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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23206: 18º aniversário do nosso blogue (7): "O senhor vai responder-me com toda a verdade: era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor, com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belmiro Tavares".]


I. Aqui vai, em republicação (*), c0m adaptações, uma das muitas (e boas) histórias, daquelas que nos tocam fundo,  contadas pelo Belmiro Tavares , ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66.

O Belmiro Tavares foi  Prémio Governador da Guiné (1966), é membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009; é empresário hoteleiro em Lisboa: é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014. 

É também autor (em parceria com o nosso saudoso JERO, acrónimo de  José Eduardo Reis de Oliveira, 1940-20221) do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675" ( edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.) (cuja capa se reproduz acima).

Este poste é  uma tripla homenagem ao Belmiro Tavares, que hoje faz anos; ao JERO, que nos deixou há um ano atrás, vítima de Covid-19  (em 27 de janeiro de 2021, iria fazer 82 anos se fosse vivo, em 4 do corrente); e ao nosso blogue, que fez 18 anos em 23 do corrente, o blogue que nos tem permitido, aos amigos e camaradas da Guiné,  partilhar memórias e afectos.(**)

Honremos também a memória do infortunado fur mil Álvaro Manuel Vilhena Mesquita,  natural de Vila Nova de Famalicão,  morto por uma mina A/C em 28 de dezembro de 1964, no subsetor de Binta.



Vila Nova de Famalicao > Cemitério local  > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.


Cortesia do blogue JERO > 12 de julho de 2010 > M 276 - SENTIMENTOS / PARTE UM

(...) O Álvaro morreu na Guerra do Ultramar. Morto em combate em 28 de Dezembro de 1964 na “quadrícula” da sua Companhia na região de Caurbá, a poucos Kms. do aquartelamento de Binta, Norte da Guiné. Nessa altura eu estava por perto pois pertencíamos à mesma “família”. A Companhia de Caçadores 675, então no mato desde Julho de 1964. Ele regressou à sua terra natal para ser sepultado nos primeiros dias de Dezembro de 1965.

Passaram desde essa data fatídica cerca de quarentas e cinco anos. Na minha memória , e ao longo de toda uma vida , o Álvaro continuou – continua – a ser o meu “irmão” dilecto dos tempos da guerra.

O seu irmão Francisco, que conheci fugazmente muitos anos depois da morte do Álvaro, num encontro casual no Hotel D. Carlos, em Lisboa, faleceu agora, com 69 anos, em 1 de Julho corrente no Hospital de Cochin, em París.

Estive presente no seu funeral , na terra da sua naturalidade, em 8 de Julho de 2010. Estive no seu funeral por diversas ordens de razões. Em preito à sua memória, em homenagem à família Vilhena Mesquita e em nome da minha CCaç. 675, onde militou o seu e meu “irmão” Álvaro (...) 


"O senhor vai responder-me com toda a verdade:
 era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" 

por Belmiro Tavares 


1. Como alferes miliciano estive dois anos na Guiné, algures a norte do Cacheu, mais precisamente em Binta, integrado na CCaç 675 uma companhia extraordinária (foi lá e, mais de 40 anos depois, continua a sê-lo cá) que deu “água pela barba a muita gente”. 

O nosso comandante era o Capitão Tomé Pinto, hoje Tenente General, um militar fora de série, autenticamente um homem doutra galáxia. Podemos descrevê-lo parafraseando o poeta: “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé... d’antes quebrar que torcer”...! É o Homem que sabe ser militar (de que maneira o sabe!) e o Militar que não deixa de ser Homem, qualidades que juntas se acham raramente.

Entre os graduados da companhia havia um furriel miliciano, natural de V. N. Famalicão, de seu nome Álvaro Manuel Vilhena Mesquita o qual é o epicentro dos factos que aqui vão ser contados.

Em fins de Dezembro de 1964 o Mesquita estava de “baixa”; aguardava transporte para o HMP 241 em Bissau.

No dia 28 desse mês, dois grupos de combate (pelotão com morteiro, Breda e LGF – lança granadas foguete, vulgo bazuca) iam fazer uma patrulha para além do limite oeste da nossa zona na margem direita do rio de Buborim, um afluente do Cacheu. O Mesquita pertencia ao 1.º Gr Comb mas estava inoperacional.

A companhia à qual aquela zona pertencia e tinha a incumbência de a patrulhar, estava sediada em Bigene; para ali chegar, teria de passar pela tristemente célebre base de Sambuiá (um mito de inexpugnabilidade que a CCaç 675 se encarregou de fazer desaparecer) que era a base inimiga mais forte do norte da Guiné.

O nosso Capitão decidiu estabelecer no “terreno do vizinho” aquilo a que se chama “uma zona tampão”. Pretendia-se ter o inimigo não só fora da nossa zona mas também bem afastado. Aliás a CCaç 675, dentro da mesma estratégia foi a única companhia que, entre Junho de 1964 e Abril de 1966, “bateu” a Península de Sambuiá como se de “passeio” se tratasse... ou quase.

Nota: aconselhamos a leitura do Cap 26 do livro Golpes de Mão’s, de José Eduardo Reia Oliveira, Fur Mil Enf da CCaç 675. [Foto ca capa, à esquerda]

Voltemos aos carris! Os dois Gr Comb seguiram de viatura durante cerca de 12 km. Quanto se apearam e partiram para o cumprimento da missão, a segurança das viaturas passou a ser feita por alguns (poucos) soldados europeus, alguns soldados africanos e uns tantos milícias.

Entre os militares europeus havia doentes e feridos ligeiros que não necessitavam de cama para se restabelecer. Entre os doentes “leves” estava o fur Vilhena Mesquita, pois a sua doença – não sei qual - não o impedia de andar de camuflado e armado em cima duma viatura. Ele próprio se apresentou voluntariamente para tomar parte na segurança das viaturas. Um alferes comandava esta escolta muito heterogénea, como se depreende.

Quando os dois Gr Comb regressaram às viaturas, iniciou-se a viagem de volta em direcção a Binta. Alguns quilómetros à frente ouviu-se um rebentamento enorme: uma mina anti-carro explodiu estrondosamente debaixo da roda direita traseira, duma das viaturas. Por cima dessa roda seguia o malogrado Mesquita que naquele momento abandonou o mundo dos vivos.

Nota: ver página 181 e seguintes do livro atrás citado.

A primeira viatura era uma GMC e a mina rebentou na roda de trás da 2.ª viatura, um Unimog, o que nos levou a crer que se trataria duma mina telecomandada, o que seria numa novidade na actuação do inimigo.

Era o nosso segundo morto e pela 2.ª vez custeámos a urna própria (de chumbo) para que a família do nosso companheiro pudesse fazer-lhe um funeral condigno e “com o corpo presente”. Fizemos o mesmo também ao nosso 3.º morto, o malogrado soldado Nascimento.

Mais uma vez nestas situações a CCaç 675 foi ímpar; talvez tenham sido poucas as unidades - ou talvez nenhuma – a proceder deste modo... à maneira da CCaç 675.

Neste caso não temos certamente um ”suicida altruísta” mas na verdade o Mesquita – que a terra lhe seja leve – partiu voluntariamente para um “encontro marcado com a morte”.


2. O nosso capitão informou dolorosa e comovidamente os pais do Mesquita sobre o trágico acontecimento.

Eles também receberam, à posteriori, o tal “telegrama seco, brutal, frio, impessoal” a informar que a urna com os restos mortais de seu filho se encontrava no D.G.A. (Depósito Geral de Adidos) na Calçada da Ajuda, [em Lisboa]. 

[Na foto, à esquerda, o Mesquita, de camuflado, na Guiné, Binta, 1964].

Os familiares enlutados deslocam-se a Lisboa com a Agência Funerária; entram na Unidade Militar, o pai contacta o graduado de serviço, um ordenança é mandado indicar-lhe o local onde se encontra a urna. Havia várias; O soldado procura pelo nome e informa com toda clareza, sem pestanejar:

- É esta! Pode levar!

Mais “seco, brutal, frio, impessoal” nem o telegrama. Só faltou mandar embrulhar!

Devemos, apesar de tudo, ter em conta que se tratava dum soldado talvez pouco letrado, talvez mesmo analfabeto, sem formação nem preparação para tal e que não tinha vivido os horrores da guerra. Não terá sido ele de certeza o único culpado nem até talvez o maior culpado.

Na tropa, naquela época, todos tínhamos de ser “pau para toda a colher” – frequentemente seríamos pau tosco,... demasiado tosco até... Naquela época, na tropa de cá, quantos soldados haveria preparados para informar cabalmente e com humanidade os familiares dos nossos mortos em combate?!

Por cá, naquela época, quem se apercebia e sentia por dentro os pesadelos da guerra? – Os pais, os irmãos, os amigos íntimos dos combatentes e poucos mais! A guerra travava-se muito longe... lá noutro continente.

3. Os pais do Mesquita terão sofrido – sofreram mesmo – a bom sofrer aquela morte absurda (como absurdas são todas as mortes da guerra) e antecipada de seu filho. Eles não eram diferentes dos outros pais! Também eles eram de carne e osso e tinham dentro do peito um coração que sangrou... sangrou muito! Disso temos a certeza!

Naquela altura chegou a Famalicão um combatente vindo da Guiné (creio que seria um cabo) que tinha acabado a comissão. Como muitos combatentes, especialmente os da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sabiam tudo à cerca de tudo sem saberem nada de nada e para se impor aos concidadãos inventavam estórias por vezes sem sentido e sem ponta de verdade.

O Pai do Mesquita, profundamente fragilizado pela dor que o atormentava, teve o azar de encontrar (não sabemos como nem por quê) um autêntico charlatão que lhe fez uma narração rocambolesca, malévola e mentirosa dos factos. Inventou e deturpou! Chamando o boi pelo nome: “mentiroso sem escrúpulos”.

 [Na foto, à esquerda, o Fur Mil Mesquita, ao lado do Cap Tomé Pinto].

Aproveitou a depressão emocional daquele Pai com o coração desfeito para dar asas à sua imaginação. O cabo em questão terá eventualmente contactado com o Mesquita em Maio ou Junho de 1964 em Bissau.

Este hipotético encontro – se realmente aconteceu – ocorreu antes de irmos para o mato, ou seja seis meses antes da fatíidica morte do Mesquita. Assim sendo o tal cabo não podia saber o quer que fosse à cerca do que, em 28 de Dezembro de 1964, aconteceu nos arredores de Binta.

Este pobre pai acabrunhado e desesperado pela morte dum filho querido, de “mal com a vida” até pela maneira como foi tratado no DGA e por outros motivos que nos ultrapassam... Por tudo isto e talvez muito mais, o Pai do Mesquita, apesar de homem de letras, tornou-se terreno fértil para acreditar na mentira e tê-la-á publicado no Jornal de Famalicão de que era Director e creio que proprietário.

Até onde um coração desesperado, esfrangalhado nos pode conduzir!...

A verdade nua e crua dos factos terá no entanto ficado por contar aos amigos do nosso companheiro Mesquita.

Mais uma vez... que a terra lhe seja leve.


4. Em 1967, creio que em Abril, o companheiro e camarada JERO e o autor destas linhas deslocámo-nos a Valença para assistir ao casamento dum dos seus furrieis.

Por mero acaso (ou propositadamente?) pernoitámos em Famalicão. De manhã pedimos a um taxista que nos conduzisse ao cemitério. Não encontrámos a sepultura do Mesquita. 

[Foto à esquerda,  o nome do Mesquita, inscrito no mural dos mortos do Ultramar, Forte do Bom Sucesso, Belém , Lisboa].

Pedimos apoio ao taxista que logo nos informou que o Mesquita estava sepultado no cemitério novo e para lá nos levou. Lá estava o sepulcro do Mesquita, bem diferente – para melhor, muito melhor – das demais sepulturas. Lá encontrámos, cravada no mármore a lápide de bronze que os seus companheiros da CCaç 675 lá fizeram chegar, perpetuando a camaradagem e aquela amizade pura, simples, desinteressada que sempre nos uniu e, incorruptível, continua a enlaçar-nos.

Por motivos que não são aqui chamados, tínhamos dúvidas se íamos ou não visitar os pais do Mesquita. Por um lado entendíamos que devíamos visitá-los; por outro sentíamos que não tínhamos o direito de reabrir ou mesmo avivar aquela ferida no peito e na alma daqueles pais que sentiram o filho partir tão novo, tão na flor da idade.

Não estamos (raramente estamos) preparados psicologicamente para ver os nossos pais partir (e isso é o normal); mas um filho partir antes dos pais é a inversão total das leis da vida! Daí a dor ser mais intensa, mais marcante, mais profunda, mais feroz!

A atitude do taxista foi decisiva e nós fomos visitar os pais do nosso companheiro. A mãe apareceu logo. Toda de preto vestida, rosto carregado de pesar, olhos plenos de tristeza, baços, penetrantes. Já tinham decorrido mais de dois anos sobre a morte do filho!...

Conversámos durante breves instantes. A senhora aproximou-se de mim, olhou-me bem por dentro, poisou nos meus ombros as suas mãos brancas de cera, pesadas como chumbo e disparou:

- O senhor vai responder-me com toda a verdade sobre o que vou perguntar-lhe?

Respondi afirmativamente e ela perguntou de chofre, ansiando pela resposta:

- Era o meu filho que vinha naquela urna?

Olhos nos olhos respondi sem vacilar (por quê vacilar se ia transmitir a mais pura das verdades?!) tentando levar um pouco de paz e tranquilidade àquela mãe desesperada, destroçada pela morte do seu filho e a dúvida que lhe mordia na alma.

- Pode ter a certeza absoluta que era o corpo do seu filho que vinha naquela urna; não podia haver troca!

- Mas morreram muitos juntamente com o meu filho! (versão do tal informador).

- Mesmo que assim fosse não podia haver troca; mas felizmente e infelizmente só morreu o seu filho; foi o nosso segundo morto naquele ano; houve também três feridos graves, é certo, e alguns feridos ligeiros mas só um morto.

- Fico-lhe eternamente grata porque me tirou um tremendo peso de cima! Todos os dias tenho ido rezar junto daquela sepultura mas essa dúvida terrível atordoava-me, dilacerava-me a alma; agora sei que vou rezar junto do meu filho pois fiquei com a certeza que ele está ali.

Houve mais umas palavras de circunstância e... apareceu o pai do Mesquita com ar de pessoa mais velha, acabrunhado, triste, cheio de dor de alma, parecia ter ouvido a nossa conversa. A dor pela morte do filho e a doença não perdoavam; cremos que sofria da doença de Parkinson, em estado bastante adiantado. Pouco falou ou nada para além dos cumprimentos. Pelo menos nada recordo... já lá vão 42 anos!

A nossa missão estava cumprida e o nosso dever também. Despedimo-nos e retomámos a viagem para Valença onde chegámos a meio do almoço mas satisfeitos connosco.

5. Desde Abril de 1974 trabalho no Hotel Dom Carlos Park em Lisboa – passe a publicidade. Um dia, em meados da década de 80, ouvi um recepcionista dizer que ia chegar ao hotel o Eng. Vilhena Mesquita. O nome era muito familiar; era impossível não ser parente próximo do nosso Mesquita.

Perguntei pela sua naturalidade mas só sabiam que era do Norte e tinha escritório em Paris. Pedi que me avisassem, logo que chegasse.

Quando o vi, tremi, fiquei atónito, estupefacto... parecia que estava ali à minha frente o Álvaro Mesquita; era apenas um irmão mais novo mas muito, muito parecido.

Apresentei-me, perguntei pelos pais - um deles, creio que a mãe, ainda era vivo – sabia que os tínhamos visitado. Os pais iam frequentemente visitá-lo em Espanha (Galiza) onde ele se deslocava vindo de Paris.

Depois duma longa conversa sobre a CCaç 675 (como não podia deixar de ser) contou-me as peripécias da sua curta passagem pela tropa.

A meio da recruta fez um requerimento a pedir para não ser mobilizado porque o seu irmão falecera na Guiné! Requerimento indeferido! O Mesquita deu o “salto”; “aterrou” em Paris; ali fundou uma empresa de construção civil, já de boa dimensão àquela data.

Após a revolução dita dos cravos vinha a Portugal com certa assiduidade. Casou com uma sobrinha do ex-ministro Bettencourt Rodrigues, o tal que indeferiu o requerimento.

A vida dá cada volta!...

Lisboa, terça feira, 24 de novembro de 2009

Belmiro Tavares 

[Fixação / revisão de texto / negritos e itálicos / título: L.G.]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

(**) ÚLtimo poste da série > 26 de abril de  2022  > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




segunda-feira, 8 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
 
É bem verdade que todos estes testemunhos coletivos vão ter que ser tomados em conta pelos futuros historiadores. Esta região do Xime que aqui se viveu em 1967 e inícios de 1968 se transformou radicalmente de um ano para o outro. Quando a CCaç 1550 partiu, extinguiu-se o destacamento da Ponta do Inglês, desapareceu Samba Silate, ao que se dizia a maior tabanca de todo o leste da Guiné, o PAIGC atacava com ferocidade as tabancas entre Amdalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, com o evoluir da guerra abandonou-se Moricanhe, para mim uma aberração tal medida, era um posto avançado de inegável importância para proteger tanto o Xitole como Bambadinca. E Galomaro, que os autores tratam por colónia de férias, passou a ser sede de Companhia, daqui partiu uma em fevereiro de 1969 para uma operação de retirada de Madina do Boé, teve pesadas vítimas.
 
Honra a quem escreveu este legado de memória, tão singelo e tão terno.

Um abraço do
Mário



CCAÇ 1550, todos presentes e lembrados, 50 anos depois

Beja Santos

A obra intitula-se "Memorial, O livro dos 172 autores", DG Edições, 2018. Quem coordenou foi José Marques Valente, mal soube do acontecimento telefonei-lhe e pedi-lhe o documento, é um memorial enternecedor, pelo registo onde primam testemunhos quase incógnitos, onde cada um depositou as suas imagens e as suas memórias. 

Partiram para a Guiné em 20 de abril de 1966, a 26 seguem em coluna-auto de Bissau até Farim, vão sem armas, passam pelo K3, atravessaram na jangada o Cacheu, em Farim organizaram-se para ir para Binta e Guidage. Há uma apresentação sumária do setor, recorda-se que o Corredor de Sambuiá estava encravado entre Binta e Bigene. 

Vão então para Binta e segue para Guidage um grupo de combate reforçado. Foram render a CCaç 675, a do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, é história para nós conhecida, JERO escreveu a vida do primeiro ano da Companhia, é um documento histórico. É uma primeira fase de comissão que não deixou péssimas memórias: 

“Nos oito meses que permanecemos em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Apenas por três vezes foram disparadas granadas de morteiro e tiros de metralhadora para dentro do aquartelamento e tabanca”

A relação com as populações terá sido magnífica, havia escola a funcionar e tratamentos para guineenses e senegalenses. Fizeram patrulhas de reconhecimento e foram a Sambuiá. Nas proximidades desta área sujeita a controlo do PAIGC destruiu-se uma ponte pedonal, via de acesso às culturas de arroz. Foram sempre felizes a picar as estradas, nunca houve sinistros no contingente militar.

E um dia a Companhia muda de poiso, vai para o Xime, Ponta do Inglês, Taibatá/Demba Taco e Samba Silate. No Xime a CCaç 1550 era reforçada com o Pel Caç Nat 53 e milícias da tabanca, na Ponta do Inglês havia um grupo de combate reforçado, Taibatá/Demba Taco, milícias e população em autodefesa e em Samba Silate população em autodefesa, mais adiante um destacamento em Galomaro, uma secção e muitas espingardas Mauser. Esta Guiné e esta região, nos inícios de 1967, serão bem distintas daquela que irei conhecer a partir de agosto de 1968.

A CCaç 1550 viera render a CCav 678, nessa altura havia flagelações praticamente todos os dias na Ponta do Inglês e picava-se o itinerário entre Xime e Bambadinca com muitos cuidados, não só as minas mas as emboscadas num local conhecido por Ponta Coli, sobretudo. Deixara de se fazer a ligação por terra entre o Xime e a Ponta do Inglês, aquele itinerário foi um sorvedouro de vidas e de viaturas. Explica-se a constituição da população do Xime, a organização do aquartelamento, a construção de uma paliçada. A vivência na Ponta do Inglês é mais do que inóspita:

“Formado por uns abrigos, onde se comia e dormia, rodeados por arame farpado e postos de vigia, estavam ali cerca de 40 homens, armados com G3, Morteiro 60 e bazuca. Os abastecimentos e correio eram entregues pela Marinha, que passava regularmente no Xime. A água era recolhida, diariamente, num poço a uns 500 metros do arame farpado, com a ajuda da única viatura disponível. Diariamente, sob o mesmo ritual, picava-se o percurso do arame farpado ao poço e avançava-se com o Unimog e os bidões. Uma parte do pessoal ficava de arma aperrada, enquanto os outros com balde e corda puxavam a água, até encher os reservatórios. O poço onde se ia buscar água era comum às nossas tropas e às populações do outro lado da bolanha (controlada pelo IN), pelo que o teste antiveneno para verificar se a água estava envenenada era praticamente desnecessário”.

Fala-se da vida em Taibatá e de Samba Silate, na margem esquerda do Geba, local de cambança de grupos IN, e há referência de que do outro lado do rio estava a zona de Mato de Cão onde acima havia bastantes casas de mato do IN. E recorda-se as matas onde o IN se instalava: Galo Corubal, Bissari, Fiofioli, Ponta Luís Dias, Buruntoni e Poindom. Galomaro, ao tempo, era uma paz de alma, em pleno Cossé, zona de Futa-Fulas, encruzilhada comercial entre o Senegal e a Guiné Conacri.

O aquartelamento do Xime é passado a pente fino e as imagens que o livro publica foram-me imediatamente familiares, incluindo a capelinha, a messe de oficiais, as caravanas ali instaladas, até os arruamentos dentro da tabanca. Detalha-se o que cada um fazia, desde a carpintaria, aos eletricistas, à mecânica auto.

E segue-se o lado emocionante do memorial, as fotos destes 172 autores, os seus nomes, posto e alcunha. E lembra-se que 45 já tinham partido deste mundo. Temos os testemunhos das doenças, dos medos, faz-se o elogio dos bravos, como se constituíam pés-de-meia, como se comia mal e se procurava comer bem, são testemunhos genuínos como o de um 1.º Cabo que em maio de 1977 foi a Demba Taco que tinha sido atacada, saqueada e incendiada durante a noite:

“Ficou um rasto de destruição, com civis mortos e outros raptados. Quando lá chegámos, do pouco que ficou, tudo fumegava.

Depois de feito o levantamento da situação, foi escalada a 1.ª Secção composta por sete militares, para ali ficarem a manter a segurança e ordem na reconstrução da tabanca. Não tínhamos qualquer tipo de abrigo. Ali ficámos com alguns alimentos, numa temperatura superior a 40º até que chegou a hora de preparar a primeira refeição. Foi necessário escolher, entre os sete camaradas, quem tivesse aptidão para cozinhar.

Destacado o soldado A. F. que logo improvisou com duas pedras e uma fogueira os meios para preparar a nossa refeição de batatas cozidas e atum de conserva. Mas quando nos preparávamos para distribuir as batatas e o atum, deparámo-nos com imensas crianças, olhando famintas. Jamais poderei esquecer este cenário. De entre as crianças destaquei uma, de nome Umaru Baldé, de 12 anos, que nessa noite tinha perdido o pai e a mãe.

Criei um sentimento de amizade e ternura que quando acabei a missão, em Demba Taco, me custou a separação desta criança. Com o tempo e as circunstâncias, perdi-lhe o contacto, mas nunca esquecerei este miúdo que me marcou profundamente nos quase três meses que estive em Demba Taco, em que dia a dia as minhas refeições eram repartidas com ele”
.

Obra tocante na composição e pelo recurso ao anonimato, vejam as imagens do livro, leiam a folha solta sobre o Victor, feita pelo organizador do livro, o José Marques Valente, a quem já comuniquei que este belíssimo testemunho seria publicado num blogue onde teremos o orgulho em o acolher, bem como aos seus camaradas da CCaç 1550.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21824: (In)citações (179): Lembranças de JERO e do seu legado literário (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2021:

Caríssimo,
O JERO vai fazer falta a todos, ficará na memória de muitos e o seu irrepetível legado literário será peça obrigatória que os investigadores, no futuro, não deixarão de esmaltar como caso único de um cronista que deu voz coletiva a um grupo de jovens que seguiu incondicionalmente um inesquecível comandante de companhia.

Um abraço do
Mário


Lembranças de JERO e do seu legado literário

Mário Beja Santos

C
onheci o JERO quando tive a oportunidade de ler o "Diário da Companhia de Caçadores 675"[1], ele era assumidamente o responsável pela narrativa, não escapava ao leitor o tom de exaltação pela figura do Capitão Tomé Pinto (que ficaria conhecido como o Capitão do Quadrado) e as vicissitudes desta unidade durante o ano, por Binta e arredores. Trata-se do primeiro diário de uma unidade militar, tem um escrivão dotado de fala coletiva, teve seguramente acesso aos dados da atividade operacional de uma companhia que chegou a um local, em 1964, infestado pela guerrilha, havia mesmo o desplante da população afeta ao PAIGC fazer descaradamente lavras a escassos quilómetros do quartel. Há momentos impressionantes deste diário de JERO, tenho repetidamente observado aquela descrição em que o capitão é ferido e até ser evacuado para Bissau foi alvo de transportes de um afeto, de uma solidariedade impressionantes pelo que continham de genuíno, de uma afabilidade sentida.

Pedi para falar com JERO, havia algo de estranho naquele diário, era facto que se tratava de uma edição do ano seguinte, mas as comissões são mais prolongadas, o Capitão Tomé Pinto partira para um curso que lhe daria a promoção a major, a CCAÇ 675 acusou a falta daquela figura icónica, aquele verdadeiro traço de união que metia valentia, lucidez e muito tempero na liderança. JERO, bem como o seu afável camarada Belmiro Tavares, explicaram que aquele ano marcara a memória de todos, tudo o mais fora uma sucessão de obrigações.
Este tipo de observações seriam confirmadas pelo livro seguinte de JERO, "Golpes de Mãos"[2], o antigo furriel-enfermeiro sentia-se liberto para ter uma escrita um pouco mais desabrida e descrever os factos circunscrevendo-se à sua própria leitura dos acontecimentos. Fiz a recensão da obra, o General Alípio Tomé Pinto fez questão de nos reunirmos, o que aconteceu num restaurante ali para os lados da Avenida da República, em Lisboa, vieram algumas explicações sobre aquele diário truncado. E conhecedor como sou do que mais significativo se escreveu e compõe a literatura da guerra da Guiné, guardei para os meus livros os adjetivos de admiração deste diário, obra única de voz coletiva pelo punho de um cronista que nunca alardeia qualquer gabarolice, eleva a épica de uma unidade de caçadores que em escassos meses limpa a sua zona de ação, sem desfalecimentos, e às ordens de um destemido capitão.

Encontrámo-nos recentemente, e a afabilidade era a mesma. Estava a preparar o livro "Nunca Digas Adeus às Armas", o ponto de partida era um poeta popular que cantava as lides do BCAV 490, e em dado momento cruzam-se as vidas do batalhão de Farim e os homens de Binta, havia esclarecimentos, o Belmiro Tavares promoveu o encontro a três, de novo contei com a afabilidade de JERO, a rememorar factos. Tínhamos aprazado um encontro para a apresentação do meu livro no Palácio da Independência, obviamente que convidara o General Alípio Tomé Pinto e os seus camaradas, não se efetivou devido à pandemia, conversámos ao telefone, era tudo questão de aguardar uma nova oportunidade. Não haverá nova oportunidade de me encontrar com JERO, mas o seu legado literário, a sua serenidade, o facto de ele ser um guardião de memórias como nenhum outro, faz com que eu o guarde na lista das grandes cordialidades, sabedor como sou do seu diário é obra incontornável da literatura da guerra da Guiné. E assim me curvo respeitosamente diante do cronista de olhar sempre iluminado e basto sorriso.
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Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9107: Notas de leitura (306): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (3) (Mário Beja Santos)
e
2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

[2] - Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21819: (In)citações (178): Até já, José Eduardo!... (Joaquim Mexia Alvez, régulo da Tabanca do Centro)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21814: In Memoriam (386): José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (1940 - 2021), ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), escritor, jornalista, bloguista, grande camarada e amigo do peito (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

IN MEMORIAM


José Eduardo Reis de  Oliveira (1940-2021)
Foto: Tabanca do Centro (2021)

Era carinhosamente conhecido, pelos seus conterrâneos, amigos e camradas, como "Jero" (,pseudónimo jornalístico que usava desde os 18 anos) e morreu esta noite, aos 80 anos, no hospital de Alcobaça, onde estava internado há alguns dias (*). 

Ía completar os 81 anos em 4/4/2021. Foi  fur mil enf,  CCAÇ 675 (Binta, 1964/65). Deixa obra como escritor, jornalista e  bloguista. Era um homem culto, crente e de uma grande humanidade e afabilidade.

Membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca do Centro, autor da série "Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira)" (, desde meados de 2009), era um homem querido por todos, a começar pelas gentes da sua terra que amava como ninguém  e era o seu grande cicerone (, aliás, o título do seu terceiro livro, chama-se simplesmente "Alcobaça, é conigo"... E eu chamava-lhe, na brincadeira, "o último monge de Alcobaça") (**)

Choramos por ele!... A nossa solidariedade na dor por esta grande perda vai, antes de mais, para a viúva, a filha, os netos e a restante família, 


1. Poste acabado de publicar no blogue da Tabanca do Centro, e assinado por Joaquim Mexia Alves:

Quarta-feira, 27 de janeiro de 2021 > P1274: PERDEMOS UM AMIGO DO PEITO

Caríssimos camarigos

Trago-vos, hoje, uma tristíssima notícia.

Faleceu esta noite o nosso amigo José Eduardo Oliveira (JERO), em Alcobaça, a sua amada terra.

O José Eduardo estava doente, recentemente, tendo sido internado no Hospital de Alcobaça, mas nada fazia prever este terrível desfecho que nos deixa em estado de choque.

O José Eduardo era um amigo muito especial para mim, e para todos nós, pois era um homem bom, um contador de histórias, um exímio conversador, sobretudo um amigo do seu amigo, franco, leal e verdadeiro.

Gostava de poder escrever muito mais sobre o José Eduardo, mas neste momento faltam-me as palavras porque o choque é demasiado grande.

Rezo por ele e por toda a sua família, a quem a Tabanca do Centro, com todos os seus membros, acompanha nestes momentos de dor

Abraços fortes para todos.

Que Deus tenha o José Eduardo no seu eterno descanso.
Joaquim Mexia Alves



Alcobaça > Setembro de 2011 > O jornalista, escritor e nosso camarada e amigo JERO (acrónimo de José Eduardo Reis de Oliveira), autor de "Alçobaça é Comigo", o seu terceiro livro.

Foto ( e legenda(: © JERO (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


2. "Alcobaça, é comigo, camaradas!": um das muitas boas lembranças que tenho do JERO (**)

por Luís Graça

Alguns de nós perguntarão, legitimamente: Mas o que é que este livro tem a ver com a Guiné e a nossa guerra ? E eu, à partida, não sei responder por que não conheço nenhuma das trintas histórias, contatas e recontadas pelo JERO, na tertúlia do barbeiro, entre duas barbas e um cabelo...

É verdade que podia pôr a notícia do lançamento do 3º livro do JERO noutra série, Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres... Mas achei que estava bem aqui, na nossa Agenda Cultural... 

 Por outro lado, quem é que não tem curiosidade em saber as conversas dos homens no momento da tosquia ? Sempre ouvi dizer é que na cara dos pobres que os barbeiros aprendem... A barbearia teve sempre os seus encantos e mistérios. Mesmo na guerra, em tempo de guerra, nos nossos Bu...rakos, também tínhamos o nosso baeta... Em dia de tosquia, baixavam-se as guardas, esbatiam-se as hierarquias, rangiam-se os dentes, dizia-se mal do "patrão", cobiçava-se a mulher ou a laveira do alferes ...

Em especial na província, o sítio onde os homens punham a conversa em dia e, noutros tempos, transpiravam e alguns conspiravam... Nela pontificava uma personagem, popular mas ao mesmo tempo estranha, mágica e poderosa, que era o barbeiro mas também o barbeiro-sangrador, o enfermeiro, o tiradentes, o confidente...

Enfim, estou curioso em ler as histórias do Jero, temperadas com o aço da navalha do seu barbeiro... Tanto mais que ele, além de grande, encantador e sedutor contador de histórias, ele, a sua figura, algo mística, arrancadada das esculturas do mosteiro de Alcobaça, faz-me sempre lembrar um aristocrático e medievo monge cistercense, daqueles a quem devemos quase tudo ou muito do que somos enquanto povo...

No meu caso, falo como português, estremeno, à beira mar plantado... O vinho, a pera rocha, a maçã reineta, os cereais, a doçaria, as bebidas espirituosas... mas também e sobretudo o "imaterial" das nossas sociedades, a que chamamos cultura, ou que é o outro lado da cultura: os livros, a língua, a música, as artes, a arquitetura, o ensino da medicina, e por aí fora...

Não se nasce impunemente em Alcobaça. E por isso o JERO com toda a humildade e autencidade pode vir, a terreiro, dizer, alto e bom som: É, camaradas, Alcobaça é comigo!... E eu estou com ele, meu camarada da Guiné. O lançamento de um livro é sempre um exercício de cultura e memória. Mas também de partilha e comunicação, ou seja, é um ato da aventura humana.

"Escrever um livro, plantar uma árvore e fazer um filho", não foi o Eça de Queirós quem o disse, foram os intelectuais da Alta Idade Média, os monges do Ora et labora (reza e trabalha), os únicos que sabiam ler e escrever, quando o Portugal, hoje milenário, ainda (ou já) era uma criança, o Condado Portucalense...

Um xicoração muito grande para o JERO, antecipado, para o caso de eu não poder estar amanhã em Alcobaça, a tempo e horas, na sua festa, no lançamento do seu livro. Saudações para a família, amigos e camaradas da Guiné que se quiserem e puderem associar a este festivo evento, que é também da nossa Tabanca Grande... LG

PS - Há mais cistercenses em Alcobaça, para além do Jero... Por exemplo, o nosso Amado Juvenal, mesmo que mais laico do que o Jero, mas não menos talentoso contador de histórias... (Isto, este talento, vem-lhes do ADN monacal, ou terá sido cultivado - ou no mínimo temperado - nos rios e bolanhas da Guiné ?)
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3. Informação de última hora, veiculada pelo nosso camarada Joaquim Mexia Alves, dá conta de que amanhã, pelas 17 horas, no cemitério de Alcobaça, depois de cerimónia fúnebre, o nosso amigo José Eduardo será sepultado.
 
Escusado será dizer que qualquer deslocação a Alcobaça será improcedente atendendo às condicionantes impostas pelo COVID. O que o José Eduardo mais quereria neste momento é que os seus amigos continuassem a cuidar de si próprios, protegendo-se o mais possível.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 : P21809: In Memoriam (385): José Pardete Ferreira (1941 - 2021), ex-alf mil médico, CAOP1, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1971; cirurgião, médico especialista em medicina desportiva, foi diretor clínico do Hospital de São Bernardo, e presidentedo Rotary Club de Setúbal, poeta e escritor (Hélder Sousa / Luís Graça)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do "Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)

Beja Santos

“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.

Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.

O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.

Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.

Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”

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Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada “Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.

As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.

É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização, “chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar. “Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio. “Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante: “A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.

Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião. “Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”. Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio. “Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo. “Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.

Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.

Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:  
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.

E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.

E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”

Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.

(continua)
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Notas do editor

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