quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)


Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 22 de outubro de 1969 > Embarque do pessoal da CCAV 2639...  Menos de cinco anos depois, logo a seguir ao 25 de Abril, há manifestações contra o embarque de tropas para o ultramar... As palavras de ordem dos grupos marxistas-leninistas  são: "Nem mais um soldado para as colónias!...Regresso imediato dos soldados!... Independência total e incondicional para os irmãos das colónias!... Morte ao colonialismo e ao capitalismo!"...

Foto (e legenda): © Victor Garcia (2009) . Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III (Luís Graça)(*)


[Continuação... 

Sinopse das Partes I e II:

Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial,  o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]





E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma.

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande heróis do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado numa chapa metálica, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra...

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes...Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial…

− Não, estás enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão…

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato...

Na realidade, o Zé tivera mais sorte do que o António. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais.


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em 1973, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia um cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que teve um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele ? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele e os seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  


Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra…  Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de umas boas terras, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes, os piores, os caloteiros...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra ?

− Mas a guerra não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram uns trinta e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão ? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, malta do "caga & tosse", que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros...

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo…Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialiso"...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu "mano"...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta ... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada ... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada certeira no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão...

(Continua)




Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS).

Foto (e legenda): © Luís Dias  (2010) . Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:


6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19174: A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)


Capa do livro de Luís  Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa:  [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962).



Luís Graça, Contuboel, 
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12,
Junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II (Luís Graça)(*)

[Continuação]





Sinopse da I Parte: 

Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades" dos bons velhos tempos].


− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo. Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:


− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original. 

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem de ciência, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons  
amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de
fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde fui notário e onde casei, antes me de fixar, de vez, na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria…

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Há-de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... E agora a rapaziada do nosso tempo.

− Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há-de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda",  para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro,  dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns quilómetros valentes para fazer ?!… Mas fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras da igreja da Misericórdia.

O sítio não podia ser mais inspirador com larga vista sobre o casario, o a vasta lezíria, e o rio, agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia… Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…

Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória era ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…

O Zé Nuno, por sua vez, ani
mava algumas noites de fado no célebre Solar do Marquês de Marialva. Fora em tempos em clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe e templo de perdição"… Uma delas, mulher de um médico da terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…

− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a nº 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.

− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller…

− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.

− Depois da Dona Maria...,  não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra.

Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade… A noite era reservada aos cavaleiros... Faziam-se aqui negócios, arranjavam-se casamentos, trocavam-se as amantes... Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Nas horas mortas, durante a semana, também aparecia, de tempos a tempos, gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província… A relativa proximidade da vila em relação à capital tinha as suas vantagens e desvantagens, uma delas a de ser uma extensão da "Babel do pecado"…

O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembram de nada,  mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (si), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio…

Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de ideólogos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...

O tio do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho"… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.

Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60.

− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas,  quem vê caras, não vê corações.

− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos…

− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…

− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!

− Sim, num suplemento de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho muito respeito pela sabedoria popular.

− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios.

E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:

− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril...Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!

− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.

− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.

− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.

− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!.. Tchim, tchim! 

E ergueram as taças de vinho branco.

− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…

− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros grandes negócios que a China fez em Portugal… Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…

− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos,ou muito pouco, estava cada um para seu lado.


− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo, a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, pensamento de grupo, o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta da mão, a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida… Fomos como o frango de aviário: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, frequentando os cafés das Avenidas Novas, em Lisboa, ou as repúblicas coimbrãs.


− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!

− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a maoista…

− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder e nas grandes empresas.

Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento... o de que não voltariam mais a encontrar-se.

− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.


(Continua)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

(**)  No ano da graça de 1936, o germanófilo  Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda, se albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218). [Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana].

Guiné 61/74 - P19173: Historiografia da presença portuguesa em África (136): Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca debatemos aqui a fundo as cartas geográficas da Guiné, antes e durante a guerra e após a independência. As cartas concebidas com a ajuda soviética nos anos posteriores à independência foram um desastre eloquente, estão postas de parte, tal o volume de erros, com distâncias inconcebíveis.
As cartas com que combatemos andavam próximo da realidade, com a natural exceção de que com a passagem dos anos as antigas localidades iam desaparecendo, tomadas pela natureza.
O exemplo de que hoje me socorro são duas cartas, uma com a data de 1948 e outra publicada em 1951, não têm nada uma a ver com a outra, a não ser o nome das principais localidades e o rigor das linhas fronteiriças. O resto é um acervo de dúvidas, hoje irresolúveis, o que levou aqueles geógrafos a referirem povoações inexistentes e posicionamento de etnias totalmente fora da realidade? Isto só para dizer que os historiadores não podem na sua atividade excluir mais este escolho: quem ali vivia e efetivamente ali vivia.

Um abraço do
Mário


Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações

Beja Santos


 (Clicar nos mapas para ampliar)

Quando consultamos as cartas geográficas anteriores àquelas que utilizámos na nossa atividade operacional, elaboradas pelos Serviços Cartográficos do Exército e que contaram com os trabalhos da Missão Geoidrográfica da Guiné, encontramos disparidades de monta. Sugiro, como exercício, que tomemos como referência estas duas cartas geográficas. A primeira foi impressa no Instituto Geográfico e Cadastral, em 1948. Encontramos nela bastante precisão. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, encontrei inúmera informação sobre o início da luta armada. O gerente do BNU em Bissau possuía muito boa informação confidencial e tinha acesso à documentação produzida pela gerência da Sociedade Comercial Ultramarina. Ficamos a saber, por essa documentação, como iam evoluindo as infiltrações do PAIGC, veja-se a região Sul, em meses Xugué, Salancaur, Caboxanque, Cadique, Cafine, Cacoca e Campeame foram sistematicamente sujeitos à pressão do PAIGC, as populações do Sul, ao longo de 1963 foram-se concentrando em Cacine, Cabedu, Catió, Bedanda e Empada. Podemos olhar para a carta e perceber a quase ausência populacional na chamada região do Gabu, as povoações contam-se pelos dedos.

Tive acesso a este esboço da colónia da Guiné através de uma carta adquirida na Feira da Ladra. A segunda carta vem publicada num livro em que muitos de nós estudámos, intitulado “Novo Atlas Escolar Português”, por João Soares, Sá da Costa, 1951. A carta, teoricamente mais recente que a anterior, exclui a generalidade dos nomes que vêm referidos na de 1948, e que se traduziram nos ataques do PAIGC na região Sul e que levaram à concentração populacional em lugares como Gadamael, Cacine, Catió, Cufar, Bedanda e Empada. Refere populações predominantes que não tinham nada a ver com a realidade: nem a região Leste e Centro era esmagadoramente constituída por Fulas, nem a região Sul por Beafadas, não há uma só referência a Mandingas ou mesmo Felupes, destacam-se os Nalus, que já naquele tempo eram uma perfeita minoria. Igualmente o nome das povoações deixa muito a desejar: falando de um território que palmilhei, do outro lado de Bambadinca, refere-se Sambel Nhanta, que há muito não existia, nem mesmo Caranque Cunda e muito menos Checibá de que nunca encontrei qualquer referência. Nunca encontrei qualquer estudo, tirando o trabalho sobre a antroponímia de Teixeira da Mota, que permita pôr luz sobre a verdadeira posição das localidades, em diferentes períodos temporais, e um efetivo posicionamento de etnias, pelo menos no período correspondente à chamada ocupação efetiva, depois de 1915.

Tudo isto para dizer que esta complexidade de fixação de etnias e de designação de povoações dificulta qualquer trabalho historiográfico, subtraindo-lhe rigor e autenticidade. É este um dos empecilhos quase irresolúveis, dado o progressivo desaparecimento dos mais velhos, que poderiam contribuir para dar uma certa ordem e clarificação aos nomes do passado e a sua relação com os nomes do presente.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19152: Historiografia da presença portuguesa em África (134): Relatório anual da Circunscrição Civil dos Bijagós, 1932 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19172: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 70: Os Extraordinários, os amigos que ficaram para sempre.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda >3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > O Aníbal em 1º plano é o de sorriso mais aberto na foto. O Dino é o segundo a contar da esquerda.


Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):


Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 70,  alguns dos seus melhores amigos, com destaque para o Aníbal, o padeiro.

Recorde-se que o  autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ] 

2.  Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 70º 




70º Capítulo > OS EXTRAODINÁRIOS


Comecei por dizer que éramos números e, entretanto, fui atribuindo nomes. Baseado em passagens dispersas, pela minha correspondência, é de alguns que hoje quero lembrar.

Podia colocar mais umas dezenas, ou até a totalidade dos soldados da companhia, mas estes viveram mais de perto comigo.

O Jorge

O Jorge foi operador cripto. Creio ser o único voluntário da companhia. Nas suas conversas comigo dizia que o tinha feito para poder sair da tropa ainda novo e ir para o Brasil. Quando lhe perguntei porque não foi antes para o Brasil, em vez de ir para a tropa, disse-me que o pai não deixou. Visto a esta distância, parece ridículo, mas aproveito para mostrar que em menos de meio século o respeito pelos pais mudou muito. Hoje, a maioria dos filhos pura e simplesmente ignora as opiniões dos pais e isso não tornou os filhos melhores.

O Jorge visitou-me na primeira vez que veio a Portugal, contando-me que estava radicado em Belém do Pará, possuía uma empresa de táxis. Fico feliz por ele ter concretizado os seus objectivos. Lamento não saber da sua situação actual.

O Carvalho

O Carvalho era empregado de mesa quando foi para a tropa. Foi o homem da messe de oficiais. Que tipo fixe! Foi o primeiro que me fez um cocktail. Descrevi-o assim:

“Deita-se num copo licor Tia Maria e um pouco de Rum. Acrescenta-se um pouco de Fanta e na beira do copo chega-se um bocadinho de Capilé Abadia, como o Capilé é pegajoso, cola-se um pouco de açúcar a toda a volta e vai-se bebendo e andando com o copo à roda a cada golo”.

Quando estive doente, e isso aconteceu várias vezes, não conseguia comer a péssima comida que em certas alturas se fazia na cozinha e, como verão mais adiante, por vezes não havia absolutamente nada que se pudesse comprar para cozinhar. Para o Carvalho, isso não era problema. Preparava-me a marmita com tal requinte que o nojento esparguete com rolhas (salsichas às rodelas) transformava-se numa iguaria dum restaurante 5 estrelas.

Também não sei o que é feito desse amigo que comigo partilhou bons momentos.

O Silva de Lisboa

O Silva de Lisboa que, afinal, era de Almada e que agora é das Caldas e cujo número de telefone ainda mantenho. Foi, juntamente com o Plácido, os meus amigos intelectuais. Sabiam ler. Entre as marcas distintivas entre cada um da companhia, na minha modesta opinião, esses dois eram os mais diferentes. Distinguia-os o nível cultural. E isso dava-lhes uma enorme vantagem sobre os outros.

Um soldado, outro furriel e um cabo, nunca senti,  em nenhuma circunstância, alguma superioridade de um em relação aos outros, creio que com esses dois não foi só de cultura que aprendi, foi muito mais que isso iniciei-me na democracia.

Tanto um como outro estão aí para as curvas.

O Zé Alves

O Zé Alves não se lembra de nada de bom da tropa, excepto da massa que eu e o Leal lhe fizemos quando ele chegou da operação, cheio de fome.

Foi empregado na messe de sargentos. Escrevi sobre isso:

“Ganhei amizade com um tipo que é de São Tomé de Negrelos, Só vem buscar as coisas para a messe quando estou a escrever, vai ser outro chaga mas parece ser porreiro. Só te digo uma coisa. Quem o escolheu foi o 1º sargento que embora eu goste dele é muito militarista, parece-se como meu tio o cabo Chico de Penafiel. O Alves vai-se ver fodido com ele e com a mania que os furriéis têm”.

Enganei-me e parece que o Alves acabou por passar uma comissão razoável no serviço que lhe foi atribuído. Mantemos ainda hoje uma sólida amizade.


O Silva dos Dilagramas

O Silva da equipa de Dilagramas com quem eu fazia reforço nas noites de prevenção era o típico soldado que aceitava tudo na boa. Sem namorada, conseguiu o espectacular feito de arranjar uma em Fulacunda. Calma, foi por fotografia. Apaixonou-se pela foto e depois por ela e, por mais incrível que possa parecer, também ela se apaixonou por ele. Contava eu, na brincadeira, que a foto da garota era duma actriz de Hollywood. Casaram-se e têm uma vida excelente. 


Quanto ao Zé Leal, já me referi várias vezes a ele. Foi o meu Maior confidente.

Estes amigos encaixam nos milhares de histórias que qualquer ex-combatente escreva. Em todas as unidades espalhadas pelas províncias ultramarinas durante a guerra colonial, eles fizeram parte do nosso grupo mais reduzido. Normalmente, eram 5 ou 6 mas a 3ª Companhia do batalhão 6520 não tinha grupos com 5 ou 6. Em todos grupos, sem excepção, havia um que fez parte de todos os outros, era o elemento especial.

Vou tentar escrever para vós o melhor que puder, sabendo de antemão que não terei capacidade para vos transmitir tudo que esse homem fez e vou chamar-lhe:


ANÍBAL, O MULTIPLICADOR DOS PÃES

Podia não haver absolutamente nada, e muito menos farinha. Casqueiro havia sempre.

Sempre me referi à fome na Guiné como perda de peso. Creio que tanto a minha namorada como a minha avó nunca souberam verdadeiramente porque é que os gatos e os cães também desapareceram de Fulacunda. Se não me engano, só a gata “Penicilina” escapou.

Não faço a mínima ideia se a carne da minha festa de aniversário, em Maio de 74, foi Pacaça, Gazela ou seja lá o que for. Naquela altura, estávamo-nos nas tintas para o que comíamos. O casqueiro do Aníbal dava para acompanhar com tudo.

Algumas frases das muitas em que me referi ao Aníbal:

(...) “O barco que nos vinha reabastecer foi atacado e voltou para trás, já não éramos abastecidos há dias, se calhar vai ficar mau, os meus colegas agora gozam. Ao meio dia comemos atum com vianda e à noite vianda com atum, aqui há tempos era. Esparguete com salsichas, salsichas com esparguete. Não faz mal, temos casqueiro que o Aníbal cose todos os dias”. (...)

(...) “Sabes querida por causa de avariar o gerador fui com dois colegas fora do arame farpado buscar água. Nem sabia que havia aqui uma fonte. É onde as mulheres lavam a nossa roupa. A água é para o Aníbal cozer o pão.” (...)

(...) “Ajudei o Aníbal a fazer uma peneira na oficina para peneirar a farinha. Havias de ver, tem milhares de bichinhos pretos, temos de comer o casqueiro às migalhinhas”. (...)


(...) “Não percebo Amélia. Não há na companhia uma única grama de farinha e o Aníbal veio agora ver-me à cama e trouxe-me um bocadinho de casqueiro, disse-me para tirar os bichinhos com cuidado que a peneira é grossa e ainda passaram alguns mas ficaram assados no forno”. (...)


Em Junho deste ano de 2017, encontrei-me com o Aníbal que já não via há um tempinho. Não conseguimos conter as lágrimas. Nesse encontro, pude recordar com ele alguns episódios divertidos. É isso que normalmente gosto de fazer nos nossos encontros anuais.

Perguntei-lhe se recordava como tinha sido possível fazer tanto com tão pouco. Respondeu-me que não, que não sabia e fez tudo igual a outro qualquer.

- Não foi não, Aníbal! Não fizeste igual a outro, meu amigo. Fizeste o que mais nenhum faria!


3. Nota dobre o autor e sinopse dos postes anteriores:

3.1. Nota biográfica:

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

3.2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia  (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;

(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultandodanos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.

(xxii) faltam 5 meses para acabar a comissão... e há mais uma "crise" nas relações com a namorada;

(xxiii) em fevereiro de 1974, comunca à namorada que tem, já algum tempo, um pequeno negócio: venda de  uísque, tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson, etc.

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Nota do editor:

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19171: A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)



Luís Graça, Contuboel,  CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, julho de 1969

A Galeria dos Meus Heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)




− Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

Em muito pouco tempo, em escassas semanas, era a segunda vez que se encontravam, depois de longos anos sem se verem, o Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo.

− Cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos amigos de coração!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez em dois meses, o que queria dizer “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescebta aí!

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha um medo que se pelava de passar por aquelas bandas, sozinho, à noite, fora das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que era o grande celeiros da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas,as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) uma magnífica igreja, gótica, monumento nacional, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!... Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. E, tens razão, era a casa de Deus!

− Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes...

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há-de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para o Canadá.


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou a até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mal educado, traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em segundo grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, a América, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas simples castigo no purgatório.

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um cancro, fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de imediato de uma orveta da Marinha.

− A imagem que eu tenho dele era o moço de forcados, rijo pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo.

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola e a política) são algumas delas...

− Sim, Coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol…, o que no cômputo final representa 90% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno...

− ... e que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali no muro do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos"... O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e xicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um pouco, antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Foi também para Lisboa, estudar, mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho, o "Morgadinho", é que começou cedo a tomar conta da herdade. Dizia que não tinha cabeça para estudar...

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony.

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições republicanas, está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, uma das maiores e melhores do nosso concelho.

− Olha, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas...

− Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço.

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

O Zé tinha casado tarde, ficou solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, republicano, amigo e admirador do José Relvas, da Golegã.

− E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar em Coimbra. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar.

− A desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. 
– Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do clínico no consultório...

E prosseguiu:

− O raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher… Também não sabia que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária Conde de Ferreira e do colégio João XXIII, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como até para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar.

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram possibilidade de prosseguir os seus estudos…


O António, Tony para os amigos da terra, estudara até ao 5º ano do liceu no colégio João XXIII, com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia. 

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial. 

Numa noite, foi apanhado pela PSP a colar "papéis subversivos" nos candeeiros, junto às esplanadas dos cafés da Avenida de Roma... Terá havido uma denúncia de algum empregado mais zeloso da propriedade alheia ou, o que era mais provável,  de algum bufo da PIDE… As mensagens eram "pacifistas", o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(siv), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação. Saiu do seminário, aos 20 anos. E aos 21 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.


 [Continua]

Guiné 61/74 - P19170: Parabéns a você (1520): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1979/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19162: Parabéns a você (1519): Tenente-General PilAv António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA12 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19169: Notas de leitura (1117): “Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
O trabalho da jornalista Joana Gorjão Henriques apareceu inicialmente no Público, foi um projeto de cinco reportagens nas cinco ex-colónias africanas. Quarenta anos passados sobre a independência das ex-colónias, importava questionar até que ponto o racismo afeta ainda hoje as relações sociais, políticas e económicas nesses países. Reconheço o mérito do trabalho, mas confesso que o mesmo merecia tratamento caleidoscópico, por isso introduzi uma questão de peso para Angola e Moçambique, os brancos de primeira e de segunda. Acresce que também era útil questionar como é que a descolonização, ao olhos dos portugueses afeta as nossas relações com esses países, também tem que se medir o pulso aos antigos colonizadores e sua descendência para saber como se pôde descomplexar e erradicar as relações sociais em que o branco aparecia sempre em superioridade.

Um abraço do
Mário


Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo: 
O testemunho da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques, Tinta-da-China, 2016, é uma reportagem em que 40 anos depois da descolonização a jornalista foi perguntar até que ponto persistem ainda hoje as ideias de raças espalhadas por Portugal nesses países, como é que as populações dos países colonizados olham para o papel de Portugal enquanto colonizador, trabalho feito em cinco viagens às cinco ex-colónias portuguesas. A autora conta-nos como trabalhou: “Em cada país escolhi uma amostra de entrevistados, proporcional ao número de habitantes. O objetivo era reunir vozes que representassem as diferenças existentes: de classe social, de género, de situação profissional, de origem geográfica, de experiência pessoal, de interpretação. Interessou-me ouvir o passado e saber que marcas persistem desse passado ainda hoje”.

Como seria de esperar, há narrativas similares e naturais dissemelhanças decorrentes do processo descolonizador. Veja-se Angola: houve segregação racial em autocarros para brancos e para negros; havia brancos, assimilados e indígenas. A autora não entra em pormenores, mas havia duas categorias de brancos, os de primeira e de segunda, como Jerónimo Pamplona em “Angola Noutros Tempos, Por Terras do Golungo e de Ambaquistas”, Pangeia Editores, 2016, claramente refere: os naturais da colónia e os oriundos da metrópole, brancos europeus e brancos de segunda, estes nascidos nas colónias. A identidade de cada um fixava-se nos documentos oficiais, para os brancos com indicação do território colonial de origem e a menção de não indígena ou europeu para os nascidos na metrópole. E adianta: “O regime colonial português construiu uma hierarquia racial baseada no cruzamento de dois conceitos distintos – raça e naturalidade. Os brancos naturais de Angola foram oficialmente classificados de euroafricanos a fim de os distinguir dos metropolitanos, eram os brancos de segunda”. Os assimilados e indígenas assumiam a inferioridade que lhes era ditada pelo colonialismo. A partida do colonialismo não significou o fim da discriminação, continuam a existir os musseques e desenvolveram-se os arranha-céus para a classe dirigente.

Vejamos os testemunhos que Joana Gorjão Henriques recolheu da Guiné-Bissau. A primeira marca era ditada pela cidade onde podiam viver os civilizados e os assimilados e a periferia onde se espalhavam os bairros indígenas. Pelas seis da tarde, uma sirene recordava a todos que a cidade de Bissau passava a pertencer exclusivamente a brancos, mestiços, comerciantes, enfim, gente que comesse à mesa, que usasse garfo e faca, tivesse um salário ou modo de vida e um estilo de vida português. Quando uma pessoa requeria o estatuto de assimilado tinha de provar que se vestia como um europeu e que já não praticava as cerimónias tradicionais. Leopoldo Amado, diretor do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, lembra a época em que um sinal dava ordem de entrada e saída da população negra na cidade, no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores. Os assimilados mudavam de nome, quem fosse Fodé ou Braima passaria a ser Fernando ou João.

A potência colonial nunca hostilizou a região muçulmana, pelo contrário, construiu mesquitas e apoiou financeiramente as peregrinações a Meca. Há muitas explicações para este comportamento de uma visível tolerância religiosa: o cristianismo claudicou logo nos primeiros séculos, o missionário sentia a adversidade do clima e a absoluta falta de meios; a colonização portuguesa só se torna efetiva depois das campanhas de Teixeira Pinto e da montagem de uma estratégia de convivência interétnica assente no acicate de clivagens entre elas, dando a certas etnias prerrogativas especiais, caso dos Fulas e dos Mandingas, sociedades verticais, pouco interessadas em aberturas políticas. A administração colonial recorria ao trabalho forçado para a construção de estradas, subtraía o sentimento de resistência junto das populações locais evidenciando os benefícios do avanço nos meios de comunicação.

Durante muito tempo pretendeu-se iludir a natureza e a proveniência dos colonizadores, com a luta armada fingiu-se que não havia uma profunda hostilidade do guineense face ao cabo-verdiano. Saico Baldé, atualmente a fazer um doutoramento sobre os migrantes guineenses em Portugal lança alguma luz sobre a questão: “Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, muitas vezes eram os cabo-verdianos. Aliás, 70% dos funcionários coloniais em 1971 eram cabo-verdianos: não lidámos com o colono diretamente, mas com o subcontratado. Isto deixou outra marca, a rivalidade entre a ala originária de Cabo Verde e a da Guiné. Os restantes 30% estavam cá em cima: quem lidava com o nativo não era o colono da metrópole era o cabo-verdiano vindo de S. Vicente ou da Praia”.

Chicoteava-se quem não pagava o imposto de palhota, o que nos remete para um outro colaborador do colono: o sipaio, que pressionava as populações para acatar as ordens ou para pagar o imposto, para trabalhar nas estradas e nas construções. E não podemos esquecer os grumetes, cristianizados, vistos como próximos dos brancos, também eles paus para toda a colher ajudando os colonos, combatendo ao lado dos portugueses em todo o período da ocupação.

A jornalista comete por vezes imprecisões graúdas, caso de atribuir os disparos do Pidjiquiti, em 3 de Agosto de 1959 à PIDE, foi a PSP quem avançou e disparou, a PIDE vem mais tarde.

O sistema educativo era irracional, os alunos eram obrigados a aprender de cor os rios e serras de Portugal (como nós aprendíamos de cor todos os principais rios e linhas de caminho-de-ferro do Império), a realidade local era praticamente obliterada. Nota comum aos inquiridos é ninguém acreditar que o colonialismo português tenha sido brando, é evidente que o governador Sarmento Rodrigues trouxe alterações de tomo, a seguir à II Guerra Mundial e que nomeadamente o período de Spínola foi marcante no desenvolvimento, mas era demasiado tarde. Há quem interprete a postura de Cabral em relação ao colonialismo defendendo que o inimigo do povo da Guiné-Bissau não eram os portugueses mas o sistema como o acontecimento decisivo para a harmonia no relacionamento entre portugueses e guineenses.

Na sua reportagem à Guiné-Bissau, Joana Gorjão Henriques refere a rota da escravatura que teve o seu ponto central no porto de Cacheu. Aqui a repórter comete outra imprecisão grave, diz que Cacheu chegou a ser a capital da Guiné-Bissau, a Guiné só teve duas capitais: Bolama e Bissau, Cacheu não foi que sede de capitania. Teve um papel importantíssimo no resgate de escravos. Era um comércio em que havia intermediários entre os armadores e os régulos africanos. E refere-se à Companhia de Cacheu e Rios de Guiné (1676), à Companhia de Cabo Verde e de Cacheu (1690) e à Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755). Na Igreja de Nossa Senhora da Natividade, criada no século XVI, chegou-se a converter 600 a 800 africanos num dia, afirma Leopoldo Amado. Com a abolição da escravatura, Cacheu definhou e a potência colonial teve que reorganizar a economia da Guiné, centrou-se na agricultura, findo o século do comércio de escravos. Leopoldo Amado lembra que a Guiné-Bissau foi uma colónia de exploração, não de fixação e acrescenta textualmente que era um território que alimentava o comércio de escravos de Cabo Verde, o arquipélago prosperou, a Guiné não. Os portugueses nunca tiveram uma política de conquista e de fixação e não se podiam medir com a resistência dos povos africanos. Era uma presença espúria, os portugueses nunca tiveram o domínio exclusivo do comércio de escravos dos rios da Guiné, nunca houve meios para dissuadir as investidas dos espanhóis, franceses e holandeses. Depois construiu-se a fortaleza de Cacheu, a seguir à Restauração, contribuiu para que o resgate de escravos pudesse florescer. Leopoldo Amado refere o número de 3 mil escravos por ano e conclui: “Se considerarmos que esse resgate durou cerca de 3 séculos, estaremos em condições de dizer que esse forte permitiu que pudesse sair cerca de um milhão de escravos de Cacheu e de povoações vizinhas. Por isso, a importância de Cacheu sobreviveu até aos nossos dias através da história lendária das suas grandes famílias que prosperaram e se multiplicaram”.

Importa não descurar que um dos objetivos do trabalho de reportagem de Joana Gorjão Henriques era o de questionar se os portugueses terão sido mais brandos e menos racistas do que as outras potências coloniais, igualmente questiona o silêncio que mantemos quanto ao trabalho escravo que existiu em parcelas do Império até 1974 e tece por último uma interrogativa que não é menos inquietante: “O que revela esta perspetiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses?”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19161: Notas de leitura (1116): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58) (Mário Beja Santos)