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terça-feira, 24 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24789: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (14): A minha viagem para o Seminário (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Miradouro do Vale do Sabor

Foto: Câmara Municipal de Moncorvo, com a devida vénia


1. Em mensagem de 22 de Outubro de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um excelente texto, desta feita, a sua ida para o Seminário:

A minha viagem para o Seminário

Até aos doze anos, para oeste de Brunhoso, nunca passei além do rio Sabor, que banhava esses limites da minha aldeia, onde ia por vezes no Inverno a ajudar à apanha da azeitona da Barca, no Verão a apanhar a amêndoa do Picão ou a apanhar os figos, dumas figueiras que a minha mãe tinha herdado, na ribeira das Picotas.

Para norte na direcção do planalto mirandês ia muitas vezes às feiras quinzenais de Mogadouro, por um caminho de terra batida, eram só cinco quilómetros, tocava com a vara vacas e vitelos que o meu pai queria vender, nas feiras quinzenais, que se realizavam num descampado enorme, onde se juntavam muitos animais, os seus donos ou os filhos deles e os compradores e intermediários, o mais conhecido tinha por alcunha o "Chispas", homem falador e irrequieto, natural da vila.

Nunca fomos ricos mas nesses anos com os meus pais em princípio de vida comum, era difícil esticar a manta para tapar umas necessidades pois outras podiam ficar a descoberto.

Recordo-me da casa onde nasci, eu e os meus três primeiros irmãos, todos varões, terei vivido lá dois anos. Casa muito humilde só com duas divisões, uma sobrelevada onde estava a cozinha e a lareira, coberta de telha vã, sem chaminé, o fumo saía por uma abertura que podia ser tapada, no caso de muita chuva ou neve, com uma chapa de metal. Descendo cinco degraus de madeira era o quarto, único, bastante espaçoso e forrado a madeira. Esta casa, contígua à casa grande dos seus sogros, terá sido herdada pela minha avó paterna, de uma parenta pobre chamada Maria "Pequena", casada mas sem filhos.

Anos difíceis para os meus pais, com poucos bens para se governarem, somente algumas terras de cultivo de cereais, emprestados pelos pais deles, e uma pequena horta, os filhos nasceram ao ritmo de um por ano, o nosso pai de compleição atlética mas a ter que tratar-se de doenças quase incuráveis para a época, uma delas a tuberculose, da outra não falo.

Sem saber se pelas condições insalubres da casa, o vento, o frio e calor a que estávamos sujeitos, ou pela falta de assistência médica, morreram dois desses meninos, outros viriam e meninas também, já nascidos em casas maiores, mais arejadas e confortáveis.

Para além dos produtos da horta e da carne de um ou dois porcos que a nossa mãe criava com farelo, castanhas, batatas e hortaliças, de que se curavam os toucinhos e os presuntos, e se faziam muitos enchidos, criava também galinhas e perus que davam ovos, que eram bons cozidos, em omeleta, ou estrelados com algum açúcar no final eram um manjar para mim, davam também boa carne para ocasiões especiais e festas, e para as alheiras que só podiam levar carne de aves ou de vitela, de porco não, segundo a tradição judaica.

Poucos produtos alimentares se compravam para a dieta alimentar da família, para além de algum peixe que a vizinha, tia Clementina, vendia na época própria, que poderia ser sardinha ou chicharro dividido para dois ou três, conforme o tamanho, para dar mais sabor às batatas e às couves, aos tomates, às vagens, aos pimentos e a outras hortaliças que a horta produzia com abundância.

A década de sessenta do século passado, depois do restabelecimento dos povos e das nações após o cataclismo da Segunda Guerra Mundial, foi muito fértil em acontecimentos sociais, políticos e artísticos. Portugal,  um pequeno país, guardado de influências externas pelo Oceano Atlântico, a ocidente, e pela Espanha franquista, fascista e imperial a leste, protegia-se da liberdade, da cultura e do progresso, pela vontade férrea de Salazar, um velho ditador puritano e asceta, durante muitos anos educado num seminário e que não querendo ser bispo, tinha uma ambição maior, ser um rei absoluto de Portugal, como os reis da Idade Média que recebiam o poder de Deus, através do Papa que os legitimava. Sem poder ser rei, tinha sangue plebeu, Salazar enquanto governante comportou-se como um rei absoluto sem coroa, tal como o ditador Francisco Franco em Espanha.

Não havia progresso, para além da agricultura e pastorícia, pois ele crente ou já descrente estava a viver nos tempos bíblicos das suas leituras religiosas que tinha vivido também na paz e bucolismo da sua infância.

Os lavradores, refiro-me a todos os que sozinhos ou com a ajuda de familiares ou pagando a trabalhadores, tinham as mãos calejadas e as sujavam na terra, com mais conhecimentos e instrução, já quase todos tinham a quarta classe, dão-se conta que com tantos filhos nascidos depois da última grande guerra, que os poucos hectares de terra que possuem, cada vez mais dividida pelos filhos, em herança, após a morte deles, mal lhes dariam alimento que bastasse a todos.

Sem máquinas agrícolas ou meios técnicos que possam pagar e sem trabalhadores agrícolas, que no limite da pobreza, estavam em fuga para a Europa rica para lá dos Pirinéus, sem terem meios económicos para pagarem a educação dos filhos em colégios ou pagarem a sua hospedagem nas cidades ou vilas onde havia os estabelecimentos de ensino oficiais, mandam os filhos a estudar para os seminários, onde os custos são menores. Tenho pensado que nos finais da década de cinquenta, Salazar terá conversado com o seu amigo e colega do Seminário, o Cardeal Cerejeira, duas faces da mesma moeda, em conhecimentos e sagacidade, um e outro, quando os seus olhos vivos, perscrutavam a sociedade, Salazar com a ajuda da polícia secreta e dos informadores, começam a dar-se conta que a juventude se afasta da Mocidade Portuguesa, da Igreja e de outros convívios "saudáveis". Muitos estudantes universitários contestam a autoridade e o Estado Novo, influenciados por ideologias de esquerda.

Será especulação ou hipótese académica, ambos conservadores religiosos e políticos, terão concluído que para afastar a juventude das ameaças das ideologias de esquerda que a podem corroer como um cancro, o melhor será franquear as portas dos seminários para educar e formar jovens mais às suas imagens e semelhanças.

Nesses meus verdes anos, dei-me conta na realidade de que houve uma mobilização de párocos e de padres de ordens religiosas a querer entusiasmar os jovens nesse sentido, com o agrado das mães contentes por poderem vir a ter um filho padre e os pais a terem um filho a estudar com poucos gastos.

Se chegassem a padres teriam um futuro, digno, sagrado segundo mães, se não conseguissem esse objectivo, muito difícil, poucos o conseguiam, poderiam fazer alguns estudos por preços bastante económicos que lhes poderiam dar acesso a um emprego no Estado, num banco, nos seguros ou nalguma empresa, que os poderia libertar da dureza do trabalho da terra e poderiam aspirar a uma vida mais limpa e digna, com outro prestígio aos olhos dos seus concidadãos e com mais vantagens económicas.

Dos seminários saíram poucos padres mas muitos estudantes, alguns com os estudos liceais completos, outros a meio ou perto do fim, muitos deles nas décadas de 60 e 70, foram preencher as necessidades de quadros milicianos militares da guerra colonial, alferes, furriéis e até capitães, na sua maior parte o regime confiava que eles não tivessem sofrido influências das doutrinas de Marx, Lenine, Mao-Tse-Tung ou dos reformadores republicanos e socialistas.

Alguns tiraram cursos superiores, da minha aldeia, o padre Neto, falarei dele adiante, formou-se como padre nos anos quarenta, nos anos cinquenta o meu amigo Francisco Carvalho, depois de muitos anos de seminário saiu e doutorou-se em filosofia e nos anos oitenta saiu padre o meu parente José Cordeiro. Os três estiveram na congregação dos Salesianos tal como eu e outros mais.

Quando no primeiro trimestre de 1969, o Batalhão de Cadetes milicianos de Mafra, na foz do Lizandro, atroou os ares, nessa noite escura e trágica, com gritos de assassinos e vamos embora, pela morte de três camaradas por incúria e desleixo dos instrutores, responsabilizando o comandante que tinha ficado no quartel, quem deu as palavras de ordem foram os estudantes universitários do Porto, Coimbra e Lisboa. Conheci bem um dos mortos, era um ex-seminarista, educado, afável, humilde, dormia perto de mim na camarata, no corredor oposto ao meu, foi o meu primeiro camarada conhecido a morrer nessa maldita guerra, recordo-o ainda com mágoa.

Somente depois de fazer a quarta classe, para meu gosto e desgosto, obedecia, os meus pais mandavam, fiz uma grande viagem para o Seminário de Mogofores, na Beira Litoral, onde o meu irmão mais velho já tinha estado um ano, os outros mais novos teriam como primeira grande viagem destinos semelhantes. Eu gostava de ir estudar, ir para o seminário nem tanto, nunca gostei de rezar mas o dinheiro era pouco. Os seminários faziam preços económicos para alojamento e alimentação, poderia até ser grátis para os filhos dos mais pobres.

No meu caso, quem me procurou entusiasmar para ir para de Mogofores foi o padre Neto da congregação dos Salesianos, amigo da casa dos meus pais, como a família dele. O pai dele era um homem respeitável na comunidade, tal como a sua mãe. O pai era um barbeiro, de ar calmo e sabedor em fazer curativos e aconselhar pomadas e chás para outros problemas. A mãe era uma senhora delicada, muito religiosa, socialmente muito estimada.  Tiveram também uma filha freira, da mesma congregação religiosa.

Pela vida fora eu e o padre Neto, fomos sempre amigos, sendo eu adolescente e ele um homem já perto dos quarenta anos, sentia-me lisonjeado por ele me tratar, tu cá, tu lá, como um igual.

Em textos anteriores já enfatizei a beleza das minhas viagens pela linha do Sabor e do Douro. O vale do Douro português será provavelmente um dos vales mais belos do Mundo.

O vale do Sabor é belo, emociona-me, arrepia-me, é o meu vale de lençóis, de águas bravas, águas azuis, verdes, castanhas cinzentas, hoje com a construção da barragem, de águas calmas, de ladeiras cobertas de oliveiras, amendoeiras, de salgueirais, troviscais, reflectidas em grandes espelhos de água.

Esta é sobretudo uma viagem no tempo, a idade não me permitia muita independência de espírito, estava muito ligado à terra, para a adjetivar com palavras belas. Dos montes da minha terra, dos vales, rios e ribeiros, gostava sem o saber, como gostava dos meus pais e irmãos, sem que que lho confessasse. O rio Douro tinha maior caudal e maiores arribas do que o Sabor.

Mal recordo a cidade do Porto, terei mudado logo, na estação de S. Bento para linha do Norte em direcção a Mogofores. Na linha do Norte, espreitei o mar que com curiosidade, nunca o vira, ter-me-ei dado conta da transformação da paisagem, sem montes, tão plana, tão diferente da transmontana.

Ainda hoje estranho um pouco as paisagens planas, dá-me a impressão que mudei de país. A região de Aveiro pela planura e pela ria lembra-me sempre a Guiné.

A linha do Sabor, que seguindo o rio a alguma distância, não o mostrava, já não existe, foi abandonada como todas as outras linhas dos afluentes do Douro, por ordem de um governante iluminado do poder central de Lisboa, com poucos protestos da capital do Norte. Não há norte ou sul, em Portugal há interior e litoral, no litoral vivem os cidadãos e no interior alguns indígenas em fase de extinção.

Na minha viagem para o seminário de Mogofores, terei ido só ou acompanhado, já não me lembro, sei que levava uma grande mala de cartão, não havia outras, com roupa marcada pela minha mãe, com as minhas iniciais, lençóis e toalhas também. Levava roupa para um ano, as distâncias eram grandes, os comboios lentos, não haveria férias de Natal ou da Páscoa.

Sendo um filho obediente, com um espírito rebelde, aceitava a necessidade de ir para o seminário, atendendo às dificuldades económicas da família que crescera, já éramos sete irmãos. A vida na agricultura nesse tempo era dura, além disso eu gostaria de aumentar os meus conhecimentos.

A minha predisposição à partida seria idêntica à dos meus conterrâneos, novos ou velhos, quando partiam para o Brasil e dos outros que saltaram fronteiras em direcção à França, a necessidade de melhor futuro fazia-nos partir a todos.

Não gostei da vida do seminário, muita igreja, logo pela manhã depois de levantar, muitas rezas, muitas filas por longos corredores húmidos, frio, fazia-me falta uma lareira, padres muito religiosos mas com pouca alma. Por vezes falava com o cozinheiro para matar saudades, era da minha aldeia, surdo, tinha aprendido a escrever, a falar e a arte da cozinha, numa casa de apoio para rapazes com dificuldades, no Colégio dos Órfãos no Porto dirigido por essa congregação.

Perto do Natal terei cometido uma barbaridade, um erro grave, um grande pecado que não consigo lembrar, por esse motivo fui chamado ao Prefeito, o padre que administrava a justiça com severidade, por quem fui punido com a dureza que se impunha, fortes reguadas. No final do castigo, furioso lancei o meu grito de revolta e disse a esse padre vermelhusco, mirandês de Ifanes, que ele não era meu pai e que portanto não tinha direito de me maltratar assim.

No dia seguinte fui falar com o Director, um padre naturalmente, a dizer que queria regressar a casa. Não me deixaram, obrigaram-me a passar o ano nesse "quartel", frio e húmido, o pior que conheci na minha vida.

Não gostei de Mafra, o tenente de instrução do meu pelotão era um sádico, que nos meses frios e húmidos do Inverno, nos tratava como animais, para meu desgosto era natural do Nordeste Transmontano.

O frio húmido do litoral entrava-me dentro pela carne e pelos ossos, o frio dos meus montes era mais agreste mas mais seco, era um ar frio que me afagava, ainda hoje é assim.

Nesse tempo os seminários condicionavam mais a personalidade dos jovens adolescentes do que a vida militar, pela disciplina excessiva, pelas práticas e o ensino religioso, tão obsoletos. Para os seminários iam jovens pré-adolescentes mais fáceis de moldar, para a tropa iam jovens já adultos, quase homens feitos.

No século passado, os seminaristas eram reconhecíveis por terem um semblante demasiado sério, quase triste, como se os anos de recolhimento e clausura lhes tivessem roubado, a alegria, a imaginação e os sonhos. A Igreja é uma instituição hierárquica, tal como a tropa que foi copiar a organização à Igreja. Em ambas se cultiva o poder e a ostentação para dominar e impressionar os simples cidadãos, há bispos, arcebispos, padres, generais, coronéis, capitães, todos muito vaidosos e vistosos, Deus, um velho já cansado a todos absolve.

Salazar esteve quarenta anos no poder, pela sua graça, de alguns polícias demoníacos e com a ajuda da Igreja e das Forças Armadas.

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Notas do editor

Último poste da Francisco Baptista de 6 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24374: (In)citações (246): O regresso dos Soldados (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24787: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (13): 50 ofícios e profissões de antigamente, extintos ou em vias de extinção (Luís Graça, Lourinhã)

Guiné 61/74 – P24787: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (13): 50 ofícios e profissões de antigamente, extintos ou em vias de extinção (Luís Graça, Lourinhã)


O "Pitrolino". Foto e legenda: Cortesia do Museu da Lourinhã


(...) "A função do Petrolino, designado como “e;pitrólino”e; devido à pronúncia local, era percorrer as aldeias do concelho nas “voltas”, constituídas pelo alvará, carroça, macho, reservatórios, líquidos e produtos em armazém. Vendia azeite e petróleo assim como sabão e aguardente. O petroleo era originário da BP-Britum Petroleo e da Vacuumm, que pertencia ao Sr. José Maria de Carvalho, e o azeite era proveniente de Castelo Branco.

"Esta actividade foi transmitida pelo Sr. Veríssimo, de Poiares – Coimbra, ao Sr. José António Mateus que doou, juntamente com o filho, a totalidade da exposição presente no museu." (...)




O "amolador". Foto e legenda: Cortesia do Museu da Lourinhá

(...) As peças em exposição foram pertences do Sr. Garcia, conhecido como “Espanhol” e doadas por este ao Museu da Lourinhã. O Sr. Garcia, galego e natural da zona de Orense, veio para Portugal fugido da Guerra Civil Espanhola, assim como muitos dos seus conterrâneos, procurando melhor vida. 

Estes exerciam, na generalidade, dois tipos de profissão: Amoladores, na qual eram mestres, arranjando chapéus de chuva, amolando facas e tesouras, actividade que lhes deu o nome, colocando “gatos” (espécie de agrafos) em loiça partida, etc.; e Taberneiros, comprando carvoarias, transformando-as mais tarde em tabernas e depois em restaurantes.

O Sr. Garcia foi disso um exemplo típico. Fixou-se na Lourinhã em 1955 executando sempre a actividade de amolador e adquirindo mais tarde uma taberna, na antiga praça, que era conhecida como “Taberna do Espanhol”.

Da exposição sobressai a roda do amolador, roda essa que o Sr. Garcia doou para o Museu e vinha amolar facas e tesouras na presença dos visitantes, como na foto. (..)



1. Camaradas, que aqui têm escrito, na série "Coisas & Loisas do Nosso Tempo de Meninos e Moços" (*)... 

Já aqui falámos de alguns ofícios e profissões que desapareceram na voragem do tempo ou estão em vias de extinção, mas de que guardamos memórias; ceifeiras, mondadeiras, almocreves. ferradores, nomeadamente no sul do país, na terra do Zé Saúde, Aldeia Nova de São Bento, Serpa. 

Mas havia também usos e costumes que se perderam ou estão a perder, como a vindima (manual), a pisa (das uvas), as desfolhadas do milho, a matança do porco,  as feiras, as nossas primeiras viagens de comboio ou de camioneta até à "cidade grande", etc.

Lembremos aqui (porque também fazem parte da nossa identidade, da nossa infància, das nossas memórias..)  outros ofícios e profissões que desapareceram, no campo e na cidade, com as mudanças operadas pelo desenvolvimento da econonia de mercado, a motorização dos transportes, a mecanização e automitazação do trabalho, a urbanização, o consumo de massa, etc.:

Deixem-me acrescentar mais alguns ofícios e profissões que desapareceram com a industrialização e o êxodo da população rural para as cidades e para o estrangeiro... E dentro das próprias cidades, com a "modernização" (caso do aguadeiro e do limpa-chaminés, por exemplo).

(i) leiteiro e/ou queijeiro que vendia porta a porta (queijos de cabra e ovelha)

(ii) aguadeiro (nas vilas e cidades, antes do saneamento básico) (em Lisboa eram galegosó,  depois dos negros e antes dos escravos)

(iii) cocheiro  (condutor de carroças, charretes, carruagens); falando dele, temos que falar do segeiro, o construtor de veículos de tracção animal, ambos vítimas do automóvel; nas casa ricas o cocheiro passou a "chaufeur" ou chofer...

(iv) correeiro (faz arreios,  albardas para os cavalos, machos e burros) 

(v) sapateiro / sapateiro-remendão (fazendo calçado novo ou só consertos)

(vi) latoeiro / funileiro (no Norte, diz-se caldeireiro; no Norte; trabalha o cobre, a folha de Flandres, faz alambiques, caldeiras, artigos de latoaria...)

(vii) limpa-chaminés;

(viii) borreiro / sarreiro  (limpava comprava as as borras e o sarro dos depósitos do vinho. nomeadamente na regiáo do Oeste e Ribatejo);

(ix) tanoeiro (nas regiões vinicolas)

(x) amola-tesouras / amolador ( oficío muito ligado aos galegos);

(xi) parteira/aparadeira (quando os partos eram em casa, até tarde, ao final dos anos 60)

(xii) barbeiro-sangrador (profissão oficialmente extinta, com a proibição da flebotomia ou sangria m 1875!);

(xiii) boticário (fábricava medicamentos "caseiros" ou segundo formulários  codificados, a pedido do médico,  antes do desenvolvimento da indústria farmacêutica)

(xiv) alfaiate (o pronto-a-vestir matou o alfaiate, que agora só existe na alta costura)

(xv) chapeleiro

(xvi) taberneiro

(xvii) carvoeiro (vendedor de carvão)

(xviii) oleiro

(xix) lavadeira (no rio ou lavouro público ) e engomadeira  (que passava a ferro com ferro aquecido a carvão, hoje "ferro elétrico")

(xx) caiador (no sul, pintavam-se as casas com cal)

(xxi) varina / vendedora de peixe (que se fazia notar pelos seus pregóes e a canastra à cabeça)

(xxii) saltimbanco (ambulante), animando as ruas e praças de vilas e aldeias)

(xxiii) vendedor de água fresca e capilé (nomeadamente nas cidades, no verão) (ver aqui foto do grande fotógrafo portuguès Joshua Benoliel, de 1918)

(xxiv) quinquilheiro (feirante, em geral, que vendia quinquilharia, bugigangas, miudezas...)

(xxv) capelista (vendedor, em loja de quinquilharias ou materiais usados na costura e enfeites de vestuário, como fitas, linhas ou botões, etc.)

(xxvi) vendedor de banha da cobra nas feiras

(xxvii) outros vendedores ambulantes ou em feiras (muitas vezes sazonais, adaptaram-se aos tempos modernos: o assador e vendedor de castanhas, por exemplo; ou o vendedor de gelados e bolas de berlim, nas praias)

(xxviii) ardina (vendia jornais, não confundir com jornaleiro, trabalhador agrícola pago à jorna, como o cavador de enxada)

(xxix) modista / costureira / alfaiate (na realidade eram ofícios distintos, o ultimo era exercido por homens, fazia fatos para homens);

(xxx) bordadeira

(xxxi) ajuntadeira (costureira de botas, sapatos, artigos de pele)

(xxxii) moleiro (no sul, há moinhos de vento;no norte, engenhos movidos a água; engenhos de linho, engenhos de farinha)

(xxxiii) fotógrafo "à lá minuta" (tiraram-nos os primeiros retratos quando éramos miúdos)

(xxxiv) telefonista dos correios

(xxxv) boletineiro (entregava os telegramas)

(xxxvi) engraxador de sapatos (na cidade)

(xxxvii) calceteiro (trabalha no empedramento de estradas, ruas, passeios, etc.).

(xxxviii) canteiro (edreiro ou artífice que trabalha a pedra de cantaria)

(xxxix) matador de porcos, castrador, açougeiro e equivalentes

(xl) pastor / guardador de rebanhos ( adueiro (pastor de porcos)

(xli) regente escolar (do tempo em que não havia em número suficiente professores/professoras diplomadas pelas Escolas do Magistério Primário)

(xlii) regedor (antiga autoridade administrativa de uma freguesia civil; função extinta com o advento do 25 de abril de 1974; era uma #"figura camiliana")


(xliii) sacristão (que ajudava à missa e tocava o sino)

(xliv) carpideira (Mulher ou grupo de mulheres a quem se pagava para chorar ou prantear nos velóriso e enterros, nas aldeias)
(xlv) alcoviteira / casamenteira (arranja ou arranjava casamentos; não confundir com proxeneta)

(xlvi) mineiro (de pá e pica)

(xlvii) alambiqueiro (trabalha na destilação por alambique)

(xlviii) carcereiro (agora "guarda prisional")

(xlix) dactilógrafa/o

(l) vedor (pesquisador de nascentes de água, munido de uma varinha)...


2. A lista não é exaustiva e algumas destes ofícios e profissões, nomeadamente manuais,  podem ser recordados, por exemplo, no Museu da Lourinha, na secção de Etnografia

E em todas as terras da província as alcunhas estavam muitas vezes relacionadas com as profissões (Luís Sapateiro, Jorge Funileiro, o Capelista, Ambrósio Correeiro, o Pitrolino ) ou a naturalidade (Zé Penicheiro, a Bimba, o Espanhol).
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Nota do editor

sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24779: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (12): Almocreves e ferradores, mais alcunhas e locais da Aldeia Nova de São Bento (José Saúde)



O candeeiro a petróleo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.    


 Coisas & loisas do meu tempo de menino e moço


Camaradas,

Foi precisamente à luz de um candeeiro a petróleo que dei os meus primeiros passos de vida. Depois, veio o aprender de o a, e, i, o, u, e um pouco mais tarde a desejada bênção da luz elétrica. Tempos difíceis onde o trabalho, principalmente no campo, era o elemento mais certo para parte de uma comunidade cuja faina ao “sabor” das calamidades não se apresentava desrespeitada pelos magros tostões ganhos na base do suor derramado na imensidão da planície.

Fui uma das muitas crianças que se habituaram a conviver com as carências deparadas no dia-a-dia, porém, e afirmo-o seguramente, que jamais soube o que fora andar descalço, ou falhas alimentares em casa, vestindo sempre aprimoradas roupinhas e esse minino cresceu, fez-se homem e conheceu uma vida repleta de histórias, sendo também que existem outras estórias as quais não renegarei. Ah, também fui militar (Ranger) e conheci o conflito da Guiné.

Quando parti para a edição do livro “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, o 10º dos 11 já editados, admiti que a tarefa que me esperava assumia-se bastante difícil. Encarar e enquadrar no texto geral o fator da intemporalidade, de construções físicas francamente alteradas, por exemplo, ou trabalhar, com minuciosidade a exatidão das eras, das festas religiosas, da origem e evolução do povoado, do cante alentejano e dos seus ilustres cantadores, das festividades originárias de uma plebe que soube comer o pão que o diabo amassou, ou de gentes que sofreram os auspícios que o sistema político impunha, ou de lugares da minha aldeia que paulatinamente se foram transformando, ou ainda as profissões que se foram extinguindo, enfim, uma panóplia de recolha de informações que levaram dias, meses e anos a trabalhar.

Todavia, a obra que deixo ao povo, o meu, será, de certeza, uma mais valia que tem como princípio básico quem somos e de onde viemos. Há gráficos que falam da evolução populacional de entre outros temas que ficarão a posteridade, ou do fluxo de pessoas que procuraram outros destinos, nomeadamente Lisboa e seus arredores, ou da migração para países onde por lá fizeram as suas vidas, proporcionando a alguns ao seu solo sagrado, mas com outras condições de vida.      

A obra é feita de eloquentes factos que nos enchem de orgulho.  

(i) Almocreves    


Um almocreve de outros tempos

      

Os almocreves foram outrora pessoas que lidavam diariamente com animais, sendo os trabalhos no campo, uma das suas principais ocupações. Durante a idade média, até a tempos mais recentemente, os almocreves exerceram, também, a função de agentes intracomunitários, sendo indispensáveis no fornecimento de bens às comunidades que viviam dispersas pelas aldeias, vilas e cidades.

Em Aldeia Nova de São Bento os almocreves marcaram, na realidade, gerações. Foram homens cuja disponibilidade de esforços físicos fizeram parte do seu dia-a-dia. Distribuíam-se pelos lavradores da terra: os senhores Bártolo, Luís Madeira, família Barroso, Guanito, Luís de La Féria, Morgado, de entre outros, e por lá trabalhavam, mas sem folgas ou férias que se protelavam por anos consecutivos. Ou seja, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol e sempre de cabeça erguida. Eram, no fundo, assalariados, mas com um trabalho fixo.

Claro que a jorna não faltava em casas que, à época, não se viam obrigadas a mendigarem, uma vez que o salário não faltava no final de mais uma semana de trabalho que nesses tempos marcavam o pagamento das respetivas jornas. Tanto mais que o almocreve trabalhava de segunda-feira até ao domingo, logo os tostões ganhos traduziam-se numa vida mais tranquila.

Sabia-se que as dívidas da semana feitas na mercearia seriam pagas com o recebimento do pré, isto é, logo na semana seguinte, o que proporcionava ao merceeiro confiança num freguês que não apresentava no seu livro de querelas a condição de mau devedor. Portanto, era um privilégio ser-se almocreve.

As funções de um almocreve dividiam-se consoantes as necessidades do lavrador. Ora era o lavrar da terra para mais um alqueve, ora era o rasgar de regos para as sementeiras, ou para transportar os cereais para as eiras onde as debulhadoras fixas se instalavam, ou transportar o pessoal que por altura da apanha da azeitona, ou das mondas e das ceifas seriam transportadas nos carros de bestas, ou, ainda, em pequenos trabalhos solicitados pelo patrão. Limpezas das cavalariças ou da mansão do seu proprietário, eram canseiras que o almocreve não escusava.

A azáfama dos almocreves pelas ruas da nossa aldeia era intensa. O transitar pelas artérias onde as calçadas em pedra suportavam as rodas dos carros que possuíam um aro em ferro, apresentavam-se propícias para estridentes sons que levavam, amiúde, à curiosidade de crianças que não evitavam saltar para a “arrebicha” de uma “viatura” que para eles, garotos, era simples delícias.

Recordo ver ranchos de pessoas transportadas em carros de animais a caminho dos seus locais de trabalho. Lembro, ainda, a atividade dos abegões em volta de um carro que por vezes tinha necessidade de uma revisão.

Almocreves, uma profissão que, entretanto, se esfumou no tempo!

(ii) Ferradores

     O mestre Gregório


Conheci-o com tenra idade! Homem educado, amigo, sábio na sua arte e sempre afável para com o próximo, o mestre Gregório vestia, diariamente, o habitual fato-macaco (azul) e ei-lo a cruzar as ruas entre a sua casa no Largo da Igreja e a sua oficina, situada defronte à Sociedade 5 de Outubro.

Naquele espaço, fértil em amizades, o mestre Gregório trabalhava minuciosamente as ferraduras para o gado equídeo e para os asininos. Ou seja, ali se juntavam, mulas, machos, cavalos, éguas, burros e burras. Todos estes animais tinham ferraduras apropriadas para os seus cascos.

Contava o povo que, em tempos muito recuados, as sobras dos cascos dos animais eram triviais pitéus para a presença de lobos na aldeia, ouvindo-se os seus uivos ao longo da noite e a plebe assustava-se. Os ferradores, nessas eras, possuíam uma abastada agenda diária de trabalho, dado que a tração animal era, afinal, a única força motora para trabalhar a terra. Neste contexto, ao final do dia não sobrava tempo para uma atempada varredela aos restos dos cascos que por lá ficavam. Tanto mais que a luz elétrica nas ruas era, nesses recuados tempos, vã.

O mestre Gregório fez, na verdade, escola numa arte que sempre o motivou. O ferrar implicava o arrancar de velhas ferraduras e de cravos já gastos pelo muito andamento do gado por caminhos velhos e estradas pulverizadas com pedras.

Do mestre Gregório guardo excelentes recordações. Revejo-o no seu dócil manusear de ferramentas literalmente úteis à sua profissão; da preparação dos cascos dos animais; da turquês para o arrancar dos cravos; do martelo para os cravar; da lima que alisava esses mesmos cascos; o avental para colocar as patas dos animais nas suas pernas; a feitura das ferraduras num lume feito na oficina com carvão de pedra, como na altura se dizia, e com pura veracidade; o trabalhar os moldes; o curvar do ferro na bigorna e tudo à base do fogo; enfim, uma profissão que paulatinamente se foi perdendo no tempo.

Resta relembrar e trazer a público a profissão de ferreiro onde a nossa aldeia foi abundante, existindo vários ferradores que quase não davam mãos a medir para satisfazer as solicitações agregadas à imensa quantidade de animais então existentes. A aldeia e a serra, repleta de famílias, foram assíduos fregueses destas oficinas.

Hoje, as máquinas agrícolas ultrapassaram a força animal de antigamente. Os ferreiros foram substituídos pelas oficinas. Fica, porém, a certeza que o mestre Gregório foi um conterrâneo que deixou história como ferrador na nossa terra.

Ferrador, uma profissão que se conservou ao largo de anos!



Jana trabalhando a arte de ferrador


A profissão de ferrador conservou-se ao longo do tempo em Aldeia Nova. A geração Mira Monge, o João, o Manuel e o Lourenço, um homem que, entretanto, se instalou em Vale de Vargo, foram irmãos que deram continuidade ao ofício e que se entregaram à tarefa com uma enorme determinação. A oficina localizava-se no Largo dos Madalenos, sendo propriedade do João e do Manuel e teve como seu sucessor o Jana, como o povo o conhecia, mas sendo o seu nome próprio João.      

O Jana, para além da sua profissão, a de ferrador, foi um excelente cantador do cante alentejano, pertencendo, inclusive, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Recordo visitá-lo e vê-lo entregue à arte em moldar e trabalhar o ferro e de onde saíam as ferraduras para “calçar” as bestas.
      


 (iii)   Mote para as alcunhas na aldeia 

 Os nomes da minha Aldeia
Há nomes mesmo engraçados
Desde o Porca Chupadiça
Ao Manel Esfrangalhado
O Safarreta, o Catarro,
O Bento em Crendo, o Falcato,
Eu vi o Manel Macaco
Rir do António Chaparro
Por vezes quando me agarro
Recordar é uma teia
O Zé Engancha, o Enleia,
João Bufa, Esgaravana,
Peido, Peidinho e Peidana,
Os nomes da minha Aldeia.
Rei-Varrasco, Escalfa Cães,
O Sacadiço e o Farupa,
Catrapingas, Catraputa,
Sete e Meio e Dois Tostões,
Alho Bufo e Zé Rações,
O Gadelha e o Pelado,
O Beija-a-Poia, o Cagádo,
Facadas e Saltaréu,
Canivete e Faquineu,
Há nomes mesmo engraçados.
Gato Cravo e Paneirinho,
O Zé da Mona, o Garrocho,
O Galdrapas, o Carocho
O Chorrilho e o Chibinho,
O Tigre e o Carapezinho,
O Carola e o Belicha,
Meia-Nalga, Chico Espicha,
O Estrafique, o Biscoito,
Pé-Leve e Luís Dezoito,
Há o Porca Chupadiça.
Pata Curta, Nabo Seco,
Cu de Chumbo, Coradinhas.
O Mil Kilos, o Carinhas,
O Caga Azeite, e o Carapeto,
Cacetadas, Carapeto,
Rasga-a-Manta e Cu Suado,
Zé do Saco e Saramago,
O Mau Bofe e o Cachola,
O Nariz D’Aço, o Engrolo,
Mais o Manel Esfrangalhado 

Autor
Francisco Rafael Rodrigues,
Por alcunha o Carinhas


(iv) Locais de Aldeia Nova de São Bento

MOTE 

Anda tudo em alvoroço
P`ras bandas da varandinha
Porque o monte do Encalho
Namora o Monte da Vinha 

Está à rasca o Carrasquinho
Com a Tapada do Facho
E até a Horta de Baixo
Discutiu com os Alpendrinhos
O Outeiro do Almeirinho
Guerreou com Vale Pedrouços
Vai p`rá farra o Monte Poço
Ao sopapo e aos bofetões
Avança o Poço dos Cães
Anda tudo em Alvoroço 

Há cacetada bravia
Lá p`rós lados da Charneca
O Carapetal aperta
Com o Poço do Tio Matias
Até mesmo na Vigia
Há quem diga que a Laginha
Anda louca embeiçadinha
Pelo Monte do Africano
Pandemónio Franciscano
P`rás bandas varandinha 

Lá na nora do Malquarto
Todos vivem numa fona
Madalenos e Atafona
Não falam do Bairro Alto
A Vareta deu um salto
Fugiu com o Monte dos Talhos
Os Alpendres não quer ralhos
Que a Fonte-Branca incomoda
De mini-saia a Abóbada
Vai ao Monte do Encalho 

Va haver um casamento
Porque há muito que ela chora
A Horta das Pegas namora
Com o Moinho de Vento
O Poça de Lobo atento
Diz para a Horta de Cima
A Cova do Homem é minha
Crespo, Vale Covo e João Gago,
Pias, Ficalho e Vale Vargo
Namora o Monte da Vinha

Autor
Francisco Rafael Rodrigues, 
Por alcunha o Carinhas (16/7/1983) 


Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Texto e fotos: © José Saúde (2023).

___________

Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24761: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (11): A primeira visão aterradora de uma aeronave, um Alouette II ou III, aos 4 ou 5 anos (Cherno Baldé, Fajonquito)

Guiné > Região de Tombali > Catió >  CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) > Alouette II > "O meu batismo em heli". 

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.


Foto (e legenda) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


A primeira visão aterradora 

de um helicóptero aos 4 ou 5 anos 

por Cherno Baldé (*)


Uma valiosa c0ntribuição guineense para a série "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço" (**) 



O Cherno Baldé, em 1987,
na Moldávia, na antiga URSS
Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes.

Estava com o meu irmão mais velho, Ibraima, a pastar as vacas nas imediações da aldeia, quando de repente ouvimos um ruído potente que vinha de cima, 

Quando nos virámos para ver, o avião já estava em cima das nossas cabeças, não dava para fugir, instintivamente, meti-me por baixo de umas raízes enormes de um poilão que estava por ali perto. Escondi-me o melhor que pude mas, foi por pouco tempo. 

Como o meu irmão estava a espreitar o avião e não lhe acontecia nada, sai também para ver. Na altura, os meus olhos viam com bastante nitidez e o avião voava a baixa altitude o que me permitiu ver, após uma breve inclinação deste, as pessoas sentadas, dois à frente e um na abertura lateral com as mãos apoiadas no que parecia ser uma metralhadora.

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória

Estranhamente, era também a visão da guerra que  alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos, criando, mais tarde, a incompatibilidade e a confusão entre o futuro que tínhamos vislumbrado na infância e ao qual queríamos dar continuidade e a nova realidade para onde nos tinha empurrado um destino diferente, passando pela escola portuguesa e enfrentando, assim, um futuro incerto e completamente desconhecido que nos levaria primeiro para Bafatá e mais tarde à capital, Bissau, onde funcionava o único liceu, na altura, e mais tarde para terras distantes e desconhecidas, no estrangeiro.

Uma vida feita de aventuras interessantes e também de sofrimentos, de conquistas e derrotas, de descobertas e imposições, de solidariedade e mercantilismo, sempre em ambientes de opressão cultural permanente e de recuo impossível, fruto da rápida transformação e globalização a que fomos sujeitos pela máquina de dominação Europeia e Ocidental.


Cherno Abdulai Baldé, Chico

Natural de Fajonquito, Sector de Contuboel, Região de Bafatá | Pertence à Tabanca Grande desde 18/6/2009, e tem cerca de 285 (!) referências no nosso blogue. É nosso colaborador permanente, especialista em questões etno-longuísticas. É autor de, pelo menos, três notáveis séries de conteúdo autobi0gráfico:
  • "Memórias do Chico, menino e moço";
  • "Memórias do Chico no Império dos Sovietes";
  • "Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito".
Vive em Bissau, onde é quadro superior numa organização estrangeira.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

sábado, 14 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24758: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (10): Mondadeiras, Ceifeiras e as Eiras no rossio (José Saúde)


As mondadeiras com o seu sacho



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços

Camaradas,

      Acomodado ao peso de uma idade onde o limite toca a infinidade do horizonte, lá vou caminhando por picadas incertas, agora não armadilhadas, mas jamais deixando debitar memórias que o tempo ousará apagar, enquanto a mente assim o permitir.

      Em “Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço”, recorro à obra dantes aqui citada e que se prende com a existência da terra que me viu nascer, 23 de novembro de 1950, cujo documento ficará perpetuado para as gentes aldeãs: “ALDEIA NOVA DE SÃO BENTO – MEMÓRIAS, ESTÓRIAS E GENTES”, edição Colibri, Lisboa.

      Hoje, leva-me a saudade a recorrer aos afazeres de homens e mulheres do campo de antigamente, sendo que cito precisamente as mondadeiras, as ceifeiras e as eiras no rocio grande.  Acrescento, ainda, um conjunto de expressões populares redigidas sob a pena do senhor Silva, um homem culto e que deixou memória na minha aldeia.

      Como eram felizes aqueles tempos de criança, neste caso no Sul alentejano!


Mondadeiras

      A monda fora uma ocupação específica que as mulheres exerceram nos campos, onde a finalidade era colher as ervas daninhas para a seara crescer sem os perigos provenientes de nefastas calamidades que o tempo por vezes causava. Ou seja, uma avalanche de ervas nocivas que impediam o crescimento para uma boa seara.

      As mondadeiras, com um sacho numa das mãos, seguiam em rancho a caminho dessa tarefa, tarefa esta inserida numa fase em que as searas, ainda pequenas, eram trabalhadas ao pormenor, colhendo-se, sobretudo, os pés de balanco que se confundia com os pés do trigo já nascido.

            Idas e vindas dos locais de trabalho, eram, muitas das vezes, a entoarem os famosos cantes alentejanos. As mulheres juntavam-se num determinado local, isto é, a uma das esquinas ou largos da aldeia, e lá partiam rumo à courela do senhor fulano tal.

      Nesses tempos existiam os manajeiros que, com um bordão na mão, nada lhes escapava. As mulheres, agachadas, tentavam ver ao pormenor tudo o que fosse erva para arrancar. E se existisse uma falha lá estava o manajeiro a mandar uma reprimenda a uma outra moça que, entretanto, começava a exercer tal função. Outra vezes era o próprio patrão que, numa ronda para se inteirar do evoluir do trabalho, lá detetava a possível falha.

      Neste capítulo, importa referir que uma das mondadeiras assumia a função em dar águas às suas companheiras. Uma tarefa que se dividia pelo rancho das mulheres. Com uma “enfusa” debaixo do braço, lá ia “matando” a sede àquelas que porventura necessitassem do tão precioso líquido, principalmente quando o sol, ainda baixo, raiava a pique.

      Os horários das mondadeiras eram do nascer ao pôr-do-sol. Havia as horas para almoçar e para a merenda. De resto, o árduo trabalho passava pelo suportar a incómoda posição em que as mulheres, ao longo do dia, estavam sujeitas.

      As jornas eram magras, mas assumiam-se como maquias importantes no orçamento familiar, tanto mais que os tostões ganhos reforçavam a compra de bens alimentícios.

Mondadeiras
(Luís Madeira)

Mondadeiras lindos ranchos,
Lenços de todas as cores,
Vão mondando e vão cantando,
Cantigas aos seus amores.

Um dia mais tarde quando,
Chega a ceifa que alegria,
Vão ceifando e vão cantando,
Mais depressa passa o dia.


Ceifeiras

      O mês de maio era o tempo das ceifas, ou das “acêfas” como habitualmente as nossas gentes o mencionava. As mulheres com uma foice, uns canudos feitos em cana para protegeram os dedos das mãos no manejo da sua foice, um lenço enrolado à cabeça, por cima um chapéu, meias de lã grossas para evitarem uma “espargana” de todo desaconselhável, visto o incómodo que causava era desagradável, utilizando roupas do tipo camponesas, e eis as ceifeiras, em rancho, prontas para mais uma jornada de trabalho. Porém, já no campo havia sempre uma que cuidava de fazer o lume e zelar pelos jantares das companheiras.


Cuidando do almoço

      Eram os tempos em que homens, por vezes, também se intrometiam neste árduo trabalho. Todavia, a ceifa era, sobretudo, uma ocupação mais adequada para o elemento feminino. Contava-se que, por norma, as mulheres, em cada faixa trabalhada na courela, ocupavam-se com dois regos para ceifar, começavam numa ponta, acabavam na outra, sucedendo o inverso quando a etapa terminava e logo recomeçava. Porém, existiam aquelas, que se admitiam como mais valentes, que levavam três regos de ceifa.


Momento de dar água a uma companheira

      Ceifavam e faziam pequenos molhos de cereal que a seguir eram transformados em outros molhos com dimensões superiores. Entretanto, tanto os molhos mais pequenos como os maiores, eram devidamente atados e encostados para o seu carregamento se tornar mais facilitado.


      Depois de o ceifar da courela outra se seguiria e por fim fazia-se a adiafa. Nesses tempos as trovoadas de maio, principalmente aquelas vindas dos lados da serra da Adiça, algumas medonhas, não davam folgas às ceifeiras. A ceifa parava, as mulheres aconchegavam-se junto aos pés das árvores, chaparros ou oliveiras, ou acomodavam-se junto dos molhos já feitos e prontos para seguirem para as eiras. Isto porque os molhos eram colocados em pé, tendo em conta essas adversidades naturais, logo, tornava-se mais fácil um enxugar da semente mais rápida.


      “Ceifeiras, lindas ceifeiras”, sim, vocês foram mulheres camponesas que o rigor do tempo jamais vos incomodou.


      Aqui fica a nossa singela homenagem a essas mulheres de outrora!

Ceifeira, linda ceifeira (retirada do cante alentejano)

O sol é que alegra o dia
Pela manhã quando nasce
Ai de nós o que seria
Se o sol um dia faltasse
Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira!
Eu hei-de,
Eu hei-de casar contigo!
Lá nos campos
Lá nos campos, secos campos
Lá nos campos, secos campos,
À calma
À calma ceifar o trigo,
Pela força
Pela força do calor!
Ceifeira!
Ceifeira, linda ceifeira
Ceifeira linda ceifeira,
Hás-de ser o meu amor!
Não é,
Não, não é a ceifa que mata
Nem os calores,
Nem os calores do v’rão!
É a erva,
É a erva unha-gata,
É a erva unha-gata,
Mais o cardo beija-mão!
Ceifeira!
Ceifeira, ó linda ceifeira
Eu hei-de casar contigo


Eiras no rossio


Eira no rossio onde o trabalhar das patas dos animais eram importantes

      A debulha feita sob com as patas dos animais era, de facto, interessante. Recordo os tempos das debulhas no rossio grande, local próximo das escolas primárias. Horas infindáveis a debulhar o cereal que os animais em círculo, e orientados pelos almocreves, lá passavam horas a separar o grão da palha.

      Primeiro chegavam os carros de bestas carregados de molhos, depois esses molhos eram desatados, seguindo-se o seu deitar, com preceito, na eira e finalmente a debulha.



Joeirando a semente numa eira no rossio

      Tudo, nesses tempos, tinha as suas regras. O homem, no centro da eira, tinha a perceção quando este primeiro trabalho se encontrava finalizado. Ou, a necessidade de dar continuidade à safra. Entretanto os miúdos entretinham-se a ver a azáfama dos homens.

      Com o primeiro patamar do trabalho concluído, passava-se para a fase seguinte: separar os grãos da semente da palha. Um serviço que por vezes se prolongava por muitas horas. Com uma pá o homem jogava para o ar o produto em bruto, mas quando não havia maré, não valia a pena insistir no penoso trabalho. O vento não soprava, logo, tinha-se, forçosamente, que se fazer uma espera.

      Por vezes lá vinha uma rabanada de vento, o homem aproveitava a maré e lá seguia o seu trabalho. Mas, de repente o vento silenciava-se e a pá recolhia aos seus aposentos. Muitas das vezes valia aquela parte da madrugada em que o vento voltava a dar um ar da sua graça, razão que levava o homem a um suspiro de alívio e terminar a lida.

      Noites, malpassadas, em que o homem acabava por não dormir, por causa da ausência da maré. Depois vinha o ensacar do grão num saco cujo destino era o celeiro, situado ali por perto, e a palha levada por carros com uma rede trabalhada acima dos taipais, sendo o destino final o palheiro, onde se guardava a forragem para os animais comerem ao longo do ano.

Eram assim as eiras de antigamente no rossio.

Expressões Populares de Aldeia Nova de S. Bento
(António Loureiro da Silva, 1991)


Estar contente é desvaído,
Homem grande é taçalhão
Leviano é estaravedas
Beliscar é refelão.
Mulher ruim é cochina
Chover brando é molisnar
Naco de carne é uma presa
Andar mal é salamanquear.
Discussão é batibarba
Desleixado, desbagochado
Ao nojo chamam rascunho
Ao inchaço, assolapado.
Chamam chispa à azeitona
Apanhada de empreitada
Denunciar é ameseio
Comida de verão, lavadas
Lida apressada, trafuna
Mulher imoral, jaronda
Ser esperta de mais, bespeta
Mulher suja é uma tronga.
Mulher porca é uma rafada
Inventar é alcatear
Palhaçadas são archotes
Pressentir é barruntar
Uma mobília é um estado
Melhor roupa, vestir de grave
Também chamam algaramojo
Às sardinhas com tomate
À chuvada repentina
Chamam-lhe esgaravanada
Muito falada, almotaço
A pedrada é caqueirada
Gastador é estrafalairo
Ter mau génio é revinhento
Vento frio é bisaranha
Irritadiço, perliquitento
Muito cheio é abarruntado
Um naco grande é farrajo
Cabelo alto é maronga
Coisa velha é tarraço
Sol muito forte é esturreira
Refilar é extrapaciar
Chuva rija é zurregada
Deixar de chover, escampar
Ter maldade é má ralé
Pedrada é bolegada
Ser parvo, é catarete
Chuvada forte é tuchada
Já chega é tem avondo
Dar uma queda é um estoiro
Muito magro é encartadinho
Fóu significa nojo
A diarreia é vareta
Muito calor, encalmado
Roupa da cama é fato
Muita febre, esbraziado
O trabalho é digudana
Muita sede, estar escalado
Barulho é lavarito
Estar doente, abarracado
Glutão é garganeiro
As caretas são mutetes
Botas de pano, criminais
Ser sabido é alquetete.
Tonturas são almareios
Estar ferido, escalavrado
Chuva miuda, corgeiro
Zangado enchibatado
Mulher chata é uma vima
Desejar é apojar
Leviana é vanzinha
Aparecer é acolar. 

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)

Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)

Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas

Marco de Canaveses > circa  1947 > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho


Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).


1. Já aqui publiquei,  há dois anos atrás,  várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)

Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74),   encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li,  as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a  conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé,  "menino e moco em Fajonquito").0

Não sendo propriamente um "menino da cidade", tendo vivido numa pequena vila à beira mar, Lourinhã, com avós, tios e primos ali ao lado, no campo, a 3 km de casa  (Nadrupe e Quinta do Bolardo), eu também acompanhei,  até aos meus 10, 11, 12 anos,  algumas das atividades marcantes da vida rural,  como a panha da fruta (as macas, os fihosGomo as vindimas, em setembro, ou a matança do porco, em pleno inverno.

Na região do Oeste, na Estremadura da minha infância, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha no tempo em que o vinho, dizia a propaganda nacional, dava de comer a um milhão de portugueses....  Era também um conde lho de muitas  "caldeiras"  (destilarias) onde se "queimava vinho" para a produção de aguardente vínica com destino à região demarcada do Douro.

Deslocavam-se os ranchos beirões, em grupos com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha e o trigo deu lugar a outras culturas mais rentáveis, primeiro os pomares de pera rocha e depois as hortícolas, hoje as estufas, a batata, as abóboras, etc.

Mais tarde, a partir de 1975, descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar...

2. Estas  e outras tradições, ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e ainda em grande parte de autossubsistência (como aquela que se praticava até aos anos 50/60 em Entre Douro e Minho), hoje já se perderam, embora perdurando na memória dos "antigos"...  

Voltei a encontrá-las (e a saboreá-las) no livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos". Achei que havia similitudes entre Medas (Gondomar) e Candoz (Marco de Canaveses), afinal estamos a escassos 60 quilómetros de distância, na mesma região, a de Entre Douro e Minho. E até com algumas das recordações da minhas idas à aldeia dos meus avós e tios.

A primeira parte do livro (e nomeadamente a reconstituição do quotiano da vida rural em Medas, Gondomar,  até aos anos 60 do séc. XX) tem inegável interesse documental (e até etnográfico).  

E, mais, tem interesse sociológico: muitos dos homens e mulheres da nossa geração ( que fez guerra colonial / guerra do ultramar, 1961/74) conheceram a dureza da vida no campo e do trabalho agrícola, e, em muitos casos, foi vítima, "avant la lettre", da exploração do trabalho infantil.

Para além da riqueza das observações sobre as culturas e as atividades agrícolas, os apontamentos que o autor nos deixa sobre a sua infância são saborosos  pelos regionalismos ou provincianismos usados, parte dos quais  continuam por grafar nos nossos dicionários ou então são deconhecidos de muitos falantes da língua portuguesa, a começar pelos citadinos e pelos mais novos.

uma subcultura camponesa do Norte que está em extinção. Na realidade:

  • quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?  
  • e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
  • "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
  • tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime); 
  • ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.

A "ajuda rogada" é uma expressão idiomática que me parece muito mais nortenha do que sulista. Ou mesmo se pode dizer de "carro de milho" como medida, ou o "almude" ou a "talha de barro almudeira" (onde se guardava o azeite)... 

Embora o sistema métrico tenha entrado em vigor em Portugal, por volta de 1860, com a intenção de se uniformizae o sistema de pesos e medidas (mudança fundamental para a criação de um verdadeiro mercado e, portanto, para o desenvolvimento da economia capitalista, a par das estradas, do caminho de ferro, da máquina a vapor, do código comercial, etc.), persiste até hoje, no campo, o uso das antigas unidade de  medidas portuguesas, como por exemplo, moio, alqueire,  quarta, oitava, maquia , etc. (medidas de capacidade para secos); ou tonel, pipa, almude,pote, canada, quartilho, etc. (medidas de capacidade para líquidos).

Há, no livro do António Carvalho,  expressões deliciosas, castiças, e outras de que lembro de ler e ouvir no Norte, como:

  • "à  medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
  • "tanger os bois";
  • "guiar à soga";
  •  "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
  • "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
  • "um terço de despacho (desembaraço)";
  • "com a sua licença, o porco";
  • "apercar";
  •  "freima";
  • "aneira";
  • "anos minguados"
  •  "barco rabão";
  •  "sortes" ... 

Enfim, vocábuos e expressões, de sabor castiço, camiliano, que enriquecem a língua portuguesa, embora tendam a desparecer ou sejam cada mais de uso local ou restrito, face ao "rolo  compressor" dos mídia, da televisão, das redes sociais, da globalização,  etc..

Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro  do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação  (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro)  é absolutamente  obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)


António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.

(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.

(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !

(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214)  (...)

A PISA E A DESFOLHADA


Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas. 


Na nossa casa [ em Medas].e nas de envergadura semelhante era sempre preciso assalariar mulheres , sobretudo na vindima, mas também na colheita do milho porque, antes que viessem as chuvas de outubro, o vinho tinha que estar nas pipas e as espigas no canastro. 

Enquanto um carro [de bois, não havia ainda ] andava no transporte das uvas, dos campos para o lagar, o outro carregava as espigas, para a eira. O lagar grande, de quatro pipas, levava dois dias a encher, mas o mais pequeno ficava lotado num só dia. Se hoje havia uma pisa , amanhã podia haver uma desfolhada. As uvas eram pisadas à noite, sempre com a ajuda rogada dos nossos vizinhos. 

Nós, os da casa, à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar, não tínhamos como evitar esse esforço acrescido, mesmo depois de um dia de trabalho pesado. 

É certo que, quando chegávamos ali aos treze ou catorze anos, entrar pela primeira vez no lagar era sinal de que já éramos homens e essa assunção, havia muito tempo almejada, de uma pretensa maioridade, envaidecia-nos. 

O meu avô nunca pisava, mas estava sempre presente para servir vinho e cigarros aos pisadores, ao mesmo tempo que apontava para um ou outro ponto do lagar onde a grainha ainda não tinha chegado à superfície, sinal de que era preciso ali mais pé. O meu pai, esse andava por ali a dessarroar as pipas e a apertar-lhes as aduelas ou agarrado à prensa a aproveitar os últimos litros de vinho. 

No fim de cada pisa, à ordem do meu avô, saia o primeiro pisador e só se lhe seguia o segundo depois do primeiro ter lavado as pernas, e assim sucessivamente até ao último. 

Alguns pediam aguardente para se livrarem da comichão nas pernas aproveitando para, de um só trago, engolir um pequeno copo dela, antes que todos subissem as escadas de acesso à nossa grande cozinha, onde a minha mãe e a minha tia tinham posto na mesa três travessas grandes de arroz de tomate com bacalhau frito. 

Lembro-me de me sentir grande quando já fazia parte do grupo dos pisadores, sentado ali à mesa, com os meus irmãos mais velhos e o pessoal de fora.

As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele. 

Havia sempre um dos meus irmãos a subir a escada de acesso ao canastro, onde cabiam mais de seis carros de milho, enquanto outro se ocupava a acomodar as espigas dentro das divisórias. 

Era ali que as espigas ficavam a secar, para serem debulhadas, à mediada que precisássemos do milho, em qualquer dia de céu limpo. Debulhava-se sempre para cima de um carro de cada vez, guardando-se o milho, já limpo, numa das caixas grandes que tínhamos em casa. 

E era dessa caixa, enorme aos meus olhos de criança que, todas as semanas, se enchiam dois sacos para entregar ao moleiro que os arrochava sobre o dorso das mulas.

E não era demasiado o milho que mandávamos moer, porque para além da farinha para a fornada semanal, também os dois porcos grandes, que se queriam gordos, gastavam dela.


A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA


Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado. 


E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo,  tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume. 

Ora nessa área de terreno  inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas  por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução. 

Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato,  vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.

 Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas  lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade

lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa. 

As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.


A CULTURA DA BATATA


Logo a seguir ao milho e ao vinho,  a batata era o produto mais representativo na nossa casa de lavoura, em termos de volume e de rendimento. 


Desde a década de quarenta até à minha adolescência uma parte significativa do trabalho era dedicado ao cultivo deste tubérculo que, semeado entre março e abril, não carecia de rega, adaptando-se assim muito bem aos nossos terrenos onde a água não abundava. 

O meu avô e mais tarde o meu pai deram uma especial atenção ao incremento desta cultura e terão sido, durante duas ou três décadas, os maiores produtores de batata da freguesia. 

Em quase metade dos nossos campos, bem estrumados, semeávamo-las, ficando os restantes, aqueles que podiam ser regados, dedicados ao milho e feijão consociado. Depois de se ter coberto o terreno com uma boa camada de estrume, lavrava-se e gradava-se com os bois. 

O trabalho de que mais gostava, aí pelos meus oito ou nove anos, era de me sentar na grade, agarrado com uma das mãos a uma das travessas enquanto que, com a outra munida de uma vara, tangia os bois à ordem do meu pai ou de um irmão mais velho que os guiava à soga. 

Não me dói a consciência por , com o meu peso, exigir aos bois aquele esforço suplementar, porque, se não fosse eu a desfrutar daquele prazer, um calhau grande seria lá posto na minha vez para fazer os dentes da grade penetrar bastante na leiva.

Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado. 

A minha avó materna também ajudava algumas vezes bem como a minha tia Quina, mas ficavam-se por um terço do despacho da minha mãe. O meu avô dirigia as operações dos homens da enxada, enquanto o meu pai já andava a lavrar outro campo. 

Havia normalmente dois ou três homens a abrir regos e meu avô, sabendo da capacidade e vontade de cada um, mandava sempre o mais lento começar no primeiro rego, deixando o último para o trabalhador melhor, forçando deste modo os mais lentos a andar da perna, antes que o mais rápido esbarrasse com ele, o que seria uma vergonha para o atropelado. 

A mim, como a qualquer um dos meus irmãos, a partir dos sete ou oito anos, estribados por uma varinha de vinte e cinco centímetros, cabia-nos a tarefa de dispor as batatas nos sulcos que os adultos iam abrindo.

Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva. 

Entretanto era preciso pulverizar os batatais com calda bordalesa e inseticida de modo a erradicar-se o míldio e o escaravelho. Julho e agosto eram os meses da colheita e do armazenamento numa loja fresca e escura. 

Tínhamos batatas em barda e, como a produção excedia largamente o consumo, vendíamo-las para as mercearias da freguesia e até para o Porto onde as fazíamos chegar por barco rabão.

Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado. 

cultura do nabal era também muito rentável, até aos anos sessenta, quando vinham diariamente meia dúzia de mulheres da outra margem do rio, comprar grandes quantidades de nabos que carregavam em gigos bem acogulados, destinados à alimentação humana e à engorda de porcos.

O AZEITE , O ÓLEO  DOURADO


Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura. 


Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados. 

Entre novembro e dezembro  era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados,  deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de  evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.

A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.

 Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas. 

A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.

Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)

© António Carvalho (2021)

(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)




Capa do livro do  António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro (se não estiver já esgotado) pode ser adquirido, ao preço de 15,00 euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) | Contactos do autor: António Carvalho, Medas, Gondomar | Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
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Notas do editor:


17 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)