segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Insiste-se que a entrevista concedida por Carlos de Matos Gomes se mantém como peça modelar para analisar o processo de descolonização da Guiné a partir da formação do Movimento dos Capitães e depois do MFA na região, o entrevistado explica as razões por que se ofereceu para ir para o Batalhão dos Comandos africanos, pretendia conhecer a estratégia spinolista que lhe estava subjacente no contexto da africanização da guerra e numa lógica conducente à possibilidade de algo com o PAIGC. 

Fala-se da rotina das operações, da complexidade dos problemas pluriétnicos dentro desta tropa de elite, retoma-se a génese e a estruturação do MFA, esclarece que havia uma demarcação entre um grupo contestatário de que ele fazia parte e a linha spinolista, muito pouco presente depois de Spínola sair da Guiné, em agosto de 1973; fala-se do que aconteceu em 26 de abril e da descolonização que envolveu os Comandos e os Fuzileiros. É sem margem para dúvidas um documento que merece ser compulsado com diferentes testemunhos de Carlos Fabião e com o livro de Sales Golias, sobre esta temática.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte, e fiz texto para o nosso blogue. Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. 

Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Prosseguindo o teor da entrevista, e já contextualizado o tempo e o modo da génese da formação do Movimento dos Capitães e da MFA na Guiné, Carlos de Matos Gomes é questionado sobre o percurso de Marcelino da Mata, responde sem hesitações:

“O Marcelino da Mata é uma pessoa superiormente inteligente, uma pessoa informada, reage sempre em busca do seu interesse, sempre! Ele sabe que foi utilizado de determinada maneira, por determinadas pessoas, para fazer determinadas coisas, fê-las e foi, sempre, obtendo recompensas. Ele age, claramente, como um homem que sabe que está envolvido numa guerra que o ultrapassou, e vai procurar os aliados que lhe são mais convenientes em cada momento. Como era um homem superiormente inteligente e também corajoso, não tem as lealdades deles e a admiração e respeito é por aqueles que ele considera iguais ou superiores a ele. Por vezes, diaboliza-se o Marcelino da Mata, mas ele é exatamente igual aos comandantes de guerrilha, porque vem exatamente do mesmo sítio, tem as mesmas lógicas, os mesmos comportamentos”.

Desvela seguidamente os tipos de operações em que esteve envolvido, destaca a reocupação do Cantanhez, a ida às matas da Caboiana, a operação Ametista Real. A partir da retirada de Guileje quando o Batalhão de Comandos intervinha já era em situações críticas, afirma, tornava-se imperativo levar o batalhão inteiro. Era a resposta ao agravamento da situação militar, passar-se de operações com 50 homens para operações com várias centenas. Tece observações aos aspetos da etnicidade no recrutamento das tropas africanas, os Comandos e os Fuzileiros africanos tinham por base as milícias, os pelotões de caçadores, as companhias étnicas e caçadores locais.

“Havia tipos que chegavam aos Comandos já com vários anos de permanência, iam aprendendo, iam falando, ganhando uma consciência de militares portugueses que era a tentativa que nós fazíamos. Nós integrámo-nos nessa corrente de fazer o Estado através das Forças Armadas, isto aconteceu em quase todos os países africanos e era também a ideia do general Spínola”.

Os entrevistadores procuram apurar se as diferenças étnicas se esbatiam nessas unidades de elite, obrigatoriamente pluriétnicas, o entrevistado responde:

“Era uma gestão feita em cima do gume da navalha. Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros. Por exemplo, tínhamos o primeiro grande comandante de uma unidade de Comandos, o João Bacar Djaló, que era Fula. Fez exatamente esse percurso, foi comandante de milícias, foi depois militar e depois foi para os Comandos. O esquema de uma companhia de Comandos comandada por João Bacar Djaló tinha alguma coisa que ver com a organização militar portuguesa, com as Forças Armadas portuguesas, mas tinha muito que ver com a organização da sociedade islamizada.

Ele funcionava como comandante de Companhia, mas também como mestre, tinha um conjunto de discípulos que depois ia premiando. E como premiava? Promovia-os a furriel e depois promovia os furriéis a sargentos. Discípulos esses, que lhe pagavam, como se pagava na idade média, como nas corporações, e isso era assim em vários lados”
.

Depois de expor a sua visão sob a composição étnica existente no seio de batalhão de Comandos Africanos, e depois de recapitular a génese e a estruturação do MFA na Guiné, chegamos ao 25 de abril, as Forças Armadas na Guiné aderiram maciçamente:

“O 26 de abril estava previsto e pensado para, caso houvesse um problema grave aqui em Portugal, a ação de alternativa teria de ser na Guiné. Estou convencido de que, claramente, o general Spínola não estava interessado naquela ação na Guiné. Fizemo-lo sabendo isso, porque assim tornávamos irreversível o processo da descolonização e marcávamos uma posição no processo”.

E elenca as diligências efetuadas nas alterações dos Comandos, e abre espaço para a reflexão sobre as tropas africanas:

“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.

Eu penso que nos acordos, no Acordo de Argel está referida a situação dos militares e nós confiávamos que isso iria correr bem. Confiámos! Foi sempre dada a oportunidade a esses militares, principalmente aos quadros e aos tipos que tinham mais impacto, que tinham combatido mais anos contra o PAIGC de que, se quisessem, vir para Portugal. O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não surpreendeu, porque sabia mesmo no Batalhão de Comandos, que era a elite das elites, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”
.

Havia o entendimento entre os responsáveis portugueses e as principais figuras dos comandos africanos, que a convivência seria possível no futuro. E segue-se a conclusão dramática: 

“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”

Foram o bode expiatório naquela tensão permanente entre cabo-verdianos e guinéus. O entrevistado recorda declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros, isto quando tivera oportunidade de negociar um período de coabitação com Portugal, até ganhar foros de autonomia, não quiseram, queriam ver-se livres da entidade colonial por pura ambição da chegada ao poder.

O Batalhão de Comandos foi extinto, ficara escrito que iriam ser reintegrados numas novas Forças Armadas, houve quem recusasse, caso do tenente Jamanca que foi pouco depois abatido.

E aqui se dá por concluído o essencial do texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes a uma equipa de universitários que quiseram ouvir protagonistas que tinham estado na primeira linha no processo da descolonização nos 3 teatros africanos.


Carlos de Matos Gomes
Entrada do aquartelamento do Batalhão de Comandos da Guiné
Insígnia do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, a que pertencia Domingos Demba [Ensá] Djassi, 2.º Sargento
2.º Sargento Domingos Djassi
Capitão João Bacar Djaló em Catió, ainda tenente. Foi o 1.º comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos
______________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

domingo, 5 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)



Fado (1910),  quadro a óleo sobre tela, de José Malhoa (1855–1933). Museu de Lisboa. Imagem do domínio público. Cortesia da Wikimedia Commons.


1. Das coisas do passado, do tempo da nossa infància, falta ainda falar de lugares de "socialização" como a igreja e a escola... mas também da "rua" (onde se brincava), sem esquecer a taberna, tanto em meio rural como urbano,  se bem que fosse um lugar "interdito" aos putos: só se lá ia para ir chamar o pai, ou comprar um quartilho de vinho, nomeadamente nos meios rurais ou nas pequenas vilas de província. Eram  em geral espaços públicos esconsos, acanhados, sujos e mal iluminados. 

 Etimologicamente, "taberna" vem do latim "taberna", do grego ταβέρνα (que significa "abrigo" ou "oficina"). Tanto nos meios rurais como citadinos, tinha uma função importante não só para efeitos de consumo (e venda) de bebidas alcoolócias (com destaque para o vinho, a copo) e ainda do  petisco,  bem como local de convívio, troca de informação, notícias, ideias, etc. 

A história do fado (vd. imagem acima), por exemplo,  é indissociável das tabernas que existiam nos bairros populares nas zonas ribeirinhas de Lisboa, ao longo do séc.XIX até aos anos 70 (e também das "hortas", " fora de portas", já na zona saloia, que começava em Benfica,  e onde os alfacinhas (operários, marçanos,  pequeno funcionalismo público, etc. )  iam aos "comes & bebes",  sábado à noite, em geral em família ou em grupo  com direito a "fados e guitarradas".

Ainda frequentei, como estudante e como investigador, no àmbito da licenciatura em sociologia, a "Pérola da Atalaia", uma modesta taberna, para não dfizer "tasca", sita na Rua da Atalaia, Bairro Alto, Lisboa, que hoje já não existe. Tinha meia dúzia de meses (se tanto),   com  tampos de mármore (fáceis de lavar com um pano molhado), e bancos, e um cheiro típico, a fritos, vinho tinto e lexívia...

Fiz parte, no final dos anos 70, de uma vasta equipa de alunos de sociologia, dirigida pelo antropólogo Joaquim Pais de Brito (ex-director do Museu Nacional de Etnologia), que fez a primeira abordagem séria, académica, com rigor científico, do fado enquanto "canção popular urbana de Lisboa"... Eu e a minha equipa interessámo-nos pelo chamado "fado vadio", amador, espontàneo,  que ainda se cantava e tocava, na época, no Bairro Alto.  Procurávamos sobretudo registar letras,  personagens, falas, ambientes, etc.

As "casas de fado" (desdeva II Guerra Mundial  para "turista"...) têm a sua origem na taberna lisboeta... Foi o laboratório da canção popular urbana que, ao longo da sua história de dois séculos, e em termos político-ideológicos, foi tudo, a avaliar pelo conteúdo das suas nas letras, a tal ponto que se pode dizer que há um fado liberal, miguelista, marialva, monárquico, republicano, anarcossindicalista, socialista, comunista, fascista, progressista...  O fado é a "ganga da história"... 

António Ferro e o Secretariado Nacional de Propaganda (SNP), depois SNI, no Estado Novo, quiseram fazer do fado "uma canção nacional"... O mesmo aconteceu ao flamenco (em Espanha), e ao tango (na Argentina). Enfim, houve uma apropriação digamos "societal" de uma forma de expressão musical popular, que na origem não era só "cantada", mas também "dançada" e "batida", e estava ligada, socioantropologicamente falando, a estratos sociais marginalizados.

Muito aprendi, nessa altura, com o meu mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, pioneiro na abordagem socioantropológica do fado e hoje talvez injustamente esquecido... Quando fui a um entrevista de admissão como docente à Escola Nacional de Saúde Pública fui aconselhado a omitir, do meu currículo, os muitos fins de tarde passados na "Princesa da Atalaia"... (Ainda havia prostituição de rua nessa altura, e a saúde pública dava-se mal com estes lugares  social e culturalmente estigmatizados e marginalizados, na época).

2. Mas vamos ao que interessa: a taberna, em pequenas terras do interior do nosso querido Portugal, como Molianios (ou Moleanos), Alcobaça (hoje famosa pelo seu calcário, que é énico e se chama justamente Moleanos). 

Nas tabernas de Moleanos  provavelmente nunca se cantou o fado, a não ser muito esporadicamente. (No baixo Alentejo, a taberna, sim,  era o local por excelència do "cante".) 

A evoção da taberna em meio rural (que nada tem a ver com o fado, "canção popular urbana" nem com a iconica pintura do José Malhoa que reproduzimos acima ...) é feita aqui pelo nosso saudoso camarada António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º  cabo condutor auto, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74).

Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). No nosso blogue é autor das séries O tempo que ninguém queria e Pedaços de um tempo,



A taberna na minha aldeia de Moleanos nos anos 50

por António Eduardo Ferreira


Recuando no tempo, a conversa, hoje, é sobre as tabernas que existiam na aldeia de Molianos ou Moleanos, segundo o topónimo oficialpor volta do ano de 1950 do século passado, e aquilo que elas representavam na vida das pessoas de então. (*)

Por essa altura, e ainda durante mais alguns ano, foram as tabernas os locais onde os homens se juntavam ao domingo, assim como nos dias santos, ou no inverno quando não era possível trabalhar nas terras.

Durante o tempo que estavam nas tabernas, eles, para além de muita conversa, aproveitavam para beberem uns copos do tinto e também do branco, ainda, que, por aqui, fossem poucos o que trocavam o tinto pelo branco. O bagaço também fazia parte das bebidas que eles consumiam. Outras havia que não faziam parte dos seus hábitos: a cerveja, a gasosa, a laranjada e ainda o pirolito que, entretanto, acabou!... 

Para beberem vinho, algumas vezes, nem necessitavam de copo, bebiam todos pela mesma garrafa, "a olho",  como naquele tempo por aqui se dizia.

As tabernas, para além das bebidas… eram também o local onde se vendia quase tudo que as pessoas necessitavam para o dia a dia: o açúcar, o café (para fazer na cafeteira), a massa, o arroz, o colorau, o petróleo, o bacalhau, o sebo para as botas, entre muitas outras coisas. 
Noutras sítios também se chamava "venda" à taberna onde se ofereciam, para venda, além de vinho e comida,  artigos de mercearia; topónimos como Venda das Raparigas podem ter na sua origem um destes estabelecimentos à beira da estrada; e nas feiras a taberna era a "tenda". ]

Um pouco mais tarde, em algumas, até comprimidos para a constipação... vendiam, eram uma espécie de minimercado da época.

Naquele tempo, na aldeia de Molianos, as mulheres não frequentavam as tabernas, a não ser para irem fazer as compras e logo regressavam a casa. Diziam os homens que as tabernas não eram para as mulheres. Mas não se pense que algumas, mesmo sem estarem na taberna, de vez em quando, não apanhavam também a sua piela de tal tamanho... que as fazia ziguezaguear, não conseguindo passar despercebidas junto das pessoas com quem se cruzavam.

Por aquela altura não existiam na aldeia coletividades de desporto, cutura e recreio ou outros espaços públicos onde os homens se pudessem juntar, a não ser nas tabernas, ou no tempo da apanha da azeitona em que também os lagares eram sítios onde muitos se encontravam no fim do dia. Apesar de ser no inverno, os lagares eram locais onde existia um ambiente confortável a que eles não estavam habituados, um espaço aquecido… e com boa iluminação, coisa inexistente nas casas da aldeia.

Naquele tempo, as pessoas não saíam para fora da terra a não ser para trabalhar, algumas vezes para muito longe. Os transportes públicos apenas havia à segunda-feira, para Alcobaça, por ser o dia em que lá tinha lugar o mercado. Os transportes particulares também não haviam. 

Apesar de existirem muitos homens na aldeia, apenas, quatro ou cinco, possuíam uma bicicleta. O transporte mais utilizado pelas pessoas para se deslocarem, não só para o campo, mas também para ir às compras, à sede do concelho, eram os burros, animais esses que havia muitos na aldeia.

Só à segunda-feira, havia a camioneta da carreira como as pessoas lhe chamavam, mas mesmo assim nem todos a utilizavam, eram muitos os que faziam os dez quilómetros para cada lado a pé, para pouparem o valor do bilhete… que era pouco, mas necessário para ajudar nas compras que iam fazer, o pouco dinheiro de que dispunham a isso os obrigava.

Se as tabernas durante algum tempo era o sítio onde os homens se encontravam quando não era possível trabalhar, também havia algumas épocas em que os frequentadores eram poucos. Isso acontecia, quando quase todos os homens e rapazes, alguns com doze ou treze anos, saíam da aldeia para irem trabalhar para as vindimas para a região saloia, assim como para outros serviços, em particular, para a zona de Lisboa.

Quando regressavam à terra voltava a ser grande o ajuntamento nas tabernas aos domingos à tarde, onde a bebida e as conversas à mistura eram sempre muitas. 

Por vezes, apareciam por lá poetas populares com jeito para cantar ao desafio o que era sempre do agrado de todos. 

Quando o álcool já era quem mais ordenava, por dá cá aquela palha, algumas vezes, aconteciam cenas de pancadaria, nada que passado alguns dias os contendores, por iniciativa própria ou com a ajuda de alguém, não resolvessem fazendo as pazes. Chegava a acontecer a alguns ficarem mesmo amigos.

As tabernas, para além do já referido… desempenhavam também uma "função social": não davam nada a ninguém, mas tornavam possível, sem aumento de preço, a algumas pessoas,  adquirir bens essenciais para o dia a dia das famílias, quase sempre numerosas, permitindo-lhe comprar fiado com a promessa de vir pagar quando tivessem dinheiro. Se assim não fosse, as pessoas não podiam comprar e as dificuldades que eram sempre muitas, seriam ainda mais. (...) (*)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negrit0s / parènteses retos: LG)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24819: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (17): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - II (e última) Parte: tudo era de todos quando a necessidade oprimia
 

sábado, 4 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24823: Agenda cultural (844): Convite para o lançamento do novo livro do nosso camarada José Teixeira, "O Universo Que Habita Em Nós", prefaciado pelo Prof. Júlio Machado Vaz, a levar a efeito no próximo dia 18 de Novembro de 2023, pelas 16h30 horas, no Centro Cultural de Leça do Balio, sito no Largo do Mosteiro de Leça do Balio, com apresentação a cargo do Prof Luís Graça

C O N V I T E


Mensagem do autor:

Cada um de nós ao nascer, transporta dentro de si um Universo a construir – a sua vida. Com o desenrolar do tempo e com a ajuda ou desajuda de quem nos rodeia – Mãe, pai, avós, mestres, professores, amigos, vizinhos e colegas do café e tantos outros agentes educativos – vamos desenvolvendo as nossas capacidades, formando o nosso carácter, estabelecendo a nossa forma de ser e estar na vida, ou seja, construído o nosso Universo pessoal.

As histórias que vos ofereço neste livro, ajudam cada um(a), a compreender este fenómeno maravilhoso da vida, como escreve o Prof. Júlio Machado Vaz, com candura, transparência e doçura.

Com um abraço de amizade
José Teixeira


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Prefácio do Prof Júlio Machado Vaz

Se me pedirem para resumir estes textos numa só palavra eu não hesito na escolha – candura. E errado estaria quem a associasse à ingenuida­de, ela veio-me ao espírito de braço dado com outra – transparência…

…Por isso não me surpreendeu que da madura escrita infantil jorrasse, a céu aberta ou clandestina, uma idealização da figura feminina, ves­tida de mãe, madrinha de guerra ou mulher, mas sempre amada por cuidadora e ternurenta, nem a traição a faz descer do altar ao qual se confessa a dor por lhe ter virado costas e futuro. Essa sombra proteto­ra, indiferente ao género, permeia as estórias de quem acompanha os sem abrigo e lhes ouve as narrativas de vida, com pudor escondidas por trás dos consumos escancarados de álcool e (outras) drogas, sin­gela homenagem aos que, crentes ou não, amam o próximo depois de dias frenéticos de trabalho.

E porque o autor não esconde, na obra que nos ocupa ou no currículo, o derriço pela poesia, apetece-me fechar o círculo com rima fácil, típica de quem não verseja – juntar doçura à candura. Porque, mesmo ao abordar os quotidianos mais duros, estas páginas cultivam o registo meigo de quem os revisita dorido, mas pacificado; sem fímbria de aze­dume. Talvez seja esse o maior mérito deste livro – conduzir-nos, como indivíduos e membros de uma sociedade feroz, interesseira e geradora das maiores e mais cruéis desigualdades, a um espelho - cândido; im­placável; menineiro.

Júlio Machado Vaz



DETALHE DO LIVRO

Título: O Universo Que Habita em Nós
Autor: José Teixeira
Editora: Astrolábio Edições
Data de publicação: 2023-09-28
Dimensões: 15x23 cm
Páginas: 230
Encadernação: Capa mole
ISBN: 978-989-37-6094-9
Género: Ficção
Idioma: PT

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Notas do editor

Vd. poste de 19 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24772: Agenda cultural (842): Pré-apresentação do novo livro do nosso camarada José Teixeira, "O Universo Que Habita Em Nós", prefaciado pelo Prof. Júlio Machado Vaz

Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24786: Agenda cultural (843): Doclisboa - 21º Festival Internacional de Cinema: 25 de outubro, 4ª feira, às 10h30, na Culturgest, Pequeno Auditório, projeção do documentário português (119'), "Fogo no Lodo", filmado na aldeia de Unal, a sul de Buba, seguida de debate com os realizadores, Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca

Guiné 61/74 - P24822: Os nossos seres, saberes e lazeres (599): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (127): No Museu de Lisboa, um olhar sobre o património azulejar dedicado à capital antes do terramoto… e algo mais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
O que é belo é sempre para rever, esteja onde estiver. Vivo a curta distância do Museu de Lisboa, de que conservo gratas memórias, aqui conversei com Irisalva Moita, uma estudiosa de Lisboa como há poucas, e fui vendo os progressos museológicos e museográficos, a dignificação dos jardins, a extensão dos espaços e altíssima qualidade das exposições. Uma parte significativa do museu está a ser alvo de intervenção, mas há primores indiscutíveis ao nível do rés-do-chão, para quem gosta de um deambular cronológico começa-se na pré-História até à cidade Quinhentista, fecha-se uma porta e abre-se outra e entramos numa área espetacular de azulejaria que só encontro rival com o que está patente no Museu Nacional do Azulejo. E há depois os registos do santos, em que Lisboa é imbatível, a pintura contemporânea, onde não falta Carlos Botelho e Eduardo Viana e um núcleo admirável de Lisboa, Cidade de Cerâmica, de que aqui se presta homenagem a uma ceramista que deixou uma obra sobre Alfama, trabalho da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego. Aos lisboetas e passantes, votos de uma magnífica visita.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (127):
No Museu de Lisboa, um olhar sobre o património azulejar dedicado à capital antes do terramoto… e algo mais


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala do Palácio Pimenta, palácio de veraneio da 1ª metade do século XVIII, adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 1962 para, após a requalificação do edifício e jardins, aqui instalar o então Museu da Cidade, a funcionar no Palácio da Mitra desde 1942. O primeiro projeto de adaptação, datado de 1968, foi da autoria do arquiteto Raúl Lino. No entanto, foi graças à intervenção do arquiteto Duarte Nuno Simões, com programa museológico da olisipógrafa Irisalva Moita, que o novo museu foi inaugurado em 1979. O museu está instalado em dois andares, sendo que o 1º está presentemente sujeito a obras, podendo o visitante na multiplicidade das salas do rés-do-chão visitar obras de arte que vão da Idade do Bronze à contemporaneidade, marcas de sucessivas épocas, é uma exposição de longa duração intitulada “Viagem ao Interior da Cidade”. Viagem em que o azulejo é a prima-dona absoluta, há ali três obras magníficas do 1º quartel do século XVIII que permitem conhecer e identificar o que era o Terreiro do Paço, o Hospital de Todos-os-Santos e o Mercado da Ribeira antes do terramoto. Far-se-á também uma referência aos belos registos de santos, de que Lisboa possui um património de incontestável valor, e despedimo-nos com uma lembrança de Lisboa como cidade da cerâmica. Na verdade, dos centros oleiros da Mouraria e de Santos-o-Velho as grandes fábricas Lusitânia, Desterro, Viúva Lamego ou Sant’Anna, passando pela Real Fábrica de Louça do Rato, é toda uma outra história da cidade que o museu revela, em diálogo com obras de artistas do século XX. Desejamos a todos uma boa visita, há também oportunidade para visitar a magnífica maqueta de Lisboa anterior ao terramoto de 1755 e bela pintura contemporânea.
Terreiro do Paço, azulejaria do 1º quartel do século XVIII
Mercado da Ribeira Velha e Casa dos Bicos, 1º quarte do século XVIII.
Era um painel de azulejos que estava na Estrada de Benfica no n.º 385.
Hospital Real de Todos-os-Santos.

Os painéis de azulejos expostos, com vistas da Lisboa pré-Terramoto, encontravam-se num muro de suporte do jardim de uma casa na Estrada de Benfica. Documentos iconográficos fundamentais para o conhecimento de alguns dos principais edifícios e quotidianos da cidade anterior à catástrofe.


O Museu de Lisboa possui um belo acervo de registos de santos em azulejo. São painéis devocionais conhecidos por registos de santos, testemunhos da religiosidade popular. Inicialmente confinados no interior de igrejas, os registos passaram para o exterior, possivelmente durante o século XVII. Estes registos irão multiplicar-se a partir de meados do século XVIII. Aplicados nas fachadas, geralmente sobre as portas de entrada, ou nos átrios das casas, podiam ser acompanhados por flores e luminárias. Em consequência de catástrofes naturais, surtos epidémicos, incêndios e outras calamidades, entendidas como resultado de justiça divina, os registos pretenderam ser um poderoso auxílio para, através da intercessão de Virgem Maria ou de santos da particular devoção, promover a proteção do lar onde estavam colocados e a saúde dos que nele habitavam. Lisboa concentra a maior quantidade de registos de santos conhecida no país.
Registo revivalista com o Milagre da Aparição do Menino Jesus.

A devoção e a necessidade de proteção expressam-se em diversos registos de azulejos com função comemorativa de efemérides da vida de figuras sacras ou de episódios aos quais estas se encontram associadas. Destaca-se este painel de 1895, referente à comemoração do 7º centenário do nascimento de Santo António.
São Marçal
Registo rococó com Nossa Senhora da Nazaré, atribuído a Francisco Jorge da Costa, século XVIII.

Uma devoção com relativa representatividade nos azulejos é a de Nossa Senhora da Nazaré. A sua presença tem subjacente um leque muito diversificado de motivações, desde pedidos de proteção contra as tentações do demónio, passando pelos perigos do mar. O painel representa o mítico cavaleiro medieval, D. Fuas Roupinho, alcaide do Castelo de Porto de Mós, trajado à maneira de Setecentos, numa caçada durante a qual é atraído para o abismo por um veado, personificação do diabo, sendo salvo pela aparição da Virgem.
Registo da Sagrada Família na sua fuga para o Egito
Registo com São João Baptista.

São João Baptista desempenha um relevante papel como elo simbólico da transição do Antigo para o Novo Testamento, por ser o último profeta da Antiga Lei e o primeiro mártir da cristandade. Habitualmente surge descalço, tendo como indumentária uma pequena túnica e uma pele presa ao ombro.
Um pormenor da cozinha do Palácio Pimenta, atenda-se à riqueza azulejar e à magnífica ornamentação dada pelos cobres.
Dois exemplares de azulejaria com belos enquadramentos de chão marmoreado e muito boa pedra.
Placa comemorativa com uma vista do Bairro de Alfama, Manuela Ribeiro Soares (1921-2000), Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, 1959
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24802: Os nossos seres, saberes e lazeres (598): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (126): Nos jardins do Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24821: As nossas geografias emocionais (15): o reordenamento de Nhabijões (ou Nha Bidjon), 300 casas de zinco que terão custado mais de 2700 contos (c. 700 mil euros a preços de hoje), fora a mão-de-obra, civil e militar, e ainda os custos indiretos e ocultos


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca / CAOP 2) > Nhabijões (ou Nha Bidjon) > c. 1973 > Vista aérea do reordenamento de Nhabijões: o maior ou um dos maiores do CTIG, com 300 casas de zinco...(Fonte:  CECA, 2015, pág. 276)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca / CAOP 2) > Nhabijões (ou Nha Bidjon) > 197 2> Vista aérea do reordenamento de Nhabijões (Fonte:   "Diário de Lisboa",   31 de Agosto de 1972, com a devida vénia)


1. Ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) /CAOP 2), o redordenamento de Nhabijões tinha, a defendè-lo, um pelotão (da CCS) mais um 1 Esq do Pel Mort 2268, com morteiro 81. 

Continuou, no tempo do batalhão, que veio a seguir, o  BART 3873 (1972/74), com 1 pelotão (da CCS) mais 1 Esq do Pel Mort 2268... E por fim, no final da guerra,  com o BCAÇ 4616/73 (1974),  havia só 1 pelotão (da CCS).

Ainda lá estive, uma semana ou duas, a comandar um pelotão de "básicos" da CCS... Uma noite apareceu alguém, no destacamento, a gritar, histérico, "Turras no Nha Bidjon"... Veio,  em meu socorro, o piquete de serviço, de Bambadinca, comandado pelo Beja Santos (que estava em fim de comissão, e era uma força da natureza).

No final, não fora nada: os gajos do PAIGC entravam e saíam a seu bel prazer em Nhabijões, iam visitar os parentes, beber vinho de palmeira ou aguardente de cana, dormir com as bajudas, recolher as compras feitas em Bambadinca na loja do "tuga" Zé Maria (a quem chamávamos "turra"), estudar as rotinas da tropa  e, quando muito bem lhes apeteceu, puseram duas minas A/C, à saída do reordenamento, accionadas por duas viaturas nossas no dia 13 de janeir0 de 1971...

Nhabijóes tem 55 referências no nosso blogue. É um dos topónimos míticos da guerra no leste. O reordenamento foi um dos maiores sucessos da política spinolista "Por Uma Guiné Melhor"... 

Mas também pagámos (a CCAÇ 12 e a CCS/BART 2917) um alto preço por este êxito: recordemos as duas minas A/C accionadas no dia 13 de janeiro de 1971, vitimando mortamente o sold cond auto da CCAÇ 12, Manuel da Costa Soares, e ferindo, com gravidade,  o alf mil sapador Luís Moreira (da CCS/BART 2917), os fur mil Joaquim Fernandes e António F. Marques (este, esteve dois anos no hospital), os sold Ussumane Baldé,  Tenen Baldé, Sherifo Baldé, Sajuma Baldé (todos da CCAÇ 12, 4º Gr Comb) e ainda um soldado da CCS / BART 2917 (cujo nome não me ocorre agora). 

No meu caso, foi o meu dia de sorte, ia na GMC, no lugar do morto, que accionou a segunda mina, a explosão deu-se n0 rodado duplo, traseiro, do meu lado...  Já aqui escrevi, "ad nauseam": 

(...) "Eu também nunca mais esquecerei aquela data e aquele nome. Nunca mais esquecerei a correria louca que fiz com um Unimog 404, carregado de feridos, pela estrada fora, de Nhabijões até Bambadinca, até ao nosso aeródromo onde nos esperava o helicóptero para uma série de evacuações ipsilon. 

"Ainda hoje não sei explicar por que razão fui eu, além do condutor, o único do meu Gr Comb (a duas das secções) que fiquei praticamente incólume mas inoperacional: umas contusões na cabeça (por projecção contra a parte inferior do tejadilho da GMC); a G-3 danificada; tonto e cego de tanta poeira; etc." (...) 


2. Da história da CCAÇ 12, reproduzo estes excertos:

(...) "A partir deste mês, novembro de 1969, 1 Gr Comb da CCAÇ 12 passaria a patrulhar quase diariamente as tabancas de Nhabijões cujo projecto de reordenamento estava então em estudo, a cargo da CCS/BCAÇ 2852.

"Nhabijões era considerado um centro de reabastecimento do IN ou pelo menos da população sob seu controle. As afinidades de etnia e parentesco, além da dispersão das tabancas, situadas junto à bolanha que confina com a margem sul do Rio Geba, tornava-se impraticável o controle populacional. 

"Impunha-se, pois, reagrupar e reordenar os 5 núcleos populacionais, dos quais 4 balantas (Cau, Bulobate, Dedinca e Imbumbe) e 1 mandinga, e ao mesmo tempo criar "polos de atracção" com vista a quebrar a muralha de hostilidade passiva para com as NT, por parte da população que colabora com o IN." (...)

A CCAÇ 12 participaria directamente neste projecto de recuperação psicológica e promoção social e económica da população dos Nhabijões, fornecendo uma equipa de reordenamentos e autodefesa, constituída pelos seguintes elementos (que f
oram tirar o respectivo estágio a Bissau, de 6 a 12 de Outubro de 1969):
  • alf mil at inf António Manuel Carlão (1947-2018) (originalmente o cmdt do 2º Gr Comb, que passou a ser comandado por um fur mil);
  • fur mil at inf  Joaquim Augusto Matos Fernandes (comdt da 1ª secção 4º Gr Comb):
  • 1º cabo at inf Virgilio S. A. Encarnação (cmd da 3ª secção do 4º Gr Comb);
  • e sold arv at inf Alfa Baldé (Ap LGFog 3,7, do 2º Gr Comb)
e ainda 2 carpinteiros (na vida civil):
  • 1º cabo at inf Sousa (?)
  • e 1º cabo aux enf Carlos Alberto Rentes dos Santos.
A CCAÇ 12, além de ficar desfalcado de seis importantes elementos operacionais (e dois grupos de comnbate desfalcados),  participou ainda indirectamente neste projeto.  criando as condições de segurança aos trabalhos.

Numa primeira fase estava previsto levar a efeito:
  • a desmatação do terreno;
  • a fabricação de blocos de adobe;
  • a construção de 300 casas de habitação com portas, janelas e cobertura de zinco;
  • a construção de equipamentos sociais  (1 escola, 1 mesquita, fontes, acessos, etc.).
(...) "Durante este período a CCAÇ 12 realizaria várias acções, montando nomeadamente linhas descontínuas de emboscadas entre os núcleos populacionais de Nhabijões, além de constantes patrulhas de reconhecimento e/ou contacto pop.

"A partir de Janeiro/70 seria destacado um pelotão da CCS/BCAÇ 2852 a fim organizar a autodefesa de Nhabijões. Admitia-se a possibilidade do IN tentar sabotar o projecto de reordenamento, lançando acções de represália e intimidação contra a população devido à colaboração prestada às NT.

"A partir de abril de 1970, o reordenamento em curso passaria a ser guarnecido por 1 Gr Comb da CCAÇ 12. Na construção de novo destacamento estiveram empenhados o Pel Caç Nat 52 e a CCAÇ 12, a 3 Gr Comb, durante vários dias.

"A segunda fase do reordenamento (colocação de portas e janelas e cobertura de zinco em todas as casas, abertura de furos para obtenção de água, etc.) começaria quando o BART 2917 passou a assumir a responsabilidade do Sector L1 (em 8 de junho de 1970).

"A partir de Julho, a CCAÇ 12 deixaria de guarnecer o destacamento de Nhabijões, tendo-se constituído um pelotão permanente da CCS/BART 2917 enquadrado por graduados da CCAÇ 12." (...)


3. Uma estimativa grosseira do cust0 deste reordenamento aponta para 2700 contos, em 1972 (300 casas de zinco x 9 mil escudos).

Este valor, em 1972, equivaleria, a preços de hoje, a €703.942. Não se incluem os custos de mão de obra, gratuita (civil e militar) nem outros custos indiretos e ocultos (planeamento, formação, ferramentas, segurança,  etc.)... Falta ainda contabilizar a escola, a mesquita, as fontes e outros equipamentos sociais como o posto sanitário, os caminhos, etc.  (**)

O jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues (que vim a conhecer pessoalmente há uns anos), convidado especial de Spínola, para ver as "obras" do seu consulado, escreveu (**):

(...) "As aldeias de zinco, ordenadas e reluzentes, surgem por todo o lado, com a colaboração dos nativos que ambicionam casa melhor, à prova de incêndio e mais parecida com a casa dos brancos, embora menos defendida do calor do sol.

"Dantes só os régulos conseguiam ter casas de zinco. Mas agora 70 reordenamentos foram executados desde 1969, e muitos outros estão em construção, Nove contos cada, não contando a mão-de-obra gratuita. 

"Só na época seca de 1972, de janeiro a junho, foram construídas pelo exército 1642 casas de zinco e 689 casas de c0lmo, além de 42 escolas e 5 postos sanitários. Há reordenamentos de 200 ou 300 casas. 

"Os primeiros eram aldeias estratégicas onde se juntava a populção dispersa de várias tabancas, perto dos quartéis que asseguravam a defesa, e evitavam as infiltrações do PAIGC.  Neste momento   - garantiram-me em Bissau - os reordenamentos são instalados onde houver terreno arável, e, de preferència, nos locais indicados pela população.

"Segundo a doutrina do general Spínola, o reordenamento é um dos dois 'grandes marcos' da política de desenvolvimemto da Guiné" (...)

(...) "Infelizmente ainda tenho que dar tiros,  - explicou-me o outro dia o general - mas a guerra não se ganha aos tiros". (...) (***)
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Notas d0 editor:

(**) Vd. poste de 10 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco