sábado, 10 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23862: História de vida (49): Sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos, tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...)


Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1964/66) e CCAÇ 1565 (1966/68) > Domingo, 10 de julho de 1966 > Um dia trágico: pormenor da evacuação do cap mil inf Rui Romero, na foto a ser transferido para a maca do helicóptero Alouette II... A enfermeira paraquedista era a alf Maria Rosa Exposto.

Foto (e legenda): © Artur Conceição (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte II: A guerra e a sua violência... mas também havia situações  "engraçadas" (como, por exemplo, quando "eles", em Tancos,  tentavam esconder a revista "Playboy" quando eu chegava ao bar de oficiais...) 



Rosa Serra, hoje (2020)

Perguntaram-me, no Hospital de Cascais onde estive recentemente internada (*), onde trabalhei, e ficaram admiradas, as enfermeiras, quando desfiei os vários locais e as experiências que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista.

Naturalmente que não escondi que foi uma experiência profissional interessante, mas acrescento sempre que essa realidade foi muito específica e muito diferente da prestação de cuidados em outros contextos, mas talvez não superior aos desempenhos como enfermeira, antes e depois, dos anos que estive ao serviço da Força Aérea.

A Arte do Cuidar é muito variável e sempre adaptada ao contexto onde se exerce. A nossa ação, como enfermeiras paraquedistas, foi num palco de guerra, que desencadeava estados de stresse elevado, sendo necessário geri-lo com mestria, para que a nossa intervenção fosse útil e eficaz. Tínhamos de ter atenção ao nosso estado emocional, pois ele refletia-se naqueles que eram socorridos por nós.

Foi uma mais valia fazermos o curso de paraquedismo, que não nos ensinou a ser enfermeiras, pois já o eramos antes de entrar no RCP - Regimento de Caçadores Paraquedistas, mas foi durante o curso de paraquedismo que aprendemos a controlar os nossos medos e emoções, para que aterrássemos em segurança. Esse treino repercutiu-se na nossa ação, que passou a ser mais calma e mais eficaz.

Os nossos combatentes tinham uma confiança ilimitada nas enfermeiras paraquedistas, foram eles que nos apelidaram de “Anjos“ que desciam do céu para os socorrer. Acredito que a maioria de nós, se não todas, se via como seres espirituais, mas foi uma expressão carinhosa, utilizada pelos nossos combatentes.

Com os pilotos, quando alguma coisa os preocupava, nós, mesmo não entendendo nada de aviões, tentávamos acalmá-los.

Recordo de uma vez na Guiné. O sr. capitão, piloto aviador Cartaxo, ao atravessar o Rio Geba, o maior rio da Guiné, que ficava em frente à cidade de Bissau, par irmos buscar um paraquedista à outra margem desse rio, deparou-se com um inesperado nevoeiro que, sem qualquer “aviso”, fechou o nosso caminho, impedindo que o rumo que estava traçado inicialmente, teria de ser alterado ou adiada a missão. Já estávamos a sobrevoar Tite quando esta alteração climática aconteceu.

De início, o piloto tentou ultrapassar as nuvens, e eu também fiquei atenta ao comportamento das mesmas e andamos ali um bom bocado a sobrevoar Tite, na expetativa de não ser necessário regressamos a Bissau, sem a nossa missão cumprida que era trazer o nosso ferido.

– Olha ali, as nuvens estão a abrir e a nosso favor – disse eu, mas o Capitão mexia na manche,  alheio à minha informação.

Eu sem perceber por que razão o seu foco era apenas os instrumentos da aeronave. Só no fim de uns bons minutos, acedeu ao meu pedido e acabámos por aterrar no aldeamento donde vinha o pedido.

A pista que nos recebeu era de terra batida, cujas pedrinhas batiam na fuselagem da frágil avioneta, uma DO-27. O ferido que íamos buscar era um paraquedista da companhia do, na altura,  capitão paraquedista Terras Marques [, a CCP 121 / BCP 12],   que na noite anterior pernoitara nesse quartel do Exército, vindo de uma operação.

Quando aterramos, chegou até nós o militar ferido,  que já apresentava alguma dificuldade respiratória, porque ao cair da tarde foi tomar banho a um pequeno rio, mergulhando numa parte baixa e lesionou a coluna cervical, razão suficiente para eu pedir ao capitão que pedisse à BA 12, em Bissalanca, para ter um helicóptero disponível na pista à nossa chegada.

O hospital militar [, o HM 241, em Bissau], ficava relativamente perto da BA 12, mas não seria indicado ser transportado por terra, percorrendo uma estrada de piso degradado até lá.

O sr. capitão piloto aviador acedeu ao meu pedido e, quando aterrámos na BA 12, lá estava o Alouette III à espera. Fez-se transferência do ferido para o helicóptero e, antes de ele descolar, coloquei dois frascos de soro em cada lado do seu pescoço, para o manter minimamente estável e já não o acompanhei até ao hospital. O trajeto era demasiado curto, não justificava minha presença durante a viajem.

Depois do helicópetero levantar voo rumo ao Hospital Militar de Bissau, virei-me para o aviãozinho, para perguntar ao capitão se queria acompanhar-me ao bar dos pilotos para tomarmos o pequeno almoço, e qual não é o meu espanto quando vi num buraco na asa do avião, e em cima dela estava um cabo mecânico da Força Aérea que, com ar animado, informa:

– Meu capitão, já a encontrei.

Foi quando vi o furo no DO-27 e ingenuamente disse ao capitão:

– Eu,  quando ouvia as pedras a bater na barriga do avião,  pensei que estas iriam criar moça ao nosso aviãozinho. 

Ele não reagiu á minha observação. Só no bar dos pilotos, não ele, mas quem ouviu a sua narrativa, ria descaradamente na minha cara. Até eu ri pela minha ignorância e estupidez.

Por vezes parecia que vivíamos num mundo de “anedotas”, estou a lembrar-me de outra reação que os pilotos tinham quando chegava um avião da TAP, com passageiros idos de Lisboa.

Após o almoço no Bar dos Pilotos, onde geralmente eu tomava café, de repente alguém me segura por um braço e diz:

– Vamos já para a pista.

E um deles arrasta-me me para dentro de um jipe que já estava à espera dos meninos pilotos, nesse dia acompanhados por uma enfermeira paraquedista. Explicaram-me:

– Vamos ver as miúdas que vêm de Lisboa.

Quando chegamos muito perto da pista, e na distância permitida, estacionaram o jipe e lá ficamos a olhar o belo avião TAP, de portas abertas com um assistente de bordo à espera da colocação das escadas, por onde desceriam os passageiros que chegavam de Lisboa.

Colocada a escada, os passageiros aparecem começando a descer os passageiros e iniciou-se o alvoroço:

– Olha a loiraça que aí vem, é o máximo – diz outro.

E eu pensava:

– Estão todos apanhados pelo clima, o que é que eu tenho a ver com isto ?!

Até que de repente se instala a desilusão total e começaram a lamentações, dizendo:

– Ó, pá, é a Rosa Exposto (uma enfermeira paraquedista)

Eu arregalei os olhos, pensando como é enfermeira paraquedista já não interessa!... Mas, ri com gosto, pela desilusão dos nossos amigos pilotos.

"Essa enfermeira é gira mas é... uma enfermeira paraquedista", acredito que a frase, dita à minha frente, os incomodou por considerar o comentário pouco respeitoso.

Foi bom confirmar que, para além dos paraquedistas, também os pilotos tinham alguma preocupação em terem atitudes delicadas, pelo menos na nossa presença.



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


Há um caso dramático que ainda hoje me custa falar. Embora eu não assistisse, nem tão pouco eu estava na Guiné, mas conhecia a enfermeira em questão, quando eu estava em Luanda e lhe fiz a adaptação no transporte de feridos e doentes de Luanda para Lisboa.

Segundo a narrativa das enfermeiras que estavam na Guiné na época, essa enfermeira nesse dia quando almoçava no BCP 12, chegou um jipe, que sabia sempre onde estava a enfermeira de alerta do dia, informando que havia uma evacuação. A jovem interrompeu a refeição, meteu uma peça de fruta no bolso, entrou na viatura que arrancou em direção á pista.

Com todo aquele stresse, teve uma atitude impensável e sem lógica nenhuma. Foi colocar a bolsa dos primeiros socorros na porta de trás, pelo lado do piloto e voltou para o seu lugar pelo mesmo lado.

Sem que o piloto se apercebesse que ela voltara pela frente do avião, para ocupar o seu lugar,  o lugar dela, ele põe o motor a trabalhar, atingindo-a mortalmente com as pás. É impressionante como ela não se lembrou dos ensinamentos dados pelos paraquedistas, que nos ensinaram; nunca se passa pela frente de um avião, nem por trás de um helicóptero, visto ser lá que está instalado o rotor de cauda. (**)

As enfermeiras que estavam a almoçar com ela, ficaram sem perceber porque é que o jipe voltou logo de seguida, chamando todas as enfermeiras à pista. Elas foram e depararam-se com aquele cenário horrendo.

Por muito preparadas que estivéssemos, há sempre situações que é impossível não nos abalar profundamente.

Apesar de tantas situações violentas, não foram só tristezas, havendo sempre algumas engraçadas para recordar. Eu sou do tempo em que em Portugal não se vendia a revista Playboy, ela só chegava ao RCP quando alguém a trazia da Base Americana dos Açores. Eu estava em Tancos nessa altura a dar um curso de primeiros socorros avançados a socorristas paraquedistas e,  quando chegava o fim da tarde, antes do jantar, passava pelo bar dos oficiais que era composto por três salas: o bar propriamente dito, uma segunda sala destinada à leitura e uma terceira com televisão.

Era lá nessa sala de leitura que estava a dita revista. Quando eles davam conta que eu estava a entrar, tentavam disfarçar passando as revistas, de cima para baixo e avisavam em surdina:

– É, pá,  cuidado, vem aí a Rosa. 

Eu fingia não perceber,,, Só mesmo paraquedistas têm este comportamento para com as suas camaradas, e assim contribuíam para que a nossa confiança, respeito e admiração por eles, fosse cada vez maior.

À primeira vista até parece que não, mas este comportamento de respeito e delicadeza influenciou a nossa postura quando tínhamos um ferido nas nossas mãos, fosse ele amigo ou inimigo, era sempre preciso respeitá-lo e entender o seu desespero.

Não esqueço o livrinho sobre a ética militar, que me foi oferecido pelo Batalhão de instrução no nosso RCP em 1968, que ainda o tenho, onde está escrito; quando estamos perante um inimigo, ferido temos de o respeitar pois ele nessa situação deixa de ser inimigo e é obrigação socorre-lo, com todo o respeito.

Quando li isto tive uma sensação ótima, por ver que os princípios éticos dos paraquedistas não colidiam com os meus próprios princípios como enfermei

A minha evolução, como enfermeira e como pessoa, foi grande.

Achei curioso quando eu ainda estava internada no Hospital de Cascais, perguntarem-me se eu era contra a guerra. Expliquei que não é essa a questão, pois todos sabemos que as guerras são indesejáveis em qualquer situação, mas enquanto existirem dois homens à superfície Terra, haverá sempre conflitos.

   É   anuíram elas.

(Continua)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas / LG]
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(**) Vd. poste de 6 de janeiro de 2015 > Guiné 63774 - P14123: As nossas queridas enfermeiras paraquedistas (32): A morte da camarada Enfermeira Paraquedista Celeste Costa (Giselda Pessoa)

Guiné 61/74 - P23861: Parabéns a você (2123): Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72) e Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA (Bissalanca, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23846: Parabéns a você (2122): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil Armas Pesadas Infantaria da CCAÇ 2366/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete e Quinhamel, 1968/70)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23860: Convívios (949): Almoço de Natal da Tabanca de Matosinhos, dia 14 de Dezembro de 2022, no restaurante Espigueiro, em Matosinhos, a partir das 12 horas (José Teixeira)


1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 8 de Dezembro de 2022:

Bem-vindo ao almoço de Natal na Tabanca de Matosinhos.

Quarta feira dia 14 de Dezembro na Tabanca de Matosinhos.

Podes vir acompanhado e traz uma pequena prenda para dar a alguém. Levarás de volta uma recordação deste dia que alguém trouxe para ti.

Um grande abraço

Pela Tertúlia da Tabanca de Matosinhos
Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23805: Convívios (948): 82.º Encontro da Tabanca do Centro, a levar a efeito no próximo dia 30 de Novembro no Restaurante "Tertúlia do Manel", Cortes, Leiria

Guiné 61/74 - P23859: Notas de leitura (1530): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Eu só espero que o coautor José Augusto Matos esteja a acompanhar criticamente esta adaptação de partes essenciais do seu livro que eu aqui faço um tanto às três pancadas, desconhecedor que sou da terminologia mais fiável e inclusivamente a leitura que eu faço e procuro transcrever de aspetos essenciais não corresponderá ao olhar dos autores, daí o pedido de auxílio a quem sabe da poda. O que aqui se elenca é a escolha, com os recursos possíveis, de aeronaves que melhor se adaptassem à realidade do solo guineense. Quando, em 1961, já não era possível camuflar mais que em breve iria eclodir a luta armada foi necessário apetrechar Bissalanca a diferentes níveis, tinha que ser aeródromo civil , dispôr de hangares, pistas bem mantidas, uma proteção de segurança, instalações compatíveis com as forças dotadas para a permanente intervenção. E os autores vão nos dando explicações quanto à natureza das aeronaves, dando os porquês daquelas que vingaram, caso do DO-27, dos Alouette II e III, do Dakota, do Noratlas e do Fiat G-91, revelaram-se preponderantes, deram uma colaboração extraordinária, até que a supremacia aérea foi posta em causa.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (7)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Seguiram-se outros capítulos, fez-se a contextualização sobre a ascensão dos movimentos de libertação e estamos nesta altura já a falar sobre a implantação da FAP na Guiné num contexto de zona aérea de Cabo Verde e Guiné, 1961, prepara-se Bissalanca para as operações de combate mediante de um programa de construção para reabilitar e ampliar a pista do aeródromo, também com a construção de hangares e outras instalações para manutenção e suporte.

Quando os primeiros pilotos da FAP chegaram em julho desse ano, ainda não encontraram em funcionamento qualquer centro de operações ou alojamentos de pessoal, foram preciso mais 6 meses para dar por concluídas as melhorias essenciais e a base aérea de Bissalanca iniciar as suas operações. De acordo com a classificação apresentada pelos autores, temos uma base aérea e aeródromos de manobra e trânsito. Bissalanca não podia apoiar todas as atividades da FAP, daí ter-se criado uma rede de mobilidade, o ponto focal era o aeroporto do Sal, uma plataforma para operações na Guiné ou para a Base Aérea n.º 9 em Luanda. Com os aperfeiçoamentos introduzidos em Bissalanca, aqui puderam aterrar aviões de carga, incluindo o Boeing 707. Procurou-se igualmente estabelecer uma rede de aeródromos e pistas auxiliares para maior apoiar as unidades de superfície. Identificaram-se 28 pistas de aterragem, mas nenhuma foi pavimentada e apenas uma poderia ser usada pelo DC-3 ou aeronave similar. A maior parte destas pistas podia receber aviões utilitários leves e vários aeródromos (Bafatá, Tite e Bubaque) foram melhorados para acomodar caças com motor de pistão e Bubaque passou a dispor de logística como aeródromo suplente de Bissalanca. Apareceram posteriormente aeródromos em Cufar, Nova Lamego e Aldeia Formosa. No aceso da guerra, havia mais de 70 campos de aterragem, uma boa parte deles não passava de clareiras ou trechos abertos de estradas. Ao longo da guerra na Guiné, os aviadores portugueses chegaram a fazer até 7 surtidas por dia para estas pistas rudimentares.

Os planos elaborados em 1960 previam um complemente de 4 aeronaves de observação, transporte médio e apoio de fogo para estarem permanentemente na base aérea de Bissalanca. Este dispositivo foi alterado depois das primeiras flagelações, em 1963 (houve um antecedente, perpetrado por um movimento rival do PAIGC, o Movimento de Libertação da Guiné, que atacou S. Domingos, Susana e Varela em julho de 1961, mas que não passaram de incidentes que levaram a maioria dos residentes europeus a fugir para Bissau. Por essa altura já a FAP tinha começado a transferir aeronaves militares para os territórios africanos envolvidos em conflito. Em fevereiro de 1961, a FAP deslocou 12 F-84 para Luanda, em agosto desse ano chegaram os primeiros helicópteros Alouette II. No verão de 1961, já havia uma expetativa de rebelião na Guiné e Moçambique, a Guiné recebeu dois aviões Dakota e um Auster, mas os ataques do movimento de libertação da Guiné exigiram que se despachasse para ali caças F-84. E havia pedidos para pôr na Guiné F-86, a operação denominou-se “Atlas”. Em agosto de 1961, oito aviões Sabre chegaram à ilha do Sal, este contingente chegou a Bissalanca em 15 de agosto. Os pilotos portugueses do F-86 passaram rotineiramente a permanecer 3 meses na base aérea, com funções de reconhecimento. Chegaram depois dois T-6 desmontados e encaixotados por via marítima. No início de 1962, oito T-6 tinham sido montados e organizados como esquadrilha de apoio de fogo. Na opinião de peritos da FAP, o T-6 representou um bom compromisso entre simplicidade, facilidade de manutenção, durabilidade, carga e flexibilidade para dar apoio de fogo às forças terrestres. Chegaram igualmente Texans e Harvards, que tinham servido na Argélia e foram equipados para fazer fogo e lançar bombas. Mais tarde, a Alemanha Federal forneceu T-6, DO-27 e caças G-91.

Os T-6 eram os aviões considerados menos apropriados para ataques contra bases do PAIGC ou concentrações de guerrilheiros, devido ao ruído dos motores e à sua baixa velocidade, sobretudo. O T-6 precisava de 2 a 3 minutos para metralhar ou lançar uma bomba, ficando exposto a fogo terrestre hostil. Para muitos era considerado um estorvo nas operações. Contudo, tornou-se no avião de ataque a solo da FAP na Guiné e assim permaneceu até ao fim da guerra. A aeronave de patrulha marítima Lockheed P2V-5 Neptune foi introduzido na Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné nessa época, quando o F-86 e o T-6 se estrearam em África. Portugal tinha adquirido uma dúzia de aeronaves oriundas da Holanda em 1960 e a sua implantação foi imediatamente reconhecida como uma prioridade operacional, devido ao seu longo alcance e resistência, transporte de carga pesada e capacidade de monitorar a atividade costeira. Chegara a Bissalanca em 1961, mas os dois Neptunes, tripulações e pessoal de manutenção transferiram-se para o Sal no início de 1962. No ano seguinte, os P2V-5 realizaram operações marítimas e de reconhecimento terrestre sobre a Guiné e ilhas adjacentes procurando cartografar as possíveis rotas de infiltração do movimento insurgente. No entanto, as reparações exigiam longos períodos de inatividade enquanto não chegavam as peças ou os especialistas da base aérea do Montijo. Também estas aeronaves eram obrigadas a regressar ao Montijo após 60 horas de voo para inspeção programada e manutenção. Contra as dificuldades, aquele destacamento que fora criado em 1961 teve que ser dissolvido, e a partir de então um par de aviões P2V-5 e suas tripulações permaneciam em permanente estado de alerto no Montijo, prontos para ajudar as forças portuguesas em Cabo Verde e Guiné, sempre que necessário.

Para as missões de transporte em distâncias médias, a FAP contava com o Dakota, desde 1961 que havia um disponível em Bissalanca. Pelo menos em 1967 e 1968 os aviões Dakota foram também usados para lançar paraquedistas em grandes operações terrestres. As tarefas de observação, ligação e transporte mais leve recaíam originalmente em aviões como os Auster e Broussard, que tiveram passagens relativamente curtas na Guiné até serem substituídos pela DO-27, a partir do final de 1963. A FAP realizou testes com o DO-27, de fabrico alemão, a partir da primavera de 1961 e descobriu que a sua capacidade, resistência e versatilidade eram ideais para o serviço em África. O DO-27-A4 tinha uma autonomia de mais de 6 horas, carregava equipamentos da rádio VHF e HF, incluindo um conjunto ARC-44 que permitia a comunicação de voz com as forças terrestres. Entraram ao serviço entre dezembro de 1961 e janeiro de 1962, estava-lhes destinado uma longa permanência na Guiné entregando cargas, fazendo reconhecimentos, evacuando pessoal doente ou ferido, acompanhando equipas de comando, entre outras missões. Nenhuma outra classe de aviões teve um peso tão simbólico na guerra aérea na Guiné.

Como tem vindo a ser observado, os helicópteros revelaram-se insubstituíveis. O primeiro helicóptero foi adquirido em França, era o Alouette II, três deles foram enviados para Bissalanca e prontamente usados em funções de ligação, logística, evacuação médica, até terem sido suplantados, em 1966, pelos Alouette III. Não levantavam problemas de substituição de peças, como era o caso dos F-86 e o P2V-5, que exigiam manutenção depois de 10 a 15 horas de voo, vivia-se uma situação agravada pela falta de técnicos qualificados.

A falta de peças, equipamentos de manutenção e respetivo pessoal foi sempre um tormento para a FAP na Guiné, mesmo quando chegou o Noratlas e o Fiat G.91, foi sempre uma escassez que acompanhou a presença da FAP durante toda a luta de libertação.

Aeródromo de Nova Lamego, que dispunha de T-6 e Alouette III (Coleção Virgílio Teixeira)
Base aérea e aeródromos do ZACVG
Kaúlza de Arriaga cumprimentando pilotos dos F-86 destacados para a “Operação Atlas” no Montijo (Coleção Conceição e Silva)
Capitão Almeida Brito, um dos pilotos do F-86 envolvidos na “Operação Atlas”. Será anos mais tarde vítima de um míssil Strela, na Guiné (Coleção Conceição e Silva)
Um F-86 à noite na ilha do Sal (Coleção Conceição e Silva)
Os F-86 em Bissalanca, ao lado do T-6 e C-47 (Coleção Lobo Fernandes)
Mapa da Operação Atlas (Matthew M. Hurley)

(continua)

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Notas do editor

Poste anterior de 2 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23839: Notas de leitura (1526): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23852: Notas de leitura (1529): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte IV: Os cafés de estudantes e a crise académica de 1962 em Lisboa (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P23858: História de vida (48): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte I: A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira


Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Leitão (2020)


1. Uma boa notícia, uma prenda natalícia: depois de ter superado um problema de saúde, a nossa Rosa Serra parece ter aceite o desafio de pôr no papel as suas memórias como enfermeira e enfermeira paraquedista... O mesmo é dizer, que pode estar em vias de  publicar um livro. Ao telefone disse-me para não fazer grande alarido da coisa... Quando estiver no prelo, daremos mais (boas) notícias... É uma mulher discreta, avessa à publicidade, a Rosa. 

Mão amiga, a do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72) fez-nos entretanto chegar um excerto dos escritos recentes da Rosa Serra, com a autorização para ser revista e publicado no nosso blogue, o que muito nos sensibiliza.  (Ficaram amigos, estiveram juntos no BCP 21, em Angola.)

Falámos depois ao telefone, eu e a Rosa, que é uma minhota de Vila Nova de Famalicão que vive aqui no Sul, em Paço de Arcos, Oeiras... (A Rosa Serra, membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010, foi alf graduada enfermeira paraquedista, tendo passado pelos 3 TO: Guiné 1969-70 / Angola 1970-71 / Moçambique 1973).

História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte I:  A minha mãe achava que eu tinha jeito para ser enfermeira


Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri…

Capa do livro de que a Rosa Serra foi coautora e coordenadora,
"Nós, enfermeiras paraquedistas" (Porto, Fronteira do Caos, 2014, 
439 pp. (Prefácio de Adriano Moreira)



– Só conheço paraquedistas velhotes como eu – respondi.

Continuei com as minhas explicações.

– Quando fui para a Escola de enfermagem, e até muito depois disso, ouvi muitas colegas dizerem que foram para a enfermagem por vocação. Várias dessas enfermeiras faziam questão de acrescentar que queriam muito ajudar e cuidar as criancinhas, os velhinhos, os doentinhos e até os pobrezinhos. Ouvi de tudo... ao ponto de me interrogar se eu algum dia seria boa enfermeira.

Diz-me ela:

– Hoje ninguém vem para enfermagem por vocação.

E continuou:

– Nós vamos para a enfermagem porque não entramos em medicina, farmácia ou outro qualquer curso mais de nosso agrado.

Eu respondi:

– Eu também não fui. No meu caso foi por conveniência familiar. Eu fui porque um dia um dia a minha mãe, que eu já tinha reparado andar muito pensativa, disse-me que o dinheiro era pouco para pagar o meu Externato, que era particular, porque não havia liceu na minha Vila. E assim sendo, talvez fosse melhor eu interromper e ir para um curso para que me permitisse, ao fim de 3 anos ter uma profissão, um ordenado e logicamente ser independente monetariamente.

Respondi, à minha mãe, que gostava de ir para a Universidade.

– Que curso gostavas de fazer? – perguntou ela.

– Não sei…

Pegou-me nas mãos e continuou:

– Sabes que eu acho que tinhas jeito para seres enfermeira ... Penso que era bom para ti...

E acrescentou:

– Verás que vais gostar.

Ficou logo ali, definido o meu destino.

Apesar das minhas dificuldades, sobretudo económicas, lá fui aprender a ser enfermeira sem saber muito bem o que me esperava.

Fui para o Porto estudar. Na minha primeira escola, adquiri obrigatoriamente um livro; Técnica de Enfermagem, que era da Escola da Imaculada Conceição (Casa de Saúde da Boavista no Porto) que alguém informou a minha mãe ser uma boa escola, e foi aí que fiz o primeiro ano.

Os dois anos seguintes foram feitos numa outra escola que, passado pouco tempo descobri, que ficava mais económica.

Uma coisa que pesou muito era haver nesta segunda escola, um lar onde residiam as alunas que não eram da cidade do Porto, isso não acontecia com a Escola da Boavista, ficando assim bem mais barato.

Dessa primeira escola, não esqueci os desenhos logo na primeira folha do livro de Técnica de Enfermagem. O primeiro era uma cabeça feminina, com uma touca de enfermeira da época, sobre cabelos curtos e várias setas apontando para os mais diversos pontos da mesma, onde estavam enumeravam as qualidades indispensáveis de uma boa enfermeira: inteligência, memória, conhecimento, espírito de observação autodomínio, reserva.

Um pouco abaixo, mais dois desenhos. Um deles, era um coração (forma humana), com três setinhas apontando para as palavras: compreensão, sensibilidade, bondade.

Do outro lado mais um desenho, duas mãos segurando uma seringa com mais três setas indicando: segurança, desembaraço, leveza.

Estas eram as qualidades indispensáveis a uma boa enfermeira no Ano de 1963. Dessa mesma Escola de Enfermagem.

Com a continuação do tempo, fui interiorizando estes conceitos e aceitei-os como compromisso. Mesmo quando me deparava com determinada tarefa que me custasse fazer, sempre pensava nas setinhas do coração e nunca deixei de as executar e muito menos pedir a alguém que a fizesse por mim, por mais que me custasse ou até mesmo me enfastiasse...



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)




A minha vocação se calhar só a minha mãe a viu...! O certo é que sempre vivi a minha profissão com gosto, com proximidade daqueles que em determinado momento precisavam de uma enfermeira que se entregasse em plenitude.

A enfermagem, para mim, passou a ser vivida com grande rigor ético e com permanente desafio na aquisição de saberes, para melhor cuidar.

Hoje mais que adulta, penso: é impressionante como sempre me apercebi da mutabilidade dos conceitos, da sua significação ao longo dos tempos, da importância do progresso e da evolução da enfermagem.

É um gosto ver o enriquecimento que, ano após ano, se verifica na formação dos enfermeiros, na perceção da necessidade da existência das especialidades em enfermagem, do avanço científico da mesma. Orgulha-me ver o patamar que atingiu a enfermagem de hoje, e a respeitabilidade que os países estrangeiros manifestam ter pelos Enfermeiros Portugueses.

Em relação a mim, sempre fui movida pelo desejo de um saber abrangente na arte do cuidar em enfermagem.

Assim para fazer frente aos mais variados desempenhos que tive durante quarenta anos, e faze-los de forma responsável e eficaz, apostei na formação contínua durante toda a minha vida profissional.

Ainda pensei fazer uma especialidade, um pequeno grupo de enfermeiras paraquedistas a fizeram, quando estas começaram a surgir. Mas logo percebi que não encaixava na minha personalidade ter sempre o mesmo tipo desempenho e conclui que só serviria para obter mais um título.

Sempre tive uma grande vontade de um saber alargado, para dar resposta às variadas necessidades do ser humano, num período desafinado do seu estado físico ou mental.

Essa simbiose entre um crescendo desejo de experiências e o dinamismo aportado pela minha juventude, foi o motor causador para uma formação variada e contínua.

Nesta caminhada transformadora, tive um desempenho multifacetado e a formação contribuiu muito para um crescimento profissional que, embora despretensioso, foi significativo, permitindo-me para além de aquisição de vários saberes, entender melhor a alma humana e sempre me senti feliz por isso.

Não fui para nenhuma Faculdade na minha juventude, mas completei, bem mais tarde, todo o Liceu (designado hoje como Ensino Secundário).

Quando do Acordo de Bolonha, a enfermagem passou a Curso Superior, já tinha passado quarenta anos e depois de ter iniciado o antigo Curso Geral de Enfermagem, eu regressei à escola para fazer mais um ano, o que fiz na Escola Superior de Enfermagem Francisco Gentil (anexa ao IPO e hoje integreda na ESEL - Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) sendo me conferido o grau de licenciada em enfermagem. Sou agora Licenciada em Enfermagem desde 2003, quando ainda eu estava a exercer funções.

Por graça costumo dizer que iniciei o meu Curso de Enfermagem e só o terminei quarenta anos depois.

Também confesso que a obtenção de várias competências, e tão variados desempenhos que tive no contato direto com doentes, proporcionou-me um sentimento de realização muito intenso, e ainda hoje me sinto orgulhosa pelo percurso que tive e, muito, muito feliz, por ter sido uma simples Enfermeira Generalista (sem especialidade). (...)

(Continua)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo  / Parênteses retos com notas / LG]

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Nota do editor:


Guiné 61/74 - P23857: Efemérides (378): a crise académica de 1962 que, para muitos estudantes, futuros oficiais milicianos, foi o início da sua tomada de consciência cívica e política

 






Não é referido, certamente por lapso,  que, em 9 de março, se rrealiza em Coimbra o I Encontro Nacional de Estudantes (apesar de proibido), e do qual sai a criação do Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses (de que o Eurico Figueiredo é o líder). Em 10 e 11 de maio a polícia toma de assalto a Associação Académica de Coimbra.

Fonte: Excerto de  PCP - Crise académica 1962 - 40 anos (documento em pdf, três páginas) (com a devida vénia)


1. Há quem fale nos 100 dias que abalaram o regime do Estado Novo. O regime não caiu, nem houve nenhum golpe de Estadou e muito menos revolução....

 Foram "apenas" três meses (de março a junho de 1962) de forte contestação da população universitária (sobretudo em Lisboa e Coimbra mas também no Porto), seguida de brutal repressão. 

Para muitos estudantes foi o início da sua "politização" e militância cívica a favor da liberdade (*). Conheceram a brutalidade da polícia política, da polícia de choque, dos canhões de água com tinta azul e, muitas dezenas, as prisões políticas e os tribunais plenários do regime. Outras dezenas viram as suas carreiras académicas interrompidas... E tudo isso teve consequências, a prazo, na "contaminação pelo vírús subversivo" dos quartéis e depois nos teatros de operações de Angola, Guiné e Moçambique. 

Tudo começou com a proibição das comemorações, nesse ano, do Dia do Estudante. Em Lisboa era reitor o Marcello Caetano, que se demitirá em 5 de abril. Uma atitude de que Salazar não terá gostado...  Para Salazar, tudo não passava de agitação comunista, com o inimigo interno, o Partido Comunista Português (PCP), clandestino, a ser utilizado como "títere" por Moscovo... Diz-se que, em conselho de ministros, ele terá dito: "Temos de dar cabo deles, antes que eles que dêem cabo de nós, sentando-se nestas cadeiras daqui a dez anos"... (Talvez parodiando esta frase, algo premonitória,  vinte e tal depois irá aparecer um provedor de uma conhecida misericórdia a dizer mais ou menos o mesmo, mas em termos ainda mais deliciosos: "É preciso tomar conta dos pobres, antes que os pobres tomem conta de nós"...).

Ora a grande maioria dos estudantes universitários eram oriundos dos meios sociais que apoiavam o regime (classe média e média alta)... A universidade formava as elites e era então ainda muito elitista... O Salazar ( e depois Caetano) arranjou foi uma guerra pemanente, com o movimento estudantil que, em 1962, era constituido por gente que não tinha grande "ideais políticos" (mas outros já militivam em organizações católicas abertas ao espírito do Concílio Vaticano II), como o mosso falecido camarada José Pardete Ferreira) (*), e onde as mulheres começam também já a ter algum protagonismo... 

Outras "crises académicas" , ainda mais graves, como as de 1969 e 1973,  são a prova do divórcio irredutível e irreversível, em relação ao regime, por parte da população jovem que estudava (nos liceus, das capitais de distrito,  e nas universidade de Lisboa, Coimbra e Porto),  divórcio esse agravado pela "eternização" do problema ultramarino... (Eu tinha 14 anos no início da guerra de Angola e logo na altura, em 15 de março de 1961,  tive um estranho pressentimento, ou premonição, de que aquela guerra também ia sobrar para mim; não foi a da Angola, foi a da Guiné, oito anos depois...).

Se é verdade que a PIDE acabou, no fim,  por desmantelar a rede clandestina de estudantes universitários ligados ao PCP e prender os principais "cabecilhas" (caso, por exemplo, de militantes como Eurico Figueiredo ou José Bernardino), o regime acabou  por cavar um fosso em relação  ao movimento estudantil português, o que se vai reflectir, naturalmente, nas três frentes da guerra de África / guerra do Ultramar / guerra cololonial. 

A grande maioria dos nossos leitores não participaram nestes acontecimentos nem terão,  muito provavelmente, ainda hoje, grande informação sobre o que se passou em 1962, e as suas eventuais consequências... Até porque a censura nem sequer deixava que as coisas chegassem aos jornais, à rádio, à televisão...

À distância de 60 anos,  estamos já no domínio da História, razão por que achámos oportuno fazer referência, mesmo que sumária, a esta efeméride (**)... (LG)




Fonte: Guya Accornero - Efervescência Estudantil: Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974). Doutoramento em Ciências Sociais. Especialidade de Sociologia Histórica, Lisboa, Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2009. Tese orientada pelo Prof. Doutor Manuel Villaverde Cabral. Tese financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), fundos nacionais do Ministério da Ciência Tecnologia e o Ensino Superior (MCTES), Referência SFRH/BD/23008/2005. 

Disponível em http://hdl.handle.net/10451/321 (Com a devida vénia...)


Efervescência Estudantil - Resumo (Accornero, 2009)

O movimento estudantil, um dos mais activos contra o Estado Novo nas suas últimas décadas, intensificou-se a partir de 1956, quando os estudantes conseguiram bloquear a tentativa do Governo de pôr as associações académicas sob o seu controlo. 

Isso coincidiu com uma conjuntura internacional que provocou profundas consequências na política contenciosa. O XXº Congresso do PCUS [Partido Comunista da União Soviética] com as consequentes crises nos países satélites da União Soviética e com a eclosão do conflito com a China, e o Civil Rights Movements nos Estados Unidos, foram os elementos mais salientes. 

A nível interno, os seus efeitos foram amplificados pela campanha eleitoral do General Humberto Delgado em 1958 e pelo início da guerra colonial em 1961. 

Estes factores contribuíram para a emergência em Portugal de um amplo ciclo de protesto, que concorreu para a politização do sector estudantil e na sua fase final, caracterizada por uma forte repressão, para a radicalização da oposição política, com o aparecimento das primeiras formações maoístas. 

Em 1967 inícia-se um segundo ciclo de protesto, cuja trajectória difusa motiva a definição de “conflitualidade permanente”, impulsionado pela “descompressão política” iniciada por Marcelo Caetano em 1968 e pela contestação estudantil que, sobretudo com o “Maio de ‘68”, estava a eclodir em toda Europa. 

As últimas fases da luta contra o regime foi dominada pelo issue da guerra colonial e por um forte movimento de resistência à incorporação militar. A mobilização e politização estudantil, por seu lado, estendeu-se através um mecanismo de difusão a variados sectores sociais, como o das Forças Armadas, e contribuiu para criar as condições para a mobilização que caracterizou a primeira fase da transição portuguesa, aberta pela Revolução de 25 de Abril 1974. Este ciclo de protesto confluirá portanto no chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC), começando a refluir só depois das eleições de 25 de Abril 1975.

(Reproduzido com a devida vénia...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23852: Notas de leitura (1529): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte IV: Os cafés de estudantes e a crise académica de 1962 em Lisboa (Luís Graça)


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias

1. VII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VII - que mal fizemos nós?!...

O Comando de Bissau destacou um major para assumir o comando da companhia e, uns dias depois, vem um novo capitão, um profissional de artilharia e de comandos, como fazia questão de evidenciar, para comandar a companhia.
Este novo capitão entrou com postura de chefe, apoiado nos galões, e não como líder, o que nada ajudou na recuperação psicológica da companhia, ainda doente pela perda do capitão Assunção e Silva e já um pouco desgastada pelos frequentes ataques agressivos dos guerrilheiros do PAIGC.
Aquela atitude de chefe veio a revelar-se, cada vez mais, ao longo do tempo.

Os conflitos surgiram, as manifestações de revolta atingiram níveis impensáveis, o que nada ajudava na conjugação de esforços para ultrapassarmos as adversidades naturais daquela guerra.
No que me dizia respeito, empatia zero, logo de início, tendo dado origem a um divórcio antes de qualquer ‘relação’, com um convívio tóxico por circunstância, notado por todos, divórcio que se mantém, pois o meu íntimo nunca me permitiu ceder ou esquecer aquele comportamento…

Perseguição constante aos graduados e ameaças de tudo e mais alguma coisa aos soldados, com ‘piçadas’ (rabecadas) por tudo e por nada, sem esquecer agressões físicas.
A toda a hora prometia ‘porradas’ (castigos) e tentava impor a sua autoridade através dos galões, a única forma de conseguir alguma coisa da companhia.
Só por curiosidade, não era bem vindo na Tabanca, pela população nativa…

Também salientava que dois capitães do seu curso tinham morrido, facto agravado pela morte do nosso capitão, também, mas ele tudo faria para manter-se vivo, talvez uma desculpa para o seu comportamento…
Se todos tivessem este mesmo comportamento, só porque queriam manter-se vivos, imaginemos o cenário social e emocional da companhia…

Um militar profissional é suposto ter aprendido técnicas de liderança que permitam fazer face a circunstâncias deste tipo, mas não era o caso, claro…
As operações eram asseguradas por nós, milicianos, enquanto o capitão tratava dos assuntos da companhia, dentro do arame farpado, mais cómodo e um pouco mais seguro…

Desculpe, Daniel, mas lá vou eu falar naquela dos homens, que são todos iguais mas, felizmente, não pensam todos da mesma forma…

Entretanto, chega um 2º sargento, não me recordo porque razão, mas julgo que por uns tempos, apenas.
Algum tempo depois, por incompatibilidades e, ao deparar-se com a filosofia deste capitão e com as dificuldades daquela zona de guerra, cujas operações estavam na mão dos milicianos, acaba por sair de Gadamael Porto.

Segundo informações que me chegaram, logo que chegou a Bissau, este sargento relatou a autoridades militares de Bissau o cenário que se vivia em Gadamael Porto.
Conclusão: ordem de Bissau para que o capitão passasse a fazer parte de toda a actividade operacional, fora do aquartelamento…

A vida continuou e estava-me reservada mais uma surpresa: tanto andou, tanto andou, que foi inventando desculpas e pretextos que me impediram de vir de férias as duas vezes a que tinha direito, o que reforçou a minha revolta, bem notada, por grande parte da companhia.
Mas um pequeno esforço mental e uma certa dose de perseverança, a par de me sentir um pouco mais maduro, permitiu que já conseguisse viver melhor com o que não conseguia mudar.
E eu tinha a certeza - optimismo natural - que nada iria abalar o meu carácter, a minha personalidade, e tudo acabaria bem, pois era certa e forte a amizade e ligação fraternal com os homens da companhia, o mais importante.

E nunca esquecerei aqueles homens, fiéis, leais, apesar da condição humilde de muitos deles, a par de uma revolta natural, principalmente, dos que já vinham de uma experiência de prisão, como Penamacor, por vicissitudes da vida.


as minhas únicas férias!

Passou um ano e vim de férias, uma única vez, claro.

Segundo o primeiro-sargento Moreira, o meu historial não permitia as duas vezes, dada a má relação com o capitão, que tudo arranjou de forma a eu só gozar um período de férias.
O que ele queria era ver-me a reclamar e contestar, não sabendo a que ponto poderíamos chegar, o melhor caminho para a probabilidade de entrarmos em processo disciplinar…
Mas, apesar de tudo e mais alguma coisa, eu estava preparado para situações de conflito e cenários adversos, pelo que não cedia a tentações.

Aproveitei uma pequena avioneta que tinha vindo trazer correio e documentação para a companhia e lá fui, até Bissau, partilhando a avioneta com o Padre da Tabanca, o que significava segurança, para mim…
Dizia-se que, sempre que o padre se ausentava, tínhamos ataque mais cerrado, e ainda tive tempo de avisar alguém sobre essa probabilidade.

Voo da TAP marcado e lá vim até à Metrópole.
Uma escala inesperada, em Cabo verde, na ilha do Sal, por avaria técnica do avião, que durou umas duas ou três horas.
Aeroporto da Portela, Lisboa, parecia imaginação!

Foram trinta e cinco dias de recuperação, de conforto, de civilização, carregando pilhas para mais um ano ‘daquilo’…
Revi e abracei família e amigos, evitando comentários sobre aquela realidade que acabara de deixar e que voltaria a viver.

A minha mãe estava muito preocupada, claro, tanto mais que o Flórido, logo que chegou à Figueira da Foz, foi visitá-la e dizer-lhe que tinha estado comigo, antes de eu partir para o mato, frisando-lhe que ia para o pior sítio da Guiné!
Eu nem queria creditar nisto, pois tinha o Flórido como inteligente e de bom senso.

Ao mesmo tempo, logo que soube que eu tinha vindo de férias, a tia Jú telefona-me a agradecer a minha ajuda e a relatar a atitude do tal filho dos marchantes de Vieira do Minho, logo que chegou.
Antes da família, foi visitar a minha avó Júlia e tia Jú, felicitando-as pelo neto e sobrinho que tinham e dizendo que eu lhe tinha salvado a vida, pois poderia ter sido preso, mais uma vez, ou pior do que isso, se matasse o capitão e o alferes, como tencionava.
Mas, infelizmente, não ficou por ali, pois não deixou de dizer que eu estava no pior sítio e que tinha pena de mim e medo que me acontecesse alguma coisa!
Eu ia lá imaginar que alguém ia falar destas coisas à minha família, sem pensar no que poderia causar de preocupação e instabilidade emocional!

Isto faz-me lembrar aquela do Descartes: ‘se penso, logo, existo’…

Mas o que diria o Descartes se soubesse que pessoas que não pensam também existem…

"Realmente, Adolfo, com amigos assim, que não pensam um pouco, antes de falarem, é preferível termos inimigos!
Mas também podemos colocar a possibilidade de o fazerem debaixo de instabilidade emocional, logo, merecedores de algum desconto ou, pelo menos, do benefício da dúvida…"


Tem razão, mas há temas que requerem um pouco mais de ponderação, de discernimento…

O meu irmão já tinha regressado de Moçambique, há muitos meses, e estava a tentar reorganizar a vida, embora as dificuldades decorrentes do tal caso Guiomar e Carla tivessem tido tanto impacto na nossa família que os obstáculos cresciam e tornavam tudo mais difícil.
E eu não queria dar a entender aos meus pais que conhecia ou dava importância ao caso, estratégia pessoal.
Caso viesse a lume, defenderia a posição do meu irmão, o mais possível e de forma natural.
Só podia, em função da história que o meu irmão acabou por contar-me, mesmo não concordando ou aplaudindo, claro.

Uma aventura com uma menina, a Guiomar, professora de Liceu, durante as férias que tinha vindo passar à Metrópole, deu mau resultado, digamos, pois a menina ficou grávida.
As circunstâncias que os envolviam não permitiam tal responsabilidade, ideia comum aos dois, segundo falaram.
Apesar de ela dizer que o meu irmão era o homem da vida dela e de se ter convencido de coisas que não ofereciam garantia de ninguém, muito menos do meu irmão, lá acabou por aceitar resolver o assunto, para o que foram falar com uma médica amiga, pagaram os tratamentos, a meias, e cada um seguiria o seu caminho, como pessoas civilizadas.
Mas a menina fingiu que tratou do assunto e deixou vir o bebé, a Carla.

Quando achou conveniente, pediu a transferência para Coimbra, pois estaria perto da Figueira da Foz, logo, no caminho da entrada em casa da nossa família.
Mas só se aproximaria, quando o caminho estivesse livre de qualquer obstáculo, claro.
Porquê? Porque o meu irmão lhe tinha dito que nunca pensasse em compromissos ou casamentos, depois da falsidade que ela tinha cometido, e que o próprio irmão não aceitaria o casamento deles.

O meu pai, pelos seus princípios e posição profissional e social, logo que ela se apresentou, de menina ao colo, preparou a recepção e disse que o Victor era um rebelde, mas de bom coração, pelo que tratariam da união, com apoio.
Ela aproveitou logo para dizer ao meu pai que o Victor nunca casaria com ela porque o irmão ‘não deixava’...

Matou vários coelhos com uma só cajadada: armou-se em vítima, agravou a incompatibilidade entre o meu pai e o meu irmão e pôs o meu pai contra mim.
Mas foi aproveitando o patrocínio do meu pai: prendas para ela e filha, ajuda financeira em várias situações, fora o que não cheguei a saber.

Perto do final da comissão, o meu irmão foi confrontado com um documento que o comandante da unidade, em Moçambique, lhe apresentou: ou assina ou vai ter dificuldade em sair do serviço militar!
Ora, o meu irmão já estava com quase seis anos de serviço militar e logo respondeu que assinava tudo o que quisessem.
Pois é, assinou a perfilhação da miúda!

O que não sabia é que tudo tinha tido a mão de um primo da Guiomar, muito influente na TAP, naquele tempo.
Quando chegou ao aeroporto de Lisboa, a recepção foi calorosa: os meus pais, a minha irmã, a mãe da Guiomar, a Guiomar e a Carla.
O meu irmão, perante tal surpresa, cumprimentou todos e decidiu surpreender, também, desandando, sem perda de tempo - eu faria o mesmo…
A partir daí, a relação com o meu pai piorou, não mais voltando ao normal.

O meu irmão, controlador de tráfego aéreo, especialidade OCART, da Força Aérea, à semelhança de outros colegas, candidatou-se a controlador, no aeroporto de Lisboa.
Entregou o dossier uma vez, duas vezes, três vezes, mas sempre desapareciam!
Descobriu que o tal primo da Guiomar andava metido na coisa e nada havia a fazer.
Bem dizia ela ao meu irmão que lhe faria a vida negra!

Viu anúncios e candidatou-se a um lugar na Agência de Viagens Holitur, na Av Duque d’Ávila, Lisboa, tendo sido admitido e logo iniciou o trabalho.

Como eu tinha esses dias de férias, aproveitei para passar alguns com ele, o que me deu para espairecer um pouco, sem ficar limitado à Figueira da Foz.
Ele estava hospedado na Residencial Parisiense, no Rossio, e lá fiquei com ele, esses dias.

Mas estas curtíssimas férias não acabaram sem que me dessem uma má notícia: o meu amigo Vítor Caldeira tinha morrido, na Guiné, pouco tempo antes de eu vir de férias.
Era piloto da Força Aérea e sofreu um acidente fatal, na descolagem da avioneta, por ter batido nos arames farpados de um aquartelamento.
Voar baixo, por razões de segurança, pode dar acidente…

Mesmo absorvido por cenários como acabei de lhe descrever, ainda consegui ler umas coisas sobre os negócios do petróleo, um caso que começava a atormentar alguns países, pois as repercussões dos conflitos económicos à vista não deixavam antever outros resultados.

Como o Daniel se recordará, nesta altura, os EUA negociavam com a Arábia Saudita um tratado que visava absorver toda a sua produção de petróleo, mas com a cotação em usd, como moeda de transacção, em troca de armamento e protecção militar - era o início de uma nova moeda de transacção, o petrodólar!

O usd, criado pela reserva federal americana, independente do estado, era lançado no mercado sem limite, mas com o valor de papel, apenas, pois não apresentava o contraste em ouro ou prata, como sabemos.
Este acordo comercial obrigava todos os países interessados na compra de petróleo à Arábia Saudita a usarem os petrodólares, uma forma simples de valorização do usd.
Não conseguia imaginar o que isto iria dar, uns bons anos mais tarde, como todos constatámos!...

Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc.

Engraçado que, no caso do Iraque, o pretexto dos EUA foram as armas de destruição massiva do Iraque e o facto de terem invadido o Kwait, geoestratégia…
Os EUA, pela mão do Bush filho, com a companhia de Blair, Aznar e Durão Barroso, na Cimeira das Lajes, em 2003, decidiram e formalizaram a invasão ao Iraque…

Este Durão Barroso, ‘um patriota puro e desinteressado’, como sabemos, teve a compensação - sair de Portugal, passar por Bruxelas, até ocupar o cargo importante no banco que sabemos, nos EUA… Patriotas destes, dispensamos!
Tudo isto ficará na História Universal, claro, embora saibamos que ‘pintado’ à maneira de cada um…

Quanto à China, a coisa foi diferente, pois usou o mesmo esquema, mas sem a oposição dos EUA, claro, e começou a comprar todo o ouro do mundo, permitindo aos agentes económicos a troca do Yuan por ouro ou prata.
A Rússia seguiu o exemplo da China, também, sem oposição dos EUA, da mesma forma, claro.
Tanto a China como a Rússia passaram a ser uma forte concorrência aos EUA.
Isto foi o primeiro dia do início da queda dos EUA, como primeira potência mundial da economia!

Nessa altura, pelas circunstâncias, tive pena de não ter acompanhado todo este assunto, em tempo útil, pois era bem interessante…

"Mas o Adolfo tinha de ocupar a mente com outos assuntos, melhor, problemas, não é?"


Diz bem, outros problemas me esperavam, infelizmente…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

Guiné 61/74 - P23855: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XII: Emboscada no Oio, em dezembro de 1964, com o grupo "Fantasmas" reduzido a 12 comandos...

 

Guiné > Região do Oio > Mansoa > Cutia > Destacamento de Cutia > c. 1970 > Foto enviada  pelo César Dias, ex-fur mil sapador, CCS / BCAÇ 2885, um batalhão que esteve em Mansoa e Mansabá desde maio de 1969 a março de 1971, e a que pertencia a CCAÇ 2589, de que o Jorge Picado foi um dos comandantes, de  24/2/1970 a 15/2/1971. Estranhamente, Cutia não vem nas cartas nem de Mansoa nem de Farim. Ficava a nordeste de Mansoa, na estrada Mansoa-Mansabá.

Foto (e legenda): © César Dias (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, autor do livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).  

O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,  e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) disponibilizou-nos o manuscrito,  em formato digital. 

Recorde-se que, durante cerca de um ano,  com infinita paciência,  generosidade, rigor e saber, ele exerceu as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando-o a reescrever o livro,  a partir dos seus rascunhos e da sua prodigiosa memória.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida. 

Recorde-se, aqui,  o último poste 
desta série (*):  O  Grupo de  Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG,  comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola, sofre o seu primeiro grande revés,  a sudoeste  de Madina do Boé, na estrada para Contabane, junto a um pontão sobre o rio Gobige, quando uma coluna auto aciona uma mina anticarro, em 28 novembro de 1964. Irá perder 8 dos seus homens, ficando reduzida a 12 operacionais,


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.





  Emboscada no Oio, em dezembro de 1964,  com o grupo "Fantasmas" reduzido a 12 comandos...

(pp. 105/108)

por Amadu Djaló (*)




Guiné > Região do Oio > Carta de Mansoa (1954)  / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Cutia (a nordeste de Mansoa, já na carta de Farim), Morés, Iaron, Talicó e Santambato.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)



Depois do descanso, no quartel, em Brá, fizemos uma reunião entre nós, como fazíamos habitualmente. No dia seguinte pegámos nas armas e fomos para a mata de Nhacra. Muitos tiros, depois regressámos a Brá e no dia seguinte, formámos o grupo com doze comandos. Tinha regressado de férias o Furriel Morais [1], agora o 2º comandante do grupo ["Os Fantasmas"].

Depois da mina de Gobige, em que tínhamos sofrido aquelas baixas todas, nós não estávamos muito animados. Mas o alferes  [mil 'comando'  Maurício] Saraiva não parou. Com 12 homens e um guia, de nome Mamasaliu Djaló, natural do Oio, preparámo-nos para sair.

De Brá arrancámos em viaturas com destino a Mansoa.

O batalhão [2] de Mansoa tinha preparado uma coluna que nos transportou até Cutia, de onde partimos a pé, Oio dentro, até Tambato.

Quando aqui chegámos, por volta do meio-dia [3]   [,  quarta-feira,  9 de Dezembro de 1964] , emboscámo-nos na tabanca abandonada, junto ao cruzamento do carreiro que vem de Talicó e de outro que vem de Santambato. Mantivemo-nos ali até ao pôr-do-sol, levantámos a emboscada e prosseguimos para Santambato, sempre no máximo silêncio. Chegados aqui, emboscámo-nos de novo, junto ao caminho que vem de Iaron, com o acampamento de Talicó à nossa direita e o de Sinre à nossa esquerda.

A missão devia durar três noites, progredindo em emboscadas sucessivas. A primeira em Santambato, perto de Cutia, a segunda em Iaron, e a terceira e última à entrada de Bissorã.

Durante a primeira noite não aconteceu nada. De manhã  [, quinta-feira,  9 de Dezembro de 1964], o alferes mandou levantar a emboscada. No caminho vimos umas bananeiras, mesmo junto à tabanca abandonada e espalhámo-nos por ali. Como o caminho passava mesmo encostado às bananeiras, passados para aí cinco minutos, ouvimos vozes de uma mulher a aproximar-se. Vinha acompanhada por um homem. A mulher trazia roupa lavada e o homem uma sangra [4] com galinhas.

O alferes disse-nos para ninguém disparar, que eram civis. Assim que chegaram junto de nós, o alferes disparou uma rajada curta para o ar, a mulher deixou cair a roupa e o homem largou a sangra com as galinhas. Eu disse que era melhor sairmos dali, o alferes queria avançar mas concordou comigo.

Regressámos para o local onde nos tínhamos emboscado durante a noite. Dispersou-nos dois a dois e eu, ele e o guia ficámos juntos. Neste local onde estávamos fazia muito frio. Pousei a minha arma no chão, para puxar para baixo as mangas da camisola e o alferes fez o mesmo. Quando me estava a arranjar, vi um homem com uma Mauser, muito perto de nós, a olhar para longe. Ninguém pensaria que, junto a estes pequenos arbustos estivesse alguém, mesmo ali à beira dele. Ele olhava para uma mata mais densa, junto ao rio.

Quando o vi, não deu tempo para falar. Peguei na arma, que era a do alferes, que estava em cima da minha, apontei, o alferes pegou na minha e também apontou. A três metros, à direita do homem estavam companheiros nossos deitados. Um deles, que estava tão perto que nem podia respirar, disparou um tiro. O homem nem mexeu um dedo. Saí do esconderijo e corri para lhe tirar a arma. Largámos a correr, até ao rio.

O alferes queria atravessá-lo através de uma árvore que servia de ponte, e eu achava que não se devia atravessar porque o PAIGC devia lá estar, era uma passagem quase obrigatória. Que era melhor seguirmos pela margem, ao longo do rio. Descemos todos para a água e passámos até à outra margem, com a água muito fria até à cintura. Depois de a atingirmos, encontrámos o caminho para Tambato e ouvimos tiros vindos do lado da ponte. Estavam ali à nossa espera, como eu pensara.

Agora daqui para Cutia, só com apoio aéreo, disse o alferes. Estabeleceu contacto rádio e a resposta foi que só podíamos ter apoio dos aviões à tarde, porque os T-6 estavam todos no sul. Na conversa com a Dornier, foi-nos perguntado se nós tínhamos alguns dos nossos para trás, porque do ar viam fumo de troca de tiros.

Nós não estávamos dispostos a ficar até à tarde, neste local. Pouco tempo depois, ouvi um berro de uma perdiz a levantar voo. O alferes perguntou o que era e eu respondi que podia ser alguém que andava por ali. Quando uma choca levanta voo a berrar é porque alguém está a passar perto. 

Saímos cautelosamente dali, sempre no caminho até Cutia, onde finalmente chegámos sem mais incidentes. Recolhidos em viaturas, fomos transportados para Bissau, com passagem por Mansoa, onde nem parámos.

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Notas do autor e/ou do editor literário (VB):

[1] Furriel Mil. Joaquim Carlos Ferreira Morais.

[2] Nota do editor: Batalhão de Artilharia 645

[3] Nota do editor: 9 de Dezembro de 1964

[4] Cesto com galinhas

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23854: (Ex)citações (419): Após o 25 a Abril foi nascendo e ganhando raízes, em Nova Sintra, a sensação de que finalmente íamos ficar livres daquele inferno... (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp)

1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Alves de Carvalho Figueira, médico na situação de reforma, ex-Alf Mil Op Especiais da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74), com data de 5 de Dezembro de 2022:

Boa tarde

Como sempre, acompanho todos os dias os posts que vão surgindo no blog e este, sobre as relações com o PAIGC pós-25 de Abril suscitou-me várias memórias.(*)

Após o 25 a Abril foi nascendo e ganhando raízes, em Nova Sintra, a sensação de que finalmente íamos ficar livres daquele inferno e rapidamente regressar a nossas casas depois de dois anos (na verdade mais alguns meses) de sacrifício com a morte a rondar diariamente e as provações contínuas a que fomos sendo submetidos que enumerar aqui seria fastidioso para quem por lá andou e tem memória dos anos de guerra.

Em Julho de 1974 (a 17, segundo o nosso amigo Carlos Barros, que também publicou sobre este tema) tinha recebido do capitão a indicação de que nesse dia iriam chegar ao quartel elementos do PAIGC que iriam substituir-nos e que eu iria recebê-los dado que falava crioulo (acrescento que sou natural de Cabo Verde e falava crioulo sim mas de Cabo Verde, diferente do da Guiné). Dias antes, portanto já bem depois do 25 de Abril, uma Berliet da nossa companhia tinha accionado uma mina na estrada de S. João e só por sorte não houve feridos, só um enorme susto para quem estava na viatura que ficou com a parte traseira feita em cacos.

Cumprindo o determinado lá fui até ao 4.º grupo que dava para a bolanha para onde se saía a caminho de Ganfudé Mussá, tabanca já sob duplo controle nosso e do PAIGC e onde capturámos algum armamento e um guerrilheiro. E assim, logo pela manhã começou a surgir um grupo, aparentemente pequeno, de homens armados que precedia um outro já mais numeroso. Desci pelo carreiro ao encontro deles, confesso que com algum receio e ensaiei umas palavras de crioulo ao que me responderam em português.

- Bom dia, sou o major Quinto Cabi e venho em nome do PAIGC para o quartel de Nova Sintra.

Acompanhavam-no um pequeno grupo de homens que, conforme se foram identificando, foram como campainhas que tocavam na minha cabeça. O comandante Tchambú Mané que comandava a artilharia que muitas vezes nos brindou com canhoadas e morteiradas, o Bunca Dabó que liderava os guerrilheiros que nos emboscavam e causaram tantas dores de cabeça, o Armando Napoca que tratava de colocar as malfadadas minas que tanta chatice nos deram, um comissário político cujo nome já não me recordo e vários outros. Caminhei com eles ao longo do arame farpado até à porta de armas por onde entraram e onde os aguardava o capitão e demais pessoal da companhia e a pequena população da minúscula tabanca que existia em Nova Sintra. Não consigo imaginar o que passava pela cabeça daquela gente, tantos anos junto da tropa e de repente viam o inimigo entrar pela porta dentro do quartel onde se abrigavam, embora tivessem conhecidos e família junto do PAIGC a sensação devia ser no mínimo confusa.

Entraram no quartel e foram-se espalhando entre os soldados e tabanca aparentemente convivendo como se tivessem sempre andado por ali…

Ao fim da manhã, vindo de Tite, chegou o comandante do batalhão, Ten. Coronel Almeida Mira, que reuniu na parada com os quadros do PAIGC numa longa conversa que não acompanhei, apenas o Capitão Machado que comandava a companhia estava presente. Seguiu-se um dia mais ou menos estranho de convívio entre a tropa e a guerrilha e dormimos todos pacificamente no quartel. No dia seguinte subimos para as viaturas e deixámos Nova Sintra para sempre a caminho do Cumeré e depois Lisboa. Interrogo-me hoje sobre o que sentia nesse momento. Acho que senti apenas alívio, depois de dois anos que só quem por lá andou é capaz de definir é a única coisa de que me recordo, outros terão outras sensações, eu apenas queria sair dali quanto mais depressa melhor.

Foto 1 – Viatura Berliet após accionar uma mina na estrada para S. João. Vê-se da esquerda para a direita o alferes Pereira, o furriel Elias e o furriel Sousa
Foto 2 – A chagada do PAIGC a Nova Sintra. À frente da esquerda para a direita, eu, o major Quinto Cabi, o comissário político e o comandante Tchambú Mané
Foto 3 – Reunião na parada do quartel de costas o ten. coronel Almeida Mira, de boné azul o major Quinto Cabi, de lado o mais alto o capitão Machado e de camisa branca o comandante da milícia
Foto 4 – Na parada do quartel o furriel Duarte conversa com o Bunca Dabó
Foto 5 – Dentro de uma Berliet eu a dizer adeus a Nova Sintra
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Notas do editor

(*) - Vd. poste 5 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (418): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)