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segunda-feira, 27 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)


Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 20 de Abril de 2020, trazendo-nos uma história a que deu o título de O barbeiro dos bifes.


O BARBEIRO DOS BIFES

Nem sempre as diferentes especialidades se ajustavam ao perfil de cada militar, fosse por imperfeições do próprio sistema de avaliação, que nós conhecíamos por testes psicotécnicos, fosse pela viciação dos resultados sob a mão de uma oportuna cunha, viesse ela do padre da aldeia, do regedor ou até de um coronel reformado.

Certo é que, para preencher a especialidade de atirador, nunca havia pedidos, e poucos eram os que sorriam quando, no fim dos três meses de recruta, lhes era comunicado que lhes tinha cabido em sorte a G3. Na ingenuidade de muitos mancebos não lhes calharia mal a especialidade de condutor, sendo que alguns até almejavam essa profissão, logo que regressados à vida civil. Não sabiam eles ainda quão perigoso era conduzir um camião nas matas de África, sujeitos ao primeiro tiro ou ao rebentamento de uma mina anticarro.

Ao Simão, de Oliveira de Azeméis,  foi-lhe atribuída precisamente a especialidade de condutor-auto, a contragosto, mas se assim tinha sido o resultado dos testes, assim tinha que ser. A grossa maioria dos recrutados, entre 1961 e 1974, bem sabia da sua condenação à guerra do Ultramar, ao fim de meia dúzia de meses, mas o Simão sempre admitia que pudesse ter sorte, até porque era já casado. Podia ser que escapasse e ficasse por cá, julgava até que, com mais sorte ainda, poderia ficar ao serviço de um oficial superior, conduzindo-o num “Carocha” verde azeitona ou num Mercedes da mesma cor, entre quartéis e a sua residência. Bem tentou, pediu até a uma senhora de Oliveira de Azeméis que tinha trabalhado em casa de um general, mas, azar dele, a senhora tinha saído de lá zangada, quando ainda jovem, por lhe não ter aceitado uma proposta indecente.

Foi azarado o Simão, porque se tinha pouco jeito para aquela profissão, muito menos se imaginava a conduzir uma Berliet carregada de cerveja e sacos de arroz, em picadas cheias de buracos camuflados por água. Ao fim de seis meses de tropa estava já escalado para o pior sítio da guerra de África, ainda por cima obrigado a integrar colunas de reabastecimento, com um qualquer camião, a que havia de faltar sempre alguma peça, a transportar água e lenha das imediações do aquartelamento e outros serviços que lhe fossem atribuídos. Estava o Simão metido numa camisa de sete mangas, mas havia de se safar, o espertalhão.

De vez em quando, de propósito, quando ia à lenha, ali por perto, arranjava maneira de fazer de conta que não via e passava por cima da ponta aguda do pé de uma árvore e lá ia mais um pneu à vida. Também daria resultado arranhar a caixa de velocidades, de vez em quando, sempre que o Furriel Mecânico ou o Capitão estivessem por perto. Só por si estes argumentos não seriam suficientes para o Capitão o tirar da condução, mas iriam ajudar muito, poucos dias depois. O Simão tinha um plano bem urdido. Quando, antes do embarque, ainda em casa, a mulher lhe punha na mala, entre outras roupas, um casaco, ele disse-lhe, num riso forçado, antes da triste despedida:

"Tira daí, mulher, o casaco que lá só há calor de rachar e mete mas é, no lugar dele, a minha ferramenta de barbeiro, que para alguma coisa me há de servir."

Nas horas vagas ia cortando o cabelo a um ou dois por dia, daqueles seus amigos, que mais lhe não pagavam que uma simples cerveja. Longe de cogitar que o Simão montava a “oficina” propositadamente em sítio que o visse, o Capitão, apreciando-lhe a destreza com a máquina e a tesoura, logo quis tirar proveito da situação. Foi, pois, o que fez, no dia seguinte quando o mandou chamar ao seu gabinete:
- Então Simão, já que tem andado a cortar o cabelo a alguns militares, trabalho que vejo bem que já fazia na vida civil, vai, a partir de agora, ser o barbeiro da companhia.

O Simão não teria disfarçado o agrado daquela ordem emitida pelo seu Capitão, caso se tratasse de uma proposta susceptível de negociação. Agora uma ordem! Ele bem sabia que na tropa não havia a especialidade de barbeiro, logo, sendo ele condutor, só aceitaria esse encargo de tosquiar aquelas quase duas centenas de militares, se a ordem viesse condimentada com algo mais apelativo. Mas ele, a parte mais fraca, não havia, naquele dia, de recusar, definitivamente, obedecer à ordem do Capitão, ainda que ilegal. Por isso, só lhe disse, condoído, que lhe seria quase impossível acumular a função de condutor com a de barbeiro.
- Se o meu Capitão me arranjasse uma outra função, dentro do arame farpado, libertando-me da condução, seria mais fácil, assim vai ser quase impossível eu dar conta do recado, que são muitas cabeças!

Havia mais condutores do que viaturas na companhia, por isso, dois ou três deles tinham sido colocados noutros sectores onde o Capitão notava necessidade. Ainda nem um mês tinha decorrido desde a nossa chegada a Mampatá, o nosso homem, em conversa com o Ferraz, seu colega de especialidade, que trabalhava contrariado na cozinha, propôs-lhe a troca, para ambos benfazeja . Faltava agora essa permuta merecer o aval do Capitão, porque, quanto ao Furriel Mecânico esse estava morto por o ver pelas costas, acabando-se assim a sua permanente aflição sempre que o via pegar numa viatura.

Assim, havia condições para todas as partes saírem satisfeitas. Por isso, os dois condutores, depois de apresentada a pretensão ao Furriel Mecânico, Nina de seu nome, correram ao gabinete do Capitão para a celebração daquela permuta de geral consolação. Agora já podia tratar do cabelo e da barba de toda agente, liberto das viaturas, embora com a acumulação de ajudante de cozinha e cantineiro.

Estava como queria, o nosso barbeiro Simão. Apareceu por lá outro, um alentejano, que também cortava o cabelo a alguns, mas embora mais barateiro, era mais fraquinho. Bom mesmo, esse, era no mato, com a “bazooca”, arma da 2.ª Guerra Mundial que manejava com mestria.

Um barbeiro na tropa
O Simão era um espertalhão, mas tinha sentido de justiça e consciência de classe. Cada um dava-lhe de gorjeta o que quisesse, mas ele, mesmo não dispondo de tabela fixada na árvore onde encostava a cadeira, tinha na sua mente, o valor justo para cada posto, e rogava, por entre dentes, as maiores pragas ao alferes que lhe desse menos do que um furriel ou quando um destes lhe desse tanto como um soldado.

Terá beneficiado da influência das lavadeiras fulas que estabeleciam os preços pelos seus serviços de lavagem das nossas fardas em função dos nossos vencimentos? Julgo que sim, porque, na nossa cultura europeia, o preço de um bem é aferido pelo seu valor objectivo, independentemente do ordenado da pessoa que o adquire.

Era perito a pregar partidas e, num sítio onde era difícil encontrar um espelho, muito menos dois, como podíamos mirar a parte da nuca? Era aí que ele, às vezes, engenhava as suas maldades, deixando uma ou outra escada. A um, que veio de férias ao fim de dezasseis meses, desactualizado em relação à evolução da moda, fez-lhe um corte tão apalhaçado que até a namorada dele galhofou.

O Simão, no seu trabalho de cantineiro, passava a vida a servir cervejas, latas de coca-cola e whisky no bar comum aos oficiais e sargentos, onde comprávamos também tabaco, pilhas para o rádio e pouco mais. Tinha ainda um outro serviço que ele desempenhava com tanta habilidade como se estivesse a cortar cabelo. Por volta do meio dia, era sua atribuição, limpar a mesa, usada para algum jogo de sueca ou crapô, para agora nela ser servido o almoço ao Capitão e a mais três ou quatro Alferes. Não parava de sorrir o Simão enquanto, metodicamente, esticava as pontas da toalha e de seguida a enfeitava com pratos, copos e talheres que, um por um, abrilhantava com um paninho branco que trazia sempre consigo.

Depois vinha o melhor da peça, provavelmente o que lhe alimentava aquele permanente sorriso que se lhe não descolava do rosto magro e esbranquiçado, enquanto se ocupava daquele trabalho rotineiro de preparar a mesa e servir o almoço aos oficiais. Um deles, o Alferes Estuques, tinha embirrado com dois ou três militares, porque ao passar na árvore dos passarinhos, a nossa mítica árvore, a maior da tabanca, tinha-os repreendido por achar que os mesmos não o teriam cumprimentado de acordo com as normas rígidas da corporação militar. Ora, desse grupo de incumpridores fazia parte o Simão deste conto verdadeiro, que sorria enquanto pensava como havia de trambicar o exigente Estuques.

Para além de instalar a mesa para a refeição, ele tinha que trazer, da cozinha, uma travessa onde coubessem as quatro ou cinco refeições e competia-lhe servir o prato de cada um dos oficiais. Nos dias de massa ou arroz com rodelas de chouriço ou salsichas não tinha o Simão modo de prejudicar o Estuques, mas quando a nossa companhia comprava uma vaca, o sorriso do Simão era bem mais explícito, algumas vezes gargalhava até com os cozinheiros dentro da cozinha. Era lá que ele preparava, com a colaboração de um cozinheiro, a nicada. Trazia os bifes, de diferentes tamanhos, sobrepostos, mas na hora de servir os oficiais havia de arranjar maneira de o mais pequeno calhar sempre ao Estuques.

Aquilo já era de mais, ao ponto de o Alferes se queixar ao Capitão. Chamado à atenção sempre se defendeu o Simão que não o fazia por mal, que assim acontecia por mero acaso, mas que se iria esmerar, de futuro, de modo a que o Estuques não tivesse mais razão de queixa. O Simão havia de sair bem daquela situação, o Estuques é que continuou prejudicado, porque, em vez de lhe calhar o bife mais pequeno, ninguém sabe porquê, passou a ser para ele sempre o mais rijo.

Quando, na chegada a Lisboa, se despediram, por entre risos e abraços, o Estuques disse-lhe isto ou algo pior :
- Tu lixaste-me!

O Simão, senhor Aníbal da Costa Santos Simão, é hoje proprietário da Barbearia Barber Shop Elvis Museu, em Oliveira de Azeméis, onde continua a trabalhar, mas já não prega partidas aos clientes.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

domingo, 28 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18261: O Cancioneiro da Nossa Guerra (5): O hino dos "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250/72 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > O repouso do guerreiro... O Zé Manel, ou o Josema (pesudónimo literário), "a reler o que havia escrito, numa pausa durante a protecção a uma coluna de Buba para Aldeia Formoso".
Fotos (e legendas): © José Mnauel Lopes  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Nhala > 1974 > Foto nº 1 > Os "Unidos de Mampatá", CART 6250/72, em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala,  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).


Guiné > Região de Tombali > Nhala > 1974 > Foto nº 2 Os "Unidos de Mampatá", CART 6250, em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala,  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).

Comentário do António Carvalho (ex-fur mil enf, da CART 6250):

"Primeiramente devo manifestar a minha gratidão ao Murta, por ter guardado e nos ter proporcionado esta vista do regresso da nossa companhia a Bissau, via Nhala e Buba. As fotografias são muito interessantes, sob o ponto de vista da história da guerra do ultramar porque mostram a alegria transbordante pelo fim da comissão e a anarquia reinante com ausência de armamento, agora já imprestável naquele irrepetível tempo, posterior ao 25 de Abril. Para trás ficava Mampatá e a memória dos nossos dois mortos - o Mata e o Albuquerque. Eu já não me lembrava daquela paragem em Nhala que não terá sido só para atazanar os periquitos mas para retemperar energias com mais umas cervejas. Aquela viajem foi gloriosa também porque estávamos a inaugurar a estrada nova Aldeia Formosa- Buba, agora percorrida em menos de uma hora." (*)


Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuamos o nosso projeto de reunir, numa só série (**), os versos e outros textos poéticos do nosso Cancioneiro, do "cancioneiro da nossa guerra"...

O "Hino dos Unidos", já aqui reproduzido há 10 anos,  data  muito provavelmente de princípios de 1974 (***). Segundo o José Manuel Lopes, produziram-se, no seu tempo, diversas letras que parodiavam fados, canções e baladas em voga. Primeiro escolhia-se uma música, e depois encaixava-se, muitas vezes a martelo (como é aqui o caso...), uma letra. Ele próprio foi autor de algumas letras que ficou de identificar, no "baú da casa da avó"... Havia também um furriel madeirense, da CART 6250/72.  que era um bom letrista...

Recorde-se que esta companhia, a CART 6250/72 [, não confundir com a CART 6250/73,] especializou-se em operações de segurança aos trabalhos de construção da estrada, que ia de Buba, Quebo, Mampatá, Cumbijã, Nhacobá, Salancaur, até ao corredor da morte... O José Manuel Lopes ("Josema") e os seus camaradas passaram dias e dias, semanas e semanas, meses e meses, a picar, a levantar minas, a montar segurança, a fazer emboscadas, a dormir e a comer na estrada, acompanhando a sua abertura, em direcção ao sul... Havia, portanto, tempo para tudo: desde o Leça que escrevia todos os dias areogramas para a sua amada, até ao Josema, que escrevia todos os dias um poema... (Infelizmente só chegaram até nós umas escassas seis dezenas, reproduzidas na série "O poemário do José Manuel").

Havia, por outro lado, três ou quatro camaradas que tinham jeito para a música e tocavam instrumentos (nomeadamente viola). Havia, inclusive, um baterista de um conjunto que na época teve algum sucesso em Portugal. Ele disse-me o nome, ao telefone, mas não fixei (***). Na época, eram, raros infelizmente os gravadores de som. Não haverá, por isso, muitos registos fonográficos deste "outro lado da guerra"... Há, comn certeza, memórias ainda vivas dessa produção poético-musical, que de resto temos vindo aqui a recolher e a divulgar...

Além do Cancioneiro de Mampatá, tenho outros,  espalhados pelos mais de 18 ,mil postes até agora publicados no nosso blogue. desde 2004: Cachil, Bafatá, Bambadinca, Bissau, Canjadude, Empada, Gandembel, Mansoa, Xime/Ponta do Inglês, Bedanda...

Estamos a fazer um esforço para "salvar",  "salvaguardar" e  divulgar outros mais, todos eles "pedaços da nossa memória" (, individual e coletiva).


2. O cancioneiro da nossa guerra > Hino da CART 6250/72 (Mampata, 1972/74)

Refrão

Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Sessenta e dois cinquenta,
Mampatá, patá, patá, patá,
Mampatá, Mampatá, Mampatá.

Andam bocas por aí
Que os Unidos só sabem piar,
Mas a realidade
É bem fácil de se provar.

Refrão

Deixai lá falar
E cumpramos o nosso lema,
Sempre Unidos cem por cento,
Venceremos para sempre.

Isto aqui é nosso,
É Mampatá, patá, patá, patá,
Mampatá, tá, tá, tá,
Mampatá, patá, patá, patá.

A protecção à estrada
Que os Unidos estão a fazer,
Basta p’ra provar
Qu’ aqui se trabalha a valer.

Refrão

Começámos sem ter lar
E já temos o nosso abrigo,
Esta é aquela máquina,
Só possível aos Unidos.

Refrão

Esta CART dos Reguilas,
Como alguém do outro lado lhe chamou,
Será sempre honrada
Como herói qu’aqui suou e lutou.

Refrão

Mampatá espera de nós
O Progresso e a promoção do seu povo,
Nós lhe prometemos
Que terá esse MUNDO NOVO!

Letra recolhida por José Manuel Lopes [Josema],
ex-fur mil da CART 6250 , "Os Unidos de Mampatá" (Mampatá, 1972/74)

Texto: © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [ Edição / revisão / fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14277: A minha homenagem aos "Unidos de Mampatá" (CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), António Carvalho, José Manuel Lopes (Josema) e Carlos Farinha... (António Murta, ex-alf mil inf, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

(...) Tenho duas fotografias, que anexo, de um momento importante da sua comissão na Guiné e que é, precisamente, o fim dela (comissão). Os rapazinhos estão de malas feitas e vão para a peluda. Foram a Nhala despedir-se e atazanar os periquitos locais.  Podem reconhecer-se também nas fotos o nosso poeta de Mampatá, José Manuel Lopes [, Josema,] e o Alfero Carlos Farinha, todos nossos Grã-Tabanqueiros. (...)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18251: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (47): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (2)

Paisagem duriense, Património da Humanidade


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.
Aqui deixamos a segunda parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

47 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (2)


A razão de um nome… 
Porquê Pedro Milanos?

Por José Manuel Lopes 

PEDRO MILANOS é o anagrama de ARMINDO LOPES, o autor do poema que estava nos contra rótulos. (Ambos os nomes têm as mesmas letras, só que por ordem diferente).
Por trás de um nome está sempre uma história e esta é a de um homem que viveu sempre apaixonado pela sua região. No fim da década cinquenta, passava na tv um programa sobre as 7 maravilhas do mundo… 
Com cerca de 8 anos a grandeza de tais obras me deixaram encantado, particularmente as Pirâmides do Egipto e perguntei a meu pai: 
- Qual das sete maravilhas é a de Portugal? 
- Nenhuma. 
- Pois, nós somos um País muito pobre! 
- Achas!? Anda daí comigo. 

Subimos ao mirante da casa, abriu a janela e disse. 
- Que vês rapaz? 
- Vejo montes. 
- E nos montes o que é que há? 
- Vinhas. 
- E as vinhas são feitas de quê? 
-Videiras e folhas. 
- E essas videiras estão onde? 
- Na terra. 
- E a terra como está segura? 
- Bem!?...não sei como. 
- Pelos muros de pedra meu filho. Consegues contar todos os que vês? 
- Não, eles são tantos. 
- Agora imagina, quantos não haverá pelo Douro fora… Todos juntos, são uma obra muito maior que as Pirâmides do Egipto. Passam é despercebidos. 

E foram passando, até que um dia em 2001, dez anos depois da morte de meu pai, recebo a notícia pela TV de que o Douro, as suas vinhas e os seus muros, passavam a ser Património da Humanidade. 
Como ele teria adorado ter tido conhecimento disso! 

Decidi dar o nome de Pedro Milanos ao primeiro vinho feito pelo meu filho Vasco, que é enólogo e neto de Armindo Lopes.

Um brinde de camaradas ex-Combatentes da Guiné, com Reserva Pedro Milanos, na Tabanca de Matosinhos. 

************

 (Outros poemas do Zé Manel) 

Heróis que a história não narra 

Por José Manuel Lopes

“Quinze dias após a nossa chegada à Guiné estávamos em Bolama a fazer o treino operacional (IAO) que duraria cerca de um mês, após o que partiríamos para o Sul da Guiné, Mampatá Forreá que seria o nosso lar nos próximos 2 anos. 
Naquele dia, fazia-se fogo real com o dilagrama e foram escolhidos os soldados para utilizar esse tipo de arma. O Instrutor do Batalão, onde fomos anexados pontualmente, que era o Alferes Figueiredo, estava a ensinar o instruendo,o Soldado António Mata da minha Companhia. 
Após o Mata ter retirado a cavilha da granada defensiva, a alavanca desta saltou imediatamente, pois a anilha de segurança tinha caído e ninguém se apercebeu disso. Instintivamente o Alferes deitou as mãos à granada que menos de 4 segundos depois lhe rebentou nas mãos. Ambos foram atingidos em cheio tendo morte imediata. Os seus corpos receberam a grande maioria dos estilhaços e protegeram todos que à volta assistiam ao lançamento do dilagrama. Houve alguns atingidos por um ou outro estilhaço, mas sem gravidade. 
O Mata era casado. A mulher quando se despediu dele já estava grávida. Meses depois nasceu uma menina que nunca conheceu o Pai, nem por foto, pois a mãe casou novamente pouco tempo depois.

Trinta anos passados, fomos à procura daquela jovem emigrante em Paris. Tal como o vínhamos fazendo com outros camaradas mortos, colocando no túmulo uma placa com um poema dos meus, queríamos fazer uma homenagem ao António Mata, sepultado em Pinhel. 
Fomos lá no verão, quando a mãe estava cá de férias. Porém, a filha ficara em Paris e sem qualquer interesse em vir a Portugal. E contacto telefónico com ela, a partir de Pinhel, ela manifestou-se sensibilizada com a nossa atitude mas confessou que não possuía qualquer ligação com o seu pai, de quem nem foto conhecia. 
Viemos a saber que o padrasto não permitiu nunca essa ligação. Manifestámos-lhe a nossa intenção na homenagem e prontificámo-nos a pagar-lhe a viagem, se necessário. 
Efectivamente, a filha do Mata acabou por aceder ao nosso desejo. Veio cá, assistiu à homenagem e viu colocarmos a placa de mármore, sobre a campa do seu pai, onde se destacava a sua foto de Combatente a encimar um poema. 
Sensibilizada com a nossa atitude, recebemos a sua emocionante mensagem: 
- “Nunca conheci meu pai, vosso camarada, mas hoje pelo menos, tive um pai em cada um devocês. Muito obrigado." 
Presentes nessa homenagem estiveram cerca de 12 elementos dos Unidos de Mampatá (Cart 6250).

Gostava de vos falar 
dos esquecidos 
dos heróis que a história 
não narra 
que as viúvas choraram 
mas já não recordam 
daqueles 
que nem tempo tiveram 
para ter filhos 
que os amassem 
descendentes 
que os lembrassem 
daqueles que nunca 
tiveram o dia do pai 
vítimas de guerras 
que não inventaram 
em tempo que já lá vai 
falar deles é prevenir 
se bem que de nada 
lhes valha 
de guerras que possam vir 
geradas pela ambição 
dos 
que nunca morrerão 
num campo de batalha."

Assistência aos feridos 
 
Puseste o pé em sítio errado

Por José Manuel Lopes

“Março de 1973. A construção da estrada alcatroada havia começado em Aldeia Formosa, 7 Km depois atravessava Mampatá e seguia na direcção da Fonte de Iroel, como uma gigantesca jibóia negra lá ia até Colibuia, seguindo paraNhacobá e um dia havia de chegar ao Cumbijã. Era como uma faca encravada nas zonas até ai controladas pelo PAIGC, atravessava o corredor de Uane, virava para Sul ao Cumbijã e facilitaria o controlo pelas nossas tropas de toda aquela área. 

A todo o custo o PAIGC tentava evitar a sua progressão e para tal plantavam minas por todo o lado a fim de destruir viaturas e máquinas de desaterro que trabalhavam na abertura da estrada. Logo ai o trabalho para detectar as minas era importantíssimo. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente dos trabalhos e depois fazia-se a segurança à engenharia e aos operadores das máquinas. O trabalho dos Furriéis de Minas e Armadilhas era importantíssimo e o Vilas Boas distinguiu-se nisso. Perdi a conta às minas que ele levantou. 

Um dia na rotina habitual os picadores da frente gritam:mina!. Todos param. O Albuquerque repete a mensagem (mina!) e dá um passo atrás. Pisou uma mina antipessoal.

Puseste o pé em sítio errado 
um som violento, o pó levantado 
escondeu por algum tempo 
o teu corpo violentado 
sem pensar em outras minas 
correram em teu socorro 
o sangue fugia do teu corpo 
e o "hélio" não chegava 
 tua cara, ainda de criança 
ficava cada vez mais pálida 
tudo num silêncio angustiado 
Apesar dos teus vinte anos a 
vida fugia-te em golfadas 
porquê tanto sangue derramado?”

Minas 

Parece inofensiva a maldita 

Por José Manuel Lopes

“Desde o início da construção da estrada que as picagens se tornaram um cenário diário e hoje mesmo me surpreendo, como só tivemos uma vítima nesse trabalho perigoso que se tornou numa rotina. Só um trabalho muito responsável e competente dos picadores e dos Furriéis de Minas e Armadilhas explica tudo isso. Grande Vilas Boas e Fernandes! 

"Estradas amarelas corpos 
cobertos de pó 
pica na mão à procura delas 
o polegar ferrado num pau 
tac,tac,tac,tac,tac,tac 
tacteando por sons diferentes 
o Fernandes com cara de mau 
espeta no solo 
o ferrão da pica 
tac,tac,tac,tac,tac,toc... 
o calafrio... 
depois o grito 
anunciando o perigo 
o grupo é mandado parar 
chega o Vilas à frente 
e todos manda afastar 
de joelhos no chão 
numa simulada carícia 
afasta a terra com a mão 
com gestos simples e perícia 
vai cavando devagar 
ei-la... está aqui 
parece inofensiva a maldita 
deita-lhe a mão e grita 
és minha, já te tenho 
tira-lhe o detonador 
e entre dentes diz... 
esta não 
esta não causará dor.”


Cheira a emboscada

Por José Manuel Lopes

"Em fila indiana 
vai o grupo pela picada 
um silêncio pesado 
de natureza estranha 
deixa os sentidos alerta 
cheira... a emboscada 
aos primeiros tiros 
todos caem no chão 
há avisos e gritos 
e reina o palavrão 
responde-se de pronto 
com a arma na mão 
subitamente, de lá 
as armas se calam 
enquanto por cá 
elas ainda falam 
e eis que 
o silêncio volta 
e chega a segurança 
regressa a confiança 
olha-se em volta 
há um corpo caído 
que não grita nem mexe 
se adivinha razão 
engole-se em seco 
se desvia o olhar 
se esconde a emoção."

************

Não pode haver melhor prenda 

Por José Manuel Lopes

 
Em dia de correio, o grupo de serviço ia levantá-lo à Aldeia Formosa. Uma secção montava-se num Unimog, lá ia em busca das boas novas, aproveitando para levar as cartas que os militares escreviam aos familiares e madrinhas de guerra. 

Eu raramente escrevia. A minha mãe queixou-se disso na primeira vez que vim de férias. Eu dizia-lhe que pouco havia para contar e que não se preocupasse, pois no nosso caso, a falta de notícias era a melhor das notícias, se algo corresse mal, a má nova chegava rápido. 
Havia um Furriel já casado que todos os dias escrevia à mulher e numerava as cartas. Quando após o almoço passava junto à tabanca dele, lá estava o Santos sentado a escrever. Eu perguntava: 
- Oh Santos quantos dias já levamos disto? 
Ele olhava para a parte superior da primeira folha da carta e dizia: 
-184, não falha. 

Quando o correio chegava, ele recebia 7,8,10 cartas, pois a mulher também lhe escrevia todos os dias, mas nós não recebíamos o correio com muita regularidade. 

Um dia foi a minha vez de ir buscar o correio a Aldeia Formosa e fiz uma maldade. Retirei do saco todas as cartas endereçadas ao Santos e guardei-as no bolso lateral das calças. 
Ainda hoje recordo o olhar angustiado daquele Furriel a assistir à distribuição do correio. Entretanto, eu já tinha passado pela tabanca dele e deixado 6 cartas em cima da cama. Depois, assisti ao caminhar pesaroso do Santos, da cantina até à sua tabanca. 

De seguida, ouve-se um grito de surpresa. Ele sai e diz: 
- AH SEU FILHO DUMA PUTA, ISSO NÃO SE FAZ!... NA PRÓXIMA, DOU-TE UM TIRO NOS CORNOS!"

"Um ruído vem do céu 
e há cabeças no ar é que 
é dia de correio 
há novas para chegar 
faz-se a distribuição 
com chamada frente ao bar 
para o Santos, nada veio! 
será que vai desmaiar? 
p'ró Zé Manel veio a Bola 
com notícias do Benfica 
p'ró Nelson uma encomenda 
e há quem lhe mande uma dica 
fazendo-se para a merenda 
sim, de correio foi o dia 
não pode haver melhor prenda 
é tempo de alegria 
retiram-se os felizardos 
procuram privacidade 
relêem a mesma carta 
até afogar a saudade." 

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Ao Santos de Leça 

 "Um dia nunca passava 
sem que escrevesse uma carta 
à mulher que tanto amava 
como se fosse promessa 
e todas elas numeradas 
como que a testemunharem 
a grande paixão do Leça"

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Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)


Quinta da Senhora da Graça (a cerca de 3km da cidade do Peso da Régua e 4km de Santa Marta de Penaguião, em pleno Douro Património da Humanidade). Desde 1994, aqui se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.

Aqui deixamos a primeira parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

46 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (1)

Tive o prazer de conhecer o Zé Manel numa patuscada, em casa do “Mano Novo” (António Carvalho), Presidente “vitalício” de Medas – Gondomar.

Este, havia-me convidado, depois de termos estado juntos, pela primeira vez, numa “lampreiada” em casa de seu “Mano Velho” (Manuel Carvalho).

Logo ali, verifiquei que o Zé Manel era um camarada bem conhecido dos demais e que gozava de grande simpatia. Além disso, era notória uma relação especial com o António Carvalho, fruto do “convívio forçado” de mais de 2 anos, na guerra da Guiné.


Com a minha aproximação aos convívios dos grupos de ex-combatentes, passei a encontrar amiúde o Zé Manel. Daí, ter passado a conhecer/observar o seu passado, os seus poemas e as suas histórias. 


Joaquim Peixoto e José Teixeira brincam com o Zé Manel na Tabanca de Matosinhos

Nasceu no Peso da Régua (Nov 1950), onde frequentou a Escola Primária e o Colégio da Régua até ao 5.º ano. Fez 6.º e 7.º ano no Liceu de Lamego e depois seguiu para o INEF, no Porto. Zangado com os chumbos que ali conseguira, foi a Lamego oferecer-se como voluntário, para o Serviço Militar.
Meio ano depois, foi chamado para as Caldas da Rainha, onde fez a recruta. Seguiu para Tavira, especializar-se em Armas Pesadas. Ainda foi prestar provas aos “Rangers”, mas não ficou lá. Lesionou-se…

Seguiu para Elvas, para dar recrutas. Ali, apanhou uma “porrada” e teve que ir para os Açores. Quatro dias depois de lá chegar, e já com 20 meses de tropa, recebeu notificação para se apresentar no RAP 2, em V. N. de Gaia.

Quando foi gozar os 12 dias de licença antes do embarque, informou os pais de que estava mobilizado para a Guiné. Por essa altura, vivia-se na Régua um ambiente bastante pesado. Precisamente na Guiné, havia falecido o Valdemar, o “Quarenta”, que ficara sem uma perna e o José António encontrava-se prisioneiro. Eram três jovens bem conhecidos na Régua.

Uns anos antes, um vizinho havia escapado da tropa por intermédio de um médico de Viseu, quando da sua Inspecção Médica em Vila Real. Atestou-lhe uma doença rara. Consta-se que este favor foi sendo pago em cabritos, durante vários anos, até à morte do avô do rapaz. Diga-se de passagem, que este procedimento não é bem aceite entre os transmontanos. É que, normalmente, ele identificava uma atitude de medricas, de cobardia ou de falta de patriotismo.

Alguns dias depois, o Zé Manel apercebeu-se de que os seus pais tinham discutido. Coisa raríssima entre eles. Veio a saber que a mãe,  preocupada, havia procurado esses bons conhecimentos para salvar o filho de ir para a Guiné. E que tinha ido ter com um médico que a informara de que já era tarde para evitar a sua mobilização.
- Zé Manel, amanhã vamos a Lisboa. Vamos visitar a tua tia, para te despedires dela. Ela sempre te acarinhou, apesar de não teres querido ficar junto dela, logo de menino. És quase o filho que ela nunca teve.

Fizeram a viagem, quase sempre calados. O ambiente pesado em que se vivia não era nada favorável para conversas. Saídos do comboio em Santa Apolónia, seguiram de táxi com rumo a Alvalade, onde vivia a tia. Mas, quando o táxi parou no largo do Rato, o pai do Zé Manel informou-o:
- Vamos aqui entregar o envelope que o Doutor Marques deu à tua mãe. Ele disse que já era tarde para te desmobilizar mas que este General te pode arranjar um impedimento em Bissau, para não correres perigo.

Meio atordoado pela surpresa, o Zé Manel perguntou:
- Mas eu pedi-lhes alguma coisa?
- Ó rapaz, sabes bem que o teu pai é contra estas coisas de cunhas e de fugas aos deveres de cada um. Mas a tua mãe não sossegou sem me obrigar a isto. É verdade que queremos o melhor para ti… mas tu é que sabes o que queres.
- Ó pai, mostra cá isso. - disse o Zé Manel.

Estendeu a mão, agarrou no envelope da mão do pai e, sem o abrir, dobrou-o e meteu-o no bolso interior do casaco do pai.
- Olha, vamos embora e a mãe não precisa de saber nada disto.
- Meu filho, não imaginas a alegria que me estás a dar. - Aproximou-se, abraçou-o e beijou-o. Coisa de que o Zé Manel já não se lembrava.

Depois de visitarem a tia, voltaram para a estação de Santa Apolónia, mas, desta vez, no comboio, conversaram como nunca durante toda a viagem.

O avião que transportou a CART 6250, “Os Unidos”, chegou a Bissau ao meio da manhã de 27 de Junho de 1972. À espera do Zé Manel estava o seu amigo guineense Vasco, que com ele estudara na Régua e jogara futebol. Nessa altura estudava na Faculdade do Porto e se encontrava ali de férias.
Foi uma noitada “à maneira”. Já era alta madrugada quando o Vasco deixou o Zé Manel no Quartel dos Adidos, num estado bastante entorpecido. Sem cama, nem tino para a procurar, tirou o blusão para servir de travesseiro, descalçou-se e deitou-se no chão,vindo a rodar para debaixo de um beliche.
Quando acordou, a meio da manhã estava só, sem sacos da viagem, sem boina e sem sapatos. Mal apareceu na parada, ouviu gargalhadas e apupos ao “periquito” desorientado. Dirigiu-se então para o Oficial de Dia dessa unidade, perguntando pela sua CART 6250.
- Ó Furriel, você está fodido. A sua Companhia já está em Bolama e você ainda aqui. Venha comigo, vou arranjar-lhe uns sapatos e vamos ali à Força Aérea a ver se se arranja uma boleia.

Curioso foi que, quando lá chegou logo encontrou o Mesquita, Furriel da Força Aérea, seu vizinho reguense e ex-colega no clube de futebol, que o “meteu” num Dornier que ia levantar voo para Bolama, com a distribuição do correio.

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A CART 6250 fez o IAO em Bolama antes de seguir para Mampatá.


O amigo António Carvalho, bem conhecido por Dôtô Carvalho 

No IAO desenvolvido em Bolama, aconteceram duas mortes. A CART 6250 foi integrada, pontualmente, no Batalhão de Artilharia 6520, em que o seu Alferes Figueiredo, de Operações Especiais, chefiava a instrução de uso dos Dilagramas em combate. Naquele momento, era o soldado Mata, da CART 6250 que ia fazer fogo real com dilagrama. Tirou a cavilha da granada, mas como o anel de segurança se tinha soltado, a alavanca saltou logo.

O Alferes, apercebendo-se disso, num impulso de suicídio heróico, aproximou-se e agarrou a granada com as duas mãos, cobrindo a explosão e protegendo os outros militares presentes. Faleceram ambos.

Isto aconteceu no 13.º dia de Guiné. Terminara a sua missão o Soldado António Mata, de Pinhel, que estava emigrado em França. Saíra de lá recém-casado e com a mulher grávida, para cumprir o seu dever militar e de patriota.

Quando falávamos deste episódio, o Zé Manel confessou-me:
- Foi dos momentos mais difíceis e mais marcantes que vi na guerra. O Carvalho pediu para o ajudar a limpar os corpos despedaçados, a fim de os meter nos caixões. Ninguém o ajudou. Eu até me afastei porque nem a ele conseguia olhar. É que ele chorava copiosamente, enquanto ia fazendo o serviço sozinho e as suas lágrimas iam caindo sobre os corpos mutilados.

Nesta parte da narrativa e após uma sentida pausa, o Zé Manel acrescentou:
- O Carvalho foi a pessoa que mais admirei durante a tropa. Não imaginas o trabalho dedicado que desenvolvia a curar e a apoiar as pessoas doentes e carenciadas. Ele queria atender toda a gente e não tinha medicamentos nem condições para isso. Então inventava. Partia os comprimidos e distribuía-os àqueles que não largavam a Enfermaria.
- Olha que aquela história que se conta sobre o facto de a sua equipa de enfermeiros, colarem o comprimido na testa com um adesivo, é verdadeira. Diziam que, assim, o comprimido fazia efeito durante uma semana…

Devido a essa carência, o Carvalho [ fur mil enfermeiro,] deslocava-se amiúde a outros quartéis e destacamentos para arranjar mais medicamentos.


O Zé Manel e o António Carvalho mantêm a sua grande amizade desde os tempos de Mampatá (1972-74).

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Os piores momentos de combate foram vividos nas emboscadas no percurso onde se estava a abrir a estrada de Aldeia Formosa para Nhacubá e Cumbijã. A zona era perigosa mas, segundo os camaradas que foram substituídos, se se evitasse o embate com IN, este também não chateava muito.


Despojos de guerra 

Por José Manuel Lopes 

“Após um contacto com o IN, regressámos a Colibuia e depois, de Berlietaté Mampatá, com muito material que o PAIGC abandonou no terreno. Fiquei surpreendido com a quantidade de material escolar que ficou espalhado pela picada.


Eu trouxe alguns livros e cadernos (que despertaram imenso a minha curiosidade), além de uma Kalash, uma pistola, um cantil e uma faca de mato. O Gomes, do pelotão de nativos é o 1.º da foto, depois o Amadu, que está carregado com roupa e umas botas que tirou a um guerrilheiro abatido. Do lado direito, um soldado com um ferimento na mão direita, já tratado pelos nossos competentes enfermeiros. 

Quando chamei a atenção do Amadu, que não devia ter tirado as botas ao guerrilheiro IN, o Amadu respondeu-me: 
- Oh Furriel, ele já não precisa mais delas e estas botas de couro são muito melhores do que aquelas que a tropa me deu. 

 Fiquei sem argumentos e limitei-me a encolher os ombros". 


A Fonte de Iroel era local de inspiração poética do Zé Manel 

Normalmente, o Zé Manel não se embebedava. Era muito solidário. Chegava a fazer serviços e operações no lugar de outros camaradas. Nos tempos mais livres, procurava ajudar o Furriel Simões no ensino escolar, convivia com os jovens no desporto e gostava muito de se envolver nos contactos com a população indígena.

Conta o amigo Carvalho que após uma Operação, em que foram mortos dois guerrilheiros do PAIGC, o Zé Manel teve uma crise emocional. Foi ter com ele à Enfermaria, abraçou-me a chorar, enquanto balbuciava:
- Já imaginaste o que os seus familiares vão sentir dentro de dias? É o mesmo que se passaria com os nossos. Meu Deus, para quê esta guerra!?
Já depois do 25 de Abril, o Zé Manel relacionou-se bem com a malta do PAIGC 

O Zé Manel regressou da Guiné em 28 de Agosto de 1974. Do Porto, seguiu de táxi para Esmoriz, onde os pais estavam de férias. Ali, esteve poucos dias. Queria ir para a Régua. Encontrou lá o avô, já com dificuldade de visão. Ele reconheceu o neto pela voz e pelo abraço que lhe deu.
- Calha bem, rapaz, és tu que ficas já com a minha melhor arma de caça. Toda a família a quer, mas eu quero que fique para ti.
- Desculpe, avô, mas não a posso aceitar. Fiz uma jura em como não pegaria em mais nenhuma arma. Só quero paz e recuperar a normalidade.
- Ó rapaz, estou a ver que a coisa foi mesmo má. Alegra-te, cumpriste o teu dever e já passou tudo. Dá cá mais um abraço.

Emocionado, o Zé Manel, lembrou-se de prometer:
- Avô, hei-de recuperar a Quinta da Senhora da Graça. Vou reconstruir a casa que ardeu (em 1952), custe o que custar. Vai ser esse o maior objectivo da minha vida.
- Deus te ajude,  rapaz. Não calculas a alegria que me dás.

O Zé Manel não imaginava o dinheiro que o pai amealhara com as suas transferências. Ainda pensou fazer como era hábito: comprar um carro. Pôs-se a pensar na oportunidade única de conhecer o Mundo, especialmente a Europa. Foi à estação da Régua e informou-se de um programa chamado InterRail Passes que lhe proporcionaria as viagens internacionais que desejava. Queria avançar já, mas a mãe chamou-o à atenção de que ele não passara o Natal em casa, nos últimos dois anos. Então, ele prometeu que só sairia depois do Natal.

Saiu da Régua em 28 de Dezembro de 74. Correu a Europa por onde lhe foi possível. Claro que não pode passar a cortina de ferro. Seis meses depois, encontrava-se na Suíça,  “teso como um carapau”, a pedir trabalho para ganhar para comer e para a viagem de regresso. E foi no Jardim Zoológico de Zurique que se desenrascou.

No regresso, parou em San Sebastian. Subiu ao Monte Igueldo, olhou para a Baía de la Concha e ficou fascinado ao ver três indivíduos de pé sobre umas pranchas de fibra e agarrados a uma vela, que deslizavam sobre as águas com grande destreza e velocidade, entre a praia e a Isla de Santa Clara. Foi o primeiro contacto com essa nova modalidade desportiva, o Windsurf. Abeirou-se deles e manifestou-lhes interesse em comprar uma das pranchas. Eram dois ingleses e um brasileiro. Funcionavam ali como instrutores de novos aderentes, acharam graça à pretensão do Zé Manel, a quem informaram ser preciso aprender primeiro.

Como costumavam deixar lá as pranchas, o Zé Manel aventurou-se a aprender sozinho, durante o início das manhãs, enquanto os instrutores não chegavam. Uns dias depois, verificou que as pranchas estavam à venda, porque os surfistas se iam embora. Afixaram lá o preço em Libras para cada uma. O Zé Manel ofereceu 500 Pesetas. Não tinha possibilidades para pagar mais, mas eles não lhe ligaram. Porém, venderam logo as primeiras, mas demoravam a vender a última. Como tinham que abalar, acabaram por entregar a prancha ao transmontano da Régua pelas tais 500 Pesetas. Despachou a prancha em Vitória e veio a recebê-la na Régua, onde já havia chegado em finais de Outubro de 1975.

Em pouco tempo, o Clube de Caça e Pesca da Régua tornou-se no clube mais activo do norte na promoção da Vela. A escola, sob a orientação e dinamismo do Zé Manel, chegou a funcionar com cerca de 80 entusiastas jovens velejadores.

Hoje, tal como prometera ao seu avô, e graças à grande colaboração de sua mulher Luísa e apoio técnico de seu filho, ocupa e explora a lindíssima Quinta da Senhora. da Graça, desde 1994, Ali se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16926: Inquérito 'on line' (97): Nas primeiras 80 respostas, 55% dos respondentes considera, sem reservas, que poderia ser hoje amigo do inimigo de ontem... O prazo termina na 2ª feira, dia 9, às 18h36...Falta pouco para chegarmos às 100 respostas...


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974, entre Maio e Junho, tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC com vista ao cessar-fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa). Nesta foto, vemos o camarada, amigo, ex-fur mil José Manuel Lopes (o poeta Josema) com um guerrilheiro do PAIGC. Mais difícil foi, de facto,  a aproximação entre o PAIGC e os militares guineenses que estavam do lado das NT, como foi o caso dos Comandos Africanos.

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



I. INQUÉRITO DE OPINIÃO:

"O MEU INIMIGO DE ONTEM

NUNCA PODERÁ VIR A SER MEU AMIGO" (**)




Nº de respostas (provisórias), às 15h de hoje = 80



1. Não, nunca poderá vir a ser meu amigo  > 11 (13%)

2. Sim, poderá vir a ser meu amigo  > 44 (55%)



3. Talvez, depende das circunstâncias  > 21 (26%)


4. Não sei responder  > 4 (5%)



Total de respostas > 80 (100%)


Prazo de resposta termina dia 9, 2ª feira, às 18h36

II. Comentários:
 

(i) José Marcelino Martins (*)

Esta pode ser uma "oportunidade" para redimir alguns excessos praticados, quer de um lado quer do outro, apesar de ser só por colocação de um "x". Porém, para muitos chegará.



(ii) António José Pereira da Costa (**)

(...) Não estive na descolonização, mas aquela de "andemos à porrada, mas agora semos todos uns gajos do baril" não me seduz. Claro que o fenómeno é complexo. Eles começaram por ser portugueses dissidentes a quem outros portugueses tinham de subjugar. Por razões exógenas acabou não com uma vitória/rendição, mas isso não quer dizer que caiamos nos braços uns dos outros. Tenho para mim, sem hipótese de prova, que eles simularam uma "amizade" que não sentiam e nós tomámos a atitude do "nacional-porreirismo" habitual dos portugueses. Claro que o denominador comum disto era o fascismo e o colonialismo de segunda categoria do regime político que dominava o país aquém e além mar. 

Mas acho que o PAIGC conseguiu o que queria e, caído o fascismo, nós todos metropolitanos queríamos regressar são e salvos. Há ainda os guineenses que eram portugueses e deixaram de o ser e esses não creio que alguma vez tenham sido abraçados pelos guerrilheiros. Isto diz de um certo ódio larvar que felizmente não se cevou em nós. Poderia ter acontecido e sabemos bem as "confusões" que se sucederam no momento em que os colonialistas saíram e as gloriosas hostes dos guerrilheiros tomaram o poder. Na Guiné, talvez nem tanto, mas em Angola houve problemas sérios...

Creio que a receita para o relacionamento das NT com o PAIGC é aquela que o Torcato Mendonça e o Vinhal defendem. De outra forma há um desrespeito por quem "ficou" no terreno. (...)

(iii) Henrique Cerqueira (***)

(...) Eu tive a oportunidade de apertar a mão do inimigo no seu próprio ambiente.Já documentei num poste deste blogue incluindo fotos.Senti nessa altura grande alegria pelo momento. No entanto o principal sentimento era o da confirmação que a guerra estava no fim e que de certeza iria voltar para a minha terra na Metrópole.

Quanto a amizade ,seria completamente impossível.Até porque a amizade se constrói e não se adquire no momento. Depois há ainda o facto de não esquecer o que os nossos inimigos fizeram posteriormente com os combatentes que lutavam do nosso lado e que por necessidade,obrigação ou devoção acreditavam que estavam a combater do lado certo.

Carlos Vinhal ainda bem que levantaste a questão,poderá assim acontecer que caiam aqui alguns falsos "amiguinhos" do Inimigo e que ás vezes se dedicam ás caridadezinhas,enquanto os responsáveis do governo Guineense vivem como uns nababos ricos e gordos pior que colonialistas de outrora.
Eu tenho o maior desejo que o povo da Guiné consiga ser feliz,no mínimo como me sinto no meu país livre e democrático. Mas jamais seria amigo de antigos combatentes que lutaram contra mim mesmo reconhecendo que era essa a sua obrigação pelos ideais e interesses que nutriam pela sua(?) Guiné,a interrogação é que ainda hoje a Guiné é sua(dos Guineenses) (...)


(iv) João Sacôto (***)

Camaradas:

Não esqueçam nunca os nossos heróicos camaradas guineenses que ao nosso lado bravamente combateram, muitos caíram em combate, para defender a sua terra das influencias estrangeiras (Chinesas, Cubanas e Soviéticas), como foram o meu amigo João Bakar Jaló, o Domingos Demba Djassi, Queba Sambu, Marcelino (felizmente vivo e na nossa companhia) e tantos outros.

O PAICG prometeu tratá-los com humanidade. Portugal acreditou, pagou-lhes seis meses de ordenado e pediu-lhes que entregassem as armas. Ainda que renitentes, os 27 mil militares guineenses do Exército português aceitaram. Mal as autoridades portuguesas abandonaram o país, logo o novo poder executou os primeiros.. Mortes reconhecidas na sinceridade das certidões de óbito: “faleceu por fuzilamento”, diziam. As autoridades guineenses pós-Luís Cabral falam em 500 mortos. O jornal “Nô Pintcha” chegou a publicar uma lista de nomes. Mas os sobreviventes calculam que pelo menos um milhar terá comparecido diante do pelotão de fuzilamento - alguns em aeroportos e campos de futebol, diante das populações.  (Isto, a nossa geração, não pode perdoar.) (...)


(***) Vd. poste de 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16908: (In)citações (104): Inimigos de ontem, amigos de hoje? (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil da CART 2732)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16854: O nosso querido mês de Natal de 2016 e Ano Novo de 2017 (8): António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá, Mampatá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, "Os Unidos de Mampatá" (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento...  A esquerda o heliporto. Era uma tabanca fula, ,logo muçulmana.

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados.  /Edição e legenbdagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Um Natal Feliz

Para todos os meus amigos 
e para todas as pessoas do mundo. 
Mesmo para aqueles 
para quem o Menino Jesus 
não é Deus feito homem. 

É que eu tenho amigos das mais diversas religiões, 
nomeadamente amigos Muçulmanos, 
e não quero ferir a susceptibilidade religiosa de nenhum deles. 

Na verdade, ninguém tem que acreditar que Jesus é Deus, 
essa é uma crença dos Cristãos. 
Facto historicamente provado 
é que Jesus anunciou uma nova religião 
em dissidência com o Judaísmo, 
e mais está provado que Jesus difundiu uma doutrina 
baseada no bem, na bondade e no perdão absoluto 
e isso, se não o deifica, no mínimo, confere-lhe heroicidade. 

Pois, no dia em que se comemora o nascimento de Jesus, 
meditemos todos no que podemos contribuir 
para que a paz tome o lugar 
nos estúpidos conflitos 
que grassam no mundo.

António Carvalho 
[ex-Fur Mil Enf.
CART 6250/72, Os Unidos de Mampatá,
Mampatá, 1972/74; 
é natural de (e vive em) Gondomar]
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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16667: (Ex)citações (321): Os Refractários, os Objectores de Consciência e os Desertores (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72)

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com o seu ponto de vista em relação a quem de algum modo se furtou à ida para a guerra do ultramar:


Os Refractários, os Objectores de Consciência e os Desertores 


A guerra que Portugal enfrentou nos territórios ultramarinos, durante quase toda a década de sessenta e metade da década seguinte, condicionou a vida de largas centenas de milhares de jovens portugueses que tiveram que interromper o curso normal das suas vidas para, ao serviço da Pátria ou de uma doutrina forjada pelos donos da Pátria, combaterem as insubmissões dos povos das nossas colónias africanas.

Não foi uma tarefa fácil, nem de efeitos inócuos esta guerra imposta aos jovens desses tempos, hoje alquebrados sob o peso dos sacrifícios físicos e pelas feridas do corpo e da alma que de lá trouxeram. Não admira, por isso, que muitos fossem os que, atempadamente, (fala-se em 200.000) ainda antes de darem o nome ou antes da inspecção, tivessem atravessado fronteiras para se evadirem ao cumprimento do serviço militar que, quase sempre, correspondia ao embarque para uma das três frentes de guerra. Eram os chamados refractários.

Outros, (talvez 8000) já no decurso do serviço militar, antes do embarque ou já depois de provarem alguns meses de guerra, repudiavam aquela vida e, na primeira oportunidade, lá iam eles, para qualquer país onde encontrassem guarida. Eram os desertores.

Havia ainda os objectores de consciência cujas ideias religiosas ou filosóficas os impediam de combater.

Numa malha mais fina, havia também os que, com a protecção de gente poderosa, “arranjaram” doenças para sair do mato e ficar internados durante mais ou menos meses até à desmobilização definitiva.

 O meu propósito não é julgar nenhum deles. Não devo nem posso fazê-lo. Porquê? Julgar os outros não é tarefa fácil, muito menos quando eles não estão presentes para se defenderem. Menos ainda quando eu, se tivesse tido oportunidade, também me teria eximido ao cumprimento da minha comissão na Guiné. 

Na hora da última formatura, no quartel de V. N. de Gaia, antes da partida para Lisboa, faltava um alferes que nunca mais apareceu, mais tarde, ainda antes de meio ano de comissão, outro alferes aproveitou a vinda de férias para não mais voltar ao mato. Não os nomeio por uma questão de respeitar o seu bom nome, porque eles fizeram o que entenderam ser a melhor opção e eu bem gostava de os reencontrar para lhes dar um abraço.

Esta minha confissão perante os meus camaradas do Blogue Luís Graça servirá para ajudar a sair do limbo aqueles camaradas que têm algum rebuço em aparecer no nosso meio. Eles tomaram a atitude que julgaram correcta para se libertarem daquele ambiente de sofrimento. Eu só não o fiz porque não pude.

MEDAS: 2016/10/30
Carvalho de Mampatá
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16620: (Ex)citações (320): Fiquei triste e revoltado com a imagem da piscina do QG de Bissau, parecia um SPA!... Era uma afronta para estava no mato (Armandino Oliveira, ex-fur mil, CCS / BCAV 1897, Mansoa, Mansabá e Olossato (1966/68; vive no Brasil há 40 anos)

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16057: In Memoriam (257): José Eduardo dos Santos Alves, o "Leça" (1950-2016), ex-sold cond auto, CART 6250, Mampatá (1972/74): homenagem da Tabanca Grande


José Eduardo dos Santos Alves, o "Leça" (1950-2016)
Sold Cond Auto, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, 1972/74 (*)


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de junho de 2009 >  Aspeto parcial dos participantes no encontro que totalizou cerca de centena e meia de presenças


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de junho de 2009 > A Maria da Conceição Alves, à esquerda, assinalada com um rectângulo a amarelo; a seu lado, a Isaura Resende (esposa do nosso camarada Manuel Resende) e a Lígia Guimarães (esposa do David Guimarães), e por detrás desta a Cyndia, a neta do Valentim Oliveira,


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de junho de 2009 > Dois casais idos de Leça da Palmeira, da esquerda para a direita: o José Eduardo Alves, a esposa Maria da Conceição, e depois a Elisabete e o marido Ribeiro Agostinho.

Fotos (e legendas): © Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné  (2009). Todos os direitos reservados


Tabanca de Matosinhos > Almoço de 4ª feira > 23 de abril de 2009 > O casal Alves, a Conceição e José ("Leça") que ainda recentemente foram e voltaram à Guiné de carro; ao lado, à esquerda, o nosso autarca de serviço.. o Carvalho de Mampatá.

Foto (e legenda): © Blogue da Tabanca de Matosinhos  (2009). Todos os direitos reservados


1. Deixou, há dias, a "terra da alegria" (como diria o poeta Ruy Belo) o nosso camarada José Eduardo Alves (1950-2016), também conhecido pela sua alcunha da tropa, o "Leça". Nasceu em Cabeceiras de Basto e morreu em Leça da Palmeira, Matosinhos, para onde veio com 12 anos para marçano. Deixa viúva a nossa amiga Maria da Conceição. Tinha ainda um filho, que vive na Suíça.  

Deixou-nos a todos, tristes e inconsolados. Morreu cedo demais, já que, sendo um camarada e amigo da Guiné, ele merecia tudo, ou seja, muita saúde e longa vida. No momento da partida (derradeira), cabe-nos lembrar e honrar o homem bom, simples e solidário que ele foi, amigo do seu amigo, camarada do seu camarada. A Tabanca de Matosinhos, a nossa Tabanca Grande e os "Unidos de Mampatá", a antiga CART 6250, perdem um bravo soldado, um dos melhores de todos nós.

Na singela homenagem que lhe quisemos fazer, juntamos aqui alguns fotos mais antigas, alguns comentários de camaradas que o conhecerem melhor e ainda um pequeno texto que ele escreveu em tempos para o blogue, mostrando todo o seu amor à Guiné e ao seu povo.

O "Leça" ficará sempre connosco, na nossa memória, no nosso blogue, enquanto a gente por cá andar e tiver ganas de continuar a partilhar memórias e afetos, à sombra do nosso mágico e fraterno poilão, tendo por pano de fundo a Guiné que conhecemos entre 1961 e 1974, nas duras condições de uma guerra (*)...  LG


2. Viajar por (e sentir) a Guiné

por José Eduardo Alves (1950-2016)

Camaradas,

Depois de me ter remetido ao silêncio, mas sempre ativo nas leituras do blogue, hoje acho que está na hora de escrever sobre a viagem que fiz à Guiné este ano [de 2010], e vou fazê-lo porque há sempre alguém que gosta que se fale destas aventuras.

O ano passado também tinha ido à Guiné, mas apanhei a “caravana” nos últimos dias da sua preparação e, pelo caminho, em conversa com alguns dos Camaradas que já lá tinham ido mais vezes, ouvi dizer: “Vais ter uma desilusão,  pois quem lá conhecias já morreu tudo!”

Mas, felizmente, não foi assim e ainda encontrei bem viva muita gente do meu tempo. Fiquei então com vontade de lá voltar e voltei este ano, mais bem preparado e com mais coisas para dar aquelas crianças, que necessitam de tudo (, muito do que nós esbanjamos).

No ano passado tínhamos ido até Mampatá,  quatro homens da minha Companhia - a CART 6250: o [António] Carvalho, o Zé Manuel [Lopes], o Francisco Pereira Nina e eu. Todos ficamos surpreendidos pelo grau de abandono do nosso antigo quartel.

Este ano só fui eu. Como não podia deixar de ser, voltei ao velho quartel de Mampatá, e encontrei em curso obras de recuperação, vendo-se já diferente e renovada a sala do soldado (de pedra e cal), o paiol (que o ano passado nem se via) estava limpinho, a antiga enfermaria (que já não tinha telhado) está a ser recuperada para enfermaria local, os balneários dos soldados estão transformados numa escola, que eu apoiei no que pude e vou continuar a ajudar.

Mas não parei aí e,  como levava uma encomenda, e um pedido do nosso camarada e amigo Vasco da Gama,  para Cumbijã, segui viagem e visitei a Fonte de Iroel (que data de 1946) [, a 2 km de Mampatá, e de que não existe uma única imagem no nosso blogue!], Colibuia e Cumbijã.

Cumbijã, onde um dia encontramos a CCAÇ 18 e outras NT que lá estavam encurraladas. Quem conhece a zona entende o porquê deles estarem encurralados, é que a estrada Mampatá - Nhacobá  não tem saída para lado nenhum.

Depois visitei Guileje, Gadamael e Cacine, regressando a casa por Mampatá, Nhala, Buba, seguindo pelo Quebo, Bissau, S. Domingos, Casamança, Gâmbia, Senegal, Mauritânia, Marrocos, Espanha e, finalmente, Leça da Palmeira (onde vivo).

Vou continuar a trabalhar para levar mais alguma coisa àquelas crianças. Vou lá quando puder e penso que não é uma forma de neocolonialismo.

Vou dizer algumas palavras que ouvi a uma Guineense: "Ó Leça, só vieste agora, foste embora zangado e vieram estes (…), para o vosso lugar. Vocês entregaram isto a um (…) armado, que era uma minoria e cujos cabecilhas nem eram Guineenses, eram de outro país.”

Penso eu que, se calhar, o governo Português ainda um dia há-de pedir desculpas à parte daquele povo que ensinou a pegar e usar uma arma, depois tirou-lha e abandonou-a à mercê de uma sorte cobarde, traiçoeira e macabra.

Agora, quero levar luz eléctrica a Mampatá, especialmente para a dita enfermaria e posto de rádio, que foram inauguradas pelo sr. Pepito, no dia em que nós lá estivemos (...).

Se alguém quiser contribuir com objectos, equipamentos e medicamentos, tudo o que nos entregarem será bem aceite. Lembrem-se que muita coisa que para nós já não tem valor, nem aplicação faz falta àquele bom povo da Guiné. Nós, eu e a minha esposa [, Conceição,], pedimos mais precisamente roupas de criança e material escolar, assim como medicamentos (dentro do prazo de validade, como é evidente).

É a minha esposa que se ocupa da recolha, selecção e embalagem destas coisas, foi uma vez à Guiné e quer lá voltar. (...) (**)


3. Algumas das mensagens de camaradas que conheceram melhor o José Eduardo Alves (*):


(i)  António Carvalho [Carvalho de Mampatá]

Sempre optimista e esperançoso, a nada se vergava ele, José Eduardo, mesmo quando perdeu uma filha, há alguns anos, logo se reergueu com novo ânimo. Por sorte, também a esposa Conceição o acompanhava nas jornadas de solidariedade para com o povo da Guiné, especialmente da área de Aldeia Formosa e Mampatá, que visitava, todos os anos, desde 2009. Mas a morte não escolhe só os maus nem só os bons, leva-nos a todos, quando calhar. Cada vez ficamos mais reduzidos, até que o último morrerá também, inexoravelmente.

Para toda a família, a minha homenagem


(ii) Um seu conhecido e amigo [que, por lapso, não se identificou]

Não estive convosco na Guiné, estive em Angola e é fácil de entender o espírito de grande camaradagem entre vós. Há uns anos atrás criei um slogan que diz:

AS ARMAS TAMBÉM UNEM OS HOMENS

Neste momento, quero dizer que conheci o Eduardo há poucos anos, mas além de grande trabalhador, era um homem de carácter e amigo.

O seu grande coração dividia-se pela Guiné. Falava deste país com uma alegria e vaidade por bem conhecer.

Neste ano da Misericórdia que o Papa Francisco bem instituiu, o nosso amigo Eduardo e a sua esposa Conceição, muito bem lá cabem. Que Deus lhe dê coragem para enfrentar este desenlace, bem como a seu filho que os amigos tenham o discernimento adequado para os ajudar. Enfim, vamos dar as mãos para ultrapassar este momento tão difícil, mas a vida é isto e não para.


(iii)  Manuel Carvalho

Homem de carácter e de forte personalidade mas simples e amigo do seu amigo.Gostava de olhar olhos nos olhos e cumprimentos de mão bem apertados.Sempre preocupado com o seu semelhante e passou os últimos anos da sua vida a ajudar os seus amigos da Guiné.
Que Deus o tenha num bom lugar que bem merece.
Um dia nos encontraremos por aí.
Para a esposa e filho as minhas sentidas condolências.


(iv) José Manuel Matos Dinis

Tive oportunidade de conviver com o casal numa deslocação à Guiné, e eram de facto pessoas simpáticas e solicitas. Agora o Zé acabou a caminhada, como um dia vai acontecer-nos.
Aproveito para apresentar as minhas condolências pelo infeliz evento.
Um beijo para a D. Conceição com votos de coragem e resignação nesta hora, e para o Zé fica um abraço a aguardar agenda.


(v) António Murta

O José Eduardo Alves, o "Leça", foi meu contemporâneo em Mampatá, mas só o conheci verdadeiramente (e à sua esposa), no encontro da CArt 6250 em julho do ano passado. Era a simplicidade em pessoa mas de carácter firme.

À sua esposa e restante família, envio as minhas sentidas condolências. Aos seus amigos e camaradas, especialmente o Zé Manel e o Carvalho de Mampatá, envio um abraço solidário.