segunda-feira, 14 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22279: Notas de leitura (1361): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima; Março de 2020, Edição de Autor (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Este livro chegou-me através de um jornal de Tomar onde colaboro, é uma narrativa marcada pela ternura, pelos bons afetos gerados por aqueles jovens que no auge da II Guerra Mundial arribaram numa cultura que os deve ter surpreendido pelas afinidades existentes com a nossa como pelo abismo das diferenças. Face ao contexto em que operaram estas Forças Expedicionárias, o autor é meticuloso a despeito de dizer sempre que não está a fazer historiografia, socorre-se de um acervo fotográfico impressionante, e aí entra o nosso blogue, o Luís Graça mimoseou-o com o acervo que dedicou à memória do seu pai, um dos atores presentes num dos períodos de calamidade mais devastadores que o arquipélago conheceu. E conta-se como as unidades militares e o corpo de profissionais de saúde tanto ajudou aquelas populações em calvário. Uma terna narrativa de cuja leitura só temos a ganhar.

Um abraço do
Mário



Forças expedicionárias em Cabo Verde (1941-1944):
Guerra não houve, a solidariedade foi grande com as horríveis secas, devastadoras


Mário Beja Santos


Adriano Miranda Lima, Coronel Reformado do Exército Português, nascido em S. Vicente de Cabo Verde, publicou em edição de autor, março de 2020, uma obra dedicada às Forças Expedicionárias que de 1941 a 1944 cumpriram missão em Cabo Verde, sob o espetro de uma invasão num ponto geoestratégico de grande importância para o Eixo e para os Aliados. (*)

O seu trabalho é dedicado à memória dos 24.473 cabo-verdianos que morreram por fome no arquipélago nos anos 1941, 1942 e 1943; e também à memória dos 68 militares das Forças Expedicionárias que morreram por doença e acidente, no período da II Guerra Mundial. Cabo Verde e Tomar estão no coração do autor. 

Até alguns anos atrás, principalmente soldados, cabos e furriéis tomarenses promoviam convívios para recordar aqueles tempos da sua mocidade. O Regimento de Infantaria 15 foi uma das unidades-mãe de forças militares integrantes daquela missão. 

Sendo cabo-verdiano de origem, Adriano Miranda Lima foi designado como elemento de ligação com as comissões de convívio dos antigos militares expedicionários. Não esconde a carga afetiva e emocional que envolveu o seu trabalho, dedicará parágrafos muito belos à solidariedade com os cabo-verdianos flagelados por temíveis secas. Meticuloso, exprime gratidão com quem lhe estendeu a mão para fornecer elementos. Concretamente, manifesta-se devedor ao Luís Graça e ao blogue (escreve: “Considero-o o mais completo e mais conseguido reportório nacional das memórias e experiências pessoais sobre a guerra colonial”), sobretudo graças às memórias sobre Luís Henriques, antigo expedicionário a Cabo Verde integrado no 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 5.

Começa por nos dar o quadro da decisão de Salazar e o seu governo, naquele contexto de neutralidade colaborante em mostrar às potências em conflito, tendo também presente que a Batalha do Atlântico tinha como cenário as ilhas atlânticas portuguesas, de enviar efetivos para os Açores, a Madeira e Cabo Verde. As forças mobilizadas para a Madeira foram pouco expressivas, 30 mil homens para a defesa dos Açores e mais de 5 mil homens para Cabo Verde. Estava dado o sinal de qualquer antecipação a apetências germânicas ou aos avisos norte-americanos de que aquelas ilhas de Cabo Verde podiam ter um papel crucial no desfecho da guerra.

Comprou-se material no Reino Unido (peças de artilharia, jogos para plataformas e munições respeitantes à artilharia de costa). Em 1941, foi criada na cidade de Mindelo uma Bataria de Artilharia de Costa e em fins de agosto do mesmo ano foi transferida para a mesma cidade a Sede da Repartição Militar. Mobilizaram-se várias unidades, e é assim que aparece o 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 15, foi nomeado comandante do Comando Militar de Cabo Verde o Brigadeiro Nogueira Soares, que estará no arquipélago em funções deste agosto de 1941 até dezembro de 1944. 

O autor dá-nos a relação das diferentes unidades (batalhões expedicionários, batarias de artilharia e um bom conjunto de unidades de apoio) que irão estacionar no Mindelo, em Santo Antão e na Ilha do Sal. O Batalhão Expedicionário de Infantaria 15 parte fracionado em três contingentes entre outubro de 1941 e janeiro de 1942, ficarão em Santo Antão e no Mindelo. É bem curiosa a imagem do transporte dos contingentes entre o navio Colonial e o cais de desembarque, não havia cais acostável, houve que se recorrer às enormes lanchas que eram normalmente usadas nas descargas de carvão das companhias carvoeiras.

O comandante que partiu de Tomar era o Major Nicolau de Luizi, que falecerá no ano seguinte, por doença. O material usado era predominantemente constituído por: metralhadoras de origem alemã, dinamarquesa e italiana, espingardas Mauser (de origem alemã), peças antiaéreas suecas, morteiros franceses. As Forças Expedicionárias arribam no arquipélago quando este está a ser assolado por uma prolongada estiagem, uma seca mortífera que matou aqueles milhares de pessoas, ficando por classificar os que se salvaram pelo humanitarismo de militares e unidades de saúde vindas de Portugal. Houve que instalar oficiais e sargentos em casas particulares e pensões e criar abarracamentos para as praças. No meio daquele deserto árido apareceram as habitações com arruamentos onde não faltou a graça de pôr nomes tomarenses, como Rua Direita ou Rua da Calça Perra ou Rua dos Estaus e mesmo no centro do aquartelamento a Praça da República. Importa nunca esquecer que o Coronel Adriano Miranda Lima é cabo-verdiano de nascimento, mas sente-se agora medularmente tomarense.

Adriano Miranda Lima insere um conjunto apreciável de imagens com cenas do quotidiano, mostrando instalações de artilharia, as diferentes atividades militares, o tipo de relacionamento entre militares e civis, mostra episódios de aparecimento de submarinos e até mesmo temos direito a conhecer uma cena de espionagem feita a favor dos Serviços Secretos Britânicos, os radiotelegrafistas tinham intercetado interferências, veio-se a descobrir uma antena estendida no telhado de uma casa, foram detidos um comerciante e a sua mulher, encontrou-se um moderno recetor/transmissor instalado numa mala.

Como é evidente, o armamento disponível pelas Forças Expedicionárias não daria para resistir a um ataque vindo de cruzadores de batalha ou couraçados, completamente desigual o armamento utilizado pelas forças navais alemães, pelo menos até 1942. Descreve-se o plano de defesa para as diferentes unidades estabelecido pelo subsecretário de Estado Santos Costa e posto em prática pelo comando das Forças Expedicionárias. Dá-se realce ao papel desempenhado pelas transmissões e fica-se a saber que no final da guerra alguns dos radiotelegrafistas formados no Exército ficaram na corporação, mas a grande maioria foi para a Marinha Mercante Portuguesa ou para países como os EUA, o Canadá, o Reino Unido e a França.

Relevam-se efemérides, cerimónias e atividades festivas, não faltaram torneios de futebol e lembra-se que foi a comunidade inglesa de S. Vicente (pertencente às companhias carvoeiras e à exploração de Western Telegraph Company) que introduziu o futebol em S. Vicente e daqui para as outras ilhas. Lembra-se o desempenho dos profissionais de saúde, e numera-se os que faleceram por doença, caso do já referido Major Nicolau de Luizi. O autor visitou o cemitério do Mindelo onde estão campas dos seus familiares e depois dirigiu-se ao talhão militar português, junta-se imagem da homenagem feita pelos Presidentes da República e Primeiros-Ministros de Portugal em 10 de junho de 2019.

Inevitavelmente, fala-se dos anos terríveis da seca e faz-se uma citação de um vendaval na Ilha do Fogo extraída do romance de Teixeira de Sousa Ilhéu de Contenda: “Quando clareou o dia, a lestada já havia amainado. Eusébio saiu a averiguar os estragos. A verdura que na véspera cobria as achadas, os cutelos, as ribeiras, transformou-se da noite para o amanhecer num emaranhado de hastes e folhas ardidas. O milheiral que tanto prometia, as faquetas arremangadas prometendo fartura, encontravam-se agora alastrados no chão, de mistura com as cordas de abobreira e caules de feijoeiro. As árvores pareciam aves depenadas, os galhos contorcendo-se de desespero. O vento leste queimara tudo. Nada, positivamente nada, restava com o viço da véspera”.

E dá-se conta do modo como se procurava ajudar os esfaimados e os doentes e se fala do comportamento exemplar do médico Baptista de Sousa, um caso excecional de solidariedade que lhe valeu um cortejo de despedida como talvez não tivesse havido igual em Cabo Verde. Com ternura se lembra os convívios dos tomarenses a que não faltou um octogenário muito dinâmico, Francisco Lopes, o Chico da Concertina. E o autor despede-se de todos estes militares cuja memória da estadia em Cabo Verde perdurou até ao fim. Uma bela narrativa de que os tomarenses se devem orgulhar, também.

O leitor interessado encontrará um apreciável número de imagens do nosso blogue, amavelmente cedidas pelo filho do primeiro cabo Luís Henriques que tão carinhosamente aqui homenageou o seu pai.

10 de junho de 2019, Homenagem aos Militares das Forças Expedicionárias Portuguesas em Cabo Verde na Segunda Guerra Mundial, Presidentes da República de Portugal e Cabo Verde e respetivos primeiros-ministros

Peças antiaéreas em Alto Bomba, São Vicente (fotografia de 1943, publicada no blogue "Luis Graça e Camaradas da Guiné")
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Notas do editor

(*) - Vd poste de 8 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21336: Agenda cultural (756): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima: o livro pode ser adquirido a 12 € por exemplar, incluindo portes de correio

O livro pode ser adquirido através do email do Coronel Adriano Lima: limadri64@gmail.com

Último poste da série de 7 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22262: Notas de leitura (1360): "Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James; Edições Saída de Emergência, 2018 (4) (Mário Beja Santos)

domingo, 13 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22278: Blogpoesia (741): "As alegrias da vida"; A fantasia"; "Tradições" e "Sementeira, da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


As alegrias da vida

Nenhuma maior que a alegria de viver.
Mesmo que, de vez em quando, haja um sofrimento.
Acordar de manhã e ver o sol raiar,
espalhando a vida sobre a terra.
Adormecer à noite com a consciência tranquila do dever cumprido.
Não dever nada a ninguém.
Às vezes também é preciso.
É bom sinal.
Emprestar ou pedir emprestado estreita os laços da solidariedade.
E isso é bom para a convivência.
É destas alegrias que nasce a nossa felicidade...


Berlim, 13 de Junho de 2021
18h6m
Jlmg


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A fantasia

A configuração duma realidade que não existe.
Fruto duma inspiração momentânea.
Baila dentro da nossa mente como uma nuvem nos céus ao vento.
Suas formas são variáveis.
São capricho de cada momento.
Por vezes são granizo.
Outras neve cristalizada,
Cobrindo em manta a terra negra.
Quem me dera voltar à minha infância
para construir duendes caiados de fantasia...


Berlim, 10 de Junho de 2021
11h39m
Jlmg


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Tradições

São a história duma aldeia.
Seu passado de glórias ou de infortúnios.
As lembram todas com saudade ou com tristeza.
Os bons anos de colhritas.
Se encheram os lagares e os celeiros.
Boas espigas e de bom vinho.
Aquele verão cego de granizo
Que dizimou numa tarde todo o vinho bem promissor.
Aquela festa do São Pedro que, num repente, esventrou as tendas cheias de vinho à caneca e de bons petiscos.
Regos de água escorriam furibundo pelas valetas,
Pela Santa abaixo.
Já se clamava clemência aos céus pelo fim da tempestade...


Berlim, 8 de Junho de 2021
17h10m
Jlmg


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Sementeira

Só com uma sementeira à hora apropriada
é que a terra negra reverdece e frutifica.
É preciso lavrar a terra
para depois colher do que semeou.
Se assim não for virá a secura dos celeiros e lagares
E se morrerá de fome e de sede.
A vida tem de se viver atentamente.
Quem o não faz perderá todos recursos
e cairá no parasitismo impróprio e desumano.
Depressa o caminho se abrirá ao roubo
e a todas as suas necessárias consequências...


Ouvindo Schubert

Berlim, 12 de Junho de 2021m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22272: Blogpoesia (740): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)

Guiné 61/74 - P22277: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte III: alf cav Álvaro Damião Dias (Lisboa, 1887 - Angola, 1915)

Álvaro Damião Dias (1887-1915)


Nome:  Álvaro Damião Dias

Posto: Alferes de Cavalaria

Naturalidade: Lisboa

Data de nascimento: 5 de Dezembro de 1887

Incorporação:  1908 na Escola do Exército (nº 279 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Cavalaria n.º 11

Condecorações:  Medalha da Cruz de Guerra de 3ª classe (a título póstumo)

Promoção por distinção a Tenente de Cavalaria (a título póstumo)

TO da morte em combate:  Angola

Data de Embarque: 15 de Janeiro de 1915

Data da morte:  18 de Agosto de 1915

Sepultura

Circunstâncias da morte: Em 18 de Agosto de 1915 na região de Môngua atacou com o seu pelotão o gentio que cercava o Destacamento do Cuanhama onde o seu Esquadrão de Cavalaria estava integrado. Nesta acção levada a cabo com valentia e espírito de sacrifício, foi mortalmente atingido com cinco dos seus homens. O seu corpo só foi encontrado no dia seguinte, no local da carga, completamente trucidado.




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

sábado, 12 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22276: Os nossos seres, saberes e lazeres (455): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (2) Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Foi um dia em cheio, passeou-se a preceito, a vacina não fez mossa, nem um simples ardor no braço, por ali se andou vivaço, subindo e descendo, sabendo de ciência certa que muito mais fica para ver quando se vier à segunda dose. Não se esconde o quanto se gosta desta região do chamado Pinhal Interior, presta-se homenagem aos edis que procuram a todo o transe embelezar este rincão de grande património vegetal, cuja importância para a História de Portugal se foi diluindo, aqui batalharam ordens militares em tempos da formação do país, há muito mais do que património natural, basta consultar o roteiro turístico da Sertã para perceber que não é digno de uma visita de médico. Há muito para ver, tudo farei para vos mostrar o ateliê de Túlio Victorino e o Seminário das Missões em Cernache do Bonjardim. Há capelas merecedoras de visita, há belas pontes, pelourinhos, Pedrógão Pequeno é uma aldeia de xisto e não se faz favor nenhum em pôr a Igreja Matriz da Sertã entre as mais belas igrejas de Portugal. Para quem gosta de arquitetura, convém recordar o génio de Cassiano Branco, o edifício da Câmara lembra por fora uma construção convencional, com reminiscências francesas e italianas, por dentro fica-se de boca aberta com a ousadia do traço e uma modernidade que ainda hoje perdura.

Um abraço do
Mário


Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2)

Mário Beja Santos

Só para recordar que durante cerca de 20 anos mantive os pés em dois concelhos, Pedrógão Grande e Sertã. Foi experiência edificante, fazia o Vale do Cabril em ambas as margens do Zêzere, umas vezes começava na Cotovia, a admirar as vertentes pedregosas, descia pela Ponte Filipina e mudava de concelho, ou vice-versa. Gostei também sempre de ir à Barragem da Bouçã e escolher entre Figueiró-dos-Vinhos e a Sertã. Aqui experimentei todas as estações do ano, quer no silêncio da floresta, os vales adormecidos na invernia, o gemido das árvores repuxadas pela ventania, passei à procura das primeiras flores da Primavera, banhei-me nas praias fluviais, andarilhei à volta da Albufeira do Cabril, isto quando pousei noutro tipo de permanência no antigo bairro da EDP, o fim do dia é de uma esplendente luminescência e o casario de Pedrógão Pequeno ganha forma de presépio. E o médico de família que apostou na minha saúde até aos 150 anos deu conforto àquele telefonema que me convocava no dia tal e a horas tantas para receber a primeira vacina contra o Covid, nas instalações dos Bombeiros da Sertã. Tinha então despachado qualquer forma de habitação nos dois concelhos, quedando-me num lugarejo em Tomar. Foi com a maior alegria que daqui rumei bem cedo em direção à Sertã, uma viagem em que se enche os olhos com oliveiras e pinheiros, eucaliptos e sobreiros, castanheiros e azinheiras. Jurei que em definitivo iria conhecer as entranhas do edifício camarário sertaginense, projeto de Cassiano Branco, foi acontecimento de truz, que culminou com a visita àquelas salas onde a edilidade toda decisões, impossível não começar a narrativa do dia de hoje sem vos mostrar o pendão da Sertã, seguramente bordado a seda, veja-se tal beleza e harmonia de elementos. Volta-se à Carvalha, por ali se deslocam transeuntes em remanso, como a Natureza se pode disciplinar, transformando-se numa área de lazer que obtém o aplauso de todos. Fica-se ali a contemplar as águas, passeia-se de uma margem para a outra, há murmúrios de cascatas, olha-se para o alto para o Convento de Santo António, que já se conheceu em mau estado e que foi objeto de uma intervenção de truz, dá gosto por ali passear, não fica atrás das boas pousadas de Portugal.

E desce-se para cumprimentar o antigo professor, o Padre Manuel Antunes, um pensador de alto nível, como é que aquele franzino de gente, quase um besnico, de voz macia, um tanto ciciante, as mãos sempre elevadas, dominava perfeitamente o anfiteatro com os seus alunos de cultura clássica ou civilização romana? Era uma sageza de quem sabia encadear os dados da civilização da cultura, naqueles tempos o máximo de ilustração seriam os slides, mas nem a esse recurso o douto jesuíta se apoiava, era tudo aula magistral, as mãos pontificavam, pareciam desprendidas do corpo hirto, homem de grande singeleza e de comprovada cultura universal. Deixou saudades nos seus alunos, e neles me incluo, ninguém tem nada a perder em ler os seus trabalhos, felizmente editados pela Fundação Calouste Gulbenkian.

E Manuel Antunes é o nome da Biblioteca Municipal que foi criada ainda no século XX na dependência da Fundação Calouste Gulbenkian, instalada então no rés-do-chão dos Paços do Concelho. Com a reabilitação da antiga Casa dos Magistrados, a biblioteca ganhou autonomia em outubro de 2007 e o nome do patrono chegou cinco anos depois. Visito-a com deleite e cumplicidade, ali apresentei um livro, peço livros emprestados e já fui honrado com o convite para participar num dos maiores festivais literários de Portugal, a Maratona de Leitura. Não é uma biblioteca só destinada a requisitar livros ou ler jornais e revistas, quem a dirige tem espantosos programas de animação sociocultural e daí a reputação que a biblioteca ganhou e que extravasa o espaço do pinhal interior. Toca, pois, de a mostrar no seu interior e pôr em imagem um espaço ambientalmente amável e que se aproveitaram embalagens de plástico para ver crescer famílias de catos, que belo achado de reciclagem, vale a pena aqui fazer leitura com tal moldura vegetal.

Chegou a hora do piquenique, refere-se a moldura admirável da ribeira da Sertã, por ali a vista se espraia e mordisca-se o pão e come-se a fruta a contemplar aqueles terraços a que a memória se associa aos passeios que se fazem percorrendo a região de Proença até Vila Velha de Ródão, e nunca me canso de pasmar com o labor na construção daqueles terraços a que se arrancaram os pedregulhos não sei para cultivar quais alimentos, pressinto que era centeio, cá em baixo nos valados era lugar de milho e produtos de terra, crucias para a autossubsistência. Batemos com a mão no peito a falar no património material e imaterial, queremos mais e mais reconhecimento, nunca vi a defesa destes terraços marcadores de civilização, não tivessem sido estes agricultores a contrariar terra tão agreste, aqui se fixando com denodo e criando vínculos imemoriais, e teríamos um deserto humano, mesmo que tivesse sido vasto o coberto florestal. São obras do passado que caíram no esquecimento, ponto final, e a vista se regala a ver estes terraços que aformoseiam a encosta que beija a ribeira da Sertã.

Daqui se parte para uma outra romagem de saudade, a caminho do Zêzere, há uma paragem em Pedrógão Pequeno, inevitável uma curta visita ao Moinho das Freiras, atravessa-se a Albufeira do Cabril e entra-se em Pedrógão Grande. Nunca entendi muito bem como a edilidade não é capaz de exibir o seu baú patrimonial: há ruínas romanas, belas capelas no espaço da Devesa, há até para ali perdido no mato um forno romano, o centro histórico guarda vestígios medievais, a Igreja-Matriz é soberba, o património da Misericórdia soberbo é, creio que a generalidade de quem por ali passa desconhece o Museu Pedro Cruz, não foi artista transcendente mas deixou obra com significado, e o concelho guarda em Vila Isaura museus privados com património valiosíssimo, falta um roteiro para convidar o visitante a mergulhar em tanta oferta. Há pouco tempo, o meu amigo Aires Henriques, que detém em Vila Isaura (nos Troviscais) esse espólio soberbo que tem a ver com o povo ratinho, a presença dos primeiros republicanos, artefactos maçónicos, e muito mais, escreveu uma brochura sobre o seu espólio judaico, bem rico, que gostaria de ver exposto no Centro Histórico de Pedrógão Grande, a par de outros objetos culturais do seu património. Não sei o que irá acontecer, e lamento por tanta displicência na política cultural deste concelho.

E percorrendo as ruas deste Centro Histórico vou até à biblioteca cumprimentar gente muito amiga e visitar o espaço construído à memória de uma adorada filha que faleceu em 2009. E termina esta primeira visita, seguir-se-á a segunda vacina, e já se tomou nota do muito que há a ver na próxima viagem. Agora que o maranho da Sertã é marca protegida a nível nacional, tem selo de Indicação Geográfica, espera-se que com o desconfinamento no dia da segunda vacina se possa almoçar um tão suculento manjar, no intervalo das visitas que por ora se organizam no papel. Mas até lá o viandante não para, vai de seguida falar-vos de uma espantosa exposição que está no Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira intitulada Representações do Povo, exposição talentosa coordenada pela sua diretora científica, Raquel Henriques da Silva.

(continua)

Na sala da Assembleia Municipal, acima de mobiliário de outros tempos, com o estadão do coro cravejado, o brasão da Sertã
A Alameda da Carvalha beneficiou desta ponte que aproxima espaços complementares, dá gosto por aqui passear num folgado espaço de entretenimento que permite espetáculos ao ar livre e com a imensidão florestal em círculo envolvente
A ribeira da Sertã sombreada, é fotografia, não é quadro a óleo, fiquem sabendo
Junto da Ponte Filipina o murmúrio das cascatas em perene mergulho das águas
Uma intervenção de bom gosto, um convento transformado em hotel, grande beleza
Um pormenor da Biblioteca Municipal Manuel Antunes
Espaço para ler jornais e revistas
Um achado da reciclagem, garrafas de plástico a fazer de vasos adornando magnificamente um espaço de lazer e leitura
Cultivo em socalcos à beira da ribeira da Sertã
A mansidão das águas num espaço idílico
Uma inevitável romagem de saudade à Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22255: Os nossos seres, saberes e lazeres (454): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22275: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte III: A Brigada de Fronteira de Gaoual e o apoio no controlo dos movimentos na Região de Lela em novembro de 1966 (Jorge Araújo)


Foto nº 1 > 1964 > Armando Ramos a bordo de uma canoa no rio Cacine [?], em Fevereiro de 1964, ao lado de Amílcar Cabral, a caminho de Cassacá (I Congresso do PAIGC, em 13-14Fev64). Quatro meses depois, Armando Ramos foi o escolhido para cumprir a «Missão a Gaoual».

Amílcar Cabral veio de base de Boké, na Guiné-Conacri, no barco a motor que se vê ao fundo. Em março de 1973, o PAIGC havia capturado, no porto de Cafine, dois barcos comerciais, o “Mirandela” e o “Arouca”- Depois de rebatizados, passam a servir no transporte de homens e material. O barco que se vê seria um destes dois que foram aprisonados. Passou a ser chamado "Unidade". Sabemos, pela descrição detalhada feita por Luís Cabral que a Amílcar e a sua comitiva vieram de Boké, de noite, desembarcando, com a maré alta, na ilha de Canefaque. Seguiram até Cassabetche, a pé, e aqui foram transportados de canoa, com escolta. A viagem até Cassacá foi feita a pé, utilizando troço da estrada que seguia junto à fronteira...Cassacá ficava a 15 km a sul de Cacine, a 30 km, a oeste da fronteira com a Guiné. 

Fonte > Citação: Luís Cabral (1964), "Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43297, com a devida vénia.



Imagem de satélite com indicação de algumas das tabancas situadas na região oriental do Boé. Refere-se, também, "Tiankoye", situada em território da República da Guiné, local por onde circularam as forças do PIAGC que atacaram Madina do Boé, em 10 de Novembro de 1966, e onde morreu o Cmdt Domingos Ramos (1935-1966).





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Tem cerca de 290 referências no nosso blogue.


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

UM NOVO OLHAR SOBRE O "LOCAL MISTERIOSO" DA PROCLAMAÇÃO SOLENE DO ESTADO DA GUINÉ-BISSAU, EM SETEMBRO DE 1973, EM PLENA ÉPOCA DAS CHUVAS

PARTE III

A BRIGADA DE FRONTEIRA DE GAOUAL E O APOIO NO CONTROLO DOS MOVIMENTOS NA REGIÃO DE LELA EM NOVEMBRO DE 1966

 

 

► Continuação do P22122 (II) (21.04.21) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Continuamos na região do Boé tentando encontrar por entre os seus diversos "caminhos, trilhos e atalhos", aquele que nos conduza ao "local misterioso" onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», reunião onde foi aprovada a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», realizada em "plena época das chuvas."


Deste modo, esta terceira parte segue na linha do fragmento anterior, que acima se identifica, onde foram caracterizadas as primeiras "acções" programadas pela guerrilha para a região do Boé, a que Amílcar Cabral (1924-1973) baptizou de «Missão a Gaoual», levadas a efeito, em ambos os lados da fronteira, pelo seu camarada Armando Ramos [foto 1], durante a segunda metade do mês de Junho 1964, quatro meses depois do «I Congresso de Cassacá».


Entretanto, no contacto tido com o Governador da Região Administrativa de Gaoual, a quem foram explicadas as razões da sua visita, Armando Ramos não deixou de reforçar o pedido de apoio – "no controlo dos movimentos na região de Lela" – formulado anteriormente, no quadro do que ficou estabelecido na reunião que o Secretário-geral havia tido com ele, e com outros responsáveis da República da Guiné, no Ministério da Defesa Nacional e Segurança.


Por outro lado, no âmbito da estratégia militar a desenvolver na região, Armando Ramos foi incumbido de estudar os melhores locais de "passagem" (corredores) na linha Sudeste da fronteira do Boé, incluindo a da "época das chuvas", visando a criação de "bases" no exterior e, no interior, "postos avançados" mais próximos das instalações militares das forças portuguesas, de modo a permitirem realizar flagelações com alguma regularidade.


No entanto, quando às forças instaladas em Madina do Boé e Béli, cada aquartelamento dispunha, desde 06 de Maio de 1963, de um Gr Comb da 3.ª Companhia de Caçadores [do Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (seria?)], constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local, ambos integrados no dispositivo e manobra do BCAÇ 238 [06Jul61-24Jul63; do Maj Inf José Augusto de Sá Cardoso] e, depois, pelo BCAÇ 506 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Luís do Nascimento Matos]. (CECA; 7.º Vol.; pp 623-624).


Em conformidade com o exposto, no ponto seguinte daremos conta dos resultados obtidos pelo Secretário-geral, Amílcar Cabral, na sequência do que ficara acordado com os responsáveis da República da Guiné, na reunião referida no terceiro parágrafo.  


2.   - O APOIO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA DA REPÚBLICA DA GUINÉ NA REGIÃO ADMINISTRATIVA DE GAOUAL (POSTO FRONTEIRIÇO DE LELA) EM NOVEMBRO DE 1966


Dois anos e meio depois da visita de Armando Ramos a Gaoual, Amílcar Cabral recebe, com data de 29 de Novembro de 1966, 3.ª feira (desconhecem-se contactos anteriores), um ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, anexando cópia do «relatório de inteligência n.º 300/SRG relativo aos movimentos dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual», reportado a 19 do mesmo mês, sábado.


O Ofício n.º 167, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, classificado de "Confidencial", enviado a pedido do Senhor Presidente da República [da Guiné, Ahmed Sékou Touré (1922-1984)], ordena a transmissão ao Senhor Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, do conteúdo do citado relatório.   


Pelo seu valor historiográfico, reproduzimos abaixo o documento original, escrito no idioma francês, língua local, seguido da sua tradução, esta da nossa responsabilidade.

 


Fonte > Citação:
(1966), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35058, com a devida vénia.

▼ Cópia do relatório de inteligência n.º 300/SRG relativo aos movimentos dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual.




◙ 19 De Novembro de 1966 (sábado)


Relatório de Inteligência n.º 300/SRG

Movimentos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual


De Gaoual: No seu relatório n.º 140/BFG/GN de 12 de Novembro de 1966 (sábado), o Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual dá-nos as seguintes informações:

● "Os lojistas nacionalistas portugueses de materiais de guerra instalados no posto de Lela, designados por Ibrahima e Boiro Bangaly não protegem adequadamente estes materiais."



● "Uma portuguesa de nome "MAITA" foi capturada durante uma operação dos nacionalistas da chamada Guiné Portuguesa. A captura desta mulher causou graves bombardeamentos na aldeia portuguesa de Vendu-Leidi pelo exército português.

● "Aviões portugueses sobrevoam continuamente o sector de Lela do território guineense [República da Guiné]."

● "Três nacionalistas portugueses do PAIGC, denominados Kante Manga, Sabou Koulybali e Diouma Sera, desertaram para as forças coloniais.

 


● "A deserção dos três nacionalistas causou grande terror na aldeia de Sountour – Lela, visto que estes três nacionalistas conheceram todas as actividades dos nacionalistas neste sector durante a sua estadia."

● "A população deste sector vive actualmente em terror porque, dizem, estes três fugitivos podem um dia servir de guia aos colonizadores portugueses, para nos aniquilar em qualquer altura."

● "Os meios de transporte e comunicação são raros entre este sector e a região de Gaoual."

 



Fonte > Citação: (1966), "Movimento de nacionalistas do PAIGC na zona de fronteira de Lela, região Administrativa de Gaoual", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40690, com a devida vénia.

 

3.   - CONDOLÊNCIAS DO MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS DA REPÚBLICA DA GUINÉ PELA MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ A 10 DE NOVEMBRO DE 1966


No relatório elaborado pelo Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual, que inclui o posto fronteiriço de Lela, é de sublinhar a não inclusão daquela que seria a maior acção militar realizada, até essa data, pelas FARP. Estamo-nos a referir à preparação e execução da «Operação Madina do Boé», efectuada em 10 de Novembro de 1966, 5.ª feira, onde perdeu a vida, em combate, o Comandante Domingos Ramos (1935-1966).


Mesmo não fazendo parte dos pontos referidos no documento da "inteligência" local, o Secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Diallo Alpha Abdoulaye, em nome do Ministro, apresentou as condolências pela sua morte, cujo conteúdo abaixo se reproduz, com tradução da língua francesa da nossa responsabilidade.



◙ Caro camarada,

Foi com grande emoção que soubemos da morte no campo de batalha, no dia 11 [10] do corrente [Novembro], de Domingos Ramos, comandante do PAIGC.

Curvamo-nos piedosamente diante dos restos mortais deste militante morto pela libertação do seu país da submissão colonial.

Em nome do povo, do Bureau Político Nacional do Partido Democrático da Guiné [PDG], expressamos, nesta dolorosa ocasião, a nossa profunda tristeza e pedimos que transmitam à família enlutada, bem como aos dirigentes do PAIGC, as nossas mais sinceras condolências e simpatia.

Queira aceitar, caro camarada, os protestos da nossa mais elevada consideração.

 


Fonte > Citação:
(1966), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35057, com a devida vénia.

 

3.1 - RECUPERAÇÃO DO CONTEXTO DA MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ A 10 DE NOVEMBRO DE 1966


Para a elaboração deste ponto, no que às

 causas de morte do Cmdt Domingos Ramos 

diz respeito, recuperámos alguns dos detalhes divulgados pelo dr. Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), médico militar cubano, especialista em cirurgia cardiovascular, retirados do P16662 (31Out2016), identificado ao lado, a quem coube o difícil acto de confirmar o óbito.


Com efeito, o dr. Virgílio Camacho Duverger chega a Conacri em Junho de 1966, integrado num contingente cubano de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos. É colocado no Hospital de Boké, onde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [Agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé. Naquele tempo, nesse aquartelamento estava instalada a CCAÇ 1416, comandada pelo Cap Mil Inf Jorge Monteiro.

 

Entretanto, ao terceiro mês de estar naquela região [Novembro], ao dr. Virgílio Camacho Duverger é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido aquartelamento, considerado por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria Ferrerá ("Xisto"), médico do seu grupo naquela Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, segundo a sua percepção, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros daquele local.


Na quinta-feira, 10 de Novembro de 1966, a operação concretiza-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista, que entretanto havia chegado para reforçar o grupo de saúde, foi criado um posto sanitário avançado em território da Guiné [GB], perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké, localizado a 96 kms [Google.com; hoje], conforme infografia acima.


Segundo o dr. Virgílio Duverger, a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local onde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente: Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital, Domingos Ramos faleceu.


Outra versão deste episódio é descrita pelo assessor militar cubano Ulises Estrada (1934-2014), pois encontrava-se ao lado do Cmdt da Frente do Boé.


Eu encontrava-me ao lado de Domingos Ramos, refere Ulises Estrada, em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar. Abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os militares portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.


Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos Ramos, sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate, em direcção à linha de fronteira. Aí, Virgílio Duverger, médico cubano, informou-me que ele havia falecido.


Como não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos das forças portuguesas, pegámos no seu corpo e num camião deslocámo-nos pelos campos de arroz até a fronteira com a Guiné-Conacri [na área de Tiankoye, ver imagem de satélite acima]. Chagados a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia esse combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate.


Como  consequência do aprofundamento desta temática, foi possível chegar a novas informações relevantes para a historiografia da "guerra", pelo que este ponto contém novos dados que permitem actualizar as narrativas anteriores [P16613 e P16662].


4.   - VISITA DE AMÍLCAR CABRAL A GAOUAL EM SETEMBRO DE 1965 EM DIA DE TEMPESTADE


A carta de Amílcar Cabral enviada a seu irmão Luís, que decidimos dar conta neste último ponto, tem por objectivo validar o que é normal acontecer no ciclo da "época das chuvas": o dia 13 de Setembro de 1965, 2.ª feira, foi mais um dia de "tempestade" na região do Boé.


Eis o seu conteúdo:
 
"Aí vão algumas sugestões para os teus pupilos e pupilas (dos teus olhos), depois de ter feito uma análise de cada caso, embora breve.


É indispensável que as sarnosas estejam fora da escola. As graúdas para Boké a espera novo estágio. Não descobri ninguém para o (?) feminino. Paciência. Talvez tu.


Afinal vim numa só etapa, por Gaoual. Ganho 1 dia e talvez saia daqui na 4.ª feira [15Set65], porque não há muito que fazer. A não ser que fique no Gabú, como responsável.


Trabalhem muito, como sempre e até breve. Já passaram as angústias, apesar de tudo (falo de problemas pessoais, se a isso ainda temos direito).

►►► AQUI ESTÁ UM TEMPORAL…

Saudades do mano e camarada. Amílcar    

 



Fonte > Citação:
(1965), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35080, com a devida vénia.

 

Como complemento ao estudo publicado na Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental, titulado «Distribuição espacial de valores prováveis de precipitação pluvial para períodos quinzenais, em Guiné-Bissau»: P22106 (15.04.21) aproveito agora para divulgar os «Dados climatéricos observados em Conacri entre 1961-1990».

 


Figura 1 – Distribuição da média meteorológica anual observada em Conacri (República da Guiné), no período de 1961-1990. Na caixa a vermelho, estão referidos os valores e os dias em que se registou pluviosidade, onde encaixam as datas dos dois eventos organizados pelo PAIGC em 1973 (II Congresso e a 1.ª Assembleia Nacional Popular).


Fonte > «Conakry Climate Normals 1961–1990». National Oceanic and Atmospheric Administration, com a devida vénia.

(Continua… com outras análises)


► Fontes consultadas:


Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição; Lisboa (2002).


Ø (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 05359.000.020. Título: Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC. Assunto: Amílcar Cabral e Armando Ramos, entre outros, a bordo de uma canoa, a caminho do I Congresso do PAIGC, em Cassacá. Autor: Luís Cabral. Inscrições: A caminho de Cassacá. Data: 1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.


Ø (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.066. Título: Movimento de nacionalistas do PAIGC na zona de fronteira de Lela, região Administrativa de Gaoual. Assunto: Relatório do Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual sobre os movimentos de militantes do PAIGC e das tropas portuguesas na região. Reporta o caso de três nacionalistas que se juntaram ao exército colonial. Data: Sábado, 19 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (3) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.065. Assunto: Cópia do relatório de esclarecimento relativo ao Movimento dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto da fronteira de LELA, na região de Gaoual. Remetente: Diallo A. Abdoulaye, Gabinete do Ministro. Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Terça, 29 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (4) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.064. Assunto: Condolências pela morte de Domingos Ramos, em pleno campo de batalha. Remetente: Diallo Alpha Abdoulaye, pelo Ministro e pelo Secretário-Geral do Ministério dos Negócios da Guiné-Conacri. Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Quarta, 23 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (5) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.032.042. Assunto: Sugestões para os pupilos da escola. Gaoual. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Luís Cabral. Data: Segunda, 13 de Setembro de 1965. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

Ø Outras: as referidas em cada caso.

 

Termino agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

7Mai2021

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Nota do editor:


(*) Postes anteriores da série >


21 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)

(...) Conforme ficou expresso no P22106 (15Abr21), que serviu de lançamento do projecto de "reconstrução historiográfica do puzzle do Boé" e zonas limítrofes (a que for possível…), seria interessante poder encontrar provas factuais sobre a incógnita, a misteriosa, a obscura ou a enigmática localização onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», durante a qual teve lugar a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», assim como o da realização do «II Congresso», que legitimou o evento anterior. Enquanto tal não acontecer, estes dois factos continuam a ser considerados como "embustes históricos" (...)

15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)

(...) Estão prestes a completar quarenta e oito anos os dois acontecimentos planeados pelo PAIGC que, do ponto de vista histórico e da dinâmica política da época, acabaram por influenciar as duas dimensões do conflito: a militar e a diplomática, ambas dependentes de diferentes apoios internacionais [OUA e ONU, enquanto decisores supremos], com o propósito de pôr um ponto final no "Império Colonial" de Portugal, através do reconhecimento da independência, neste caso, da dita Província Ultramarina da Guiné.

O sucesso da estratégia supra, concebida pelo ideólogo Amílcar Cabral (1924-1973) antes do seu assassinato em Conacri, ocorrido em 20 de Janeiro de 1973, sábado, passava pela organização de um «Congresso (II)», evento que serviria para legitimar a realização da «I Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau», durante a qual seria, de modo unilateral, proclamado o nascimento de uma nova Nação / Estado: a República da Guiné-Bissau. (...)