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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24202: Manuscrito(s) (Luís Graça) (221): Boas e santas Páscoas, nós por cá... todos bem!

 

Quinta de Candoz > s/d > Visita do compasso pascal...


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm. S/ título

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


A Páscoa em Candoz: 
no tempo em que ainda estávamos todos vivos, 
e felizes, e de boa saúde
 

À Nitas (que era a deusa do lar  
e a oficiante da liturgia de Candoz);

À Joana (que hoje faz anos, e que desde pequenina gostava 
de brincar com a fada Oriana em Candoz);

À Chita (que é a mãe da Joana,  a "alma gémea" da Nitas 
e a minha feiticeira  de Candoz);

Ao Gusto (que há 49 anos, em 6/4/1974, se casava com a sua "Nita"
 e que, por amor, se tornou o senhor "engenheiro" de Candoz, 
agora inconsolado e inconsolável com a perda 
daquela que era "mais de metade" do seu ser)

 

Quinta de Candoz > c. 1999 >Os manos e sócios, da esquerda para a direita: Chita (Alice), Nitas (Ana) (1947-2023), Zé e Rosa


Era  domingo de Páscoa na aldeia. 
Fazia frio mas o sol estava esplêndido. 
Era um daqueles dias 
em que a gente  se reconciliava  com a vida. 
Nem que fosse por uns breves instantes. 
Com a vida, mas não necessariamente 
com o mundo. 
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, 
em Tormes, ali ao lado, 
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
 de umas cebolinhas do talho 
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz, 
havia as ervilhas de quebrar.)

A manhã, primaveril, trazia-te 
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo 
da tua infância da Estremadura. 
Descobriste, tarde, esta parte 
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico 
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.

Um citadino, como tu, não sabia 
o que era isso de ouvir, 
logo pela manhã, 
os galos a cantar nos seus galinheiros. 
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. 
Ou observar os melros de bico amarelo 
pousados nas videiras 
que desabrochavam, em gamões.


Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)


Um citadino como tu 
não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões 
nem das suas frágeis presas. 
Nem sabia por que autoestradas andavam 
as toupeiras, os ouriços-caixeiros 
e as raposas deste país. 
Nem por que razão falavam alto e bom som 
aquelas gentes de além-Douro. 
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo 
que ribombava como o trovão.

Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram  visíveis as partes  cortadas para as ovelhas, 
entáo recolhidas nas cortes, 
à medida que os gamões das videiras 
cresciam a olhos vistos.

Na grande matança da Páscoa, 
o inocente que era sacrificado, 
era o cordeiro, o anho
o ex-libris da gastronomia da região. 
Já fumegabvam as chaminés 
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes. 
O compasso pascal andava por aí, 
alvoraçado como a canalha
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro, 
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.

In hoc signo vinces
Com este sinal vencerás. 
Desde Constantino, o Imperador, 
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba 
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,  
do nascer ao morrer. 

 Levava dois dias a percorrer a freguesia. 
A cruz, o Cristo pregado na cruz, 
o compasso, 
os homens da opa vermelha 
e o menino da sineta, 
de sobrepeliz branca como o anjo. 
Pouco mais de mil almas 
e algumas escassas centenas de fogos, 
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!", 
proclamava o homem da opa vermelha, 
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.

Em frente o vale e a montanha. 
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo. 
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.

Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever 
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se. 
E testemunhas vivas desse mundo. 
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres 
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel 
ou pelos chantiers da construção civil 
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.


Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).


Já havia a barragem do Carrapatelo, 
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações 
e os moínhos eólicos no alto das serras. 
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão. 
E os telemóveis.
E as casas do granito 
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também. 
Estradas e estradões tinham esventrado 
o cenário bucólico 
que outrora escondia a miséria dos casebres 
dos cabaneirosos mais pobres dos pobres. 

O Zé do Telhado já há muito que morrera, 
desterrado em Angola, 
mas ainda continuava vivo 
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos
proprietários agrícolas absentistas 
do Porto e da Foz do Douro, 
recuperavam as casas dos caseiros 
e faziam delas a sua casa de campo. 
Com piscina e court de ténis. 

O povoamento continuava disperso 
pelo verde e pelos socalcos. 
Os montes estavam carecas 
depois das últimas décadas de incêndios. 
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias 
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar 
aos franceses.
E o Porto ali tão perto. 
Cada vez mais perto 
com as autoestradas, as IP e as IC  do país motorizado.

Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto. 
Domingo de Páscoa, de manhã. 
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses, 
que morreram. 
E os que emigraram. 
E os que não voltaram. 
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido. 
Que as famílias eram numerosas 
mas a mortalidade infantil altíssima. 

Passavas os olhos 
pelas paredes da casa, de grosso granito. 
Já tinham albergado 
sete, oito ou mais gerações, 
que os seus registos só iam até 1820. 
Não era nada, se quando sabias  
que os australopitecos, teus antepassados, 
tinham evoluído há 5 milhões de anos, 
200 mil gerações atrás.


Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal


No virar do milénio, 
na madrugada do século XXI, 
Cristo continuaria a ressuscitar 
todos os anos, pela Páscoa, 
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas  continuariam a reunir-se 
em casa uns dos outros 
para comer o agnus Dei com arroz de forno. 
E para celebrar o milagre da vida, 
a vitória da vida sobre a morte.

Há quinhentos anos que se deitavam foguetes 
nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano. 
Não sabias nada da história do fogo de artifício, 
sabias apenas que viera da velha China 
com as naus quinhentistas. 
Para celebrar a ressurreição de Cristo, 
ou mais prosaicamente para fazer a festa. 
Que era a vitória sobre o trabalho, 
tripaliu(m) que matava a gente. 
E para marcar o tempo, o fluir do tempo, 
o solstício do inverno e do verão, 
a inexorável usura do tempo.

E todos os anos pela Páscoa, 
tu, descendente de austrapolitecos, 
assistias da tua varanda de granito 
à alegria infantil
 dos camponeses durienses, mortos há muito, 
face à orgia de fogo que assinalava, 
em cada freguesia, 
o recolher do compasso pascal. 

Da tua janela vias o mundo 
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata, 
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo... 
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares. 
E as serras à volta do teu presépio: 
Montemuro, Aboboreira 
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão, 
separadas pelo vale do Douro... 
Em 2004, os de Paços 
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,  
diziam as gentes da terra, 
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, 
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa. 
Capricharam, os de Paços de Gaiolo, 
mas também era verdade 
que eles tinhamo dobro dos fogos 
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.


Quinta de Candoz > s/d > Azevinho


Da janela do quarto da aldeia 
que tu também havias feito tua, 
só não podias ver o mar. 
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia. 
O azul. 
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar. 
Na exacta e nítida linha do horizonte. 
E a silhueta do cabo Carvoeiro 
e das Ilhas das Berlengas.

Ah!, quanto falta nos fazia o mar, 
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar. 
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. 
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz , 
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento, 
ele ía direitinho para os antepassados 
que desbravaram Candoz 
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos 
que nunca terão chegado a estas terras  
de Candoz e de Fandinhães, 
parte do concelho, extinto em 1836, 
a que os antigos, pobres diabos, 
chamavam Bem Viver.

Da janela do teu quarto, 
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal, 
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"


Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)

Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!

Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas:  faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).
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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24198: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (34): papas de sarrabulho à moda de Candoz

Tabanca de Candoz > 12 de Outubro de 2006 > Na matança do porco (*), faziam-se as papas de sarrabulho... à moda de Candoz.

Video (3' 47''): Luís Graça (2006). (**)

1. A "Tia Nitas" (como eu tratava carinhosamente a minha "mana", e que  "Deus já lá tem",  como diz aqui o povo) sabia explicar tudo direitinho... com a sabedoria, o amor e a paciência que ela punha em tudo o que fazia na Terra da Alegria...  Era uma excelente cozinheira e  "dona de casa" tal como foi uma grande profissional no laboratório de tecnologia química do ISEP.

Já não se mata mais o porco, lá em casa,  como antigamente, nem se farão mais as papas de sarrabulho (a não ser comprando os ingredienets no Talho, mas já não teria a mesma graça...).  A matéria prima    é  (era) o sangue de porco  e os miúdos da carne de porco (coração, fígado,  etc.) .

Fomos desencantar este vídeo (mais do que amador...) no blogue "A Nossa Quinta de Candoz"... E voltamos a reproduzi-lo aqui. É uma pequena homenagem à nossa Nitas (Candoz, 1947 - Porto, 2023), nesta quadra festiva, a Páscoa,  de que ela gostava tanto ou mais do que o Natal.

Vamos reunir a família em Candoz, este fim de semana,  (Riosunbga mas não vamos abrir a porta ao compasso pascal, este ano. (A visita em Candoz era sempre à  segunda-feira,  o compasso levava dois dias a  percorrer a feguesia.) Estamos de luto, como manda a tradição e o coração. 

No vídeo, que é de 2006,  aparecem as três manas da familia, a Rosa (Rosinha, a mais velha das três), a Chita (Alice) e a Nitas (Ana), guardadoras dos segredos e dos sabores culinários da família Ferreira Carneiro... Na altura eram também elas as  sócias da Quinta de Candoz (falta aqui o mais novo, o mano Zé para completar o quarteto dos sócios da Sociedade Agrícola da Quinta de Candoz...).

 2. O modo de fazer este prato segue a tradição minhota, comum à região do Douro Litoral (a que pertence Candoz, já no limite do distrito do Porto) (***). A receita pode ser vista aqui, na página Cozinha Tradicional:

(...) As papas de sarrabulho fazem parte das receitas tradicionais da cozinha portuguesa, sendo oriundas do Minho, no norte de Portugal. 

Os ingredientes principais destas papas são: sangue de porco (que dá origem ao termo 'sarrabulho' ), carne de galinha, carne de porco, cominhos e pão ou farinha de milho. São servidas como sopa ou como acompanhamento de pratos como os Rojões à moda do Minho.

As papas de sarrabulho são tradicionalmente feitas no Inverno, quando se realiza a matança do porco. Além disso, fazem um prato forte, que apetece sobretudo saborear no tempo frio.

 É comum encontrar este prato tradicional nos restaurantes do norte de Portugal, sendo raro encontrá-las nas regiões centro e sul do país. (...).

3. E ainda a propósito da quadra festiva da Páscoa, lembro aqui também o que eu gostava de escrever, por esta altura,  no blogue de "A Nossa Quinta de Candoz", quando ainda erámos todos vivos e respirávamos saúde e havia alegria para poder receber o compasso pascal:

(...) Qualquer que seja o significado que a Páscoa possa ter para cada um de nós, há nela uma mensagem de sentido universal e intemporal: a travessia da 'picada' [estrada ruim, trilho]  da vida, com todos os seus riscos, medos, minas e armadilhas, é bem mais fácil, se for feita em conjunto, de maneira solidária, partilhada... Mesmo sabendo todos nós, que o nascer e o morrer são os atos mais intrinsecamente solitários da vida humana. (...).

sábado, 20 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23540: Memória dos lugares (442): Rio Cacine, Cafal, Cananima, ontem e hoje

 

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine, em frente a a vila de Cacine. (*)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine,  Canoas.(*)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine, Construção de canoas. (*)

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio > Rio Cacine, perto do cais de Cacine: Tarrafo...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Era domingo, para nós, participantes (a maior parte estrangeiros...) do Simpósio Internacional de Guiledje, de visita ao sul do país... mas não para o pescador, que precisa de remendar as redes e ir à pesca..


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A simpatiquíssima Cadidjatu Candé (infelizmemte já falecida, segundo informação do Zé Teixeira), da comissão organizadora do Simpósio Internacional de Guileje e colaborada da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, servindo um fabuloso arroz com filetes de peixe do Cacine e óleo de palma local, que tem fama de ser o mais saboroso do país, devido à qualidade da matéria-prima e às técnicas e condições de produção (artesanal). Na imagem, um diplomata português, o nº 2 da Embaixada Portuguesa, que integrou a nossa caravana (e cujo nome, por lapso, não registei, lapso de que peço desculpa).

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um dos pratos que foi servido no almoço de domingo, aos participantes do Simpósio Internacional de Guileje, foi peixe de chabéu, do Rio Cacine, do melhor que comi em África... Durante a guerra colonial, na zona leste, em Bambadinca, só conheci conhecíamos o desgraçado peixe da bolanha..


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Depois de um belíssimo almoço em praia fluvial e porto piscatório de Cananima, na margem direita do Rio Cacine, houve um grupo de cerca de 30 valentões (e valentonas) que se meteram numa canoa senegalesa, motorizada, de um pescador local, e aproveitaram a tarde para visitar a mítica Cacine.  Sem coletes salva-vidas!... A distância entre as as duas margens ainda é grande... A canoa a motor, carregada de pessoal, terá levado meia hora a fazer a travessia...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > O nosso amigo, o saudoso  Leopoldo Amado (1960-2021) , historiador, um dos organizadores do Simpós
o e conferencista, veio encontrar aqui um antigo condiscípulo de liceu, hoje administrador de Cacine (sector de Quitafine).


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Está na hora do regresso a Cananima... O pessoal deixa Cacine, já ao fim da tarde, de sapatos na mão, para tomar o seu lugar na canoa... Em primeiro plano, a Maria Alice Carneiro e o antigo embaixador cubano, na Guiné-Conacri, Oscar Oramas (estava lá, quando foi assassinado, em 1973, o fundador e dirigente histórico do PAIGC)..

Fotos  (e legendas): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima >  9 de Dezembro de 2009 > c. 18h >  Pescador e canoa da aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do Rio Cacine, frente a Cacine. (**)

Foto  (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tomvali > Rio Cacine > Praia de Cafal, na margem direita do rio > 2022 > De costas, em primeiro plano, o padre Carlos, dos missionários  Oblatos da Maria Imaculada, que chegaram aqui há 10 anos, acrescentando  Cacine às duas missões ja existentes, a de Antula, Bissau, e a de Farim. Em Cacine têm duas escolas, uma em Cafal e outra em Quitafine  (que tem 270 alunos). O padre Costa conversa com os mototaxistas, que são o único transporte motorizado que aqui existe (para além das canoas)...


Guiné-Bissau > Região de Tomvali > Rio Cacine > Praia de Cafal, na margem direita do rio > 2022 > Um dos mototaxistas com uma T-shirt "made in China"...


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2022 > Uma loja de roupa

Fotos (e legendas) de Andre Cuminatto (2022), "Além-Mar" (revista dos Missionários Combonianos), abril 2022, pp. 44-45 (com a devida vénia)


1. Estivemos aqui há 12 anos, andámos por aqui (e comemos, ao almoço o belíssimo peixe do rio Cacine, um fabuloso chabéu de peixe), por altura  de uma visita ao Cantanhez, em 2 de março de 2008, no âmbito do Simpósium Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de março de 2008). E escrevemos (*):

(...) A região de Tombali, com pouco mais de 3700 km2 (o que representa cerca de 10,3% do território da Guiné) e pouco mais de 90 mil habitantes (7,1% do total) tem grandes potencialidades, devido ao seu património ambiental e cultural, ainda insuficientemente conhecido e valorizado pelos próprios guineenses. A jóia da coroa é o massiço florestal do Cantanhez e os dois rios principais que o atravessam, o Cumbijã e o Cacine. (...)

(...) Cananima é uma praia fluvial e um aldeia piscatória. Gente de vários pontos, desde os Bijagós até à Guiné-Conacri, vêm para aqui trabalhar na actividade piscatória. No entanto, é preciso saber gerir os recursos do rio e do mar com sabedoria... A sobre-exploração de certas espécies pode ser um desastre... Por outro lado, as infra-estrututuras de apoio à pesca são precárias ou inexistentes. (...)

(...) No estaleiro naval artesanal, de Cananima, também se constroem barcos, segundo os modelos tradicionais. A matéria-prima, a madeira, é abundante. Abate-se uma árvore centenária para fazer uma piroga. Felizmente, as pirogas não são feitas em série. E hoje há, também felizmente, restrições ao abate de árvores no Cantanhez. O problema são, muitas vezes, os projectos megalómanos e inconsistentes, que acabam por morrer na praia, como estas embarcações senegalesas que viemos aqui encontrar. (...)

(...) Em frente, do outro aldo do rio, fica Cacine, que tem muito que contar, aos nossos camaradas do exército e da marinha... Alguns deles ficaram por aqui, enterrados e abandonados... A guerra e as suas memórias estão por todo o lado, não nos largam. (...)

(...) A areia não é fina, as águas não são azuis, nem a paisagem é a mais bela do mundo, mas tudo depende dos olhos com que se olha, dos ouvidos com que se ouvem, das emoções com que se capta o instante, o efémero, o diferente (..).

(...) É preciso salvar o Cantanhez, dando uma chance às crianças de Tombali. Projectos como o ecoturismo, ou o turismo de natureza, podem vir a ser um factor dinamizador de mudanças, a nível local e regional. (...)

(..) A diversidade étnico-linguística e cultural da Guiné-Bissau, em geral, e do Tombai, em particular, não deve ser vista como uma obstáculo, mas sim como um factor potenciador da cidadania e do desenvolvimento... Os demónios étnicos não podem é dormir descansados na Caixinha de Pandora... Combatem-se com as armas da saúde, da educação, da democracia, da integração, do desenvolvimento económico, social e cultural... (...)


2. Há dias lemos na revista "Além-Mar" um interessante artigo, "Evangelho e promoção social na Guiné-Bissau: Cacine, Missão Escolar", edição de abril de 2022 (pp. 43-45)... Tomamos a liberdade de reproduzir aqui este excerto do viajante e jornalista italano, Andrea Cuminatto.

(...) Na orla, entre as vacas que lambem o sal deixado pela maré alta, há também, um grupo de pescadores. Um é da Serra Leoa, outro da Libéria e ainda outro do Gana. Vêm da vizinha Guiné: sairam de Conacri,  com dois barcos de pesca e foram vistos a pescar, surpreendidos sem autorização nas águas da Guiné-Bissau. Há doze dias que estão à espera no pequeno cais de cimento que o seu chefe envie o dinheiro para pagar a multa do resgaste e poder zarpar. 

Até para os pescadores locais não é fácil tirar algo destas águas. Desde que os Coreanos compraram os direitos de pesca, a maior parte da captura é congelada  e enviada para a Ásia. E assim as pirogas,  feitas de madeira muito leve de ' fromager', tão ágeis nestas águas plácidas, descansam na areia, carregando pouquíssimos peixes nas panelas de Cacine. Estamos satisfeitos com o arroz, pelo menos não falta" (...) 

A vila de Cacine tem hoje 2 mil habitantes. E já nada é como dantes... (***)
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domingo, 31 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23478: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (33): "Jaquinzinhos fritos com arroz de tomate... à moda da "chef" Alice, que sabem pela vida, neste nosso querido mês de agosto...



Lourinhã > Chez Chef Alice > 29 de julho de 2022 > "Jaquinzinhos fritos com arroz de tomate"

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Vamos entrar no "nosso querido mês de agosto" (o das férias, do sol, do luar, das noites romãnticas, das manhãs de grandes marés vazias com quilómetros de praia de areia branca e maresia, das viagens, das festas, dos festivais, do regresso dos emigrantes à terra, dos reencontros, dos amigos, dos amores,  do campismo, dos petiscos, das mariscadas, da batada de peixe seco, das sardinhas assadas com salada de pimentos, e tudo o mais que a imaginação, o desejo e as memórias podem e devem acrescentar)...

Como aqui temos lembrado nesta série do nosso blogue, quem pode, ainda come todos os dias... E de preferência algum petisco mais fora do comum. E depois partilha essa experiência culinária com os amigos e demais leitores. 

O título da série é apelativo, bem humorado, e não ofende ninguém: "No céu não há disto,,,  Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande "... 

Que nos perdoem os crentes e os habitantes desse condomínio de luxo que é o céu do nosso imaginário (ou da fé de muitos crentes, cristãos e não cristãos). Sendo proibido falar de religião (além de política e de futebol), resta-nos muito pouco, aqui no blogue, até porque as memórias dos camaradas da Guiné estão a acabar,,, Ou são os detentores das memórias que estão a acabar... Não temos gente nova, "periquitos", a renovar a Tabanca Grande, e os "velhinhos", esses,  agora  só querem é  sopas e descanso... 

Que nos valhe, ao menos, no nosso querido mês de agosto, estas gulodices, afinal  brincadeiras inocentes, tão inocentes, tão doces, tão boas,  tão santas ou bentas, como os "pastéis de Belém", o "toucinho do céu", os "papos de anjos", as "barrigas de freira", os "pitos de Santa Luzia", as "fatias angélicas", os "queijinhos de hóstia" ou o "pudim abade de Priscos"...

"Jaquinzinhos fritos com arroz de tomate" não devem ir à mesa do São Pedro, nem vêm no cardápio do restaurante do Céu... A "chefe" Alice, quando passa pela praça, bem cedo (há anos, que já não dá um salto à Praia da Vieira onde ainda se pratica a arte xávega),  e vê jaquinzinhos ou petinguinhas, é a sua perdição: abre os cordões à bolsa e enche-se de coragem, porque amanhá-los e fritá-los é uma estopada (não é tanto a trabalheira, é sobetudo o cheiro dos fritos que fica na cozinha).... 

Mas, no fim, são os seus convidados que lhe dizem, com um arroto de prazer e agradecimento:
- Olha, muito obrigado, soube-me pela vida, "chef"!

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Nota do editor:

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23371: In Memoriam (438): Mário de Oliveira (1937-2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68), repousa desde 26/2/2022 em campa rasa, a nº 72, do cemitério da Lixa, Felgueiras






Felgueiras >  Lixa > Cemitério local > 11 de abril de 2022 > Campa rasa, nº 72: é lá que repousam os restos mortais do Mário de Oliveira, o padre Mário da Lixa (Feira, 1937 - Penafiel, 2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68). 

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Passámos por lá, em abril passado, para um último adeus. Era amigo da Alice, sua antiga paroquiana (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 1969).

Foi inumado de acordo com a sua última vontade (*), e deu-nos um grande exemplo de dignidade e de coragem (física e moral):

(...) " Ao meu cadáver — nunca o confundais comigo que, a partir daquele Novíssimo Instante, já serei definitivamente vivente convosco — vesti-o com alguma das roupas que me vedes utilizar diariamente, e depositai-o depois na urna, uma das mais baratas que houver no mercado. Tanto o meu cadáver, como a urna fechada, apresentem-se totalmente despojados de quaisquer símbolos religiosos, como o terço, o cálice, ou a cruz (do Império romano), tudo coisas beatas e deprimentes, por isso, inumanas, pelo menos, simbolicamente.

"A urna manterse-á sempre fechada, até ser depositada numa campa rasa, em terreno comum destinado aos Sem-jazigo, do cemitério de Macieira da Lixa, a terra que, desde a década de setenta do Século XX, inopinadamente, se tornou / revelou um Lugar Teológico de Deus, o de Jesus, que gosta de Política, não de Religião e, nessa mesma qualidade, se colou para sempre ao meu nome de homem presbítero da Igreja do Porto." (...) (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  
25 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23031: In Memoriam (430): Padre Mário de Oliveira, de 84 anos, ex-alf mil capelão, CCS / BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68): o funeral realiza-se amanhã, sábado, dia 26, pelas 16h00, no Barracão da Cultura, Macieira da Lixa, sendo sepultado no cemtiério local, em campa rasa, de acordo com o seu testamento de 2009

Vd. também postes de:


sexta-feira, 22 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23186: Manuscrito(s) (Luís Graça (212): Em memória de Maria Irene Martins (Lisboa, 1944 - Grenoble, França), assistente social, imigrante, católica progressista, ativista política contra a guerra colonial e o Estado Novo, amiga e colega da Alice Carneiro, assistiu semi-clandestinamente em Lisboa ao 25 de Abril de 1974

 


Lisboa >Parque das Nações > 22 de setembro de 2011 > A Alice Carneiro e a Irene Martins



Lourinhã > Moledo > 24 de junho de 2012 > "Por terras de Pedro e Inês"... Irene Martins e Alice Carneiro


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Maria Irene Martins
(Lisboa, 1944 – Grenoble, França, 2022) foi uma querida amiga e colega de trabalho da Alice Carneiro. Deixou-nos muito recentemente, aos 77 anos, vítima de ataque cardíaco, na véspera  de partir com a neta para uma viagem de turismo à Madeira. Vivia em Grenoble, desde o início dos anos 70. Tem dois filhos. Era uma pessoa muito estimada entre a comunidade francesa e portuguesa. 

Conhecia-a pessoalmente em 2011, em Lisboa, no Parque das Nações. E no ano seguinte foi nossa anfitriã na Lourinhã. Voltámos a encontrarmo-nos, no Norte, em Candoz e em Tormes, em 2015. Juntou-se aqui com a Alice e várias antigas colegas de trabalho da Junta de Colonização Interna.

Assistente social, católica progressita, formou-se no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, o mesmo onde o nosso saudoso Jorge Cabral será depois professor a seguir ao 25 de Abril de 1974. Não sei se alguma vez se conheceram.

Trabalhou, com a Alice, na antiga Junta de Colonização Interna. Casou-depois com um francês, e emigrou para Grenoble. Aqui desenvolveu um notável trabalho, solidário, de apoio não só aos jovens que fugiam à guerra colonial (faltosos, refractários, desertores e exilados políticos) mas também simples trabalhadores, imigrantes. Pela sua casa também passaram cantores de intervenção como Zeca Afonso, Zé Mário Branco, Fanhais, Tino Flores e outros.

Aos filhos e netos, eu e a Alice já  endereçamos os nossos mais profundos votos de pesar pela brutal notícia da sua morte. Já seguiu também, para um dos filhos, uma seleção de fotos, de 2011 e 2012,  que fizemos, do nosso álbum. Temos mais, de 2015, tiradas no Marco de Canaveses e em Baião,  não disponíveis de momento.

2. Tomo, entretanto,  a liberdade de reproduzir aqui um excerto do livro "Exílios: testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974)", Carcavelos, Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP61-74), 2017, 160 pp.  Um dos 21 autores deste volume  I de "Exilios"  é a Maria Irene Martins.

O seu testemunho ("Desertores e refractários, pp. 53-58) pode ter um interesse adicional para os leitores do nosso blogue, ao dar uma ideia, mais aproximada, dos caminhos do exílio e da emigração que muitos portugueses da nossa geração percorreram.  E é também revelador da personalidade, da generosidade,  da solidariedade e da alegria de viver da Irene Martins, de quem também guardo saudades, e de quem fiquei amigo, mesmo só  tendo privado com ela em três curtos momentos das nossas vidas. A amizade, de resto, não tem barreiras nem preconceitos nem bandeiras. Até sempre, Irene!


Capa do livro "Exílios" (1º volume, 2016), de que a Maria Irene Martins é coautora (conforme nosso sublinhado a vermelho).


Maria Irene Martins, Grenoble,  França - Desertores e refractários (pp. 53-38) (com a devida vénia ao editor e aos herdeiros da autora...)




(…) A primeira acção de ajuda a desertores do serviço militar e refractários à Guerra Colonial [sic], surgiu logo no início da minha formação no Instituto Superior de Serviço Social (ISSS) [em Lisboa] quando a nossa colega e amiga Gabriela nos pediu, à Isabel e a mim, para levar o seu namorado e dois outros amigos para França, de onde eles partiriam para outros destinos. [Este episódio deve ter-se passado em meados de 60, a autora em 1962 já tinha 18 anos, já seria emancipada e teria passaporte, e deve ter sido o ano em que entrou no ISSS].

Lá fomos, eu e a Isabel, amiga desde os anos do liceu [Rainha Dona Leonor]. Ela conseguiu um carro emprestado pela família. Um Diane azul.

Partimos as duas de Lisboa, dormimos perto de Leiria, na casa de férias da família da Isabel. Na manhã seguinte, sem querer dar nas vistas, pusemos tudo em ordem de marcha, os sacos dos rapazes atrás, os nossos bem à vista e a merenda para a viagem. Logo aconteceu que a Isabel, ao sair, fez resvalar o carro que ficou prisioneiro numa vala da estrada. Lá foi chamar o caseiro que veio com o tractor para tirar o Diane, mais a aldeia em peso, para ajudar a “menina”...

Passado o acontecimento fomos até à Guarda onde dormimos numa pensão. A cama cheirava a “ pés sujos “ que se fartava ... Tínhamos encontro de manhã cedo em Espanha, numa estrada secundária. Passámos a fronteira 
[em Vilar Formoso ] sem dificuldade e lá os encontrámos. Partimos numa alegria contagiante que nos apanhava as entranhas.

Os rapazes atrás, as raparigas à frente, mapa de Espanha na mão. Quando chegámos à fronteira Espanha/França, em São Sebastião, os rapazes deixaram as roupas e subiram ao longo do rio para o passarem a vau.

Deixámos decorrer algum tempo e passámos a fronteira sem incidentes. Gritámos uf! E lá seguimos para o sítio do encontro em França.

Ao fim de uma grande subida, um carro da polícia francesa manda-nos parar. Garganta seca, fizemos como se não soubéssemos falar francês, não respondemos às perguntas que nos fizeram, mas falávamos muito em português. Eles queriam saber aonde íamos e porque tínhamos roupa que não era nossa no carro, a quem pertenciam aquelas calças e aqueles sapatos. Depois de revistarem tudo, foram-se embora.

Arrumámos o carro como pudemos e partimos rumo a uma estrada secundária na direcção de um ribeiro que faz a fronteira. Lá esperámos. Ao fim de um certo tempo, vimos surgir os nossos amigos. Chegaram todos molhados e sujos do “rio da merda”, como eles lhe chamaram. Sentadas numa vereda, esperámos que eles se limpassem e vestissem.

Já fazia escuro quando voltámos à estrada. Calados de medo, seguimos até Biarritz. Comemos e depois procurámos um albergue, enquanto os rapazes foram para a estação dos comboios. Era ali o fim da nossa viagem juntos. Abraçámo-nos emocionados. Foi difícil deixá-los, pois apetecia acompanhá-los até ao fim da viagem.

No dia seguinte, regressámos. Passámos por Pamplona, pois tínhamos dito à família que íamos às festas desta cidade [referência às famosas festas de São Firmino, que se realizam anualmente de 6 a 14 de julho]. Queríamos trazer alguns panfletos e outra publicidade que confirmassem a nossa “história”.

(…) A passagem da fronteira portuguesa foi complicada. Obrigaram-nos a estacionar o carro num parque, atrás da alfândega. Fomos levadas para dentro da alfândega onde nos interrogaram. Este tempo pareceu infinito. As respostas tinham sido já pensadas antes de partirmos. Muito firmes, respondemos a tudo. Eu tinha em mente uma frase do nosso professor de filosofia, Honorato Rosa [padre católico, falecido em 1968] , “A verdade é para quem a merece”.

Voltámos para o carro, com dois polícias que o desmancharam todo. Tiraram tudo do porta-bagagens, os revestimentos do porta-bagagem, o pneu sobressalente, enfim, um pavor! Por fim deixaram-nos passar. Não soubemos se telefonaram para Lisboa, para as nossas famílias, ou não. Mas passámos um mau bocado.

(...) Estas ajudas continuaram com outras modalidades e outras cumplicidades (…) O Carlos foi um dos últimos refractários que ajudámos a sair de Portugal, desta vez pelos lados de Trás-os-Montes. Era o amigo da Merita, minha amiga desde os nossos estudos universitários.

Ela foi ter com ele a Grenoble, e eu fui visitá-los várias vezes ao Chemin Jésus, nome da rua onde ficava um apartamento, numa casa antiga, com grandes quartos onde se vivia em comunidade entre os refugiados, desertores, refractários e exilados, numa convivência de “república de estudantes coimbrões”.

Aí conheci um francês que, mais tarde, no Verão de 1970, me veio visitar com a Merita e mais amigos, ao Norte de Portugal, onde trabalhava.(…)

(...) Fins da Primavera, princípios do Verão de 1973, amigos meus chegaram a Grenoble, fugidos de Portugal, a seguir à prisão da Xexão com a célebre “mala das armas”.

A nossa casa, um apartamento num bairro popular da periferia de Grenoble, onde viviam muitos compatriotas, meus vizinhos, transformou-se num albergue. Tentámos encontrar soluções para os amigos e outros portugueses fugidos à guerra. (...)

Nessa altura, conheci outras “redes” como a associação Chrétiens français-immigrés ["Ronda do Soldadinho", canção de José Mário Branco gravado em 1969 com o apoio de associações de imigrantes  portugueses] (...)

(…) A minha vida de imigrante em Grenoble era muito agitada. A semana começava às 6 horas da manhã no hospital e nunca acabava, pois a seguir ao trabalho eram os encontros e as reuniões.

Algum tempo depois de eu chegar a Grenoble, os imigrantes revoltaram-se contra as leis racistas francesas. Os imigrantes que habitavam nos “lares dos trabalhadores” fizeram greve.

(...) Os imigrantes portugueses estavam pouco organizados com os outros colegas de trabalho, não conheciam os sindicatos, queriam ser discretos, não dar nas vistas. Era preciso explicar, mobilizar.

(...) Em Varses e Vif, cidades muito perto de Grenoble, onde existiam muitos portugueses , ensinávamos cantigas, explicando o texto e o sentido da história : “Um e dois e três, era uma vez um soldadinho” teve grande sucesso.

Sábados e domingos, depois do almoço, íamos para as Associações de Portugueses: Em Echirolles onde vivia, no bairro Des Alpins, em Fontaine, no Clos d’Or....

Nós, o Noël [,o marido,] e eu, ficávamos com os mais jovens, crianças e adolescentes, cantávamos, dançávamos, discutíamos, falávamos de Portugal, das colónias, da guerra, da imigração...

Também falávamos da História de Portugal. Mostrávamos diapositivos dos monumentos, etc. Tanto os pais como os filhos, conheciam de Portugal, apenas a aldeia de onde vinham, onde passavam as férias e onde construíam “a casa”.

Sexta-feira à tarde ou sábado de manhã, nós as mulheres, preparávamos os nossos encontros do fim-de-semana. Lá em casa era um regabofe. Umas descascavam as batatas, outras desfiavam o bacalhau, picavam cebolas e salsa. Tudo isto no meio de cantares e histórias das vidas vividas. Risadas e falares alto com grande alegria e entusiasmo. Bons momentos de confidências e convivência.

(...) Nessa altura, a nossa casa estava à disposição de todos os que vinham pois tínhamos espaço e comodidades. Estou a ver ainda o Zeca Afonso, a fazer composições de novas músicas e novas letras e a gravar, em várias vozes sobrepostas, no nosso gravador, numa cassette que ainda tenho.

Nestas manifestações, os pastéis de bacalhau eram indispensáveis e, lá estávamos nós, as mulheres, às voltas a fazermos quilos e quilos de frituras que perfumavam a casa durante semanas.

Nesta altura, em França, e sobretudo em Grenoble, onde nasceu o Planeamento Familiar, uma militância importante cresceu entre as mulheres portuguesas e as mulheres francesas.

(...) Reuníamos entre nós para trabalharmos sobre acções políticas, para mobilizarmos a opinião pública francesa, na denúncia da política fascista e colonialista em Portugal.

Mobilizar a opinião pública internacional era um meio muito importante e eficaz na luta contra a política portuguesa, sempre muito sensível ao que se dizia de Portugal, no estrangeiro. Sempre foi assim e continua a ser.

(...) As reuniões faziam-se em nossa casa. Longas noites e longas tardes de Sábado, onde o sério se conjugava com risadas e anedotas.

(...) Mais tarde, formámos uma associação francesa (sob a lei de 1905), o GAP (Grupo de Acção Política), para termos acesso ao espaço público francês de maneira oficial.

(...) Voltemos a Grenoble e aos anos 1973/74. As manhãs de domingo eram dedicados à venda de O Alarme nos mercados. Éramos muitos, nesta tarefa militante, pois O Alarme chegava a todos os mercados de Grenoble e arredores. ["O Alarme" era um jornal regional, criado em Junho de 1972, sendo destimado aos imigrantes portugueses; era de publicação mensal e distribuído na região de Grenoble].

(...) Também íamos a cidades mais longe onde os portugueses nos esperavam para aqueles dois dedos de conversa, trocas das novidades do País e das famílias. Lembro Vienne, Rives, Tulin... Depois fazíamos as nossas compras. Vínhamos sempre carregados de couves e outros legumes bem ao nosso gosto, chouriços e outras delícias.

(...) Como sempre, éramos mais mulheres que homens . O “machismo”, bem português, também aí se fazia sentir pois tínhamos que seguir à letra o que o “chefe” dizia e estipulava. Brigávamos muito mas recomeçávamos sempre.

(...) A ida a Portugal para irmos buscar “os últimos objectores e refractários” foi a 22 de Abril 1974.

Partimos, o Noël e eu na nossa Renault 4L, rumo ao Alentejo. Ficámos em Madrid em casa do Bart, um amigo meu, holandês expulso de Portugal. Ele deu-nos as últimas notícias dos amigos que tinham sido presos nuns dias anteriores e insistia comigo para não seguir viagem pois, dizia ele, se eu entrasse em Portugal ia “dentro”, como os nossos amigos. A PIDE andava muito assanhada.

Nós tínhamos compromissos e partimos no dia seguinte. Escolhemos entrar pela fronteira de Vila Real de Santo António, mais discreta.

(...) Resolvemos seguir caminho. Parámos em Sines. Fomos comer alguma coisa num café. Que espanto, ouvíamos na rádio música e cantares proibidos. Não era possível! Perguntámos o que se passava. O empregado não sabia muito bem. Falava-se de Movimento das Forças Armadas. Ninguém sabia muito bem o que se passava em Lisboa.

Uns gritavam “Agora é que é ! O governo já caiu” . Outros gritavam “Ai meu Deus, que eles vão matar o povinho todo”.

Resolvemos vir rapidamente para Lisboa, sem parar em Évora onde tínhamos encontro com alguém que nos devia indicar o que devíamos fazer em seguida.

(…) Em Lisboa percebemos TUDO! Vimos amigos, sentimos o alvoroço. Fomos até à casa dos meus pais, no Bairro do Arco Cego, em frente do Ministério do Trabalho. “Chaimites” impediram que parássemos o carro em frente da casa.

Os meus pais estavam à janela do primeiro andar da moradia. A curiosidade era maior que todos os medos. A minha mãe, sempre com medo das revoluções e das guerras civis, que lembravam a sua infância, dizia-me “se eles te vêem minha filha... Isto está muito feio. Não sei em que isto vai dar”. Mas não saía da janela!

Telefonei, marcámos encontros, trocamos alegrias e esperanças. Saímos para ir para a Baixa. Não havia autocarros, nem Metropolitano. Fomos pelas Avenidas Novas em direcção ao Saldanha, com a intenção de descer a Avenida da Liberdade. Não pudemos avançar. Toda a Lisboa estava na rua.

O resto todos sabemos! 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos e paratênses rectos com legendas explicativas, para publicação exclusiva no blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."