quarta-feira, 26 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24504: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (5): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) (Parte I)

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta.  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Texto, em duas partes, elaborado para a série literária do nosso editor Luís Graça, "Contos com Mural ao Fundo" (*), 


O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão 
a comendador (1943-2017)


Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu longínquo conterrâneo, senhor das terras da Lourinhã). 

A história do "Felgueiras"  já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado numa companhia independente, colocada no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu.  

− Fomos e viemos no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"... −  acrescentou o Arlindo, o pai do noivo.

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O Arlindo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que ia mantendo
 desde há cerca de 40 anos), na região do Vale do Tâmega, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e às vezes cansado mas sempre supreendente país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva,  Clara. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar, na altura colocado em Lisboa. Não arranjei alibis nem tive argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 
Confesso que nunca gostei de batizados, bodas e funerais. Mas neste caso faltou-me mesmo uma boa desculpa, consistente e convincente, para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, líndissima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído, como é timbre da gente de Entre Douro e Minho.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava. (Sem querer, não pude deixar de notar, na mão que apertou a minha , um vistoso "cachucho", com um pedra que bem poderia ser um diamante.)

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra ou do sítio donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fizera as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses e.... "irmões"!  – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, que me parecia algo insólita, do "Felgueiras". 

Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que tinha feito o serviço militar já depois do 25 de Abril, sendo mais novo do que nós os três, eu, o Arlindo e o "Felgueiras".

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras", padrinho,  fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-nos o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de recolher umas notas biográficas sobre  "Felgueiras".  Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, tratava-se de uma figura tão digna como outras que figuram na minha série, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1.º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre 1966 e 1968. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado no esquadrão do pelotão morteiros, adido à companhia, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 3.º pelotão da companhia, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2.º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4.ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulhava-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, o  dono da Tabopan,  político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1.º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… − acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá um esquadrão de morteiro, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima', que lá viviam no seu buraco quais lagartos…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia em vez de o "mandar para o mato"...

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "bem suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da Diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula" (sic),  lá conseguiu "à rasca"  completar o almejado 5.º ano do liceu, mas, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro", desistiu de prosseguir os estudos.  E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" dava lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões... − reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

− O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

− Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

− Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado… − galhofei eu 

− E os padres!, acrescenta aí − ouviu-se a voz do "Felgueiras" com um sorriso maroto. − E eu estou à vontade para falar deles, até sou amigo de alguns como o senhor cónego Melo.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1.º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T "Niassa" a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1.º cabo hortelão da companhia (uma especialidade que, diga-se de passagem,  não existia na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1.º cabo hortelão… Não me lembro – repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde a IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê. ?

− Imagina que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau, as batatas e o azeite, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (uma nota de 100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras",  ou uma garrafa de uísque velho)…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado,  para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta! 

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1.º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada, que foi reparada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono, o tal cabo-verdiano? − perguntei eu, curioso.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações (e filhos fora do casamento, ao que parece).

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso já não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós, e depois para o Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia administrativa, os "cipaios",  ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e uma parte da horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o eng.º Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.

A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1.º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque afinal tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A fazer as vezes de um furriel e a ganhar como 1.º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1.º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2.º sargento do quadro permanente, que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1.º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1.º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1.º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1.º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório, se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1.º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco?

− Sim, na tua terra de adoção... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim… Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer...?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se por acaso o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)

© Luís Graça (2018). Última versão, revista e melhorada: 26/7/2023.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!

terça-feira, 25 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24503: Facebook...ando (32): Vítimas de "fogo amigo", quando, à noite, em emboscadas das NT saíam do grupo para "satisfazer as necessidades sem avisar ninguém"

1. Quantos camaradas nossos não terão morrido, "vítimas de fogo amigo", no TO da Guiné  ? E, nomeadamente à noite, quando saíam do seu grupo de combate, emboscado no mato, para "satifazer as necessidades", e sem avisar ninguém ?!... 

Recordemos alguns casos... Felizmente não terão sido muitos, mas aconteceram... Não há registos, públicos e notórios.. Estes casos eram classificados como "acidentes com arma de fogo", tais como os homicídios, os suicídios, as automutilações, e os acidentes propriamente ditos, por "falha técnica" ou "erro humano",,, 

Parafraseando o nosso camarada, hoje ten gen pilav ref, António Martins de Matos, infelizmente à noite todos os gatos são pardos...

"Blue on blue" é uma expressão eufemística, inglesa,  para descrever um caso de "fogo amigo",   quando um militar, no teatro de operações,  é acidentamente alvejado,  e morto ou ferido, pelos seus camaradas (*).


(i) Luís Graça:

(...) O Neves ainda voltou a um um outro convívio da companhia, já no virar do milénio... E num deles reencontrou o capitão, então já coronel, na situação de reforma. Ter-se-á emocionado, o antigo capitão, quando evocou as trágicas circunstàncias em que foi morto o primeiro homem da Companhia, logo nos dois primeiros meses de Guiné... 

Estavam emboscados, de noite, quando há um militar que sai da sua secção para ir "arriar o calhau" (sic), sem dizer nada a ninguém e quebrando a rigorosa disciplina imposta... No regresso, ao ouvir restolhar o capim, o capitão instintivamente disparou uma rajada... Teve uma agonia horrorosa, o pobre soldado, durante quase uma hora, sem possibilidades de ser helievacuado...(...) (**)

(ii) José Gouveia / Tabanca Grande Luís Graça, 23 de julho de 2023, 13;01

(...) Será que ninguém o viu sair? Esquisito.


(iii) Tabanca Grande Luís Graça

(...) Infelizmente, não terá sido caso único. Aconteceu, por exemplo, com a CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63), quando era comandada pelo então cap inf José Curto... (Segunda a versão de um dos seus graduados, nada disto vem na história das unidades.) (...)


(iv) Tabanca Grande Luís Graça

Um outro caso, vítima de "fogo amigo", foi passado com a 1ª CCmds Africanos, em meados de 1970, no subsetor de Bajocunda, conforme relatado pelo nosso saudoso Amadu Djaló (1940-2015) 
(***):

(...) "Numa das primeiras saídas, entre 25 e 26 de junho de 1970, numa emboscada em Sare Aliu, junto à linha da fronteira na área de Bajocunda, o soldado Nicolau (...) foi satisfazer as necessidades e não avisou ninguém. Era uma noite escura e quando regressava para junto do grupo perdeu a orientação e entrou pelo outro lado da emboscada. Ninguém o reconheceu, nem deu tempo para fazer perguntas." (...)  (****)
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14215: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (30): "Blue on Blue" - Querem ver que acertei nos nossos? (António Marins de Matos, TGen Pilav Ref)

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24502: Antologia (92): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte III


A deputada sueca, do Partido Social-Democrata, então no poder, Birgitta Dahl atravessando um curso de água através de uma ponte improvisada, sendo auxilaida por um guerrilheiro armado de "costureirinha" (pistola metralhadora PPSH] 


Guiné-Bissau (ou Guiné-Conacri) > PAIGC > s/l> Novembro de 1970 > Algures, na Guiné Conacri  ou nas "áreas libertadas"  (sic) da Guiné-Bissau, uma foto do fotógrafo norueguês Knut Andreasson, por ocasião da visita de uma delegação sueca. Algumas das suas  fotos foram publicadas no livro Guinea-Bissau : rapport om ett land och en befrielserörelse / Knut Andreassen, Birgitta Dahl, Stockholm : Prisma, 1971, 216 pp. [Título traduzido para português: Guiné-Bissau: relatório sobre um país e um movimento de libertação].

A chefe da delegação, a deputada social-democrata e antiga presidente do parlamento sueco, Birgitta Dahl,  fez um relatório desta missão, em sueco, e que infelizmente não está disponível na Net: a visita foi à Guiné-Conacri e às "áreas libertadas" da Guiné-Bissau,  no período de 6 de novembro a 7 de dezembro de 1970 [”Rapport från studieresa till Republiken Guinea och de befriade områdena i Guinea-Bissau, 6 november–7 december 1970” (”Relatório da viagem de estudo à República da Guiné e às zonas libertadas da Guiné-Bissau, 6 de Novembro–7 de Dezembro de 1970”), Uppsala, Janeiro de 1971 (SDA)].

Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa [Com a devida vénia] [
O link, infelizmente, foi descontinuado. Seleção e edição:  LG]


1. A Suécia /parceiro comercial de Portugal desde o ano de 1960, no àmbito da EFTA) e a Guiné-Bissau nunca tiveram, até ao final da década de 1960, praticamente quaisquer ligações (históricas, comerciais, ou outras). 

Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, tem um texto de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em português).

No livro o autor conta-nos como é que de repente a Suécia e os suecos passama a interessar-se pelo que se estava a passar naquele pequeno país de África Ocidental, que era/é a Guiné-Bissau,  um  território então sob administração portuguesa (e com um escasso meio milhão de habitantes),  com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC;  a lutar pela sua independência.  

E não apenas a interessar-se: a dar uma "ajuda humanitária", substancial, que se prolongou muito além da independência, até meados dos anos 90. "As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau".

 Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual,  ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).
 
Passados estes anos todos, julgamos que ainda tem algum interesse. para os nossos leitores, saber como é que  o  PAIGC caiu nas "boas graças dos suecos"… (um "namoro" de vinte anos, acrescente-se).

Vamos continuar a seguir esta história, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de  Tor Sellström. Já chamámos, logo no início,  a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trrajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se apenas das "lendas & narrativas" do PAIGC... 

Demos alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral. etc.  .

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172)  tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo fastidiosas para a generalidade dos  leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa.)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas,  são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha ténica: 

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau.

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau",  usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes...



 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno
(pp. 138-172)

Primeiros contactos (pp. 144-147)


A Suécia tinha variadas ligações históricas, económicas e eclesiásticas com os cinco países da África Austral que constituem o objeto deste estudo mas só quando foi criado um programa de ajuda humanitária com o PAIGC passou a haver relações com a Guiné- Bissau, até aí inexistentes.

Sendo certo que a Suécia e Portugal entraram para a EFTA em 1960 e que as trocas comerciais entre os dois países aumentaram rapidamente durante essa década, isso não se traduziu em grandes transações económicas com as colónias portuguesas em África. No caso da Guiné-Bissau, não houve investimento sueco e as trocas comerciais eram incipientes.

Antes da década de setenta, a Guiné-Bissau não entrava como parcela independente nas estatísticas comerciais suecas, sendo os dados desse país registados juntamente com os de Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, sob a epígrafe ”África Ocidental portuguesa”. Dentro desse grupo, pode-se, sem receios, partir do princípio que a maior parte do comércio externo se realizava com a economia angolana, a mais importante desse grupo de países. Contudo, os valores eram extremamente baixos. O valor das exportações suecas para a ”África Ocidental portuguesa” era, em 1950, de 1,8 milhões de coroas suecas, o que representava 0,03 por cento das vendas totais suecas para o exterior.

O valor das importações era, nessa mesma altura, de 2,3 milhões de coroas suecas, o que correspondia a 0,04 por cento das importações da Suécia. Dez anos volvidos, as trocas continuavam a ter um nível irrelevante. As importações suecas da ”África Ocidental portuguesa” em 1960 atingiam os 3,8 milhões de coroas suecas, uma parte estável de um total de 0,03 por cento, enquanto o valor das exportações suecas tinha aumentado para 10,7 milhões, o que correspondia a 0,08 por cento do total (25).

Com este panorama, o comércio entre a Suécia e a Guiné-Bissau deverá ter sido praticamente inexistente, o que é confirmado pelas estatísticas feitas a seguir à independência.

Entre 1975 e 1980, os valores anuais das exportações da Guiné-Bissau para a Suécia variaram entre as 2.000 e as 270.000 coroas suecas. Estes valores são demasiados baixos para terem qualquer expressão em termos da quota total de importações suecas.

As exportações anuais suecas, por seu lado, aumentaram durante este período de 3,2 para 20 milhões de coroas suecas (26).  Contudo, estes valores não espelham as transações comerciais normais, mas remessas suecas como ajuda humanitária (27).

Não havendo ligações históricas, comerciais ou outras, não admira que o encontro entre o PAIGC e a Suécia só tenha acontecido no final da década de sessenta, numa altura em que o apoio popular às lutas nacionalistas em África desfrutava de um amplo reconhecimento e em que o movimento de libertação da Guiné-Bissau já estava criado e era uma força decisiva.

 A velocidade com que tanto o governo social-democrata sueco como o movimento organizado de solidariedade, que ultrapassava as barreiras culturais e linguísticas, abraçou a causa do PAIGC é, contudo, notável, não sendo menos notável o facto de, apesar de ambos interpretarem de forma diferente a luta do PAIGC (de formas quase antagónicas, por vezes) (28), terem conseguido mobilizar as suas esferas de ação para a mesma causa. A capacidade diplomática de Amílcar Cabral foi, nesta área, muito importante.

O primeiro contacto de que há conhecimento entre o PAIGC e a Suécia teve lugar antes do início da luta armada, em janeiro de 1963, tendo como pano de fundo a Conferência das Organizações Nacionalistas nas Colónias Portuguesas (CONCP) (29), que se realizou em junho de 1961, e onde se lançou um apelo ao jornal sueco Expressen para que fosse dada ajuda aos refugiados angolanos que, em condições abjetas, atravessavam a fronteira com o Congo (Zaire) (30). Respondendo a esse apelo, o Expressen realizou uma importante campanha, chamada ”Ajuda a Angola” (31), que decorreu entre julho e setembro de 1961. Durante a campanha, o jornal, de tendência liberal, conseguiu obter cerca de 4,5 toneladas de medicamentos, sobretudo penicilina, para os refugiados na região  do Baixo Congo. A ajuda foi canalizada através do MPLA.

Na sua capacidade  [qualidade, provável erro de tradução, LG] de vice-secretário geral da CONCP, Amílcar Cabral estava bem ciente da campanha e dirigiu-se ao Expressen, apresentando um pedido semelhante para o PAIGC. Estando a preparar o lançamento da luta armada, Cabral enviou um telegrama ao jornalista e escritor sueco Anders Ehnmark, solicitando ajuda, sob a forma de medicamentos (32), e acrescentando que ”também nós nos estamos a libertar” (33). Nessa altura, o PAIGC e a situação da Guiné-Bissau eram, em geral, pouco conhecidos. Ehnmark viria mais tarde a comentar que ”eu sabia quem era Amílcar, mas nada mais aconteceu. Afinal de contas era ainda um pouco cedo” (34).

O ”muro de silêncio” (35) levantado pelos portugueses à volta das suas colónias em África foi particularmente eficaz, durante a primeira metade dos anos sessenta, no caso da Guiné-Bissau. Só em 1964 é que o jornalista e historiador britânico Basil Davidson (36) e o seu colega francês Gérard Chaliand (37) publicaram um perfil de Amílcar Cabral e uma narrativa da luta de libertação travada pelo PAIGC.

Na Suécia, foi o Comité da África do Sul de Lund e a redacção do boletim Syd- och Sydvästafrika (a conselho de Eduardo Mondlane) quem, dois anos mais tarde, conseguiu furar esse muro de silêncio, reproduzindo um resumo do programa do PAIGC e um relato feito por Cabral, num número inteiramente dedicado a Portugal e às suas guerras em África (38).  O Comité de Lund e o boletim do movimento sueco de solidariedade marcaria assim o início de um prolongado e sustentado esforço de informar sobre as lutas nas colónias portuguesas. Esse trabalho viria posteriormente a ser prosseguido pela segunda geração dos Grupos de África em Lund e pelo Södra Afrika Informationsbulletin (39).

Pouco depois desses acontecimentos, o Partido Social-Democrata no poder passou a conhecer melhor o PAIGC e a luta de libertação na Guiné-Bissau. Uma vez estabelecidas relações diretas com o presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, e de visitar Portugal numa ”missão secreta” de apuramento de factos para a Internacional Socialista, Pierre Schori concluiu, em meados de 1967, numa edição do Tiden, jornal oficial do partido, que ”o nosso apoio aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas pode aumentar. Devemos, acima de tudo”, escreveu o secretário internacional dos social-democratas, ”intensificar os nossos contactos com os nacionalistas do PAIGC” (40).

Mais ou menos nessa altura, houve uma série de suecos (representando o movimento de solidariedade das ONG, mas também o Partido Social-Democrata) que entrou em contacto com o PAIGC para visitar as zonas libertadas da Guiné-Bissau (41).

Dando uma publicidade muito grande às suas experiências, as primeiras visitas foram organizadas, de forma digna de nota, em 1968 (42) por Rolf Gustavsson,  do Comité da África do Sul de Lund, pelo escritor Göran Palm e Bertil Malmström, do Comité de Uppsala para a África do Sul,  em 1969 (43), pelo académico Lars Rudebeck,  em 1970 (44),  e pela deputada social -democrata Birgitta Dahl, em conjunto com o jornalista Knut Andreassen, também em 1970 (45).

 Foram feitos relatos mais tarde que, em conjunto com os relatórios tão claros que apresentaram (46), guiaram o governo sueco e ajudaram a manter elevados níveis de apoio do público à luta do PAIGC (47).

A causa nacionalista na pouco conhecida colónia portuguesa começou, pouco tempo depois, a ser comparada com a do Vietname. À falta de cobertura mediática internacional, os testemunhos diretos e pessoais feitos por suecos revestiram- se da maior importância. Em meados de 1972, o número de visitantes suecos às zonas libertadas da Guiné- Bissau excedia o de qualquer outra nacionalidade.

 [ Foto à esquerda: Birgitta Dahl, Deputada Social-Democrata e o secretário-geral do PAIGC, Amílcar Cabral, em Conacri na Guiné, em novembro de 1970. Atrás de Cabral está Lars Rudebeck, do Grupo de África de Uppsala (Foto: Knut Andreassen) ( Tor Sellström. op. cit., pág.143)] 

____________

Notas do autor:

(25) Para 1950: Kommerskollegium: Handel: Berättelse för år 1950, Volume I, Sveriges Officiella Statistik, Norstedt & Söner, Estocolmo, 1952. Para 1960: Statistiska Centralbyrån: Handel: Berättelse för år 1960, Volume II, Estocolmo, 1963.

(26) Citação de Lars Rudebeck: ”Alguns factos e observações sobre as relações entre os países nórdicos e os países africanos de língua oficial portuguesa”, palestra apresentada numa conferência sobre os países de língua oficial portuguesa em África, organizada pelo Stiftung Wissenschaft und Politik (Fundação Ebenhausen para a Ciência e Política), Ebenhausen, República Federal da Alemanha, Fevereiro de 1986.

(27) As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau (Rudebeck op. cit.).

(28)  Para os Grupos de África e para a esquerda socialista sueca em geral, a luta armada do PAIGC fazia parte da batalha global contra o imperialismo e o capitalismo. A luta contra o colonialismo na Guiné-Bissau e a luta contra o capitalismo na Suécia, na qual participava o governo social-democrata, eram vistas como fazendo parte integrante da mesma causa. Num relatório apresentado numa conferência internacional de solidariedade realizada em Oxford, em Inglaterra, os AGIS apresentaram em abril de 1974 a sua perspetiva, que era a seguinte: ”nos Grupos de África suecos centramos o nosso trabalho sobre o facto de a Suécia ser um estado imperialista, no qual os trabalhadores são oprimidos pelo mesmo sistema que oprime os povos de África. Daí que não apelemos prioritariamente a um sentimento de pena pelos povos oprimidos, mas destaquemos a justiça da luta armada e a construção, nas zonas libertadas, de uma nova sociedade, não baseada na exploração. Destacamos também o interesse comum que existe à volta da luta contra o sistema imperialista” (AGIS: ”Relatório sobre os Grupos de África suecos”, Conferência de Solidariedade com África, Oxford, Páscoa de 1974) (AGA).

(29) A Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) foi uma espécie de organização catalisadora, que representava os movimentos nacionalistas das colónias portuguesas, sobretudo os de África, mas também, por exemplo, de Goa, na Índia. Os agentes mais ativos para a constituição da CONCP foram o MPLA e o PAIGC. Com origens que remontam ao MAC (e, antes disso, ao Centro de Estudos Africanos de Lisboa), o CONCP foi formado numa conferência em Marrocos, realizada em Casablanca em abril de 1961, ou seja, pouco depois do início da guerra de libertação em Angola. Mário de Andrade do MPLA foi o presidente do Comité Consultivo.

O Secretariado da CONCP foi criado em Rabat, em Marrocos, tendo Marcelino dos Santos de Moçambique como secretário-geral e Amílcar Cabral (que tinha a sua base de operações em Conacri, na República da Guiné) como vice secretário geral. Em 1968, sete anos depois da campanha do Expressen em prol de Angola, o Partido de Esquerda Comunista apresentou uma das primeiras moções ao parlamento sueco, para que fosse concedido apoio oficial aos movimentos de libertação na África Austral, visando a CONCP.

(30) O antigo Congo Belga alterou a sua denominação, passando a chamar-se Zaire em 1965. Em 1997, passou a chamar-se República Democrática do Congo.

(31) Em língua sueca, Angola-Hjälpen.

(32) Anders Ehnmark: Resan till Kilimanjaro: En essä om Afrika efter befrielsen (”A viagem ao Kilimanjaro: Um estudo sobre África depois da libertação”), Norstedts, Estocolmo, 1993, p. 8 e Anders Ehnmark, carta ao autor, Taxinge, Janeiro de 1997.

(33) Carta de Anders Ehnmark ao autor, Taxinge, Janeiro de 1997.

(34) Ibid.

(35) Prefácio por Amílcar Cabral para Davidson op. cit., p. 9.

(36) Basil Davidson: ”Profile of Amílcar Cabral” em West Africa, 28 de Abril de 1964.

(37) Gérard Chaliand: Guinée ”portugaise” et Cap Vert en Lutte pour Leur Independance (”A Guiné ”portuguesa” e Cabo Verde em luta pela sua independência”), Maspero, Paris, 1964.

(38) Syd- och Sydvästafrika, No. 4, 1966, pp. 11–14.

(39) Como reflexo do aprofundamento da atenção dada pelo movimento de solidariedade sueco, o boletim informativo Syd- och Sydvästafrika (publicado em Lund desde Janeiro de 1964) viu o seu nome ser mudado em 1967 para Södra Afrika Informationsbulletin (e em 1975 para Afrikabulletinen, órgão oficial dos Grupos de África da Suécia).

(40) Pierre Schori: ”Portugal”, em Tiden, no. 8, 1967, p. 495.

(41) Em contraste com outros movimentos de libertação, o PAIGC era ”particularmente aberto e acessível a visitantes estrangeiros”, nomeadamente jornalistas, escritores, equipas de filmagem, advogados e académicos, e ”fez todos os esforços para conseguir que esses visitantes pudessem viajar pelo país durante a guerra” (Chabal op. cit., p. 6).

O acesso a partir da Guiné-Conacri e do Senegal era fácil e a reduzida dimensão do país tornava possível que os visitantes se deslocassem a pé por grandes extensões do território, num espaço de tempo relativamente curto. 

Enquanto primeiro jornalista internacional de sempre a visitar o território, Anders Johansson,  do jornal liberal sueco Dagens Nyheter,  visitou em Fevereiro de 1968 as zonas libertadas do norte de Moçambique, na companhia do presidente da FRELIMO Eduardo Mondlane. Além disso, em julho-agosto de 1969, o jornalista e vice presidente da Liga da Juventude Liberal Olle Wästberg acompanhou a FNLA numa missão no norte de Angola. As frequentes visitas de jornalistas e ativistas suecos às zonas libertadas das colónias portuguesas em 1968–70 contribuíram muito para centrar a atenção pública nesses territórios.

(42) Rolf Gustavsson: ”Besök hos gerillan 1968” (”Visita à guerrilha em 1968”) em Södra Afrika Informationsbulletin, no. 7, 1970, pp. 9–13. Para além de dedicar alguns programas de rádio e artigos de jornal à Guiné-Bissau, Gustavsson (um africanista bem conhecido e repórter da televisão sueca) publicou mais tarde uma importante antologia, chamada Kapitalismens utveckling i Afrika: Studier i Afrikas moderna ekonomiska historia (”O desenvolvimento do capitalismo em África: Estudos sobre a história económica moderna de África”), Cavefors, Lund, 1971.

(43) Göran Palm: ”Besök hos Gerillan 1969: Kampen Enar Folket” (”Visita à guerrilha em 1969: A luta une o povo”) 1970  em Södra Afrika Informationsbulletin, Nº 7, 1970, pp. 37–41. Palm editou posteriormente um livro em sueco, com textos da autoria de Amílcar Cabral: Vår kamp er kamp (”A nossa luta a vossa luta”), Bokförlaget PAN/Norstedts, Estocolmo, 1971. O líder do PAIGC foi trazido ao conhecimento do público sueco em geral através da antologia de Anders Ehnmark com o título Guerrilla (Bokförlaget PAN/Norstedts, Estocolmo, 1968), que incluía o texto de Cabral chamado ”Kampen i Guinea” (”A luta na Guiné”).

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de;

17 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24482: Antologia (90): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte I

Guiné 61/74 - P24501: Notas de leitura (1600): A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”: Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Continua em debate a tipificação do Estado da Guiné-Bissau, se é frágil, suave, ou pária. O politólogo Joshua Forrest, refletindo sobre década e meia do Estado independente classifica-o como suave, uma cúpula dirigente que se revelou incapaz de uma verdadeira aproximação ao povo, como sonhava o fundador do PAIGC, engendrou uma administração pantagruélica, esmagadoramente centrada em Bissau, viveu sem contabilidade pública, sem uma boa definição de critérios de taxação, e devido à inexperiência dos seus quadros os projetos trazidos da luta armada foram-se reduzindo a pó. A população sobreviveu furtando-se aos esquemas e ao controlo do Estado, falharam os preços à produção, falhou o funcionamento da Socomin e dos Armazéns do Povo. No virar da década de 1990, sentindo-se completamente desacreditado, falido, incapaz de sobreviver dos expedientes da ajuda internacional, bateu-se à porta do FMI e do Banco Mundial. Mas os tempos também eram outros, a URSS desagregava-se, a abertura ao multipartidarismo ganhou apetência. É um lugar-comum dizer-se que só se podem compreender as elites atuais percebendo como sucumbiu o sonho revolucionário de Cabral e como as impacientes novas gerações se confrontam entre o modelo de justiça e participação, de que um bom número de organizações governamentais é a expressão mais evidente, e a anomia de um Estado que aumenta as pistas alcatroadas para que a cocaína entre em maiores quantidades na Guiné-Bissau, com irrecusáveis cumplicidades dos radicais islâmicos que também vivem do narcotráfico.

Um abraço do
Mário



A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”:
Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo


Mário Beja Santos

A revista Soronda, no seu nº 15, publicado em janeiro de 1993, incluía um importante artigo de um investigador emblemático, Joshua B. Forrest, alusivo ao significado da autonomia burocrática, política e económica num Estado “suave”: o caso da Guiné-Bissau pós-colonial.

O investigador explica-se: “Sustento que, durante a primeira década e meia a seguir à independência, o Estado guineense conseguiu atingir um grau significativo de autonomia institucional, mas permaneceu ‘suave’, devido a uma capacidade de implementar políticas diferentes e ineficazes”. O fim almejado pelos dirigentes do PAIGC era a segurança burocrática, e de algum modo conseguiram-na. Mas a pressão externa no virar para a década de 1990 obrigou os dirigentes guineenses a lançar uma restruturação das relações Estado-sociedade, era imperativo, pelo menos formalmente, dar passos em direção ao pluralismo político.

Um Estado “suave” carateriza-se por dispor de instituições que são fundamentalmente incapazes de traduzir objetivos políticos em ações políticas; é um Estado incapaz de consolidar um sistema político-administrativo nacionalmente eficaz; e é um Estado que tenta, mas não consegue impor a nível nacional um sistema de extração económica sobre o seu setor económico mais produtivo. Daí resulta o afastamento entre o conjunto dos cidadãos e a liderança do Estado. Então como se atinge a autonomia estatal? Através da expansão burocrática os dirigentes tornam-se inacessíveis ao povo em geral, crescem as dificuldades para ganhar o controlo ou mesmo o acesso às fontes confiáveis da riqueza produzida internamente. A experiência do Estado pós-colonial da Guiné-Bissau sugere que é possível alcançar a autonomia institucional sem diminuir o caráter essencialmente ‘suave’ do Estado. Estamos perante uma aparente contradição entre a autonomia e suavidade, ela torna-se evidente pelas manifestas tensões internas, temos o bom exemplo com o golpe de novembro de 1980 que abriu as portas às relações Estado-sociedade. O que nos obriga a refletir sobre a construção do Estado na Guiné-Bissau.

Os novos dirigentes não possuíam a experiência em gestão administrativa nem tinham preparação técnica para assumir as responsabilidades do edifício burocrático. Recorde-se que no passado colonial, o Exército era a base para aplicação dos decretos oficiais. O que ficou do Estado centralizado após a independência foi uma coleção de ministérios com sede em Bissau e um pessoal constituído por vários milhares de funcionários que estavam vagamente ligados às regiões locais. Foi este o contexto em que se gerou a autonomização burocrática. A principal prioridade dos novos dirigentes era consolidar e reforçar o poder da burocracia estatal de maneira a que esta pudesse servir os seus interesses específicos. Foram recrutadas centenas de novos funcionários, deu-se uma expansão de comissariados e subcomissariados entre 1974 e 1977. O funcionalismo cresceu: eram cerca de 19500 em 1979. A par desta expansão de funcionários, houve a tendência cada vez maior para a centralização burocrática, cada departamento procurava a sua própria base administrativa de poder e uma fonte de financiamento que pudesse controlar sozinho. Isto deu-se com enviesamentos gritantes: ausência de contabilidade pública; investimento orientado para Bissau e para os ministérios estatais em particular; 83% da administração concentrava-se em Bissau.

O modelo industrial que se intentava prosseguir era megalómano. Entre 1976 e 1981, a ênfase que foi colocada em projetos macroindustriais e capital-intensos, caso do Complexo Agroindustrial do Cumeré, de uma refinaria de açúcar, de uma fábrica de montagem de automóveis Citroën, de uma fábrica de sumos e compotas, de outra de acetileno, uma de cerveja e sumos e a reconstrução da estrada de Bissalanca. Desvalorizou-se o investimento agrícola e não se instituiu um sistema de crédito agrícola. Os projetos lançados revelaram-se um insucesso – o projeto de produção de arroz de Bafatá, envolvendo 57 famílias e o programa de desenvolvimento rural integrado de Cacheu, Biombo e Oio. No caso do projeto de Bafatá, as famílias mais abastadas acabaram por receber a maioria dos benefícios. No caso do programa abarcando Cacheu, Biombo e Oio, foi grandemente prejudicado por parte dos gestores estatais em querer controlar a sua implementação desprezando a iniciativa dos camponeses locais.

Em fins do ano de 1980, o Estado, em crise financeira e sobre intensa pressão da ajuda internacional, concordou em reduzir o seu pessoal administrativo. A taxação também se revelou um insucesso. Para abolir os impostos coloniais, criou-se o Imposto de Reconstrução Nacional, com resultados verdadeiramente ineficazes. Em 1983, aproximadamente 85% dos habitantes de Bissau recusaram-se a pagar o imposto, tal como no arquipélago dos Bijagós. A burocracia estatal não insistiu com a taxação, aliás estava mal equipada para recolher impostos. Onde a taxação é satisfeita é no controlo governamental do comércio de importação e exportação, através dos funcionários alfandegários.

Joshua Forrest passa igualmente em revista os sonhos que vinham dos tempos da luta armada e que pouco duraram. Logo o falhanço dos comités de tabanca, depois o desastre dos Armazéns do Povo, como diz o investigador o seu funcionamento refletia a suavidade das estruturas organizativas do Estado. “As lojas foram bloqueadas pelo baixo financiamento no governo, o insuficiente número de veículos e gestores mal preparados. Estes problemas, aliados aos baixos preços de compra e aos fracos incentivos da troca, levaram os camponeses a reduzirem a quantidade das suas colheitas vendida aos Armazéns do Povo no fim dos anos 70. Como resultado disso, o setor comercial controlado pelo Estado chegou a uma virtual paralisação. As lojas encerravam frequentemente e cada vez por vários meses. Na capital, deixou-se de contar com as lojas controladas pelo governo como fonte de abastecimento alimentar”. As estruturas governamentais mostraram-se igualmente capazes de controlar o comércio urbano. A partir de 1984, entrou-se num programa de ajustamento estrutural, com maior liberdade do comércio e com desvalorizações monetárias. Em 1986 os armazéns do povo passaram a funcionar como uma empresa privada e a Socomin foi extinta e absorvida pelos Armazéns do Povo. O governo reconheceu que o comércio privado legalizado devia ser expandido.

A liberalização permitiu ver chegar aos mercados de todo o país alimentos básicos e produtos manufaturados. “O Estado guineense procurou um grau de domínio económico totalmente inadequado a Estados ‘suaves’ com fraca capacidade de implementação de políticas. Apoiando-se mais fortemente nas agências económicas internacionais, o Estado guineense conseguiu assegurar a sua própria viabilidade institucional”. O autor dá-nos uma síntese das relações entre o Estado guineense, o FMI e o Banco Mundial e o papel desempenhado pelo setor das pescas. Em jeito de conclusão, Joshua Forrest recorda que o fator fundamental que levou o Estado a aproximar-se da comunidade internacional foi a sua deficiência e ineficácia no processo de elaboração de políticas: na recolha de impostos, no incremento do desenvolvimento rural, nos investimentos estapafúrdios na indústria, na incapacidade de gerir o comércio. Percebendo que estavam dependentes da ligação com as forças internacionais, o Estado mudou a sua orientação face à sociedade, mesmo ao princípio com enormes reticências e grande oposição interna, o PAIGC anunciou que estava aberta a via multipartidária.

Recorda-se ao leitor que estamos a sintetizar a argumentação de um investigador que terá escrito o seu estudo entre 1992 e 1993, o seu mérito indiscutível é que nos ajuda a perceber de algum modo o comportamento das elites atuais num Estado “suave” onde circula a cocaína e se insinua um radicalismo islâmico que não tem suporte no povo.


Luís Cabral
Complexo agroindustrial do Cumeré, fotografia de Virgílio Teixeira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia
Busto evocativo de Amílcar Cabral, Guiné-Bissau
O deslumbrante colorido do folclore bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)