrás. Pisou uma mina antipessoal.

Puseste o pé em sítio errado 
um som violento, o pó levantado 
escondeu por algum tempo 
o teu corpo violentado 
sem pensar em outras minas 
correram em teu socorro 
o sangue fugia do teu corpo 
e o "hélio" não chegava 
 tua cara, ainda de criança 
ficava cada vez mais pálida 
tudo num silêncio angustiado 
Apesar dos teus vinte anos a 
vida fugia-te em golfadas 
porquê tanto sangue derramado?”

Minas 

Parece inofensiva a maldita 

Por José Manuel Lopes

“Desde o início da construção da estrada que as picagens se tornaram um cenário diário e hoje mesmo me surpreendo, como só tivemos uma vítima nesse trabalho perigoso que se tornou numa rotina. Só um trabalho muito responsável e competente dos picadores e dos Furriéis de Minas e Armadilhas explica tudo isso. Grande Vilas Boas e Fernandes! 

"Estradas amarelas corpos 
cobertos de pó 
pica na mão à procura delas 
o polegar ferrado num pau 
tac,tac,tac,tac,tac,tac 
tacteando por sons diferentes 
o Fernandes com cara de mau 
espeta no solo 
o ferrão da pica 
tac,tac,tac,tac,tac,toc... 
o calafrio... 
depois o grito 
anunciando o perigo 
o grupo é mandado parar 
chega o Vilas à frente 
e todos manda afastar 
de joelhos no chão 
numa simulada carícia 
afasta a terra com a mão 
com gestos simples e perícia 
vai cavando devagar 
ei-la... está aqui 
parece inofensiva a maldita 
deita-lhe a mão e grita 
és minha, já te tenho 
tira-lhe o detonador 
e entre dentes diz... 
esta não 
esta não causará dor.”


Cheira a emboscada

Por José Manuel Lopes

"Em fila indiana 
vai o grupo pela picada 
um silêncio pesado 
de natureza estranha 
deixa os sentidos alerta 
cheira... a emboscada 
aos primeiros tiros 
todos caem no chão 
há avisos e gritos 
e reina o palavrão 
responde-se de pronto 
com a arma na mão 
subitamente, de lá 
as armas se calam 
enquanto por cá 
elas ainda falam 
e eis que 
o silêncio volta 
e chega a segurança 
regressa a confiança 
olha-se em volta 
há um corpo caído 
que não grita nem mexe 
se adivinha razão 
engole-se em seco 
se desvia o olhar 
se esconde a emoção."

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Não pode haver melhor prenda 

Por José Manuel Lopes

 
Em dia de correio, o grupo de serviço ia levantá-lo à Aldeia Formosa. Uma secção montava-se num Unimog, lá ia em busca das boas novas, aproveitando para levar as cartas que os militares escreviam aos familiares e madrinhas de guerra. 

Eu raramente escrevia. A minha mãe queixou-se disso na primeira vez que vim de férias. Eu dizia-lhe que pouco havia para contar e que não se preocupasse, pois no nosso caso, a falta de notícias era a melhor das notícias, se algo corresse mal, a má nova chegava rápido. 
Havia um Furriel já casado que todos os dias escrevia à mulher e numerava as cartas. Quando após o almoço passava junto à tabanca dele, lá estava o Santos sentado a escrever. Eu perguntava: 
- Oh Santos quantos dias já levamos disto? 
Ele olhava para a parte superior da primeira folha da carta e dizia: 
-184, não falha. 

Quando o correio chegava, ele recebia 7,8,10 cartas, pois a mulher também lhe escrevia todos os dias, mas nós não recebíamos o correio com muita regularidade. 

Um dia foi a minha vez de ir buscar o correio a Aldeia Formosa e fiz uma maldade. Retirei do saco todas as cartas endereçadas ao Santos e guardei-as no bolso lateral das calças. 
Ainda hoje recordo o olhar angustiado daquele Furriel a assistir à distribuição do correio. Entretanto, eu já tinha passado pela tabanca dele e deixado 6 cartas em cima da cama. Depois, assisti ao caminhar pesaroso do Santos, da cantina até à sua tabanca. 

De seguida, ouve-se um grito de surpresa. Ele sai e diz: 
- AH SEU FILHO DUMA PUTA, ISSO NÃO SE FAZ!... NA PRÓXIMA, DOU-TE UM TIRO NOS CORNOS!"

"Um ruído vem do céu 
e há cabeças no ar é que 
é dia de correio 
há novas para chegar 
faz-se a distribuição 
com chamada frente ao bar 
para o Santos, nada veio! 
será que vai desmaiar? 
p'ró Zé Manel veio a Bola 
com notícias do Benfica 
p'ró Nelson uma encomenda 
e há quem lhe mande uma dica 
fazendo-se para a merenda 
sim, de correio foi o dia 
não pode haver melhor prenda 
é tempo de alegria 
retiram-se os felizardos 
procuram privacidade 
relêem a mesma carta 
até afogar a saudade." 

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Ao Santos de Leça 

 "Um dia nunca passava 
sem que escrevesse uma carta 
à mulher que tanto amava 
como se fosse promessa 
e todas elas numeradas 
como que a testemunharem 
a grande paixão do Leça"

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Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)

Guiné 61/74 - P18250: Parabéns a você (1381): João Alberto Coelho, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6522 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18242: Parabéns a você (1380): Augusto Silva Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73), Francisco Godinho, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2753 (Guiné, 1970/72) e José Albino, ex-Fur Mil Art do Pel Mort 2117 e BAC 1 (Guiné, 1969/71)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)


Quinta da Senhora da Graça (a cerca de 3km da cidade do Peso da Régua e 4km de Santa Marta de Penaguião, em pleno Douro Património da Humanidade). Desde 1994, aqui se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.

Aqui deixamos a primeira parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

46 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (1)

Tive o prazer de conhecer o Zé Manel numa patuscada, em casa do “Mano Novo” (António Carvalho), Presidente “vitalício” de Medas – Gondomar.

Este, havia-me convidado, depois de termos estado juntos, pela primeira vez, numa “lampreiada” em casa de seu “Mano Velho” (Manuel Carvalho).

Logo ali, verifiquei que o Zé Manel era um camarada bem conhecido dos demais e que gozava de grande simpatia. Além disso, era notória uma relação especial com o António Carvalho, fruto do “convívio forçado” de mais de 2 anos, na guerra da Guiné.


Com a minha aproximação aos convívios dos grupos de ex-combatentes, passei a encontrar amiúde o Zé Manel. Daí, ter passado a conhecer/observar o seu passado, os seus poemas e as suas histórias. 


Joaquim Peixoto e José Teixeira brincam com o Zé Manel na Tabanca de Matosinhos

Nasceu no Peso da Régua (Nov 1950), onde frequentou a Escola Primária e o Colégio da Régua até ao 5.º ano. Fez 6.º e 7.º ano no Liceu de Lamego e depois seguiu para o INEF, no Porto. Zangado com os chumbos que ali conseguira, foi a Lamego oferecer-se como voluntário, para o Serviço Militar.
Meio ano depois, foi chamado para as Caldas da Rainha, onde fez a recruta. Seguiu para Tavira, especializar-se em Armas Pesadas. Ainda foi prestar provas aos “Rangers”, mas não ficou lá. Lesionou-se…

Seguiu para Elvas, para dar recrutas. Ali, apanhou uma “porrada” e teve que ir para os Açores. Quatro dias depois de lá chegar, e já com 20 meses de tropa, recebeu notificação para se apresentar no RAP 2, em V. N. de Gaia.

Quando foi gozar os 12 dias de licença antes do embarque, informou os pais de que estava mobilizado para a Guiné. Por essa altura, vivia-se na Régua um ambiente bastante pesado. Precisamente na Guiné, havia falecido o Valdemar, o “Quarenta”, que ficara sem uma perna e o José António encontrava-se prisioneiro. Eram três jovens bem conhecidos na Régua.

Uns anos antes, um vizinho havia escapado da tropa por intermédio de um médico de Viseu, quando da sua Inspecção Médica em Vila Real. Atestou-lhe uma doença rara. Consta-se que este favor foi sendo pago em cabritos, durante vários anos, até à morte do avô do rapaz. Diga-se de passagem, que este procedimento não é bem aceite entre os transmontanos. É que, normalmente, ele identificava uma atitude de medricas, de cobardia ou de falta de patriotismo.

Alguns dias depois, o Zé Manel apercebeu-se de que os seus pais tinham discutido. Coisa raríssima entre eles. Veio a saber que a mãe,  preocupada, havia procurado esses bons conhecimentos para salvar o filho de ir para a Guiné. E que tinha ido ter com um médico que a informara de que já era tarde para evitar a sua mobilização.
- Zé Manel, amanhã vamos a Lisboa. Vamos visitar a tua tia, para te despedires dela. Ela sempre te acarinhou, apesar de não teres querido ficar junto dela, logo de menino. És quase o filho que ela nunca teve.

Fizeram a viagem, quase sempre calados. O ambiente pesado em que se vivia não era nada favorável para conversas. Saídos do comboio em Santa Apolónia, seguiram de táxi com rumo a Alvalade, onde vivia a tia. Mas, quando o táxi parou no largo do Rato, o pai do Zé Manel informou-o:
- Vamos aqui entregar o envelope que o Doutor Marques deu à tua mãe. Ele disse que já era tarde para te desmobilizar mas que este General te pode arranjar um impedimento em Bissau, para não correres perigo.

Meio atordoado pela surpresa, o Zé Manel perguntou:
- Mas eu pedi-lhes alguma coisa?
- Ó rapaz, sabes bem que o teu pai é contra estas coisas de cunhas e de fugas aos deveres de cada um. Mas a tua mãe não sossegou sem me obrigar a isto. É verdade que queremos o melhor para ti… mas tu é que sabes o que queres.
- Ó pai, mostra cá isso. - disse o Zé Manel.

Estendeu a mão, agarrou no envelope da mão do pai e, sem o abrir, dobrou-o e meteu-o no bolso interior do casaco do pai.
- Olha, vamos embora e a mãe não precisa de saber nada disto.
- Meu filho, não imaginas a alegria que me estás a dar. - Aproximou-se, abraçou-o e beijou-o. Coisa de que o Zé Manel já não se lembrava.

Depois de visitarem a tia, voltaram para a estação de Santa Apolónia, mas, desta vez, no comboio, conversaram como nunca durante toda a viagem.

O avião que transportou a CART 6250, “Os Unidos”, chegou a Bissau ao meio da manhã de 27 de Junho de 1972. À espera do Zé Manel estava o seu amigo guineense Vasco, que com ele estudara na Régua e jogara futebol. Nessa altura estudava na Faculdade do Porto e se encontrava ali de férias.
Foi uma noitada “à maneira”. Já era alta madrugada quando o Vasco deixou o Zé Manel no Quartel dos Adidos, num estado bastante entorpecido. Sem cama, nem tino para a procurar, tirou o blusão para servir de travesseiro, descalçou-se e deitou-se no chão,vindo a rodar para debaixo de um beliche.
Quando acordou, a meio da manhã estava só, sem sacos da viagem, sem boina e sem sapatos. Mal apareceu na parada, ouviu gargalhadas e apupos ao “periquito” desorientado. Dirigiu-se então para o Oficial de Dia dessa unidade, perguntando pela sua CART 6250.
- Ó Furriel, você está fodido. A sua Companhia já está em Bolama e você ainda aqui. Venha comigo, vou arranjar-lhe uns sapatos e vamos ali à Força Aérea a ver se se arranja uma boleia.

Curioso foi que, quando lá chegou logo encontrou o Mesquita, Furriel da Força Aérea, seu vizinho reguense e ex-colega no clube de futebol, que o “meteu” num Dornier que ia levantar voo para Bolama, com a distribuição do correio.

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A CART 6250 fez o IAO em Bolama antes de seguir para Mampatá.


O amigo António Carvalho, bem conhecido por Dôtô Carvalho 

No IAO desenvolvido em Bolama, aconteceram duas mortes. A CART 6250 foi integrada, pontualmente, no Batalhão de Artilharia 6520, em que o seu Alferes Figueiredo, de Operações Especiais, chefiava a instrução de uso dos Dilagramas em combate. Naquele momento, era o soldado Mata, da CART 6250 que ia fazer fogo real com dilagrama. Tirou a cavilha da granada, mas como o anel de segurança se tinha soltado, a alavanca saltou logo.

O Alferes, apercebendo-se disso, num impulso de suicídio heróico, aproximou-se e agarrou a granada com as duas mãos, cobrindo a explosão e protegendo os outros militares presentes. Faleceram ambos.

Isto aconteceu no 13.º dia de Guiné. Terminara a sua missão o Soldado António Mata, de Pinhel, que estava emigrado em França. Saíra de lá recém-casado e com a mulher grávida, para cumprir o seu dever militar e de patriota.

Quando falávamos deste episódio, o Zé Manel confessou-me:
- Foi dos momentos mais difíceis e mais marcantes que vi na guerra. O Carvalho pediu para o ajudar a limpar os corpos despedaçados, a fim de os meter nos caixões. Ninguém o ajudou. Eu até me afastei porque nem a ele conseguia olhar. É que ele chorava copiosamente, enquanto ia fazendo o serviço sozinho e as suas lágrimas iam caindo sobre os corpos mutilados.

Nesta parte da narrativa e após uma sentida pausa, o Zé Manel acrescentou:
- O Carvalho foi a pessoa que mais admirei durante a tropa. Não imaginas o trabalho dedicado que desenvolvia a curar e a apoiar as pessoas doentes e carenciadas. Ele queria atender toda a gente e não tinha medicamentos nem condições para isso. Então inventava. Partia os comprimidos e distribuía-os àqueles que não largavam a Enfermaria.
- Olha que aquela história que se conta sobre o facto de a sua equipa de enfermeiros, colarem o comprimido na testa com um adesivo, é verdadeira. Diziam que, assim, o comprimido fazia efeito durante uma semana…

Devido a essa carência, o Carvalho [ fur mil enfermeiro,] deslocava-se amiúde a outros quartéis e destacamentos para arranjar mais medicamentos.


O Zé Manel e o António Carvalho mantêm a sua grande amizade desde os tempos de Mampatá (1972-74).

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Os piores momentos de combate foram vividos nas emboscadas no percurso onde se estava a abrir a estrada de Aldeia Formosa para Nhacubá e Cumbijã. A zona era perigosa mas, segundo os camaradas que foram substituídos, se se evitasse o embate com IN, este também não chateava muito.


Despojos de guerra 

Por José Manuel Lopes 

“Após um contacto com o IN, regressámos a Colibuia e depois, de Berlietaté Mampatá, com muito material que o PAIGC abandonou no terreno. Fiquei surpreendido com a quantidade de material escolar que ficou espalhado pela picada.


Eu trouxe alguns livros e cadernos (que despertaram imenso a minha curiosidade), além de uma Kalash, uma pistola, um cantil e uma faca de mato. O Gomes, do pelotão de nativos é o 1.º da foto, depois o Amadu, que está carregado com roupa e umas botas que tirou a um guerrilheiro abatido. Do lado direito, um soldado com um ferimento na mão direita, já tratado pelos nossos competentes enfermeiros. 

Quando chamei a atenção do Amadu, que não devia ter tirado as botas ao guerrilheiro IN, o Amadu respondeu-me: 
- Oh Furriel, ele já não precisa mais delas e estas botas de couro são muito melhores do que aquelas que a tropa me deu. 

 Fiquei sem argumentos e limitei-me a encolher os ombros". 


A Fonte de Iroel era local de inspiração poética do Zé Manel 

Normalmente, o Zé Manel não se embebedava. Era muito solidário. Chegava a fazer serviços e operações no lugar de outros camaradas. Nos tempos mais livres, procurava ajudar o Furriel Simões no ensino escolar, convivia com os jovens no desporto e gostava muito de se envolver nos contactos com a população indígena.

Conta o amigo Carvalho que após uma Operação, em que foram mortos dois guerrilheiros do PAIGC, o Zé Manel teve uma crise emocional. Foi ter com ele à Enfermaria, abraçou-me a chorar, enquanto balbuciava:
- Já imaginaste o que os seus familiares vão sentir dentro de dias? É o mesmo que se passaria com os nossos. Meu Deus, para quê esta guerra!?
Já depois do 25 de Abril, o Zé Manel relacionou-se bem com a malta do PAIGC 

O Zé Manel regressou da Guiné em 28 de Agosto de 1974. Do Porto, seguiu de táxi para Esmoriz, onde os pais estavam de férias. Ali, esteve poucos dias. Queria ir para a Régua. Encontrou lá o avô, já com dificuldade de visão. Ele reconheceu o neto pela voz e pelo abraço que lhe deu.
- Calha bem, rapaz, és tu que ficas já com a minha melhor arma de caça. Toda a família a quer, mas eu quero que fique para ti.
- Desculpe, avô, mas não a posso aceitar. Fiz uma jura em como não pegaria em mais nenhuma arma. Só quero paz e recuperar a normalidade.
- Ó rapaz, estou a ver que a coisa foi mesmo má. Alegra-te, cumpriste o teu dever e já passou tudo. Dá cá mais um abraço.

Emocionado, o Zé Manel, lembrou-se de prometer:
- Avô, hei-de recuperar a Quinta da Senhora da Graça. Vou reconstruir a casa que ardeu (em 1952), custe o que custar. Vai ser esse o maior objectivo da minha vida.
- Deus te ajude,  rapaz. Não calculas a alegria que me dás.

O Zé Manel não imaginava o dinheiro que o pai amealhara com as suas transferências. Ainda pensou fazer como era hábito: comprar um carro. Pôs-se a pensar na oportunidade única de conhecer o Mundo, especialmente a Europa. Foi à estação da Régua e informou-se de um programa chamado InterRail Passes que lhe proporcionaria as viagens internacionais que desejava. Queria avançar já, mas a mãe chamou-o à atenção de que ele não passara o Natal em casa, nos últimos dois anos. Então, ele prometeu que só sairia depois do Natal.

Saiu da Régua em 28 de Dezembro de 74. Correu a Europa por onde lhe foi possível. Claro que não pode passar a cortina de ferro. Seis meses depois, encontrava-se na Suíça,  “teso como um carapau”, a pedir trabalho para ganhar para comer e para a viagem de regresso. E foi no Jardim Zoológico de Zurique que se desenrascou.

No regresso, parou em San Sebastian. Subiu ao Monte Igueldo, olhou para a Baía de la Concha e ficou fascinado ao ver três indivíduos de pé sobre umas pranchas de fibra e agarrados a uma vela, que deslizavam sobre as águas com grande destreza e velocidade, entre a praia e a Isla de Santa Clara. Foi o primeiro contacto com essa nova modalidade desportiva, o Windsurf. Abeirou-se deles e manifestou-lhes interesse em comprar uma das pranchas. Eram dois ingleses e um brasileiro. Funcionavam ali como instrutores de novos aderentes, acharam graça à pretensão do Zé Manel, a quem informaram ser preciso aprender primeiro.

Como costumavam deixar lá as pranchas, o Zé Manel aventurou-se a aprender sozinho, durante o início das manhãs, enquanto os instrutores não chegavam. Uns dias depois, verificou que as pranchas estavam à venda, porque os surfistas se iam embora. Afixaram lá o preço em Libras para cada uma. O Zé Manel ofereceu 500 Pesetas. Não tinha possibilidades para pagar mais, mas eles não lhe ligaram. Porém, venderam logo as primeiras, mas demoravam a vender a última. Como tinham que abalar, acabaram por entregar a prancha ao transmontano da Régua pelas tais 500 Pesetas. Despachou a prancha em Vitória e veio a recebê-la na Régua, onde já havia chegado em finais de Outubro de 1975.

Em pouco tempo, o Clube de Caça e Pesca da Régua tornou-se no clube mais activo do norte na promoção da Vela. A escola, sob a orientação e dinamismo do Zé Manel, chegou a funcionar com cerca de 80 entusiastas jovens velejadores.

Hoje, tal como prometera ao seu avô, e graças à grande colaboração de sua mulher Luísa e apoio técnico de seu filho, ocupa e explora a lindíssima Quinta da Senhora. da Graça, desde 1994, Ali se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I

Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967


Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (****)


Efemérides > Passaram 51 Anos: Chegada ao largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967

por Mário Vitorino Gaspar






“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos


Bissau, 17 Janeiro de 1967


Chegámos à barra do porto de Bissau, na noite de 17 de janeiro de 1967. O paquete Uíge estagnou. Silêncio geral. Rapidamente surgem negros de tanga. Descalços. Começaram por carregar aos ombros, mas vagarosamente, alguma bagagem. Mais parecia que o cais de Bissau se desmoronava quanto ouvi as primeiras palavras dum nativo, bem perto do local onde me encontrava. Dei com os pés na minha mala de viagem. Não entendi o que diziam, simplesmente palavrões, que nem ficavam mal como fundo daquele palco. Nunca fui “menino-bem”. Mas f­oi o primeiro choque.

Esperava, no mínimo de entender uma única palavra em Português. Escutava uma língua que desconhecia. Era do meu conhecimento, não era novidade, sabia perfeitamente o País onde vivia. Tinha plena consciência do papel de Portugal nos ditos territórios Portugueses de África. Aquelas gentes viviam num mundo bem distante da civilização. A imagem que assistia transportava-me a 500 anos atrás. Recuara nos tempos. Quando um descarregador nativo estendia as mãos, não só cigarros que fumava como procurando que lhe desse dinheiro, tentei falar com ele. Ficou parado e sorriu. De repente saiu da sua boca uma rajada de palavrões em Português. Comecei por rir.

Avistava­‑se a iluminação de Bissau. Toda a minha Companhia – CART 1659, encontrava­‑se bem unida, quase mão na mão, quem sabe se para se proteger. Recebi ordens para levar a minha Secção mais para a frente, também que não desembarcaríamos em terras da Guiné. Outros militares seguiram connosco e entrámos numa LDM e Batelão BM­‑1. Tive de escutar alguns desabafos de homens da minha Companhia.

Ficámos espantados, visto julgarmos desembarcar na capital. Sem explicação, deram-nos uma maçã, um quarto de pão, uma laranja e um ovo. O destino? Bem tentei saber, sem resultados. O destino? Incerto? Depois de encaixotados avançávamos por via fluvial estreita, o mato quase que nos tocava. Afinal o destino era o mato. O Capitão ia encolhendo os ombros. Se frustrado estava mais fiquei, por outra, enganado. Como tinham a coragem de nos colocarem naquela ridícula situação? As horas passavam, no romper do novo dia, fui verificando estarmos encurralados de mato por todo o lado. Um ou outro riso, mas era mais o silêncio que inundava as nossas almas. O sol queimava.

Rapidamente se esgota a míngua do menu dado à saída do Uíge. Os militares começaram a abrir as malas. Comi uns nacos de presunto e de salpicão que cada um trouxera da terra-natal. Aqueles pitéus salgados acabaram por nos criarem problemas. Sede. O calor ia aumentando e alguns ainda dormitavam aos solavancos. Os Oficiais e Sargentos tiveram alguma informação oriunda do Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Mansilha. Nada de novo. Eu não parava, embora No pouco espaço que existia, ia conversando com militares da Companhia, também com Furriéis que conhecia, mas de outra Companhia e de um Pelotão Fox. Soubemos qual o destino: – Gadamael Porto.

A fome e a sede apoderaram­‑se de nós. O pessoal começava já a sen­tir a mudança do clima. Havia quem comesse as cascas das laranjas, rindo talvez para disfar­çar. Vómitos! Muitos despejaram para as águas do rio tudo aquilo que haviam digerido. Para além da comida, era a falta de água.

No Uíge existiam passageiros de Luxo, de 1.ª, de Porão. Rica vida passada a bordo do Uíge. Começaríamos por ser mais iguais? Tinha a certeza que a desigualdade ia continuar. Era um dos privilegiados. Sempre responsável. Assumira, desse para onde desse!

Não sabia muito bem se no futuro as coisas se passariam do mesmo modo. Avistámos uma povoação, na margem direita do rio, tendo o coman­dante de companhia talvez, através dos fuzileiros que nos acompanhavam, dito tratar­‑se de Cacine. Era uma “avenida” de palmeiras, e cá bem à frente, militares gritavam:
– Salta que é periquito!

Com um pequeno barco os fuzileiros chegaram a terra, trazendo sacas. Verificámos serem laranjas, bem sumarentas, mas mais pareciam vinagre. Segundo diziam, tínhamos que nos apressar devido à maré. A mata nas margens era densa e nós éramos não só uns intrusos, mas também periquitos – termo utilizado para designar todos os militares que estavam no início da comissão. Muito embora as azedas das laranjas não matassem a fome, de algum modo ajudavam a enganar o estômago. O Capitão, falando com os Oficiais e Sargentos informou que se juntaria a um pelotão uma secção, ficando destacados num local de nome Ganturé. Fizemos um sorteio e ao meu Pelotão tocou-lhe o destacamento ao qual se juntou uma outra Secção.


Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro


Desembarcámos em Gadamael Porto, e o termo “porto” não tinha significado, visto não existir porto algum. Nem sequer um simples cais.
– Salta, salta periquito! – ouvíamos, enquanto um aglomerado de militares pulava de contente.

Entendia aquela alegria, mas a verdade é que se éramos os periquitos, e a CCAÇ 798 é que saltava. Juntava­‑se a popu­lação civil que nos olhava­, não expressando alegria. De imediato tivemos que carregar as malas e saltarmos para cima de uma caixa de uma GMC, que substituía o cais que não existia. Houve quem escorregasse e caísse no lodo.

Os gritos continuavam, e as viaturas militares preparadas para trans­portarem o meu Pelotão e a
Secção para Ganturé, começaram a andar. Não houve tempo para analisar aquele local isolado no mato, e enquanto uns recebiam instruções e continuava a descarga, nós avançávamos, também para local incerto. Alguém avisou não ser necessário picar­‑se visto ter existido movimento de viaturas durante todo o dia.

A Companhia de Caçadores 798 [, a que pertencia o nosso camarada, grã-tabanqueiro, Manuel Vaz,] começava a embarcar na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão.

Depois de passado o casarão à esquerda, onde funcionava o comando, ultrapassámos o abrigo, que funcionava como porta­‑de­‑armas e mais ou menos percorridos três quilómetros, cortámos à esquerda e eis à nossa vista a “colónia de férias”. Saíam já outras viaturas com os militares da companhia rendida, que grita­vam sorridentes em altíssimos berros:
– Salta, periquito, salta,periquito...

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de janeiro de 2018  > Guiné 61/74 - P18202: Efemérides (266): Dia Internacional do Obrigado... uma seleção de 12 manifestações, no nosso blogue, de agradecimento e de gratidão, que são dois dos sentimentos mais genuinamente humanos... Um Oscar Bravo (OBrigado) à nossa Tabanca Grande, aos membros do nosso blogue, aos nossos leitores, a todos os que nos visitam, lêem e escrevem, aos nossos editores, aos nossos colaboradores permanentes, a todos os que nos apoiam, direta ou indiretamente (Luís Graça)