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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19200: Notas de leitura (1121): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2018:

Queridos amigos,
São bem pessimistas as informações sobre a vida económica e financeira da Guiné no início da década de 1960. O gerente de Bissau envia os dois panfletos enviados aos funcionários e oficiais do Exército, a autoria teria pertencido ao Movimento de Libertação da Guiné, o seu principal ativista era Rafael Barbosa, nacionalista convicto que estabelecerá um acordo com Amílcar Cabral para a fusão de partidos, existe historiografia que ajuda a compreender este contexto, leia-se, por exemplo, António Duarte Silva ou Leopoldo Amado.
Aproveito a circunstância para lembrar que até esta data não há sinais, pelo menos documentais, do PAI que se transfigurará em PAIGC. Talvez não haja estranheza nenhuma, ao contrário do que diz a mitologia o PAIGC arranca efetivamente em 1959 e torna-se público em 1960, a presença de Amílcar Cabral em Conacri e de Rafael Barbosa na agitação interna até março de 1962, é decisiva.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60)

Beja Santos

A partir de 1960, o gerente de Bissau não mais deixará de dar notícias sobre “acontecimentos anormais”, forma adocicada de indiciar que já se vive em agitação e há iniludíveis sinais ou pré-avisos da luta armada. Mas a vida continua. Dentro desta documentação avulsa encontra-se uma carta da Procuradoria das Missões Franciscanas endereçada à Administração do BNU solicitando um crédito para a construção de biblioteca e fornecimento de livraria, como se verá, o Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Tardini é favorável a que se contraia tal empréstimo. De outro lado, e com data de agosto e setembro de 1961, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné solicita ao BNU a concessão de créditos aos pequenos “comerciantes do mato”.
Atenda-se aos argumentos da carta expedida pelo gerente de Bissau:
“O interesse destas operações, no actual momento, reside essencialmente na utilidade de fixarmos elementos brancos no interior por forma a não darmos ao indígena a ideia do ‘abandono’, não lhe criando dificuldades ou perturbações nas suas tradicionais relações de troca.
Acrescente-se que as chamadas casas grandes, ao que parece, não têm facilitado a estes comerciantes os adiantamentos que era uso conceder-lhes e, também ao que parece, estão seguindo uma política de retracção que, a ter as cores que certas fontes me têm descrito, suscitaria amargos comentários…
Mas porque se trata de pequenos comerciantes, isolados no interior, com uma estrutura económica extremamente frágil não se vê como seria possível ao Banco conceder-lhes crédito, tanto quanto ao aspecto técnico das operações como no que se refere à sua garantia.
Analogamente ao processo que, na Metrópole, temos usado com os Grémios da Lavoura, poderá aceitar-se aqui um crédito indirecto, por intermédio do organismo que legalmente representa esta actividade. Assim e se a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné tiver personalidade jurídica e capacidade para se obrigar, fica a Dependência autorizada a abrir a favor da mesma associação uma conta-corrente, com garantia de livrança, até ao montante de 3 mil contos”.

A Inspeção do Ultramar pronunciou-se dias depois:
“Deve escrever-se à Dependência no sentido de a instruir para que no eventual arranjo a fazer com a Associação Comercial estude uma fórmula que permita ligar mais directamente os comerciantes do interior à acção do Banco. Isto é, pretende-se que os benefícios a conceder o sejam claramente pelo Banco, embora através da Associação Comercial”.

Dirigindo-se em setembro ao Governo do BNU, o gerente da Filial de Bissau acrescenta novos dados:
“O Sr. Governador da Província, conhecedor do assunto por intermédio do nosso Exm.º Administrador confessou-nos estar bastante interessado na operação, que considera, sob o ponto de vista económico, contributo valioso para a prosperidade dos pequenos comerciantes e agricultores. Voltaremos à presença de V. Exas. logo que a Associação Comercial conclua a elaboração do sistema de funcionamento de crédito a dispensar aos pequenos comerciantes e agricultores”.

Regressemos aos “acontecimentos anormais”.
Tem inequívoco interesse o que Bissau envia para Lisboa logo em 21 de fevereiro de 1960:
“Há cerca de 10 dias todos os Directores de Serviço e Oficiais de Exército receberam, pelo correio, lançados na central desta cidade, dois miseráveis panfletos de ataque à nossa soberania na Guiné. Todos os funcionários os foram entregar a Sua Ex.ª o Governador, o mesmo fazendo os oficiais ao seu comandante. Mas conseguimos que nos emprestassem um exemplar para tirar as cópias que enviamos. Nos meios responsáveis suspeita-se que os nojentos papéis tenham vindo da Metrópole, pois o seu aparecimento nos CTT coincidiu com o dia da chegada do avião. Atribui-se a sua redacção a um advogado, pela disposição do texto.
Entretanto, a estação emissora de Conacri desencadeou um covarde ataque a algumas personalidades desta terra, ataque que tem lugar nas emissões de domingo, pelas 18 horas. Com a montagem de um posto de interferência no mesmo comprimento de onda, conseguiu-se, ao que consta, anular a recepção.
Não falta na Guiné quem aplauda, com fins nitidamente antipatrióticos, a política do Governo local. Também existe quem discorde dela. Paralelamente, a situação económica não dá indícios de melhoria. A produção de mancarra e arroz estima-se inferior à do ano passado e as três grandes firmas aqui estabelecidas desencadearam uma forte alta nos preços de aquisição ao indígena, indo ao mato competir com os pequenos comerciantes, o que causou descontentamento neste sector. O arroz é insuficiente para alimentação da população. Está em curso uma importação de 3 mil toneladas para cumprir o défice da campanha.
A situação cambial agrava-se, mais por deficiência do sistema. Urge que se adoptem regras rígidas de disciplina nas importações e promover a entrada na Província das coberturas derivantes das taxas de concessão do petróleo.
Este conjunto de acontecimentos e circunstâncias traz a população, especialmente a população europeia, alarmada e inquieta”.

Vejamos agora o teor dos panfletos distribuídos na circunstância:



A 8 de março, o gerente de Bissau volta a informar o governo do BNU sobre essas ocorrências:
“Informamos V. Exas. que já foi preso pela PIDE um dos comparticipantes da miserável manobra do chamado Movimento de Libertação da Guiné.
A máquina de escrever onde foram dactilografados os papéis pertencem à Alfândega de Bissau e o dactilógrafo foi um mestiço, aspirante daquela repartição.
E fora de dúvida que o autor não foi ele, mas alguém de maior envergadura intelectual.
É possível que o malandrim já tenha confessado o nome de quem o incumbiu da tarefa, mas, ou por conveniência da polícia ou por outras razões, o certo é que não se sabe ter sido preso alguma das pessoas julgadas capazes de redigir o triste documento”.

(Continua)


Clicar nas imagens para as ampliar


Imagem esclarecedora do papel que desempenhava a Sociedade Comercial Ultramarina, a grande rival da Casa Gouveia (CUF), que, a partir dos anos 1950 passara a pertencer maioritariamente ao BNU.
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16821:(De)Caras (58): António Duarte Silva apresentou, no passado dia 6, em Lisboa, o novo livro de Mário Beja Santos, "História(s) da Guiné-Bissau"


Vídeo 3' 22''. Alojado em You Tube > Luís Graça


Lisboa, auditório da Associação Nacional das Farmácias, 6 de dezembro de 2016, sssão de lançamento, do novo livro de Mário Beja Santos, "História(s) da Guiné-Bissau" (Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2015, 380 pp.)... Vídeo de Luís Graça

Apresentação a cargo de António Duarte Silva [, autor de “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” (Edições Almedina, 2010)].  O  outro apresentador foi o antropólogo, professor e investigador do ISCTE-IUL, Eduardo Costa Dias (por deficiência no som do auditório, não apresentamos aqui nenhum excerto da sua intervenção; o ficheiro que temos é inaudível).



Vídeo  0' 35''. Alojado em You Tube > Luís Graça


Lisboa, auditório da Associação Nacional das Farmácias, 6 de dezembro de 2016, sssão de lançamento, do novo livro de Mário Beja Santos, "História(s) da Guiné-Bissau" (Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2016)... Vídeo de Luís Graça (2016)

Palavras finais de agradecimento por parte do autror.


Ficha técnica:

História(s) da Guiné Portuguesa, de Mário Beja Santos
ISBN: 9789897551796 
Edição: novembro de 2015
Editor: Editora Húmus
Idioma: Português
Dimensões: 161 x 226 x 20 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 380
Tipo de Produto: Livro
Coleção: Varia

Classificação Temática: Livros em Português > História > História da África


Sinopse:


Ainda hoje não se sabe a origem da palavra Guiné. E quando se aportou na região, usaram-se as designações mais díspares: Guiné do Cabo Verde, Etiópia Menor, Senegâmbia Portuguesa, Terra dos Negros, Rios da Guiné de Cabo Verde… Presença espúria em praças, feitorias e presídios, ao longo dos séculos. Território apetecível para o tráfico negreiro, palco de alguns dos textos mais luminosos da nossa literatura de viagens. Com muito mistério e exotismo à mistura: o Império do Gana, o Império do Mali, o Mandemansa, o Kaabunké, Tombuctu, os judeus portugueses na Senegâmbia, os mercadores e navegadores cabo-verdianos, a babel negra, as companhias majestáticas. A Convenção Luso-Francesa de 1886 faz surgir as fronteiras da atual Guiné, é já o que resta da Grande Senegâmbia. Vive-se o tempo das campanhas de pacificação que se irão prolongar até 1936, custarão rios de sangue. 

No fim da II Guerra Mundial, um distinto oficial da Marinha, Sarmento Rodrigues, põe a Guiné no mapa, torna-a uma colónia modelo. E vem o nacionalismo. Um guineense com sangue cabo-verdiano, Amílcar Lopes Cabral, chega à colónia em fins de 1952, encontra ali a motivação para a luta que conduzirá a uma guerra de imensa ferocidade, a partir de 1963 e que culminará com a independência de facto em 1974. Foi na Guiné que medraram os anseios do 25 de Abril, a Guiné marca o princípio da descolonização. Aqui ficam algumas histórias sobre esta presença tumultuosa. Era uma vez…


[Fonte: Wook] (Com a devida vénia...)
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sábado, 10 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16820: (De)Caras (57): Fotos da sessão de lançamento, em Lisboa, no passado dia 6, do novo livro de Mário Beja Santos, "História(s) da Guiné-Bissau"


Foto nº 1 > O autor Beja Santos, ladeado pelos seus amigos e convidados que falaram da obra, António Duarte Silva, à direita, e Eduardo Costa Dias, à esquerda (*)


Foto nº 2 >  António Duarte Silva, autor de “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”  (Edições Almedina, 2010), e a quem eu convido para integrar a nossa Tabanca Grande


Foto nº 3 > Eduardo Costa Dias, antropólogo, professor e investigador, ICSTE-IUL, membro da nossa Tabanca Grande


Foto nº 4 > Mário Beja Santos


Foto nº 5 > Aspeto geral da assistência


Foto nº 6 > Dois grã-tabanqueiros: José Eduardo Oliveira (Jero) e Belmiro Tavares


Foto nº 7 > Outro nosso grã-tabanqueiro, Jorge Araújo, na  sessão de autógrafos


Foto nº 8 > O autor e a representante da editora (Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão)


Foto nº 9 > À esquerda, o historiador Armando Tavares da Silva, recentemente galardoado com o prémio a Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo. pelo seu  livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)". O prémio foi dado pela Academia Portuguesa da História, e a cerimónia de entrega decorreu no dia 7 do corrente, na sede desta Academia, Palácio dos Lilases, Lisboa. A cerimónia foi presidida pelo Presidente da República.

O prof Armando Tavares da Silva foi convidado nesta data parta integrar a nossa Tabanca Grande.


Foto nº 10 > O mestre de corá Braima Galissá e, a seu lado, o nosso grã-tabanqueiro, que veio expressamente de Aveiro, onde mora, o Francisco Gamelas. Registo também a presença do José Brás (que não aparece aqui nas fotos, só na foto nº 5)... Lamentavelmente cheguei tarde, perdi o início da sessão, com a atuação do Braima Galissá. E devo acrescentar que o sistema de som, no auditório, estava péssimo. Fiz dois ou três  pequenos vídeos com as intervenções dos oradores (LG)

Lisboa > Auditório da Associação Nacional de Farmácias >  6 de dezembro de 2016 > Sessão de lançamento do novo livro de Mário Beja Santos, "História(s) da Guiné-Bissau" (**)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2012:

Queridos amigos,

Por exigência do ofício, vou agora rondar pelas histórias da Guiné, imperativo que me é imposto pelo novo trabalho que tenho em mãos quanto a um roteiro que faz o arco entre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau.
É uma tentação este texto de René Pélissier, o investigador aparece bem documentado, é por vezes muito brusco e torna a leitura palpitante graças às suas descrições onde não faltam aventuras, guerras e a consideração que ele mostra pelo esforço dos portugueses em internarem-se no mato para consolidar posições. Deita por terra o mito da nossa presença ao longo de cinco séculos, o que é verdade é que mal se saiu da orla marítima, quase sempre dentro das praças e dos presídios. Sim, é apaixonante ler este René Pélissier que ainda se encontra nas livrarias.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné,  por René Pélissier (1)

Beja Santos

No âmbito do trabalho que estou a desenvolver com o Francisco Henriques da Silva e que se intitula “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, tem total cabimento afoitarmo-nos a fazer uma incursão pelas diferentes obras que falam da Guiné. A primeira história da Guiné foi a de João Barreto, um médico goês, curioso pelo passado da Guiné e que deu à estampa o seu trabalho em 1938.

É mais uma obra de divulgador que de especialista, tem incontestáveis méritos e revela abundantes insuficiências, como mais tarde se destacará. Em 1954, o então comandante Avelino Teixeira da Mota publica um estudo detalhado, a história da Guiné Portuguesa, que durante anos foi a peça de referência e ainda hoje é de leitura obrigatória em certos domínios. E veio a seguir René Pélissier com a sua História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, dois volumes, Editorial Estampa 1989.

A historiografia posterior aparece parcelada, António Duarte Silva escreve o seu incontornável “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, um olhar que permite ao estudioso e ao interessado pelas coisas guineenses entender a importância da obra de Sarmento Rodrigues e a fase da Guiné como província ultramarina, até chegarmos aos alvores da causa nacionalista. Como igualmente importante se revela a Guiné, 1963-1974, de Fernando Policarpo (QuidNovi, 2006),  porventura o estudo nos oferece a melhor síntese do período correspondente à luta de libertação.

O trabalho de Pélissier aparece prefaciado por Leopold Senghor. É muito belo o que ele nos escreve aqui:

“Os meus antepassados fulas e mandingas provêm de Gabu, no nordeste da Guiné portuguesa, para se integrarem em Sérères do Sine, mais exatamente na Petite Côte do Senegal, onde Joal, minha terra natal, é um porto banhado pelo Oceano Atlântico. Além disso, o meu apelido Senghor tem origem na palavra portuguesa Senhor, tal como o nome da minha cidade natal, Joal, é igualmente um apelido português. Acresce ainda que, além de outras coisas, tenho sangue português. Last but not least, no Senegal predominam os nomes e, portanto, o sangue português, sobre os nomes e o sangue franceses. Para compreender este facto bastará ler o livro de Pélissier. Aliás, no Casamansa fala-se ainda o crioulo português como dialeto regional (…) o que René Pélissier, ou melhor, mostrar, é a originalidade da colonização portuguesa e, sobretudo, o seu carácter nem racista, nem fanático (…) O leitor europeu não ficará pouco surpreendido ao verificar isto: estas campanhas, mais exatamente estas repressões ou estas guerras são quase sempre dirigidas não tanto contra os revolucionários das cidades, os mestiços, os cristãos, até mesmo os muçulmanos, mas contra os povos animistas: os Papéis, os Balantas, os Felupes e outros Beafadas”.

Senghor considera que esta obra proporciona uma leitura apaixonante e dou-lhe toda a razão.

Na introdução, o autor explica-nos ao que vem. Primeiro, contribuir para desfazer o mito dos cinco séculos da colonização-exploração portuguesa; segundo, tentar encher um vazio no conhecimento da África Ocidental pelos francófonos, cujos historiadores, praticamente todos, cessaram as suas investigações nas fronteiras da Guiné. Sem aparentemente se aperceberem de que este enclave não só tinha uma história própria como ainda uma certa importância; terceiro, um estudo dirige-se principalmente aos guineenses para eles considerarem a resistência/colaboração dos seus avós à conquista colonial. Neste ponto, o autor é esclarecedor:

“A Guiné, entre 1841 e 1936 foi uma terra de violência, repetitiva e de uma intensidade que não foi igualada nos territórios de extensão comparável na África Ocidental: perto de três vezes mais que no Casamansa. Com 81 campanhas, expedições ou simples operações que envolveram um mínimo de cerca de 8500 soldados regulares e cerca de 42000 guerreiros e auxiliares alistados do lado português, para consolidar uma colonização que, até ao começo do século XX não sabia se não teria de fazer as malas e pôr-se a andar. Ver-se-á, ao longo do texto, que a razão essencial desta acumulação de choque está ligada com a fraqueza intrínseca do poder português que só avança verdadeiramente para o interior das guerras depois dos grandes massacres de animistas de 1913-1915”.

Nos primórdios tínhamos a Guiné de Cabo Verde (1841-1844), de cedência em cedência a presença portuguesa fica confinada à Guiné de Cabo Verde, uma fração da Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa. Esta Guiné é a dependência de Cabo Verde, um género de colónia de uma colónia, pontificam tanto no tráfico negreiro como na administração incipiente os cabo-verdianos, a despeito do tratado luso-britânico de 19 de Fevereiro de 1810 pelo qual o tráfico negreiro era proibido na Guiné.

Pélissier desvela as práticas desse tráfico e os seus protagonistas. Interpelando o que era a Guiné neste período responde:

“Em 1841-1844, a Guiné dos portugueses e dos lusitanizados é, em primeiro lugar, os rios. A isto se junta, em equilíbrio precário nas suas margens, algumas escalas mestiças que sobrevieram à concorrência estrangeira”.

 Explica quais são os limites da Guiné, a sua fronteira marítima de cerca de 450 quilómetros e tece novas considerações:

“Na prática, o problema dos portugueses do litoral, no século XIX, consistirá em fazer com que a França e a Grã-Bretanha admitam que esta costa lhe cabe sem partilhas. Ora, contrariamente a Moçambique e principalmente a Angola, que aumentarão a sua extensão, a Guiné fictícia de 1841-1844 perderá quase metade das suas margens antes de se reduzir às fronteiras que lhe conhecemos. Esta costa é disputada não só nas chancelarias como até já no terreno”.

Seguir-se-á o trabalho de interiorização, os portugueses afanosamente acabarão por criar uma verdadeira colónia. As receitas, nesta fase ainda de tutela de Cabo Verde, resumem-se aos rendimentos da alfândega de Bissau e as despesas aos soldos das guarnições e de alguns funcionários civis, bem como às raras obras de consolidação dos edifícios públicos.

René Pélissier afirma que não há conhecimento exato do comércio das feitorias e argumenta:

“Com a exceção de dois ou três navios americanos, a exclusividade da navegação lícita pertence às escunas e chalupas inglesas e francesas de Gâmbia e de Goreia, que visitam duas ou três vezes por ano, cada uma, os postos portugueses. Os produtos declaráveis são o marfim, os couros e peles, a cera, o óleo de palma, as tartarugas, algum ouro e as madeiras”.

Há um prudente silêncio sobre o tráfico negreiro. Todo o comércio se baseia na troca e nos pagamentos em espécie. Quanto à topografia político-militar, o autor refere duas capitanias-mores, a de Cacheu e a de Bissau que estão unificadas numa comarca que tem à cabeça um subperfeito, residente em Bissau, isto antes de 1842 ano em que a Guiné volta a dividir-se em dois distritos autónomos, cada um com um governador dependente do governador-geral de Cabo Verde. Os portugueses ocupam Zinguichor, de há muito cobiçada pelos franceses, há registo de um enorme esforço de Honório Pereira Barreto para suster esta presença francesa, mas o Casamansa português está num completo declínio.

Na bacia do rio Cacheu, a presença portuguesa é dada pelo presídio de Bolor, pela povoação de Cacheu e a sua antena de Farim. No rio Geba espalha-se uma série de guarnições a começar por Bissau, depois Fá, Geba e Ganjarra, quase em frente à feitoria de Geba; há uma ténue presença no Rio Grande de Buba, no arquipélago dos Bijagós a presença portuguesa ocorre em Bolama e na Ilha das Galinhas. Por esta data inicia-se a “Questão de Bolama”. Só no final do Século XIX é que os portugueses se afoitarão à região Sul, depois do acordo celebrado com os franceses em 1886. Mas a vida em Bissau é terrível, está sujeita a guerras permanentes, como se passa a descrever.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10436: Notas de leitura (411): "Rumo a Fulacunda", de Rui Alexandrino Ferreira (Belarmino Sardinha)

domingo, 15 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9750: Notas de leitura (351): "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos: "um invulgar e dificilmente classificável livro" (Carlos Matos Gomes)


Lisboa > Associação 25 de Abril (A25A) > 29 de março de 2012 > Sessão de lançamento do livro de Mário Beja Santos, "Adeus até ao meu regresso" (Lisboa: Âncora Editora, 2012). Apresentação a cargo do cor cav ref Carlos Matos Gomes (na foto de cima, ladeado à esquerda  pelo editor; e à direita por Vasco Lourenço, presidente da direção da A25A,  e por Beja Santos).


Vídeo (1' 01'') > Alojado em You Tube > Nhabijoes


Fotos e vídeo: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


1. Texto da apresentação, da autoria do cor cav ref Carlos Matos Gomes, do livro "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos

“Já participamos nos romances uns dos outros”, escreve o Mário Beja Santos no seu livro a propósito de um pedido feito por uma jornalista, Tânia Ganho, de informações sobre a Guiné e transmitido por esse extraordinário veículo de convívio, de memórias e afetos que é o blogue do Luis Graça e camaradas.

É verdade, uma surpreendente verdade. Os que combateram na Guiné durante a guerra colonial, os que escreveram sobre ela, a propósito dela, os que falam dela, todos participamos nos romances uns dos outros e no invulgar e dificilmente classificável livro do Mário Beja Santos – Adeus até ao meu regresso - que hoje aqui apresentamos.



Reportoriar o essencial

O livro de Mário Beja Santos, concentra o que de mais relevante foi escrito sobre a Guiné. Apresenta-se como uma antologia em que, modestamente, o autor diz ir “reportoriar do lado português o que de essencial está escrito desde 1964 sobre a Guiné”.

Estamos perante uma antologia, formalmente dividida em textos de autores que contemplam o romance e o conto, as memórias, o ensaio, a poesia, a reportagem, a História e os diários, mas uma antologia única, construída articulando o texto do autor – Beja Santos - e as transcrições e citações dos autores que ele refere, fazendo continuar os dois registos numa sequência sem hiatos. Estamos perante uma obra da arte de contar a história da Guiné e da guerra na Guiné com as palavras dos autores, sublinhando o que de melhor eles nos disseram.


A capa

Gostava de realçar desde logo a capa, a fotografia, que é uma homenagem sensível e sofisticada a Amílcar Cabral, pois remete para a fotografia clássica do líder do PAIGC a atravessar um curso de água e que eu interpreto como o querer dizer que todos os que combatemos na Guiné estamos irmanados pelo mesmo amor por aquela terra, porque todos embarcámos nas mesmas canoas, atravessámos os mesmos rios, passámos as mesmas dificuldades.
 
O livro de Mário Beja Santos dá-nos os suculentos nacos de prosa dos autores, não apenas flashes e apresenta-nos a Guiné e a guerra como uma orquestra a tocar uma sinfonia com vários executantes e com o autor no papel de compositor e maestro. Pode parecer quase herético ou blasfemo associar as explosões, os sofrimentos, os extremos da guerra a uma sinfonia, mas é disso que se trata, de um drama em todos os seus andamentos e em todos os seus tons.

Nesta obra polífona cada autor referenciado e cada texto ou citação entra no ponto certo para transmitir uma visão do pormenor que irá contribuir na sua justa medida e tom para a sinfonia.

O paradigma da antologia na literatura portuguesa sobre a guerra é ainda hoje “Os Anos da Guerra”, organizada por João de Melo com excelentes textos de enquadramento de Joaquim Vieira, obra aliás referida e devidamente apreciada por Mário Beja Santos, mas o que nós temos em “Adeus até ao meu regresso” é algo de essencialmente diferente, é uma antologia construída como um romance e um romance construído como uma história da Guiné, dos seus povos e da guerra que ali foi travada de 1963 a 1974. Os autores dos textos são personagens do romance e os seus textos são a narrativa das aventuras das personagens, os seus pensamentos, as suas visões, os seus sentimentos.

O autor, o romancista, o Mário Beja Santos conseguiu através do trabalho, que ele próprio qualifica de demencial, um tal conhecimento dos autores, cujas vidas são apresentadas e integradas na narrativa como as das personagens dos romances, e das suas obras que as articula no tempo e no local a que as ações se referem.

Os textos dos livros escolhidos permitem-nos comparar as nossas experiências com a de outros camaradas, que passaram pelos mesmos locais, noutro tempo, que viveram situações semelhantes. São textos de livros para lermos, mas são principalmente livros para deixarmos aos nossos filhos, aos nossos netos, às gerações que nos vão suceder.


Escritores da guerra

Trata-se de livros de uma geração de escritores da guerra, como os classificou João de Melo. Neste caso, na maioria dos casos, de escritores estigmatizados. Pela guerra enquanto tema, pela guerra que os fez participantes na acção, que afastou da crítica, dos circuitos literários, do reconhecimento dos seus concidadãos. Diríamos hoje, que estes escritores da guerra estão fora do mercado. Como em muitas outras áreas da nossa vida, existem várias realidades que não se reconhecem e não estou a falar apenas de ficção, ou poesia, estou a falar de ensaio, de história, de diarística, de memórias.

Os textos reunidos por Mário Beja Santos reúnem o melhor e o mais importante do que foi publicado e trazem ao nosso conhecimento obras esquecidas que, se lidas, nos permitiriam ter um conhecimento fundamentado das razões, ou da falta dela para aquela guerra. Aperceber-nos-íamos das razões por detrás das coisas, de que tudo tem uma história e permito-me salientar sem nenhum desprimor para os outros autores as obras de António Duarte Silva no capítulo do ensaio, a que o Mário Beja Santos dá o titulo “A Guiné entre o século XIX e a atualidade. Para entender melhor estes mais de dois séculos de esperança adiada” e as referências ao estudo “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, editado em 2010.

Para o que resta de crítica literária, os escritores da guerra escrevem sobre um assunto incómodo e politicamente incorreto. A moda são os urbanos. A moda é a ausência de valores. A moda é a ambiguidade a vários níveis, da ambiguidade sexual à ambiguidade de princípios. A moda é o precário, o imediato, o rápido. O usar e deitar fora. Uma sociedade hedonista, não suporta a dor da guerra, o sofrimento da morte, não suporta as mãos sujas de sangue. Não suporta o dilema de matar e morrer e não suporta, infelizmente o trabalho e o sacrifício do estudo e da compreensão. Portanto deixa de lado, com indiferença, estes testemunhos incómodos da história.

Basta ler os extratos que Beja Santos nos dá no seu livro para termos a certeza de que não é por falta de qualidade literária e científica que alguns destes autores não são e não foram trazidos ao grande público pelos divulgadores culturais, mas porque o Portugal que passa nos textos dos autores iluminados e nalguns casos ressuscitados por Beja Santos não é, de todo, o Portugal que a moda e os que fazem a moda querem e quiseram fazer crer que existia.

O que temos neste livro é o Portugal da guerra colonial, a maior aventura coletiva da história de Portugal a seguir à das viagens, descobertas e conquistas dos séculos XV e XVI (mais de milhão e meio de portugueses envolvidos na guerra e na emigração), também é a participação de Portugal no movimento descolonizador, o fenómeno mais marcante da história mundial após a II guerra.

“Adeus até ao meu regresso”, centrando-se na Guiné, enquadra a história daquele território no âmbito mais vasto do colonialismo iniciado com a Conferencia de Berlim, quando as fronteiras foram definidas (traçadas) – recorda-nos que o Casamança tinha tido uma ocupação portuguesa, que Zinguichor, muito perto de Guidage, foi uma cidade sob domínio português, que as guerras de pacificação duraram até aos anos 30 do século XX.

Tomamos contacto com as linhas de fratura sobre a questão colonial que atravessaram o regime do Estado Novo português, colocando de um lado autonomistas como Sarmento Rodrigues, Marcelo Caetano e Adriano Moreira e do outro os integracionistas, que acabaram por fazer valer a sua posição junto de Salazar e tornaram a opção pela guerra, tornada irreversível a partir de 1963.


Romancistas e contistas da guerra


Entre os autores de romances e contos Mário Beja Santos elege três: Armor Pires Mota, Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Sobre Armor Pires Mota diz Beja Santos: “Resta perguntar porquê este silêncio em torno do primeiro repórter combatente, alguém que escreveu a guerra quase em directo, em tom singelo, frugal nas imagens, entregando-nos os seus estados de alma sobre a forma de diário. Porventura houve preconceitos ideológicos, hoje totalmente inexplicáveis, talvez porque o escritor assumisse que fizera esta comissão numa convicção dos destinos da Pátria. Ele foi o primeiro escritor entre nós, devemos-lhe esta guerra quase em directo, no tempo em que se combatia de capacete e se transportavam munições e víveres em burros. Como veremos, a Guiné tem acompanhado a sua obra literária, até ao presente.


Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós, como se transcreve de “Noiva de guerra”: Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão. “


É apenas um exemplo para vos estimular a ler o livro. Eu permitia-me referir duas outras obras recenseadas no capítulo de memórias, uma de um diplomata, no início da guerra e outra de Salgueiro Maia, no final.




Ensaio e história - do princípio do que podia não ter sido uma guerra ao fim dantesco em que ela se transformou.


Em primeiro lugar a do livro: “Quadros de Viagem de um diplomata” de Luís Gonzaga Ferreira.


Trata-se da obra de um diplomata que esteve em serviço em Dakar, no Senegal em 1963 e que relata um episódio relativamente pouco conhecido de conversações entre o governo português, por Salazar em pessoa, com dirigentes nacionalistas, da UNPG, que viria a dar elementos para a FLING e para o PAIGC – no caso Benjamim Pinto Bull, uma família originária da zona de Teixeira Pinto. Nestas conversações Salazar aceita num primeiro tempo conversações e dá instruções à embaixada de Dakar, para depois negar e cortar essa possibilidade. Estamos em 63, no início de uma guerra que podia ter sido evitada ou conduzida para um outro fim. Eis o que diz o Mário Beja Santos:


“No dia 11 de Agosto de 1963, um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A seguir a esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.


O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959.


Estamos neste livro perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem-sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.


Qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.”


Esta é uma memória de como a guerra podia ter sido evitada ou seguido por outro caminho. O texto seguinte é do final da guerra. Do absurdo a que se havia chegado e é relatado pela transcrição de textos do livro “Crónica dos feitos por Guidage”, de Salgueiro Maia, que aqui recordo com emoção e respeito.


Este texto é também elucidativo do modo como Mário Beja Santos encadeia o seu texto com o dos autores para construir um novo texto coerente. Começa com Beja Santos:


“O pior vem depois. No dia 22 de Maio de 1973, Salgueiro Maia e a sua companhia estão prontos para seguir para o Cumeré, parece que a comissão terminou. Mas não, têm que partir de urgência para o Norte. O PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, a guarnição estava cercada e, aparentemente, isolada. As flagelações do mês de Maio, na zona de Guidage, eram incontáveis. O PAIGC apostara numa operação de grande envergadura: trouxera mísseis terra-ar para dissuadir os meios aéreos; implantara um campo de minas anti-carro e anti-pessoal na estrada Guidage-Binta. A última coluna de reabastecimento fora atacada durante cerca de 24 horas sem interrupção, as NT retiraram abandonando mortos e viaturas, seguiram para Guidage. O comando-chefe reage com a operação «Ametista Real». Uma companhia de pára-quedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário, chegam a pé a Guidage depois do destacamento de fuzileiros ter caído num campo de minas e os pára-quedistas terem sofrido uma emboscada. Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e depois, com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, abrir o cerco para Guidage. O relato que ele faz é uma peça espantosa.


Em 26 de Maio chega a Binta com uma companhia desfalcada, estão lá três capitães, pouca comida e há que dividir as munições por todos. Não há um só oficial superior para comandar a operação. Começa aqui a sua descrição:


«No dia 29 de Maio, pelas 5 horas, iniciámos a abertura do itinerário Binta-Guidage. Cerca das 10 horas, ao ser picada, foi accionada uma mina anti-carro, de que resultou um morto (ficou somente com um bocado do tronco, pois o resto desapareceu), um furriel cego e dois feridos ligeiros. Foi ordenado ao pelotão a que pertenciam as baixas para, em dois Unimogs, fazer evacuação para Binta, onde a companhia local os evacuaria para Farim e daqui para Bissau, por já não haver evacuações aéreas no local, devido à existências de mísseis terra-ar. O pelotão que fez a evacuação aproveitou a oportunidade e não voltou, como lhe tinha sido ordenado, e assim ficámos com menos duas viaturas e cerca de 30 homens. Talvez para que o mau exemplo não se espalhasse, esta deserção colectiva em frente do IN, apesar de constar do relatório da operação, não originou qualquer procedimento disciplinar».


A progressão faz-se a corta-mato, com algumas viaturas à frente, os cunhetes vão abertos, prontos a utilizar: este regime em self-service ir-se-á revelar providencial. Prova que o PAIGC mudara de táctica e queria levar o cerco de Guidage até às últimas consequências a que cada um dos seus homens armados levada dois a três carregadores para o substituir. Pelas 12 horas, as forças do PAIGC começaram a atacar a coluna, foram repelidos várias vezes. As tropas de Salgueiro Maia estão sem água, há homens desmaiados, felizmente que a coluna de reabastecimento de Bissau ia progredindo. Mais adiante, na região de Ujeque, do corta-mato passou-se para uma antiga picada, tentou-se progredir por aqui, arrebentou uma nova mina debaixo de um Unimog 404, um soldado milícia ficou sem uma perna. Mais adiante conseguiu-se contacto com o destacamento de fuzileiros retido em Guidage. Pelas 19 horas entraram em Guidage que tinha um aspecto irreal. Dá-se de novo a palavra a Salgueiro Maia:


«O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pareciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco».


E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:


«A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.


"Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo».


Assim foram aqueles tempos em Guidage: sem horas para comer, com arroz e salsicha ao jantar, o resto estava desfeito, enquanto se comia caiam à volta morteiradas para ninguém se esquecer que se estava em guerra.


Esta descrição, dura e crua, bem devia ser apresentada nas escolas, para se ter uma imagem da bestialidade da guerra que se desenvolvia na Guiné. Tenho encontrado muitos relatos sobre a violência, a crueldade, o horror das matanças, das perseguições, o caos das populações no meio de tanta destruição. Julgava que “Kaputt”, de Curzio Malaparte, tinha lá tudo o que o demónio da guerra comporta, o inumano, o truculento, os muitos medos desavindos, imprevistos. Salgueiro Maia ensinou-me que há sempre surpresas, basta, como lhe aconteceu, ter saído de Binta para Guidage, aquele inferno inesquecível de Maio de 1973. Um relato para a História, até para se perceber como aquele homem tinha razão fundada em ter chegado ao Largo do Carmo, naquele dia 25 de Abril."


Já vai longa a apresentação, que é também como deve ser um local e uma ocasião de encontro entre amigos e camaradas, queria repetir que em “Adeus até ao meu regresso” estamos perante uma obra única, com uma escrita: límpida, emocionada, num português que nos leva com a naturalidade de uma valsa. Esta é a literatura portuguesa que vai ficar para a história e é porque relata o que de mais importante e marcante ocorreu em Portugal e os portugueses durante a segunda metade do século XX.


É de uma literatura original – o olhar de um povo sobre outros mundos, que Mário Beja Santos nos deixa o melhor. A desmistificação da história que nos era contada: nós não conhecíamos a África nem os africanos. A literatura que nos revelou e revela como povo: pela primeira vez uma geração alfabetizada escreve e relata o modo como viu os outros, como viu os outros portugueses e como viu os africanos. Como reagiu às situações limites: à morte, ao afastamento, ao medo. O que permite sabermos muito sobre a nossa religiosidade para além da afirmação mais ou menos feita de sermos muito católicos. Quais são os nossos deuses, o que queremos deles?


É esta literatura que vai perdurar, porque ela é especifica e reflete os olhares dos portugueses sobre a sua grande aventura, com os autores transformados em personagens numa história geral, como acontece nas grandes obras que relataram as epopeias dos seus povos.


Lisboa, Associação 25 de Abril,

29 de março de 2012


Carlos de Matos Gomes
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Nota do editor:


Último livro da série > 13 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9742: Notas de leitura (350): A Guiné vista pela Agência-Geral do Ultramar em 1967 (Mário Beja Santos) 

terça-feira, 27 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6793: Notas de leitura (136): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2010:

Queridos amigos,

Continuo deliciado, a ler e a rever um livro bem reflectido, bem estruturado e útil para pensarmos a Guiné onde combatemos e onde o imprevisível, na actualidade, não pára de nos surpreender.

Nós constamos da bibliografia deste autor, que nos trata com muito apreço.
Todos os confrades, permitam-me a sugestão, terão tudo a ganhar com esta leitura aliciante de alguém que escreveu um livro de história e ciências jurídicas numa linguagem muito clara e acessível.

Um abraço do
Mário


Do nacionalismo à luta armada, Che Guevara e Amílcar Cabral

por Beja Santos

Continuamos à volta do portentoso livro “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” de António E. Duarte Silva (Edições Almedina, 2010)*.

No texto anterior, procurou-se dar uma panorâmica dos principais eventos do século XIX ao século XX, na óptica dos grandes vectores da colonização, tendo em consideração a obra incontornável de Sarmento Rodrigues.

Nesta viagem que nos levará, no próximo texto, à apreciação das diferentes constituições bissau-guineenses, vamos agora resumir as principais etapas que vão do nacionalismo até à luta armada (a história da luta armada será encarada na recensão de outro livro de António E. Duarte Silva,  A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Afrontamento, 1997).

É o governador Raimundo Serrão quem sucede, em 1949, a Sarmento Rodrigues. Serrão teve uma governação pálida. Praticamente limitou-se a inaugurar as obras encetadas por Sarmento Rodrigues. Por este tempo, terão surgido os primeiros movimentos políticos de contestação ao poder colonial. Revelar-se-ão insignificantes. O PCP terá tido alguma influência junto da pequena burguesia que contesta o colonialismo graças à farmacêutica Sofia Pomba Guerra. Crê-se que terá sido ela a apresentar Aristides Pereira e Osvaldo Vieira a Amílcar Cabral.

Nesta época, guineense e “activo” do PCP era Vasco Cabral. A seguir a Raimundo Serrão vem um governador polido e de modos aristocráticos, Diogo Mello e Alvim, isto numa altura em que Amílcar Cabral e a mulher publicam artigos alusivos à agricultura na Guiné Portuguesa no Boletim Cultural.

Também por esta época alargam-se os quadros da PIDE mas quem dá informações sobre as manifestações de “subversão” é a PSP. Cabral aparece ligado à tentativa de uma associação desportiva e recriativa, autorização que foi negada. Em 1955 é criado o clandestino MING – Movimento para Independência Nacional da Guiné. O PAI – Partido Africano da Independência terá sido constituído a 19 de Setembro de 1956, o pensamento de Cabral está em marcha, insere-se na vaga pan-africana. As elites crioulas, os mestiços, os pequenos quadros, os comerciantes, empregados públicos, manifestam simpatia pelos princípios do PAI.

Cabral aproveita-se das boas relações que desenvolvera em Lisboa no Centro de Estudos Africanos, contacta outros grupos que pretendem a libertação das colónias portuguesas. Os chamados “civilizados” guineenses, sempre hostis aos cabo-verdianos, decidem formar um Movimento de Libertação da Guiné que se diluirá quando, em plena década de 1960 a Organização da Unidade Africana reconhecer o PAIGC como o único movimento de libertação de toda a Guiné.

As autoridades portuguesas continuam impassíveis, não se apercebem da crescente contestação e das suas diferentes orientações: é uma longa calma que precede a tempestade. Nem o massacre do Pindjiquiti (o autor privilegia a ortografia tradicional, era assim que se escrevia e é assim que se escreve hoje).

Ainda há muitos dados sobre este massacre por esclarecer mas parece incontornável que houve uma péssima gestão negocial do gerente da Casa Gouveia, o conhecido historiador António Carreira, e a PSP perdeu o controlo da situação chacinando os amotinados, atirando sobre manifestantes fugitivos, liquidando implacavelmente os feridos.

Valerá, a tal propósito ler, o que escreveu o nosso confrade Leopoldo Amado em http://guineidade.blogs.sapo.pt/arquivo/1019191.html. [Mas também Mário Dias, o único de nós que esteve lá nesse dia...]

Os partidos políticos estão em formação tanto o MLG como o PAI, os nomes sonantes são os de Rafael Barbosa e Amílcar Cabral. Cabral, no exterior, procura mobilizar a consciência do movimento de liberação. Em 1960, Cabral já está instalado em Conacri e o PAI dá lugar ao PAIGC. A luta pelo reconhecimento internacional ia começar. No interior, de 1960 a 1962, a luta política ganha consistência.

O MLG lança-se declaradamente na guerra em Julho de 1961, atacando São Domingos e depois Susana e Varela. MLG e outras organizações operam a partir do Senegal e da Guiné Conacri. No essencial, nunca se entenderão, o problema cabo-verdiano é o grande óbice, os cabo-verdianos fingem ignorar este dado primordial ou julgam-no ultrapassável.

Por essa época, em Dakar, o diplomata Luís Gonzaga Ferreira tenta uma aproximação entre os guineenses e Salazar, revelar-se-á um insucesso, Salazar escolhera o seu caminho. A subversão alastra rapidamente, o PAIGC apostava com bons resultados na propaganda e na separação das populações. Em Janeiro de 1963, ainda deficientemente equipados e com a maior parte dos quadros ainda em formação sobretudo na China e na Checoslováquia, começou a luta armada com um ataque a Tite, o que veio desorientar as Forças Armadas Portuguesas. Em Julho desse ano a guerra atingia o Oio e o PAIGC instalou-se no Morés; o sul da colónia entrou em convulsão, foi aqui que se deu o mais rápido separar das águas. As autoridades portuguesas não sabiam o que fazer.

Para o brigadeiro Louro de Sousa, comandante militar da Guiné, a guerra estava perdida. Em Maio de 1963 é capturado um sargento da Força Aérea, trata-se do primeiro importante prisioneiro de guerra. De Janeiro a Março de 1964 vai ter lugar a chamada batalha de Como, a Operação Tridente. Teve imensos custos para o lado português serviu para muito pouco já que o PAIGC se ia espalhando com sucesso pelas penínsulas do Cantanhez e do Quitafine.

É nesta região, em Cassacá, que o PAIGC irá realizar o seu congresso, reorganizar a luta armada, reformular as estruturas partidárias e julgar os camaradas acusados abertamente de crimes inqualificáveis e até abomináveis crimes contra o povo. Foram julgados e fuzilados vários dirigentes.
Ainda hoje não está claro que crimes cometeram e à ordem de quem.

1964 foi o ano decisivo no alargamento da luta de guerrilhas. O PAIGC avançou para a região de Bissau mas a guerra não chegou ao interior da península como não chegará aos Bijagós, à ilha de Bolama e mesmo ao “chão fula”. Os grupos do PAIGC passam a actuar praticamente em toda a região Sul, abaixo do Geba e a oeste do Corubal. Em Abril, Arnaldo Schultz é nomeado como governador e comandante militar.

Schultz apercebe-se que o PAIGC fora bem sucedido no Sul e que tem um relativo controlo na região do Morés, actuando com subtileza em diferentes corredores que garantem o abastecimento das bases instaladas no interior. Por esta época as FARP estão em reorganização e o seu equipamento está, no mínimo, em paridade com as forças portuguesas. Os movimentos de libertação da Guiné, Angola e Moçambique passam a afinar posições, junto dos comités da ONU mas é indiscutivelmente o nome de Cabral que sobressai em todas as assembleias, pela sagacidade, conteúdo, leitura do futuro.

Quando Che Guevara percorre alguns pontos de África, já se tinha encontrado com Cabral. Os meios de comunicação não deram projecção a este encontro em que Guevara prometeu o envio de armas. Segundo Óscar Oramas (que virá a ser nomeado embaixador cubano, em Conacri) Guevara terá comentado que Cabral “era o dirigente africano de maior talento e que mais o tinha impressionado”.

A ajuda cubana virá, como é sabido. Será aliás em Cuba que em Janeiro de 1966 a I Conferência de Solidariedade dos povos da África, da Ásia e da América Latina e será aqui que Cabral terá ensejo de proferir uma das suas mais importantes intervenções ideológicas, inovando conceitos de matriz marxista, orientando-os para a realidade africana.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6790: Notas de leitura (135): Rui Patrício: A vida conta-se inteira, de Leonor Xavier (Mário Beja Santos)