terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 24 de Setembro de 2022:

Meus caros Camaradas,
Dando cumprimento ao que havia referido, abaixo um segundo texto sobre este assunto.

Uma saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - II

Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia

Dou continuidade à minha breve referência sobre a missionação, tema que, por certo, outros trabalharão melhor, mas tentarei cumprir o que me propus no texto anterior.

Vale a pena este testemunho prévio para nos apercebermos da necessidade de o Reino enviar frades para a evangelização - a dimensão religiosa, nem sempre bem conseguida, mas preocupada com a palavra de Jesus. De resto, todos sabemos que uma das intenções, um dos objectivos dos descobrimentos era a pregação, a evangelização. Nas naus portuguesas e espanholas seguiam sempre “missionários”. Quem não se lembra dos nossos capelães, já não para evangelizar, mas para “dar força espiritual” às NT - assim era entendido pelos mandantes?

Repare-se, caros leitores, que existia (e existe) a preocupação de respeitar a hierarquia da Igreja - neste caso da parte de Loyola.

Mais uma nota: quem assina esta carta é o braço direito, admirador e seguidor indefectível de Inácio de Loyola, Pedro Fabro, que sempre procurou seguir o pensamento do Padre Superior da Companhia de Jesus - os jesuítas.

Finalmente, o próximo texto incidirá sobre um dos grandes missionários - Francisco de Xavier, e não Francisco Xavier; na verdade, ele era natural da localidade da região de Navarra - Xavier.


********************

A DIOGO DE GOUVEIA[1]

Roma, 23 de Novembro de 1538[2]

(Ep. I, 132-134 – original latino)

IHS. A graça e a paz de Jesus Cristo N. S. estejam com todos!

Há poucos dias chegou o vosso mensageiro com carta para nós[3]. Por ela soubemos notícias vossas e vimos quão boa lembrança guardais de nós, bem como o zelo que vos faz sedento da salvação das almas dispersas por vossa Índia, onde as messes já lourejam[4]. Oxalá pudéssemos satisfazer a vós e às nossas almas que sentem o vosso zelo. Mas existem alguns obstáculos que impedem corresponder não só aos vossos desejos, mas também aos de muitos outros.

Compreendereis isto pelo que vou dizer-vos. Todos quantos estamos reunidos nesta Companhia estamos oferecidos ao Sumo Pontífice, pois é o senhor de toda a messe de Cristo[5]. Por esta oblação lhe prometemos estar prontos para tudo quanto dispuser de nós em Cristo. Assim, se ele nos enviar aonde nos convidais, iremos alegremente. A causa desta nossa resolução, que nos sujeita ao seu juízo e vontade, foi entender ter ele maior conhecimento daquilo que convém ao cristianismo universal.

Não faltaram alguns que há algum tempo se esforçaram para que nos enviassem a esses índios que os espanhóis conquistam diariamente para o seu imperador. Para isso veio interceder em favor dessa causa, principalmente, certo bispo espanhol e o embaixador do imperador[6]. Mas persuadiram-se que a vontade do Sumo Pontífice era que não saíssemos daqui, pois é abundante a messe em Roma[7].

A distância do país não nos espanta, nem o trabalho de aprender línguas. Faça-se somente o que mais agrada a Cristo. Rogai, pois, por nós para que nos faça ministros seus no Verbo da Vida. Porque, embora «não sejamos por nós mesmos capazes de pensar algo como se fosse nosso», pomos a nossa esperança na abundância d’Ele e nas suas riquezas (2 Cor 3,5).

De nós e das nossas coisas tereis notícias completas por cartas escritas ao nosso particular amigo e irmão em Cristo, Diogo de Cáceres, espanhol, que vo-las mostrará[8]. Ali vereis quantas tribulações por Cristo passámos em Roma até agora e como delas por fim saí­mos ilesos[9]. Tão pouco faltam em Roma muitos a quem é odiosa a luz eclesial de verdade e de vida.

Sede, pois, vigilantes e esforçai-vos tanto em edificar o povo cristão com o exemplo de vida, como trabalhastes até agora em defesa da fé e doutrina da Igreja[10]. Porque, como podemos crer que nosso bom Deus conservará em nós a verdade da santa fé, se fugimos da sua bondade? É para temer que a causa principal dos erros de doutrina provenha de erros de vida. Se estes não forem corrigidos, não se extirparão aqueles. Pondo fim a esta carta, resta-nos pedir que vos digneis recomen­dar-nos aos nossos respeitadíssimos Mestres Bartolomeu, De Cornibus, Picard, Adam, Wankob, Laurency, Benoit a todos os mais que gostaram de chamar-se nossos mestres e nós seus discípulos e filhos em Cristo Jesus. N’Ele vos saudamos a vós.

Desta cidade de Roma, dia 23 de Novembro de 1538.

Vosso no Senhor, Pedro Fabro e mais Companheiros e Irmãos.
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Notas:

1 - Diogo de Gouveia (1471-1557), teólogo português de rígida ortodoxia cató­lica, contrário mesmo a Erasmo, foi reitor da Universidade de Paris (1500-1501), obteve de D. João III a concessão de bolsas para estudantes nacionais, transfor­mando Santa Bárbara num colégio português da Sorbona, do qual foi principal, durante longos anos. Mal informado sobre os primeiros discípulos de Inácio em Paris, esteve para castigar o Santo publicamente, como sedutor da juventude. Após a defesa de Inácio, reconheceu a sua inocência e pediu perdão de seu erro perante professores e alunos, reunidos para o projectado castigo. Agora, por sua iniciativa e por comissão do rei, escreve aos Companheiros, convidando-os para a missão da Índia (Fontes Narr. 139; Autob. 78).

2 - Um ano antes (Novembro de 1537), Inácio, com Fabro e Laínez, dirigia-se a Roma e, pouco antes de lá chegar, tivera a célebre visão de La Storta, que con­firmava o título desses sacerdotes «amigos no Senhor», Companhia de Jesus, e lhe dava o seu significado profundo (Autob. 96). Como diz Ribadeneira sobre esta carta: «Escreveu a nosso Padre se teriam por bem irem todos ou parte dos Compa­nheiros a pregar o Evangelho às Índias Orientais». Responde Fabro em nome dos demais, dizendo-lhe que estavam às ordens do Sumo Pontífice, o qual prefere que por então trabalhem em Roma (Iparr. BAC 668).

3 - D. Pedro Mascarenhas, novo procurador de Portugal em Roma, junto do Papa. Tratou com Inácio e Companheiros sobre a ida de alguns deles para missio­nar na Índia, a pedido de D. João III. Mais tarde, como Vice-Rei da Índia, apoiará os missionários jesuítas.

4 - Em Goa já havia um bom grupo de cristãos e até um colégio fundado para jovens indianos, chamado de Santa Fé, além da cristandade antiga de S. Tomé e outros núcleos.

5 - Em Maio de 1538, já estabelecidos em Roma, por não terem podido ir à Ter­ra Santa, exercitavam-se em ministérios em favor da cidade de Roma. Levantou-se grave perseguição contra eles movida por Landívar, despedido da Companhia, e por outros espanhóis influentes na Cúria Romana. A defesa de Inácio é levada até à sentença final, que lhes restituiu a fama e os ministérios, muito frutuosos junto do povo (Autob. 98). Pouco antes de escrita esta carta, passado mais de um ano sem navio para Jerusalém, os Companheiros ofereceram-se ao Papa, de acordo com o voto de Montmartre (Autob. 85).

6 - João Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, era o embaixador de Carlos V em Roma. «Certo bispo espanhol» é talvez o antigo discípulo de Inácio em Barcelona, João de Arteaga, bispo de Chiapas no México, que oferecera o seu bispado a Inácio ou a algum dos Companheiros, e acabou por morrer na sua dio­cese (1541), ao beber veneno por engano (Autob. 80).

7 - Palavras do Papa, segundo Bobadilha: «Porquê esse tão grande desejo de ir a Jerusalém? Autêntica Jerusalém é Itália, se desejais trabalhar na Igreja de Deus» (Fontes Narr. III, 327).

8 - Diogo de Cáceres, em Paris, determinara seguir a Inácio. Em 1539, chegou a Roma e interveio na reunião dos primeiros Companheiros. No mesmo ano, voltou a Paris e ordenou-se sacerdote, mas em 1541 abandonou a Companhia (Iparr. BAC 669).

9 - Cf. supra, nota 5.

10 - Diogo de Gouveia opusera-se com toda a força ao primeiro aparecimento do luteranismo na Sorbona. Alguns aderentes à heresia tiveram então de fugir de Paris.

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Notas do editor:

Poste anterior de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© Desenho de Manel Cruz


REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

(Uma visão pessoal)

adão cruz

Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?

Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.

A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.

O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.

O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.

O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.

O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)


Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau


Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. 

Imagem retirada da Net:  Nuno Rubim (2007)



1. Mensagem de Manfred Stoppok (foto à esquerda), antropólogo social, investigador de pós-doutoramento, da Universidade de Bayreuth, Alemanha

 
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960

Exmos Senhores,

O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth,  Alemanha. 

Já fui várias vezes à Guiné-Bissau, e neste momento faço um estudo sobre a história da eletricidade no país.

Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74,  uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.

Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas,  tinham cerca de 1 MW cada um no total.

Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às  quais os senhores talvez me possam ajudar.

(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais,  etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?

(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? 
Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso  era a regra ou a exceção.

(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?

Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me  onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.

Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,

Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok

[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]

Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher

f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com



Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné: o Batalhão de Engenharia". Coordenação do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa: Direção de Infra-estruturas do Exército, 2014, 166 pp.


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vindo de Bafaté e do rio Geba, a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca. São visíveis, na foto (se for ampliada), os postos de iluminação pública, ao longo da rua principal (que ia do quartel até ao porto fluvial).

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem...

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Manfred: vamos tentar  ajudá-lo (*). Obrigado pelo seu contacto. Procurei  melhorar a sua mensagem em português. Mas não temos, à partida, grande informação (e muito menos conhecimento)  sobre a eletrificação da Guiné-Bissau no nosso tempo (1961/74). E falta-nos, enquanto antigos combatentes, uma visão geral sobre a situação da eletrificação do território... 

Nos quartéis, havia pelo menos um gerador (nalguns casos, haveria um sobresselente para suprir avarias) que funcionava preferencialmente à noite. Nunca ou raramente estavam a operar 24 horas por dia. Fez-se um esforço por eletrificar todos os aquartelamentos localizados em povoações importantes. E isso competia à engenharia militar (BENG 447).

Havia quartéis maiores do que outros, e alguns estavam implantados nas próprias povoações, sendo natural que contribuissem para a ilumição pública fora do perímetro do arame farpado, nas proximidaxes da porta de armas e na rua principal da localidade (caso de Bambadinca, Teixeira Pinto, Nova Lamego, Farim, Catió...). 

Em localidades como Bambadinca (onde eu estive, de julho de 1969 a março de 1971, e que teria, na altura 2 mil habitantes, e cerca de 400 militares), e que era um posto administrativo fazendo parte do município  de Bafatá (a segunda maior cidade do território, a 30 quilómetros, a nordeste),  o perímetro militar integrava as instalações e a casa do chefe de posto, a escola (com a casa da professora, cabo-verdiana), bem como uma capela cristã... O edifício dos correios, se bem recordo, já ficava fora... As casas comerciais estendiam-se ao longo de uma rua de trezentos metros que era ilumianada, tanto quanto me lembro... O resto (duas tabancas) ficava às escuras... O gerador militar também fornecia luz ao posto de intendência no porto fluvial, na margem esquerda do rio Geba Estreito, a escssas centenas do aquartelamento, sede de um batalhão (BCAÇ 2852 e depois BART 2917)...

Os frigoríficos (tanto dos comerciantes civis como os da tropa, e de um ou outro particular) eram alimentados a petróleo. E alguns de nós, graduados,  tinham também pequenos frigoríficos, nos quartos para manter frescas as bebidas  como a cerveja... (Um luxo, a cerveja gelada, o gelo para o uísque, a água de Vichy e de Perrier...).

Por outro lado, temos ainda a memória do cinema ambulante, que passava, mesmo no tempo da guerra, por algumas povoações mais importantes do leste da Guiné. E havia localidades que tinham sala de cinema (Bafatá, Teixeira Pinto, Nova Lamego...).

É importante que fale com os nossos camaradas do BENG 447, o Batalhão de Engenharia nº 447, que estava sediado em Brá, Bissau, e era responsável também pela construção e eletrificação das instalações militares no mato.

Fica aqui o seu apelo. Vamos ver se aparece informação relevante para si e o seu projeto sobre a história da electricificação da Guiné, terra a que nos ligam fortes laços afetivos e muitas memórias (boas e más). Vejo que fala e/ou escreve português. Isso facilita os contactos. Boa sorte, boa saúde, bom trabalho. LG

PS1 - Temos ideia que houve, no tempo do governador  Sarmento Rodrigues (1945/49) e depois do general António Spínola (1968/73), uma melhoria da eletrificação do território. Mas não temos informação detalhada. Por outro lado, Bissau estava muito melhor iluminada, à noite,  antes da independência do que depois. Em 2008, quando lá voltei, a cidade vivia às escuras. Fale também com o nosso camarada Mário Beja Santos, que é um enciclopédico estudioso da história da presença portuguesa no território, bem como  o nosso camarada Patrício Ribeiro, fundador e diretor da empresa, com sede em Bissau, Impar Lda, do sector de energia.  Dar-lhe-ei depois os contactos,

PS2 - O nosso José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade no BENG 447 (Brá, 15Jan68 - 15Jan70) esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau. Tem, por certo, conhecimento da matéria. (Vd. o precioso poste P2470, de 22 de janeiro de 2008 " (**)
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(**) Vd. 22 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

(...) Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.

No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia 
 [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos 
[ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .

Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena)  para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.

Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês 
[destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes 
[ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.

Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)

 

Vd. também postes de:

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23646: Convívios (942): Ontem, dia 24 de Setembro de 2022, realizou-se no Grande Hotel do Porto o almoço de confraternização da CART 1745 (Bigene, 1967/69) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

Grande Hotel do Porto, 24 de Setembro de 2022 > Eu sou o terceiro a contar da esquerda. O Ruca está à minha direita e o Laranjeira, de camisa azul, à minha esquerda. Em primeiro plano o Alves e ao fundo, de camisa escura, o António Dias.

1. Mensagem do nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor, com data de 29 de Setembro de 2022:


O SENTIDO DO SANGUE

adão cruz

Ontem, estive com os dois da foto anexa, o Laranjeira à minha esquerda e o Ruca à minha direita, sentados à mesa. Na mesma mesa, além das respectivas esposas, o amigo António Dias e o Alves. Não nos víamos há cinquenta e três anos.

Ontem realizou-se o almoço de confraternização, no Grande Hotel Do Porto, ao fundo da Rua de Santa Catarina, da CART 1745, 67/69, da guerra da Guiné. Esta Companhia foi a última em que estive e que foi substituir a minha CCAÇ, a 1547, 1966/68, em Bigene, no norte da Guiné. Quando faltavam pouco mais de dois meses para a minha Companhia acabar a comissão e vir embora, o capitão recebeu uma ordem superior para ser realizada uma perigosa emboscada nocturna no corredor de Sambuiá, onde, eventualmente, iriam passar Amílcar Cabral e seus homens. A tão pouco tempo de vir embora, todo o pessoal, já fisicamente debilitado por quase dois anos de mato, foi psicologicamente ao fundo, compreensivelmente aterrorizado. Morrer agora, no fim? O comandante e eu éramos bastante amigos. Propus-lhe que enviasse um rádio para o Estado-Maior dizendo que o médico considerava a Companhia inoperacional, com o que ele concordou. Recebeu como resposta a mesma ordem, dizendo exigir-se um último esforço. O capitão voltou a responder, dizendo que o médico considerava muito difícil qualquer esforço. Tudo isto se passou durante uma madrugada inteira. Ao romper do dia, aterrou na pequena pista de Bigene um helicóptero trazendo a bordo o Comandante Supremo Arnaldo Shulz, o major-médico do serviço de saúde e um colega meu do hospital militar. Vinham fazer uma inspecção à Companhia. Soube mais tarde que me valera a razão, de outra forma teria ido parar à pildra. A companhia foi dada como inoperacional e iria ser substituída pela CART 1745, com a qual, ou melhor com os poucos elementos que dela restam, eu almocei ontem, no Grande Hotel Do Porto.

Numa tempestuosa noite, no minúsculo cais do Rio Cacheu, deu-se a rendição das Companhias. A minha embarcaria rumo a Bissau, após o desembarque da CART 1745, comandada pelo Capitão Miliciano, Torre do Vale. Na altura da troca, este novo comandante recebeu um rádio dizendo que embarcava toda a Companhia menos o médico. Não é fácil descrever, quer da minha parte quer da parte dos soldados e oficiais, a onda de emoção, tão torrencial como a chuva. Com lágrimas de raiva, recusei-me a ficar. O Capitão Torre do Vale, mais tarde um grande amigo, infelizmente já falecido, muito amavelmente fez-me ver que era uma ordem superior à qual não podia desobedecer e que seria obrigado a prender-me, se eu insistisse. Uma mesquinha e inesquecível vingança do Estado-Maior, pelo meu atrevimento!

Estes almoços, como o de ontem e outros em que estive, sobretudo da minha CCAÇ 1547, não são almoços que possam assemelhar-se a ouros quaisquer. Não sei dizer o que sentimos. Trata-se de um sentimento muito específico, um sentimento difícil de definir, um sentimento de tristeza e alegria, um sentimento muito enraizado de unidade, de irmandade, de cumplicidade que está para além do natural sentimento da amizade. De Saudade não será, mas é um sentimento que arranca cá do fundo uma espécie de estranha nostalgia, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que nos corria nas veias, a memória de todos os medos e fraquezas, uma sensação de perda profunda que até hoje aceitámos como vitória e que nos trouxe a um futuro do qual nunca saberemos o valor. Sabemos apenas que sem essa perda e essa vitória, sejamos nós quem formos, nunca seríamos quem somos.

Mantive-me nesta nova Companhia os quase três meses em que, por direito, devia estar em Bissau, descansadamente, a beber umas cervejas. Quando vim embora, o último abraço, já sentado na avioneta, foi-me dado, de forma bem apertada, pelo meu caro Ruca. Pouco tempo depois de chegar a Portugal, soube por um dos muitos amigos nativos que lá deixei, que o “alfero” Ruca tinha perdido uma perna.

Ontem, felizmente, reconheci que o tal abraço não fora o último, pois ao fim de cinquenta e três anos, o que não faltou neste almoço foram abraços. Ao fim da tarde, não me despedi sem perguntar ao meu caro Ruca: olha lá, Ruca, tu que eras um rapazinho de vinte e poucos anos, por acaso muito bonito, com um prometedor séquito de namoradas, como é que lidaste no teu futuro com as mulheres? O Ruca respondeu, sorridente: olha, meu caro Adão, tinha uma prótese e as próteses, na altura eram tecnicamente pouco evoluídas. Eu via-me à rasca para camuflar o melhor que podia, até ao terrível momento de dizer à namorada que só tinha uma perna.

O Larangeira à esquerda e o Rogério Silva (Ruca) à direita
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23635: Convívios (940): Um total de 72 inscritos no 49.º almoço-convívio do pessoal da Magnífica Tabanca da Linha, amanhã, quinta feira, dia 22/9/2022, em Algés, o que é um número muito bom depois do "longo inverno social" que foi a pandemia de Covid-19

Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)

Mário Beja Santos

Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.

Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.

Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.

Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”
.

Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”
.

Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.

Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”
.

E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.

Temos aqui a promessa de um grande escritor.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23644: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte I: De Aldeia Formosa a Buruntuma

1. Certos recursos do blogue, tais como as cartas ou mapas da Guiné, alojadas desde finais de 2005 na página pessoal do editor Luís Graça, cujo servidor era o da ENSP/NOVA, ficaram  temporariamente, indisponíveis, há alguns meses atrás. 

A página "Saúde e Trabalho" tinha já 23 anos, remontando a 1999... Chegou agora ao fim, por razões técnicas, que são alheias ao seu autor. (A "webpage" da ENSP/NOVA foi complemente redesenhada e reformulada ) 

Pedimos, na altura,  desculpa, aos nossos leitores, pelo incómodo, uma vez que ficaram privados da consulta "on line" das cartas da Guiné e outros recursos. Mas felizmente, já recuperámos todos esses ficheiros (através do gabinete de informática da ENSP/NOVA), e  começamos hoje a pôr as cartas de novo "on line", mas no nosso blogue, a partir do Arquivo.pt. 

Para já podem ser consultados no Arquivo.pt (https://arquivo.pt):  podem usar descritores  como por exemplo "mapa de Bedanda", "mapa de Bissau", "mapa de Bolama".

Repomos já aqui algumas das cartas, é só carregar no link:


Cartas na escala de 1/50 mil - Parte I

Aldeia Formosa (hoje Quebo) (vd. Xitole)

Bafatá (1955)
 
Bambadinca (1955) 
(inclui rio Geba Estreito, Nhabijões, Finete, Missirá, Fá Mandinga, Geba...)

Banjara (1956)

Bedanda (1956) (inclui Cufar, rio Cumbijã...)

Beli (1959) (inclui Rio Corubal...)

Bigene (1953) (inclui Barro, Ganturé, rio Cacheu, fronteira com o Senegal...)

Binta (1954) (inclui Olossato...)

Bissau (1949) (inclui Brá, Bissalanca, Nhacra, Safim, Cumeré, estuário do Rio Geba...)

Bissorã (vd. Mansoa)

Bolama (1952) (inclui Ilha das Galinhas)

Buba (vd. Xitole)

Bula (1953) (inclui João Landim, rio Mansoa, Binar, Encheia, Biambe...)

Buruntuma (1957) (inclui fronteira com a Guiné-Conacri)

Madina do Boé (1958) (inclui fronteira com a Guiné-Conacri...)

Mansoa (1954) (inclui Bissorã, Emcheia, Jugudul, rio Mansoa...)

(inclui Buba, Mampatá, Chamarra, rio Corubal, rápidos de Cusselinta, Aldeia Formosa...)

 (Continua)

2. Recorde-se a história destas cartas ou mapas:


Quando voltou à Guiné-Bissau, em 1996, em viagem de negócios (mas também em romagem de saudade), o Engenheiro Técnico Humberto Reis (ex-furriel miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) já tinha adquirido as 72 cartas da antiga província portuguesa, à escala de 1/50.000. 

"Em Dezembro de 94 já me custaram 450$00 cada uma". O mapa geral custou 600$00." (A valores de hoje, correspondem a  3,8 euros e 5,07 euros, respectivamente).

Para os eventuais interessados, essas cartas podem (ou podiam em fevereiro de 2006...) ser adquiridas no Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa. 

Alertava-se para o facto de algumas cartas poderem já estar esgotadas. Na altura fora exigida ao Humberto Reis uma declaração da embaixada da República da Guiné-Bissau, a qual se transcreve, como simples curiosidade, com data de 29 de Dezembro de 1994:

"A Embaixada da República da Guiné-Bissau em Portugal declara, para os devidos efeitos que está o sr. Eng. Humberto Simões dos Reis autorizado a adquirir cartas geográficas da Guiné-Bissau.

"Para que não haja nenhum impedimento a tal objectivo, se passou a presente declaração que vai ser assinada e autenticada com o carimbo a óleo em uso nesta Missão Diplomática".


Presumimos que esta exigência de autorização da embaixada da Guiné-Bissau, em Lisboa,  para um turista levar consigo cartas geográficas do país, fosse ditada, na época, por razões de "segurança de Estado".

Na altura declarámos expressamente que a divulgação destas cartas, no nosso blogue.  de modo algum pretendia pôr em risco a independência e a soberania do país irmão. Nem muito menos podia ser interpretada como uma provocação. 

Também não tinha quaisquer propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa. Pretendia-se apenas prestar um serviço útil a todos os antigos combatentes da guerra da Guine (1961/74), independentemente do lado em que combateram, e nomeadamente aos membros da nossa tertúlia. Julgamos que podia (e pode)  ser útil também a todos os demais amigos do povo guineense e aos próprios guineenses.

Além de serem um documento de interesse historiográfico (e sentimental), e apesar de algumas lacunas (tem já mais de meio século, são muitas delas dos anos 50/60), estas cartas são sobretudo importantes  para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização da memória (individual e colectiva) dos antigos combatentes portugueses (sem esquecer os do PAIGC) que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações na antiga província portuguesa da Guiné, hoje Guiné-Bissau. Para já dão-nos um retrato muito fiel da geografia da Guiné antes da guerra (incluindo a dimensão aproximda das diversas povoações, muitas delas desaparecidas com o início da guerra: houve regulados inteiros que ficaram sem gente, sem tabancas...).

Fica também aqui a nossa homenagem aos nossos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartografia portuguesa deu cartas (no duplo sentido do termo) ao mundo, é bom é dizê-lo. Às vezes (muitas vezes, quase sempre) tenho orgulho de ser (por)tuga. 

Estas cartas da Guiné são pequenas obras-primas, resultantes do levantamento efectuado aos longo dos anos 50 pela missão geo-hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do N.H. Mandovi e do N.H. Pedro Nunes. A fotografia aérea é da Aviação Naval. O trabalho de restituição foi feita pelos Serviços Cartográficos do Exército. As fotolitografias e a impressão foram feitas em várias casas, de Lisboa, Porto, V.N. Gaia. 

A imagem em geral é  de boa qualidade, graças também à fotolitografia de casas como a  Papelaria Fernandes e a Arnaldo F. Silva (em geral, são os melhores trabalhos, os destas casas)… e à posterior digitalização feita na Rank Xerox. 

A imagem original tem 10 MB. Como habitualmente, a imagem que está disponível on line foi reduzida a um 1/3 da dimensão original…

A edição é da antiga Junta das Missões Geográficas e Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar.  

Convirá recordar que a sua paciente digitalização foi efectuada pelo Humberto Reis na Rank Xerox, em 2006. (Ele não nos disse quanto pagou, mas não deve ter sido barato...). Eu passei cada um destes pesadíssimos ficheiros (10 ou mais Mb) para outros mais leves (da ordem dos 2 Mb), procurando manter a qualidade da imagem (que tem alta resolução)...

Ao Humberto Reis, nosso mecenas,  mais uma vez a nossa gratidão pela sua generosidade (todo este trabalho foi pago do seu bolso) e a nossa homenagem ao seu carinho pela Guiné-Bissau e pelos guineenses. Não é por acaso que ele é o nosso "cartógrafo-mor" e colaborador permanente, desde então. (*)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 19 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12476: Blogoterapia (245): Homenagem ao nosso 'cartógrafo-mor', Humberto Reis, para o quem o nosso blogue tem uma dívida de gratidão... Que o bom irã do nosso poilão lhe dê amor, saúde, patacão, longa vida... e bons augúrios para 2014!...

domingo, 25 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23643: (De)Caras (188): a morte em combate, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, do alferes mil Américo Luís Santos Henriques, natural de Ourém, contada pelo seu cmdt da 4ª CCAÇ, cap inf Aurélio Manuel Trindade (Bedanda, 1965/67)


Lista dos alferes mortos em combate, no CTIG, no período entre 1963 e 1967 (n=20)... Entre eles, o Américo Luís Santos Henriques, da 4.ª CCAÇ, Bedanda, Sector S3, em 21/2/1967, na sequência da Op Sobreiro, em que participou também a CCAV 1484 (informação do Jorge Araújo).  Infelizmente não há nenhuma foto do Henriques.

Dos 81 alferes mortos no CTIG, entre 1963 e 1974, houve 1 por doença, 24 por  acidente e os restantes 56 em combate (*). No período em apreço (1963/67), dos 20 alferes mortos em combate, 4 pertenciam a companhias de guarnição normal: dois  da 4ª CCAÇ, um  da 3ª CCAÇ e outro da 1ª CCAÇ (que em 1967 irão dar origem à CCAÇ 6, CCAÇ 5 e CCAÇ 3, respetivamente).

Infografia: Jorge Araújo (2018) 






Guiné > Região de Tombali >  CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > 22 de fevereiro de 1967 > A caminho Catió... Regresso, em LDM,  da Op Sobreiro, em que perdeu a vida o alf mil Henriques, da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1966/67). As fotos parece ter sido tiradas ainda no rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã (este mais largo, entre 200 e 600 metros, pelas nossas contas grosseiras, de acordo com a carta de Bedanda, 1956, escala 1/50 mil).

Fotos do álbum de Benito Neves, ex-fur mil, da CCAV 1484.

Fotos (e legendas): © Benito Neves (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta morte está dramaticamemte narrada  no livro de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do antigo cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref),  "Panteras à Solta", ed. de autor, 2010, 399 pp, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Os familiares, vizinhos, colegas de escola, conterrâneos, amigos e antigos camaradas do Américo Luís Santos Henriques, natural de Valada, Seiça, Ourém, bem como os nossos leitores, têm direito a conhecer esta versão, que consta de uma fonte de difícil acesso: o livro está fora do mercado livreiro, foi impresso na Alemanha, e nem sequer consta na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos. O que é uma pena: é um documento de interesse para a historiografia da guerra colonial. 

O nosso infortunado camarada só está identificado pelo apelido Henriques. Nas memórias do cap Cristo (o único nome fictício que aparece no livvro, e que é um "alter ego" do cmdt da 4.ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967), o Henriques  veio substituir o Ribeiro, até então o melhor operacional dos alferes da companhia, juntamente com o Carvalho, todos eles, tal como os restantes graduados, de origem metropolitana e de rendição individual. (Descobrimos que o Ribeiro é o José Augusto Nogueira Ribeiro, nascido em Fafe, em 1940, e já falecido, em 2017: seguiu a carreira militar, chegando ao posto de cor inf quando se reformou; foi condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné e Moçambique; no CTIG, acabou a sua comissão na 4ª CCAÇ em 15 de maio de 1966, sendo então rendido pelo Henriques).

Antes da descrição da operação em que o Henriques é morto, por um tiro isolado (seguido de forte tiroteio em emboscada do IN nas proximidades da nascente do rio Ungauriuol), vale a pena reproduzir também um pequeno excerto da sua chegada em Bedanda, em data que não podemos precisar (presumivelmente em meados de 1966, já que  foi render o alf mil Ribeiro), e em que é praxado...


Excertos de "Morto em combate" 
(pp. 349-353)


Antecedentes: 

(...) Um dia chegou o alferes Henriques, o substituto do alferes Ribeiro. Bom moço mas
ainda muito cru
. Logo no primeiro jantar foi o Carvalho a atirar:

─ Meu capitão, o posto da árvore hoje é guarnecido pelo Henriques. Eu já lhe disse que o meu capitão e nós todos não temos confiança nos negros e por isso havia um posto que durante a noite era guarnecido por um oficial ou sargento. Ele diz que eu estou a gozar com ele. O meu capitão sabe bem que todos têm de passar por aquele posto várias noites. Esta noite era eu. Como se apresentou o Henriques é ele que deve ir.

(...) Assim, nessa noite, o alferes Henriques passou todo o tempo num posto de vigia,
em cima duma árvore, com uma granada de mão sem cavilha apertada na sua mão. Teria de a lançar ao mínimo sinal de perigo, para acordar o capitão e os outros alferes.

Ele não sabia, mas a granada estava inerte pois tinha-lhe sido retirado o detonador e a
carga explosiva. Esta era uma das brincadeiras que faziam aos maçaricos que chegavam à companhia. O capitão, embora conivente, não se metia no assunto. 

Ao outro dia o Henriques estava contente porque se tinha mantido acordado toda a noite. Ele, que era um dorminhoco, não teve sono. Teve muito medo, segundo confessou, mas
aguentou. No dia seguinte contaram-lhe que tudo não tinha passado duma brincadeira.
Riu-se e achou piada. Actos destes faziam parte integrante da praxe no quartel. (pp. 184/185)

O confronto fatal

(...) O dia começou com o capitão reunido no seu gabinete com os seus subalternos.

─ Tenho informações que me dizem que depois da nossa acção no cruzamento do Cantanhez, a guerrilha construiu um acampamento na mata junto à nascente do Ungauriuol 
 [de acordo com a carta de Bedanda, e 1/50 mil] . Vamos sair esta noite para lá. Vamos apenas três pelotões mais o pelotão do Tala [alferes de 2.ª linha, cmdt do pelotão de milícias de Bedanda]. Sai à frente o Henriques, a seguir o Cristóvão e o Tala, e por último o Manuel. Penso sair do quartel à meia-noite para chegarmos ao raiar da aurora, não sei o local exacto do acampamento. Batemos a mata e seguiremos qualquer pista que encontrarmos até chegar ao acampamento. Não levamos um objectivo concreto, pretendo apenas explorar uma notícia e, mediante isso, impedir que os guerrilheiros fortifiquem o acampamento. Não pretendo deixar os tipos sossegados nesta área. Alguém tem alguma coisa a dizer?

─ Não, meu capitão. De qualquer modo gostaríamos de ir lá com um objectivo concreto em vez de bater a zona ─ disse um dos alferes.

─ Também eu gostava de ter um objectivo concreto, mas não temos. Não se preocupem porque a área está cheia de guerrilheiros e iremos encontrá-los de certeza. Saímos à meia-noite em ponto, ração de combate para um dia. Teremos um helicóptero em Cat
ió [sede do BCAÇ 1858], para evacuações. Até logo.

(...) O capitão estava preocupado. Estava desfalcado em oficiais e os que havia tinham pouca experiência ou eram fracos em termos operacionais. O capitão terá que ir mais atento a todos os pormenores. Queria falar com o Tala.

─ Tala, vamos fazer uma batida na mata entre o Ungauriuol 
[afluente do rio Cumbijã, e que passa por Bedanda], o Lama e a estrada para Guileje [a nordeste de Bedanda]. Vai à frente o nosso alferes Henriques. Tu vais entre o alferes Fernandes e o alferes Manuel. Quero que mandes falar comigo, hoje às dez horas da noite, dois guias que conheçam a zona. Não dizes nada aos guias. Quero falar com eles na presença do alferes Henriques. Levas ração de combate para um dia. Percebeste bem o que eu quero?

─ Percebi, nosso capitão.

─ Então podes ir embora. Quero o teu pelotão à meia-noite pronto para sair. Até logo.

A seguir o capitão falou com o alferes Henriques.

─ Tu vais na frente da coluna. Embora não tenhas experiência de mato, és o subalterno com mais operações feitas. O teu pelotão é bom. Vou dar instruções aos guias que pedi ao Tala e entrego-te depois esses guias. São dois bons guias. Confio em ti. Sabes bem a importância que eu dou ao pelotão que vai à frente. Da sua visão e da sua actuação depende o êxito da operação. Temos que ir muito atentos, os guerrilheiros estão lá de certeza. Eu irei sempre contigo entre a primeira secção e a segunda. Tu deverás ir no meio da primeira. Estarei perto de ti para qualquer apoio que precises. Elucida bem os homens sobre o que terão de fazer. Se encontrarmos pistas vamos explorá-las com cuidado. Olhos bem abertos para não sermos surpreendidos. Se vires que não estás em condições de ir à frente, dou essa missão a outro.

─ Não, meu capitão. Agradeço a sua confiança em mim.

─ Prepara o teu pelotão. A mata que vamos bater é muito densa e vamos ter dificuldades se formos surpreendidos. Até logo.

(...) O capitão mandou depois chamar o Lassen 
 [, seu guarda-costas] para preparar as coisas e avisar o Joãozinho   [, 2.º guarda-costas] . Deu as instruções normais aos sargentos. Sobrou-lhe ainda tempo para meditar em todas as hipóteses que poderiam acontecer e na forma de ultrapassar dificuldades inesperadas. Tinha pensado profundamente a operação e ficava convencido de ter dado todas as instruções. Só faltava esperar que a sorte não o abandonasse. Em tudo na vida é preciso ter sorte, e na guerra é fundamental. Há militares que têm boa sombra no mato e outros não.

À hora combinada a companhia saiu para o mato. O capitão decidiu ir através da bolanha direito a Feribrique, passar depois por Melinde e atravessar depois o rio Lama para começar a bater a mata. A marcha era lenta e difícil. As bolanhas ainda tinham água e eram atravessadas por pequenas ravinas e fios de água difíceis de transpor de noite. A certa altura a coluna partiu-se. O capitão mandou parar o Henriques e ordenou aos guias que fossem recuperar a coluna.

─ Como te sentes, Henriques?

─ Mal, meu capitão. Sinto-me triste. Nunca me senti assim numa operação. Não sei o que se passa comigo.

─ Não é nada. É a primeira vez que tens a responsabilidade de abrires a coluna e estás a sentir esse peso. Só prova que és um oficial responsável. No entanto, se vires que não te sentes bem, passa o Manuel para frente. Vê lá se estás bem de saúde.

─ De saúde estou bem, fisicamente não tenho nada. Sinto-me é muito triste. É como se uma desgraça estivesse para me acontecer.

─ Tens a certeza de que queres continuar à frente?

─ Tenho, meu capitão. Não podia perder a oportunidade da abrir a coluna da companhia.

─ Então segue lá. Continuamos porque a coluna já está unida. Devagar que o terreno é difícil.

Assim se reiniciou a marcha. O rio Lama foi atravessado sem novidades. Com o raiar da aurora iriam dar início à batida. O capitão mandou seguir a corta-mato até encontrarem um caminho que desse indícios de uso recente.

Passado algum tempo o Henriques falou.

─ Cristo, aqui Henriques. Tenho aqui um caminho que parece ter sido utilizado, escuto.

─ Henriques, vou já para aí, depois falamos.

Rapidamente o capitão juntou-se ao Henriques e observou o caminho. Vinha do Cantanhez e seguia para noroeste, para a nascente do Ungarinol. O capitão nem hesitou.

─ Vamos seguir este caminho até à nascente do rio. Temos de ir com muito cuidado para não sermos emboscados. Podem começar a andar.

Dadas estas instruções , o capitão chamou os seus comandantes de pelotão.

─ Fernandes, Tala, Manuel, aqui Cristo. Encontrámos um caminho utilizado recentemente. Vem do Cantanhez e segue para noroeste. Vamos seguir por aí. Manuel, cuidado com a retaguarda. Se houver tiroteio o Tala e o Fernandes aguardam ordens. Cuidado e muita atenção. Já estamos no meio deles. Digam se entenderam, escuto.

Todos tinham entendido e o capitão reportou terminado. A progressão da companhia continuou muito lenta. Os soldados, olhos bem abertos, procuravam detectar no terreno e em cima das árvores algo de anormal, um sinal dos guerrilheiros. Silêncio total. Nem a bicharada se fazia ouvir. O capitão avançou um pouco e aproximou-se do Henriques. Sabia que, se houvesse emboscada, a sorte dependeria da reacção dos homens da frente.

Apesar de todo o cuidado na progressão, ouviu-se nitidamente um tiro isolado seguindo de um tiroteio enorme. A situação foi tão inesperada que todo o pelotão se deitou imediatamente no chão. O alferes Henriques estava caído uns três a quatro metros à frente do capitão. O capitão correu para ele para lhe dar instruções e verificou que o Henriques estava ferido com um tiro na barriga. De imediato tomou conta do pelotão, dando ordens directas aos soldados. O Lassen foi buscar o enfermeiro que rápido chegou ao local.

─ Eu já trouxe o alferes Henriques aqui para trás deste monte de baga baga  ─ disse o capitão. ─ Tome conta dele e veja o que pode fazer. Eu tomo conta do pelotão e vou sair daqui ou ainda cá ficamos todos. Arrancamos directos a eles. Passo rápido e fogo sobre eles.

Os soldados levantaram-se e meteram-se pela mata dentro com o capitão. Os guerrilheiros pararam o fogo e retiraram. Na perseguição foi localizado um acampamento improvisado.

─ Fernandes, Tala, Manuel, ─ aqui Cristo ─ sofremos uma emboscada. O Henriques parece que está gravemente ferido. Localizei um acampamento que vou ultrapassar. O Fernandes deixa alguns homens recolher o Henriques e os outros feridos, traz o Tala e vem ter comigo. O acampamento fica por vossa conta. Destruamno.

O pelotão do Henriques garante a segurança frontal. Manuel, segurança à retaguarda. Depois do acampamento destruído retiramos para a bolanha e fazemos as evacuações. Digam se entenderam, escuto.

─ Cristo, aqui Fernandes. Entendido. Agora vou seguir para aí com o Tala. O Henriques morreu, informou o enfermeiro. Há mais três feridos, escuto.

─ Cristo, aqui Manuel. Entendido. Segurança à retaguarda garantida. Escuto.

─ Aqui Cristo, terminado para todos.

─ Bedanda, aqui Cristo. Fui emboscado. Tenho quatro feridos um dos quais oficial. Solicito presença helicóptero para evacuações. É urgente. Estou na mata a oeste do rio Lama e vou agora para a bolanha onde assinalarei a minha presença. Diga se entendido, escuto.

─ Cristo, aqui Bedanda. Entendido. Terminado por agora.

Rapidamente o acampamento foi revistado e destruído. Acampamento recente, estava localizado numa zona de difícil acesso onde os guerrilheiros se sentiam seguros.

O capitão estava triste. Tinha morrido um oficial que era para ele como um filho. Gostava de ir com o capitão para todo o lado e tinha grande admiração pelo seu comandante de companhia. Depois de destruído o acampamento e assegurada na bolanha a segurança para se fazerem as evacuações, o capitão disse ao Fernandes:

─ Sou o responsável pela morte do Henriques. Quando a coluna se partiu eu estive a falar com ele e o rapaz parecia que adivinhava a morte. Estava muito triste. Devia tê-lo mandado para a retaguarda e passar o teu pelotão para a frente. Nunca me perdoarei.

─ O meu capitão não tem culpa. Cada um de nós morre quando tem de morrer. Tinha chegado a hora do Henriques. Se me passasse a mim para a frente e o Henriques para a retaguarda, a emboscada seria à retaguarda e o Henriques morria na mesma.

─ Talvez tenhas razão. Mas nunca mais esquecerei a cara de angústia quando foi ferido e a conversa que tive com ele.

─ Não pense mais nisso, meu capitão. Está aí o heli. Vamos fazer as evacuações.

─ Eu vou falar com o piloto. Trata de trazer o Henriques e os feridos.

O capitão, acompanhado do Lassen, do Joãozinho e do rádio telegrafista, dirigiu-se para o helicóptero onde falou com o piloto.

─ Um dos feridos já morreu. Foi o alferes Henriques. Peço-lhe para o levar para Bissau juntamente com os feridos.

─ Eu vou fazer isso,  embora o senhor capitão saiba que não nos é permitido levar mortos para Bissau.

─ O senhor pode dizer que ele morreu na viagem. Queremos evacuá-lo para Lisboa,  e se estiver em Bissau é mais fácil para nós.

─ Esteja descansado, senhor capitão, que eu levo tudo para Bissau.

Quando o corpo do Henriques e os feridos estavam dentro do helicóptero, o Lassen perguntou ao capitão se também podia ir.

─ Não, não podes. Tu podes é levar já duas lamparinas no focinho. No helicóptero só vão os feridos. Eu fico cá e tu também ficas.

─ Nosso capitão, olhe, eu também estou ferido.

Só nessa altura o capitão deu conta de que o seu guarda-costas estava a perder sangue. Para estar sempre ao lado do seu capitão durante a emboscada, o Lassen não disse a ninguém que também estava ferido e nem sequer tinha sido visto pelo enfermeiro. O capitão viu então a amizade e o respeito que aquele soldado tinha pelo seu capitão.

─ Desculpa, Lassen. Agora devias levar duas bofetadas por não me dizeres que estavas ferido. Vais embarcar depois de o enfermeiro te fazer um penso.

Penso concluído, o Lassen entrou no helicóptero. De dentro do helicóptero falou para o Joãozinho:

─ Joãozinho, eu vou para Bissau. Toma conta do nosso capitão.

O capitão ficou emocionado. Como era possível tanto amor, lealdade e ternura dum soldado para um capitão de Lisboa. Coisa que só a vida dura de combate na Guiné pode explicar.

Depois da evacuação dos feridos, o capitão deu ordem para regressar ao quartel onde chegaram por volta das cinco horas. Um avião sobrevoou o quartel e o capitão deu ordens ao 1.º sargento para ir à pista ver quem tinha chegado.

Quem chegava era o coronel comandante do sector. O capitão já estava de tronco nu e calças desapertadas, preparava-se para tomar banho.

O comandante do sector disse ao capitão.

─ Parabéns, Cristo. Foi uma operação em cheio. Você não deixa os guerrilheiros descansar nem um pouco.

─ Meu comandante, não aceito os parabéns. Tive quatro feridos e um morto. O morto é um oficial que era como um filho para mim. Por favor, tenha dó de mim e compreenda a minha tristeza.

─ É certo que teve um morto e quatro feridos, mas isso não pode ofuscar o êxito da operação. Dou-lhe os parabéns e quero falar aos seus soldados. Mande formar a companhia.

─ Talvez o senhor não saiba como está a companhia neste momento. As ordens que dei foram que quem quisesse comer ia comer, quem quisesse tomar banho ia tomar banho e quem preferisse ir dormir ia dormir. Isto significa que tenho homens a dormir, a tomar banho e a comer. A companhia não está em condições de formar.

─ Olhe, Cristo, eu já estou farto de ver homens nus e posso vê-los mais uma vez. Mande formar a companhia como estiver.

─ Ouviu, nosso primeiro? ─ perguntou o capitão. ─ Não está aqui nenhum oficial. O senhor vai formar a companhia e tem dois minutos para o fazer. Os homens podem formar nus. Formam como estão. Ninguém perde tempo a vestir umas cuecas ou umas calças. Dê ordem para formar a companhia e acompanhe o nosso comandante. Se me dá licença, meu comandante, eu vou tomar banho que era o que eu estava a pensar fazer. O nosso primeiro forma a companhia porque os nossos alferes, tal como eu, não estamos em condições de receber parabéns quando nos morreu um alferes. Isso é mais que suficiente para eu considerar a operação um fracasso.

Dito isto, o capitão que segurava as calças com as mãos, deixou-as cair e ficou em cuecas em frente do comandante e do 1.º sargento, que deitou as mãos à cara. O capitão, imperturbável, começou a descalçar-se, tirou as calças e as cuecas e foi tomar banho sem dizer nada ao comandante. Quando saiu do banho mandou chamar o 1.º sargento para saber o que se tinha passado. A companhia tinha formado, e a maior parte dos homens estavam de cuecas ou de calções. Mesmo assim, o nosso comandante tinha falado com eles e dito que não deviam estar tristes por terem feridos e por ter morrido um alferes, porque os guerrilheiros tinham tido mais baixas. A operação tinha sido um êxito.

O capitão foi para a messe, pediu uma cerveja e falou com os alferes.

─ Os sacanas hoje agiram com inteligência. Aquele tiro contra o primeiro branco da coluna foi o sinal para a emboscada. Sabiam que com esse tiro feriam ou matavam um oficial ou um sargento. O Henriques era o primeiro branco da coluna e eu o segundo. O Lassen levou um tiro numa perna que era dirigido a mim. Não fui ferido ou morto por muita sorte. Hoje renasci. O nosso coronel deve estar chateado comigo. Eu não podia fazer nada. É de muito mau gosto vir dar os parabéns a um capitão por uma operação com quatro feridos e um oficial morto. Há indivíduos que nunca serão capazes de compreender a mentalidade dos combatentes. Que se lixem.

─ Olhe, meu capitão, ─ disse o Manuel ─ eu não fui à formatura mas espreitei. Cumpriram-se integralmente as ordens. Formou rapidamente mas em cuecas. Alguns de tronco molhado, pois tinham acabado de sair do banho. O nosso comandante não viu os homens completamente nus mas fartou-se de ver corpos de homens quase nus. Talvez tenha aprendido a lição e na próxima já não nos chateie. Vamos beber mais uma cerveja para esquecer as tristezas. (...)

Emoção na hora da despedida, em julho de 1967:

Quando chegar a hora da despedida,  em meados de julho de 1967, o capitão Cristo, cmdt da 4.ª CCAC,  irá recordar com muita saudade, o Henriques (a par do Ribeiro, Cordeiro, Carvalho e Oliveira, os seus queridos alferes):

(...) O capitão estava emocionado porque não contava com este almoço de despedida. Quando falou no alferes Henriques, um dos mortos em combate, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, pois a morte do Henriques estava muito viva no seu coração.(...) (pág. 373)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos,  itálicos, parênteses retos e subtítulos: L.G.] (Com a devida vénia...)


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda e dos rios Cumbijã, Ungauriuol (afluente do Cumbijã) e Lama (afluente do Ungauriuol)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


2. Sinopse da Op Sobreiro, 21fev1967

Realizada para localizar e destruir as instalações inimigas referenciadas na região compreendida entre o rio Lama e o rio Ungauriuol, sector S3 (Bedanda), efectuando uma batida que foi executada por forças da CCav 1484,  4ª CCaç e Pel Can s/r 1154. 

Foram localizados 2 núcleos de casas que constituíam o objectivo, que foi destruído. O lN sofreu 3 mortos, além de outras baixas prováveis. As NT sofreram 2 mortos (o alf mil Américo Luís Santos  Henriques, natural de Ourém,  e o sold Sambel Baldé, natural de Bafatá, ambos da 4ª CCAÇ),   2 feridos graves e 2 ligeiros.

Fonte: Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 34. (Com a devida vénia...).

PS - No livro supracotado, há um erro sistemático em relação ao nome do rio, que não é Ungarinol, mas sim Ungauriuol (carta de Bedanda, escala 1/50 mil). Erro que vamos corrigir nos postes anteriores em que há referências a este rio, afluente do Cumbijã.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)