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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10828: Conto de Natal (4): Era uma vez tantos soldados na guerra (Armando Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 16 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Amigos e Camaradas Editores.
Quando enviei o meu ultimo relato, o 4º da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista", despedi-me até depois do Natal.
Tanto bastou para que, pelo telefone, me chegassem dois remoques - Olha lá, então não falas da noite em que as barbas do Pai Natal arderam?

Reconhecendo a razão de quem assim protestou, escrevo, mas decidi fazê-lo em forma de conto.
Dedico-o a vós, meus editores, e a todos os camaradas que sentiram essa dolorosa experiência de um Natal em guerra e sem família.

Reitero aqui o meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.
Abraços.
Armando Pires


Breve Conto de Natal

Era uma vez tantos soldados na guerra

Por Armando Pires

E foram tantos sem saber bem porquê nem para quê.
Foram, simplesmente.

Alguns ainda meninos de coração inquieto e peito alvoraçado, outros homens feitos de vida dura e mãos calejadas, uns e outros quando tinham os sonhos iluminados por resplandecentes sóis de vida e amor, depois povoados de saudades e medos.

Uma manhã, o despertar foi ao som da algazarra nas casernas, anunciando a chegada do Natal. Mas aquele seria um Natal estranho e diferente dos que antes haviam tido.

Sem neve, sem frio, sem árvore de mil luzes a brilhar, sem lareira, sem chaminé, sem o calor da casa, sem o amor da família que ficara lá tão longe.

Eram pais, mães, irmãos, mulheres, filhos, que amargavam agora a tristeza daquele lugar vazio à mesa, disfarçando a dor em filhoses ensopadas de lágrimas, em fatias de peru que sabiam a fel, partilhando desesperadas orações ao menino que nessa noite havia de chegar, para que depois protegesse o outro menino, o seu, que estava na guerra, sabe Deus em que sofrimentos metido.

Lá onde eles estavam, bem que dispensavam as peúgas de lã, a camisa de linho puro, as luvas de pele forradas, tudo o que naquelas noites o Pai Natal lhes deixava no sapatinho.
Por isso, no correio militar, mandaram-lhes chouriços e queijos, nacos de presunto e broa, figos secos e nozes, e até um chocolate, Santo Deus, para adoçar a boca do menino.

Foi uma festa pegada, lá na guerra, quando chegou a hora de desfazer os embrulhos. Nem faltou um Pai Natal para dar mais verdade à noite.

O Meneses, beirão de Viseu, ali a fazer de furriel, irrompeu no quarto dos seus pares exibindo umas fartas barbas brancas, feitas do algodão que na enfermaria lhe deram. Por entre aplausos celebrando a chegada de tão significativa personagem, ele a todos foi distribuindo mangas e cajus frescos, que tirava da saca que trazia às costas, enquanto ia desejando um Bom Natal.

Foi então que um outro furriel, o Gesteiro, vindo do mar de Peniche, chamou o Meneses a dar a volta pela festa dos outros homens, a começar pelos seus, que eram os das transmissões, e a acabar nos do Meneses, que eram os mecânicos das viaturas. E saíram prometendo voltar.

Mas que diferentes vieram.

O Gesteiro gritou ao Pires que acudisse ao Meneses. Tinham ardido as barbas de Pai Natal.

Levados pelo Pires, que era o enfermeiro, de um lado o Meneses sofrido com a pele do rosto queimada, do outro o Gesteiro a contar que o Meneses lhe pedira lume, que o cigarro tinha a ponta mesmo à flor do algodão, e que foi um repente para que o lume tomasse conta das barbas.

Lá na enfermaria, pensando como havia de tirar o algodão da cara do Meneses, o Pires ficou estarrecido quando ele lhe disse que para prender as barbas usara um pouco de cola lá da sua oficina.
Foram momentos de grande aflição os que aqueles três homens passaram.

O Meneses de olhar vítreo e temendo a dor. O Pires procurando a forma de, com mil cuidados, tirar o algodão da cara do Meneses sem trazer a pele atrás. O Gesteiro, todo ele era uma aflição.

De um lado para o outro, vagueando pela enfermaria, culpabilizava-se pelo sucedido, pedia desculpas ao Meneses dizia ao Pires, “tem cuidado oh amigo, tira isso devagar”.

No fim, o Pires, mostrando ao Meneses, num espelho, como a pele do seu rosto tinha sido salva, avisou-o:
- Olha pá, para prevenir vou já injectar-te com um anti-inflamatório.
- Oh Pires, e isso não vai doer?
- Dada por outro, ia, dada por mim vai doer mas poucochinho. Mas tem que ser.

Vai o Gesteiro, num desvario, agarra com firmeza o braço do Pires e determina:
- Oh amigo, não pode ser. Quem teve a culpa fui eu, dás-me a injecção a mim.

Em Bissorã, uma estrela voou no céu, e em Belém, a sorrir, nasceu o Deus Menino.

Bissorã, 24 de Dezembro de 1969.

Bissorã, 1970 > À esquerda, de pé, o Gesteiro, fur. mil. de transmissões, ao seu lado o Meneses, fur. mil. mecânico auto, à direita, em primeiro plano, o Pires, ao seu lado um civil que era vedor e ali fazia prospecção de águas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10824: Conto de Natal (3): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (3) (Armor Pires Mota)

Guiné 63/74 - P10824: Conto de Natal (3): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (3) (Armor Pires Mota)

1. Terceiro capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65):


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?


3.º Episódio

Ah, o João! O Queta!

Neste ponto, outra tristeza, uma imensa tristeza, veio habitar-me, de assalto. A lembrança de João plantou-me um remorso na palma da mão, ou uma lâmina de fogo no peito, não o posso negar. Doeu-me não ter feito algo mais para levá-lo para Lisboa, como ele tanto desejava. O João (parece que ainda estou a vê-lo…), um exímio contador de histórias, de sorriso largo, que gostava de usar óculos escuros, e o Queta, destemido e de grande capacidade de sacrifício, pescoço sempre adornado de amuletos e fetiches (os indispensáveis guardas de corpo), supõe-se que vieram a ser fuzilados, após a independência. Era a caça, a vingança desproporcionada, aos que, milícias ou comandos, haviam combatido do nosso lado. Iam buscá-los ao fundo dos esconderijos, às aldeias mais remotas e mais fechadas.

João e Queta, soube ao outro dia, andaram clandestinos por algum tempo, viveram no Senegal e por muito outro chão, até que vieram parar à aldeia de Algures que bem conheciam, julgando que a fúria assassina que levava aos fuzilamentos e enterramentos em valas comuns, Cumeré, Porto Gole, Mansabá, de antigos militares, cipaios, antigas autoridades gentílicas, já havia passado. Sabiam que ali tinham amigos e que todos, sobretudo, as mulheres, iriam rezar certamente a Alá pela sua protecção, à noitinha de todos os dias. Aos irãs de todos os entardeceres. E no seu coração de todas as horas.

Erraram em seu julgar.

Descobertos, de mãos amarradas atrás das costas, os cubanos queimaram-lhes o peito, as mãos e os pés com lume de cigarro ou de charuto. Moeram-lhes o corpo de punhadas, tatuaram-lhes sinistros vergões, as costas ficaram em sangue vivo. Chegavam a desmaiar. Nessa altura, enfiavam-lhes com a cabeça em baldes de água. Quando acordavam, os carrascos (não se sabe também por que foram entregues aos cubanos para o vergonhoso calvário…) repetiam a cena, entre cínicas gargalhadas, vezes sem conta, insultando sempre. Até ao cansaço e ao esgotamento. E gritavam-lhes, de raiva e sarcasmo: “não chorem, traidores, as lágrimas podem fazer falta para amanhã”. [Amanhã era o dia do fuzilamento, pensavam João e Keta, com mais insultos, mas sobretudo com uma alegria enorme e aberrante, quase cantante]. “Aos traidores nunca se perdoa, não valem um morrão de cigarro, estão vendidos ao imperialismo, ao colonialismo! Lutaram contra os interesses do país e do povo. Não são dignos de viverem à sombra da bandeira e do sangue dos outros.”

Segundo uma mulher, peles já amarrotadas como papel de almaço velho e carregado de arabescos, não sei qual, mas com toda a certeza a de mais de meia-idade – não, não fora aquela cuja pele vestia panos, mas sobretudo muitas rugas e anos, e cujas feições, até pela cor, me lembraram logo uma índia, já sei que isso é um rotundo disparate… – segundo essa mulher, os cubanos haviam-nos também proibido de falar ou gritar. Por cada palavra ou grito, uma intempestiva chicotada zunia no espaço e vergastava-lhes os músculos, reduzia-lhes as defesas. O ódio sempre foi, em todo o mundo, a força dos medíocres.

Ao mesmo tempo, atacavam o imperialismo americano e os colonos brancos com um palavreado revolucionário, e de punho esquerdo no ar. Também não esqueceram, fazendo forçadas comparações, os cubanos anti-castristas que haviam fugido para a Florida, chamando-lhes muitos nomes, como “puercos, cabrones, hijos da puta” e às mulheres “unas cabras”… e soltavam, pois claro, gritos de vitória: “viva Amílcar Cabral; viva Luis Cabral; viva Nino; viva “Guiné libre” e “tambien Fidel, el comandante”; viva a revolução popular!”; “viva o povo”, “viva…viva”.

O povo estava finalmente livre, “gracias a la guerra”. Povo que não tardava a ser esquecido, e alguns combatentes também, como, aliás acontece em todas as revoluções, com as patentes superiores a puxarem a si os galões e o mando, às vezes, férreo, de algemas. É a luta de facções, com os comandantes sempre muito nervosos.

João e Queta tiveram o azar de muitos, muitos outros. Era a hora das trevas e do ódio. Depois, desapareceram. Foram fazer estrume em valas comuns ou voaram nas asas dos terríveis jagudis? Ninguém sabia exactamente como tudo se havia passado longe dali, como num açougue. Tudo o que sabiam chegava, aos poucos, através de conversas curtas, cochichadas no bentabá, entrecortadas de medos. Pequenos pormenores apenas.

Ao terceiro dia, falaram-me de um antigo paiol do exército, situado em Farim. Um buraco onde não entrava um raio de sol, tão pouco uma réstea de ar, mas onde couberam dezenas de milícias. Passado pouco tempo, haviam morrido todos por asfixia, à excepção de um a quem deram um copo de água e um pouco de ar, mas, solidário no fim, foi juntar-se ao amontoado de dezenas de mortos. Os corpos desapareceram e nem tinham a certeza de que tudo fora assim como a notícia chegara a Algures.

Eram, sem dúvida, perguntas incómodas. Ou, o mais certo, poucos queriam recordar. Lembranças, mais do que dolorosas, eram também aborrecidas. Evitavam, a todo o custo, a memória, o dia ou os dias da grande ira, porque não foi uma só a hora nona das trevas e da morte, do terrível ajuste de contas. Era a hora do ódio que restava da guerra; cresciam a dor e o desassossego e faltava o amor. Isso era notório, ninguém assumia falar na situação política do país, por vezes, com o futuro armadilhado. Povo pasmado. A revolução já não era do povo, como tanto haviam proclamado os novos senhores de Bissau, entendia-se no seu entreabrir cuidadoso de palavras breves.

(Aqui está uma teia de casos e pistas a seguir e a desbobinar por atento investigador, que não eu, pelos difíceis carreiros da verdade. Decifrados todos os enigmas e paradoxos, isso daria, estou certo, material bastante para um bom romance).

Mentiria se não dissesse que deixei correr algumas lágrimas sobre um farrapo de esteira de bambu, desfeita como aquelas vidas. Recolhi mesmo em meu peito espantado uma pequena flor de silêncio e rezei-lhes por alma, ao mesmo tempo que prometi, já que não sabia em que vala comum foram lançados os corpos (e jamais alguém saberia?) sem choro, orações e batuque, ir lançar-lhas, em sua memória, nas brisas ou nas canoas dos rios Corubal ou Geba. E por que não em ambos ou em todos? Ou, pensando melhor, até pode ser no talhão dedicado aos ex-combatentes no cemitério de Bissau. Ali até faz mais sentido. Aliás, todo o sentido! Ou no cemitério de Bafatá, ainda que exiba a maior degradação Aqui se misturam em correrias de inocência crianças, cabras, cabritos e galinhas. Os cabritos são quem mais salta e cabriola sobre as campas brancas ou verdes. Também as de alguns soldados negros, de recrutamento local, lado a lado, tanto na vida partilhada de medos e risos como no silêncio derradeiro e inútil. Se quer saber, o de Bambadinca não está em melhor estado. Vedação escassa de esteira de cana de bambu, é uma lixeira aberta. Decidi-me pela primeira opção.

Um pouquinho mais de sorte teve o V. Seabra. Já ouviu falar neste nome? Só não foi encostado ao muro e fuzilado, embora a morte o rondasse como abutre, porque os maus-tratos, esses foram iguais, se não piores. E prolongaram-se. Vagomestre de uma companhia do meu batalhão, resolvera ficar. Casara em Bissau com uma bonita libanesa, locutora da rádio. Montou empresas, empregou homens de cor. Uma delas foi responsável pela limpeza da capital, durante muitos anos. Aproximou-se de Nino. Mas nem esse cartão lhe serviu de nada. Os cubanos estavam em alta, achavam-se também vencedores. Conheceu a perseguição feroz, a confusa e infecta masmorra, o lume dos cigarros ou dos “habanos”, queimando-lhe as costas, as mãos, os dedos, os ombros, partes íntimas do corpo. Já em carne viva, mais para morrer do que para viver, não tentou a fuga sequer. E tinha amigos para isso. Mudou várias vezes de actividade, mas o pior é que não mais mudou o hábito da “sagrada libação” do uísque, que o levou à degradação, quase um farrapo de homem, garrafa sobre garrafa, dia e noite sobre noite e dia… como os maus-tratos o haviam levado à quase loucura!

Como é a puta-da-vida, meu tenente-coronel! De bruços sobre as mesas, enfrascava-se para esquecer. Respirava os restos da vida nos vapores dos copos para sentir-se vivo. Tremiam-lhe as mãos, cheias de marcas, grandes cicatrizes, por sob as palavras tensas, no mínimo nervosas, na margem agreste da memória. Tremiam imenso. Vi-as tremer, desamparadas, um dia, como cordas esfarrapadas de violino. No Gambrinus ou no Arcádia. Tanto faz. Sei que foi em Lisboa. Doeram-me como dentadas na carne. Hoje, felizmente, está a recuperar. Tentou até criar a Associação de Amizade Portugal-Guiné/Bissau com o cantor Alcindo Antunes (que, de vez em quando, enfia na cabeça um chapéu de palha, aba larga, e uma pistola no alto cinturão, virando, de um momento para o outro, cantor mexicano, o El Cindo, que canta canções sul-americanas, também de Cuba, por acaso já o ouviu? Foi também como nós combatente no chão da Guiné).

Quero ver se, além de amanhã, (já tentei a difícil ligação por telemóvel), me encontro com ele num dos cafés da Avenida Amílcar Cabral, para partir mantenhas, matar saudades e revisitar com ele a cidade, tanta coisa! Pela amostra rápida que me foi permitida, a cidade está envelhecida, de muitas e escusadas rugas. O Hospital Militar, esventrado, dói. As acácias, essas magoam-me no seu vermelho explosivo. As casas sujas adormecem melancolias indizíveis. Os passos são lentos como os carreiros do mato. O Copilão é um labirinto de gente sofrida. Havemos de percorrer-lhe, com calma, as veias da vida possível. As cores e os aromas andam sobressaltados. Tanto como a alegria que corre, por vezes, no fio de uma navalha. Não é necessário que ninguém no-lo diga. Vê-se, pressente-se. Tarda a manhã definitiva, aureolada de sol, sementes, sonhos e frutos, a qual vai nascendo nos olhos dos meninos e morre, sem sentido, nas rugas dos combatentes ou nas mãos dos mais velhos. Pode dizer-se que é uma manhã adiada, ou dito de outro modo, um futuro combalido, apenas anunciado por palavras de circunstância.

Iremos, se nos sobrar tempo do Copilom de Baixo, até Cobom de Bandé, ou seja Bandim. Quero conhecer o lugar de onde saíram os primeiros guerrilheiros e a nata dos dirigentes do PAIGC, que semearam ideias e valores em que o povo acreditou e estão longe de cumprir-se.

Adiante!

Retomemos, afinal, de novo, o voo do Papagaio Verde de há trinta e tal anos atrás. O outro, do neto de Abdul, lançado ontem nos céus de fogo de algures, lá vai brincando com as brisas.

Chegados ao quartel, sem outros problemas para resolver, passei parte da tarde e parte da noite da véspera de Natal a fazer o papagaio. De jornais, por acaso, “O Século Ilustrado” e “A Bola”, que chegavam às mãos do médico, com muitos dias ou semanas de atraso e eram folheados com uma espantosa avidez, para saber novas do Puto. “A Bola”, recordo, falava do Benfica, que então andava na roda alta do futebol. Por ser bem maior, utilizei “O Século Ilustrado”. Nas três pontas coloquei, para reforço das cruzetas, outros tantos aerogramas de amor, que a minha namorada me enviara, dias antes, com um sabor muito especial a Natal e a palavras de uma luminosa ternura, eu diria a saber a carne e beijos escaldantes. Natal é amor, dissera, no Natal do ano passado, o capelão. Escrevera isso também nesse Natal a minha namorada, Amazilde Matos. Mas Natal ali naquele “cu do mundo” eram sobretudo lágrima e saudade da casa paterna. Era uma maneira de fazer com que aqueles desejos voassem e chovessem como uma bênção. Depois, o garoto deveria delirar, ao encolher o fio ou a dar-lhe guita.

Achei graça ao que fizera com os aerogramas e fui pedir outros, também de cor verde. Pedi mesmo aos soldados, cabos e furriéis, que escrevessem uma mensagem, uma frase, alguns desejos. Decentes, lembrei-lhes. Depois, com eles, forrei por dentro o papagaio. Com o garoto do Abdul, hoje tranquilo avô, sempre por perto, de olhos arregalados.

Após o recolher, fiquei na messe com os cabos do meu pelotão, luz quase sombra, difusa; também com os outros alferes e o capitão Varela e a mulher, a bela Mónica, que o fora visitar, conversando sobre um Natal longe, comendo uns bolos secos e esvaziando uma última garrafa de Vinho do Porto, que sobrara da nossa nostálgica, apressada e curta ceia de Natal. Um ou outro ajudavam-me a cumprir aquela promessa, quase ingénua, mas voando de ternura.

Dali a uns escassos vinte metros, ficava a caserna.

Era um velho armazém de um madeireiro, de nome Brandão, natural das Ilhas de Cabo Verde, onde os soldados, os mais, dormiam um sono de pedra, fatigados de uma semana diabólica. No armazém àquela hora, os retardatários, à luz mortiça de feios candeeiros, pés entrelaçados e dorso encostado à parede, cuja frescura naturalmente apetecia (um calor sufocante e pegajoso trazia aos lábios um leve cheiro a beatas pelo chão, suor ou até sexo) ficaram-se para ali a jogar cartas, os menos, a escrevinhar umas mal anotadas regras, outros, utilizando os aerogramas para as mães, as noivas, as namoradas, as madrinhas de guerra. Com desejos de Natal que já havia passado, quando os recebessem, ou de Bom Ano Novo, que vinha a caminho. Um deles, claro, era o Azambuja (quem mais podia ser?), de bom costado, mas o soldado mais romântico que eu tive ocasião de conhecer em África.

Quer ver?

Chegava a mandar em muitas cartas, senão em todas, que, para isso substituíam os inconfidenciais aerogramas, uma ou duas folhinhas secas de manjerico, que ia arrancar ao magro jardim, de sabor beirão, com que o madeireiro enfeitara, antes da fuga, a alpendrada do que era então residência do capitão e do médico, que era uma jóia de homem. Ao contrário do capitão, que era pouco humano com os prisioneiros. Ou mesmo nada. Não lhe entendia nem o sangue nem os sonhos. Ali estava instalada igualmente a secção das transmissões.

Infelizmente, esse jardim, sem mão feminina que o cuidasse e com o calor do tempo e da guerra, ali à mão dos soldados, pouco tempo durou. Secara, mas o Azambuja, amoroso prevenido, arrecadara algumas. Ainda que a menina de olho de pássaro azul o regasse ao anoitecer de mais uma tarde incendiária. – Como pode haver aqui flores, se o ódio as seca? – Questionava o poeta Castro Maçãs, nortenho, de Vermoim, também terra do meu furriel Carneiro, que, não sei se já sabe, faleceu, há largos anos. Doença ruim, disseram-me na reunião do batalhão na Figueira da Foz. Olhe, na sua cidade. – Aqui só as flores que gerarmos por dentro de nós podem vingar, e tão poucas vingarão… – respondia-lhe o médico, homem alto, desengonçado, mas alma direitinha, ansiosa da paz entre os homens, de qualquer cor, sempre solícito, que já não sei se disse, lembro-me, sentava, ao sol-pôr, às vezes, no seu joelho, a pequena Usita, afiada de corpo, vestindo panos coloridos ou de tronco nu, a menina que tinha os olhos de pássaro azul. Ao cair da tarde ou no sossego das horas e dos mistérios que corriam pelos matos em volta. – Isso até parece, ó doutor, prédica de padre em véspera de Natal… – intervim.

Quando as flores secaram e acabou o stock, o Azambuja nunca mais enviou folhas de manjerico e a noiva perguntava constantemente por elas, segundo me confidenciava, e se ele… já tinha mudado de sítio. Ou se já a tinha trocado por uma negra. Nunca me descosi. Depressa, o jardim foi a antítese da paz e da harmonia, uma trincheira.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)

1. Segundo capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65):


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.

2.º Episódio

Vamos a uma coisa de cada vez.

A gente de Algures, enquanto a chuva tamborilava nas chapas de zinco, essa deixou escoar-se de vivas emoções, cercando-me e tocando-me as mãos, os ombros, os sentimentos, a pele da alma, como se eu fosse estranho irã, mas amado de algum modo.

O chefe Gibril serviu-me, de mãos trémulas, um belo chá e as mulheres bolos de farinha de arroz, fatias de manga, enquanto eu e os homens íamos relembrando nomes e histórias. Além do prato de bolos de arroz, em forma arredondada, iguaria muito usada nos casamentos, metáfora da fecundidade da terra e da mulher, havia ainda um prato de nozes de cola. Não toquei neste fruto, um elixir afrodisíaco. Aliás, nunca me fora à boca. Não era necessário, embora servisse de prova de amizade. Também me ofereceu vinho de caju. Eu escusei-me, dizendo, delicadamente, que, àquela hora, não ia mesmo nada, andava sofrendo do estômago por causa de uma hérnia. Juro-lhe que não mentia.

Na casa de adobe, além de uma mesa de mogno mal aparelhada, e de esteiras de bambu, havia um balouço de rede para corpo cansado e tambores de diversos tamanhos. Julgo ter contado cinco. E também um rádio portátil, o tom um pouco alto, que Gibril fez questão de desligar. Todavia, por minha sugestão, que só o desligasse quando Cesária Évora, a rainha das mornas, com brutos calos nos pés, que a impedem de saltar nos palcos, acabasse de cantar, como só ela sabe, mornas de Cabo Verde. Uma reporta-se, com grande nostalgia e acesa dor, à emigração para S. Tomé, para o duro trabalho das roças e do suor mal pago e, tantas vezes, vergastado. Julgo que se intitula Sôdade. Corrija-me, se estiver errado, quando nos encontrarmos aí pelo Porto, no Café Ancoradouro ou no Café Progresso. Pode ser neste último, que é mais para a nossa idade. Está a ver. Fica próximo da Praça dos Leões.

– Há trinta chuvas… nosso alfero! – Começou por dizer o chefe. – Então, era um rapaz.
– Chuvas que muito sangue e lágrimas, ódio e preconceitos lavaram… Não acredita? – Repliquei. – Ao contrário, puseram-nos cabelos brancos na cabeça e alguma ferrugem nos ossos.
– Eu acredita.

A conversa abriu caminho. Eu estava pronto a ouvi-lo, mais do que a falar. Todavia, confesso que me havia prometido não levar para o verde capim as lembranças da velha que andara por S. Tomé e fumava longo cachimbo de cana e se perdia por um bom café. Às vezes, também enrolava folha de tabaco, cortada em diagonal, para depois fazer o seu charuto. Era quando mais falava palavras mansas, talvez desconexas, mas era assim que desentaramelava a língua, a alma, embrulhando ao mesmo tempo os restos do sol e do sonho, quando se aproximavam os irãs que andavam pela floresta, sua natural morada, e vinham falar com as pessoas, apoderando-se do seu coração. Os poilões eram as árvores preferidas para se guardarem dos vivos.

Passado algum tempo, talvez uma hora, não mais, o chefe carregou e ofereceu-me um cachimbo, de madeira, com boquilha, trabalhado, bem bonito. Fez o mesmo ritual relativamente a um mais pequeno e ambos fumámos melancolias, lembranças, alguma breve cumplicidade de outros tempos, mas, como é óbvio, também longa serenidade e bem-estar. Era a paz. Mulheres e homens já não partem e chegam das bolanhas e das lalas, tristes, metidos entre dois fogos, mas, à guisa do salmista, chegam das colheitas com alegria e a paz pintadas no rosto (“os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria… À volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas”).

O mesmo sucede com os que vão à caça ou à pesca e com os pastores que regressam de crias aos ombros, cantando, ao cair da tarde em fogo, na sua língua nativa, seguros em seus passos e seu destino curto.

Em vez do progresso, uma grande calmaria passa por aqui. Calma pobreza que, no entanto, não lhes ceifa o sorriso. De quando em vez, inquietante. Algures, efectivamente, mudou-se, mas não mudou. A pobreza contra que se batera Amílcar Cabral continua a ser um estigma. Aliás, fora uma das justificações para a luta que, cumprida, depressa deu lugar ao ócio e à fome, ao medo e às vinganças. Os comandantes e os dirigentes aburguesaram-se. Têm automóveis e concubinas. Alguns enriqueceram, não se sabem, claramente, os motivos. O povo, que passa fome, não sabe como, mas desconfia. Fala-se em rotas de drogas…

O chefe da tabanca de Algures ia-me revelando muitas coisas que se haviam passado, após a independência, que ele festejara com algumas reservas. Só evitava, a todo o transe, trazer para a conversa o João, que fora do meu pelotão. Por mim, entendi não insistir. Talvez no outro dia. Foi neste momento que o avô Abdul me fez um inesperado pedido: que fizesse para os netos, o Cherno e companhia, e também para as outras crianças, um papagaio como o Papagaio Verde. Disse-lhe, escusando-me, que ainda não era Natal. Não importava, respondeu, de pronto e com um sorriso miúdo de pássaro. Alá e o seu Profeta não deixam de rir sempre lá em cima, nas brisas, por cima das nuvens. Frisou mesmo que tinha, à minha espera, há trinta anos ou mais, já nem sabia bem, algumas folhas de jornais, cana, cola e cordão e folhas de papel, da cor da sua bandeira nacional… Sempre pensara, disse com um brilho muito especial nos olhos, que, um dia, eu havia de voltar, como tantos, confessou… E insistia:
– Ensina-os a fazer o papagaio, nosso alfero Casanova?
– Ensino, Abdul! Por que não havia eu de ensiná-los? Mas, olha, já não vai ter a cor do Papagaio Verde, mas as cores de um país novo…Acabaram-se os aerogramas, há muito, onde nós escrevíamos, às vezes com lágrimas, a nossa guerra e falávamos, com admiração e temor, dos riscos que vocês corriam por nossa causa.
– Não importa. Pode chamar-se ”Estrela do Norte” e cada ponta representará um desejo: a paz, o pão, a fraternidade…
– Está assente. Vejo que tens belas ideias e lindos sonhos. Não te posso negar, por mais esta razão.
– Vai fazer mesmo?
– Sim, por que não? Vamos, então, à obra! – Fiz uma pausa. – Chama lá os netos… – levem tudo para o bentabá.

As nuvens corriam mais calmas no céu. Os garotos correram do terreiro. Daí a pouco, eram já mais de dez. Upa, upa!

Nesse instante, aproximaram-se com seus guinchos e gritos estridentes e impertinências, bem nossas conhecidas, alguns macacos fulas, que desarticularam o sossego natural. Se calhar, também sonhavam com estrelas, disse, em tom de brincadeira, às crianças a quem os pais andam ensinando ritmos e bandeiras de um país novo, que tarda a chegar, a cada passo.

Os miúdos giravam à minha volta, movendo muito os olhos e as cabecitas de uma infinita alegria, que ia voando à medida que a estrela ia ficando em condições de conquistar o céu. Os maiores eram quem ia trabalhando, às minhas ordens. Era a história da cana de pesca de Mao, revolucionário, de que alguns haviam ouvido falar. Alguns homens abanaram, afirmativamente, a cabeça. Para almofadar o estrado, utilizámos algumas edições de Nô Pintcham, que também serviram na perfeição para armar o papagaio. Bem como amarelecida propaganda de outros tempos do PAIGC. Onde procurei ler, em vão, alguma coisa de interesse. O que mais vi foram rostos de Che Guevara, Fidel, Marx, Mao, Nino e Amílcar Cabral, sobraçando frases, pensamentos, desenhando futuros.

A última coisa que as crianças fizeram foi pegar num marcador verde e escrever aquelas três palavras mágicas – ou melhor, pedi que três deles as escrevessem: paz, pão, fraternidade. Aos mais velhitos indiquei-lhes que, ao centro, deveriam desenhar a palavra Guiné, o que fizeram, radiantes. Como se fossem voar também. Depois, um deles, fixando-me os olhos, um nadinha papudos, cercou as palavras com um coração vermelho e abriu um sorriso do tamanho de uma flor de caju. Ou foi da largura do terreiro e da tarde? Talvez da altura do poilão, que, sagrado, também dava sombra ao bentabá. Enorme, secular, gigantesco, raízes fundas furando séculos. Como na antiga aldeia de Algures, onde era necessária mais de meia dúzia de soldados para dar-lhe um simples abraço. Fizemos esse jogo, pouco tempo depois de arribarmos àquele buraco, um dos muitos de um inferno extenso, com línguas de fogo, turbilhões de medos e calvários de dor e morte por toda parte.

“Estrela do Norte” voando sobre a aldeia de Algures foi o delírio da miudagem, naquele fim de tarde, tal como há trinta e mais anos. Isso fez também voar um sorriso nostálgico dos lábios dos que, um dia, brincaram com o Papagaio Verde.

Quanto a esta terra, de gente simpática e boa, começa a ser tempo de lhe dizer que, um dia, havia de mudar de nome, mais ou menos após o acantonamento da minha companhia de cavalaria (a pé) e do primeiro Natal, aqui passado. Pelo menos, na gíria militar, mas também entre a população, sobretudo a miudagem, que achava graça ao caso. Por uma coisa tão simples como um papagaio, imagine, um Papagaio Verde…
– Então, como vai Papagaio Verde? – Perguntava, meio a brincar, meio a sério, o comandante do batalhão, que bem conhece. Estava acantonado em Farim. Às vezes, em tom de gozo, mesmo zombeteiro de quem vivia no ar condicionado. Exagero meu. Para dizer a verdade, sempre em tom de chacota. Sabe como era.
– Ainda tem as asas muito presas ao chão – respondia, à letra, o capitão Varela, soltando um sorriso sardónico…
– Como assim?
– É a guerra…
– Vamos, então, ao que importa – cortava o comandante do batalhão. Mas, meu tenente-coronel, a verdade é que havia uma razão para a troca de nome. É espantoso como um gesto, às vezes insignificante, pode mudar a vida das pessoas e das coisas.

Espere, eu conto.

Era uma vez uma rapariga, de perfil quase perfeito e de uma notória beleza sensual, pontuada por seios redondos e generosos, direitos e inocentemente provocatórios do olhar… logo guloso, logo faminto, dos soldados. Redondos como os da Usita, nos dezoito anos, altivos. Faço comparações, ainda com a foto da Usita nas mãos, que desfolham lembranças, rumores da floresta vitoriosa, liturgias, quase em tom de conversa, de mil pássaros. E era também, uma vez, um garoto, de olhos rasgados e líquidos de sonho manso, e um burrico, que se nomeia por também ser filho de Alá, nosso Senhor.

Adiantando um pouco, quando a rapariga arreou do burro para a tropa deitar a maca no dorso, felizmente vazia, e aliviá-lo ainda do peso ingrato e bruto do Beja, que se havia acavalitado, rindo um dente malandro, ela exibiu um corpo flexível que só visto, uma boca modulada em música breve, naturalmente açucarada de caju maduro, talvez mais manga, e a sofisticação da raça fula. Por sua vez, o garoto, medroso como pássaro, de tenra idade - todos disseram que teria três chuvas e pico e a rapariga, mama firme, que para aí quinze, dezasseis… - tinha os olhos líquidos de sonho manso. Como a rapariga, só mesmo a menina que tinha olhos de pássaro azul.

Encontrei-os no mato sem fim, de mil perigos e feitiços, no mês de Dezembro, ia no segundo ano de comissão, que estava prestes a acabar, e já não era sem tempo. A alma já cheirava a sangue ou bolor, o corpo a cicatrizes, que doíam por terra alheia. Era uma mata de aromas carnosos que saltavam das árvores em desalinho por entre a redonda e infindável seara de capim que acoitava bicharia sem conta. E, como também sabe, muita gente disposta a correr com a tropa. E também por vezes, gente a fazer jogo duplo, os gajos dos informadores.

Era um verdadeiro quadro saído das mãos de um qualquer Goya africano aquela rapariga, escarranchada no dorso magro do burrico e o garoto ao seu colo. O animal parece que trotava sem destino e sem pressa. Tinham-se perdido, fugindo aos guerrilheiros? Não cheguei a saber claramente nessa ocasião. Nunca se sabia de que lado estava aquela gente. Açoitada pelos ventos do nada, nos carreiros da miséria.

A toda e qualquer pergunta, a resposta era inevitável, como bem sabe o meu tenente-coronel: mim cá sibi, mim cá sibi!

Com a rapariga em cima, mais o garoto, aquele quadro lembrou-me, ainda que impropriamente, a fuga de Nossa Senhora com S. José e o Menino para o Egipto, temendo as espadas de Herodes. E nós ali também não temíamos as armas de Nino e outros comandantes como Osvaldo Máximo Vieira, que comandava nas fechadas matas do Oio, impenetrável “império dos Oincas”? [As matas hoje estão a ser devastadas para a extracção de madeiras exóticas]. Como se me tivesse de convencer que vinha aí a noite de Natal. O calendário litúrgico pelo menos assim rezava. Só faltava S. José. Mas esse papel poderia fazê-lo, se necessário, o Meia Lavada da Silva, que tinha barbas, por acaso, mal aparadas num queixo pensativo. Por sinal, até era carpinteiro de profissão. Deus me perdoe, mas creia, meu tenente-coronel, que foi isso que parvamente me ocorreu. Maliciosamente, direi, porque, sempre que podia, deitava o olhar cobiçoso nas mangas especiais, que eram os seios redondos da rapariga. Gaita! Era toda boa. Vá lá, não se ria. Era realmente uma ideia tosca, abocanhada de saliva lasciva, quase pecaminosa, mas confesso que foi aquela que me surgiu com mais força. E quem confessa a verdade… Olhe, lembro-me bem que também me inundou uma onda de azul ternura pela rapariga e pelo menino, por todos os meninos da tabanca do mundo, que passavam fome ou já pegavam em armas.

Quanto ao burro… Quando, nessa manhã, verde e esbraseante de Dezembro, lhe roubei a rapariga e o garoto, sacudiu as orelhas num arremesso de raiva e desferiu dois relinchos, agudos e doridos, que espantaram, como violento coice, alguns bicos-de-lacre e tarambolas, que saltaram, de repente, do capim, que estava a ser penteado por uma brisa agradável. Quase me cuspiu em jeito de quem odeia. Mas ele, garanto, não era como nós, brancos e negros em armas. Não odiava.

Palmilhadas as aldeias de Sare Tenem e Bricama, onde nos levara uma noite de lua duvidosa, aquele Platero ronceiro era o primeiro da fila, seguindo a rapariga, Fatumata de nome. Aqui está um belo ícone de África. Vim a saber que assim se chamava, depois de meia hora de caminho. O garoto dava pelo nome de Abdul. Pelo menos, foi isso que entendi. E foi assim que sempre o tratei, errado ou certo. Certo, disse-me um mês depois. O animal ia agora armado de cartucheiras e cantis batendo-lhe na barriga. Imprevidências de soldados em fim de comissão! E, espiando-o por debaixo do capacete, via que ele me olhava de viés, descontente, talvez assustado da minha cor, mas continuava a vencer o caminho, estreito e enovelado, como serpente. Perigoso quanto bastava. Por vezes, soldado havia, que, abusando, nele se escarranchava, à vez, para cá da ponte. Onde, um dia, o meu pelotão foi emboscado. Foi uma refrega dos diabos com feridos e um morto, o transmontano Rui Montalvão, do morteiro, que me apertou a mão e me olhou, espantado na despedida. Morreu nos meus braços. Com o enfermeiro, tentando estancar-lhe o rio de sangue. Em vão. O rio era demasiado profundo e definitivo. Adiante, que ainda dói.

Uns adoçavam-lhe a dentuça com mãos-cheias de erva. Outros, brincando à toa, zangavam-no com mordiscadelas nas orelhas ou no rabo. Até se esqueciam que estavam em guerra.

Parecia que íamos todos a caminho de romaria das Almas ou de Belém. Mais de Belém, sim, que, na noite desse dia, seria Natal. E, em minhas cogitações clandestinas, prometi ao garoto um papagaio para ele atirar às estrelas, ao céu, como uma ânsia de asa aberta. Seria a minha boa acção de escuteiro, que já havia sido em Chão de Mouros.
Jubi, vou fazer-te um papagaio. Amanhã, Abdul, é dia de Natal – disse assim, embora sabendo que não entendia nada, mesmo nada, e muito menos sabia o que era isso de Natal. Noite de Natal... Não vinha no Alcorão. – Mim cá sibi – Isto é, descodificando, o garoto não entendia nada do que eu ia para ali a tagarelar. Se o idioma nos separava, muito mais o chão, o sangue.

À rapariga, de tez fortemente acobreada, que iria ser, sem dúvida, o encanto, a flor maior, a mais cobiçada de muitos dias no quartel de Algures, onde os soldados, uma vez ou outra, batucavam com as bajudas, coração a galope, não lhe prometi nada, mas talvez o soldado João, o negro e bom João, igualmente de raça fula, que, à viva força, queria vir connosco para Lisboa, se pudesse enamorar dos seus seios redondos, macieza de pêssego, do seu corpo flexível e grácil, da sua coxa bem torneada. Do rosto, nem se fala. Era plasmado de beleza exultante e simpática. Como a Usita. Não sabendo bem a relação entre ela e o garoto, se filho, irmão ou familiar, ou até entre ela e o negro João, se irmão ou namorado, perguntei-lhe sorrateiramente:
Jubi, bó tem catota? – Não entendeu, ou fez que não entendeu, o mais provável, e perguntei de outra forma: – Bó tem cabaço? – Não descerrou os lábios. Já conhecia certamente a mania do branco querer ser sempre o primeiro a provar aquilo, entre mil promessas. Resumindo, e descodificando também aqui, o que eu queria saber era se ainda era virgem ou não. Aquelas tontarias que os soldados procuravam saber, quase sempre junto das negras mais jovens. Sabe como era. E, afinal, que me interessava isso, se a tropa havia combinado não tocar em ventre de mulher? Já no apalpar…

A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

1. Apresentamos hoje o primeiro capítulo, de quatro, do Conto de Natal, "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65), oferecido pelo próprio, ao nosso Blogue, para ser publicado nesta quadra.


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

(Ou melhor, de Algures, por razões óbvias, que o meu tenente-coronel irá certamente descortinar) foi terra de África onde amei e sofri que nem um capado. Pois, que nem um capado! Agora, Algures mudou de sítio, mas não de nome. Nem de chefe de tabanca, o Gibril, o mais alto e o mais velho de todos. Tão pouco medrou. Fica na saída para Samã, onde me encontro neste preciso momento, de visita. Entre pesadas lágrimas e comoções fortes.

Apesar de tudo e dos anos, não esqueci o lugar amargo, onde volto, não para combater fantasmas, medos, mas para rever a boa gente. Logo, ao nosso anúncio, no barulho de um jipão ou na sua travagem brusca, me havia de aparecer Abdul, homem feito, já avô, à frente de um colorido cortejo a perguntar: corpo di bó? Corpo di bó… nosso alfero Casanova? Reconhecemo-nos os dois, depois de alguma natural hesitação, num abraço irmão, gritando os nomes. Foi assim neste preparo que Abdul começou a falar no Papagaio Verde… Outros olhavam-me desconfiados. Tiveram dificuldade em lembrar-se, obviamente, de meus traços. Muito normal. Perdi o cabelo, ganhei rugas com os trabalhos, mas, sobretudo, com os desgostos da vida; o azul dos olhos é menos limpo e preciso. Amarrotado, será o termo exacto. É certo que queria lembrar-me de todos os nomes. Só consegui recordar-me de alguns, que saltaram lá do fundo das areias movediças da memória. Antes de partir, revi papéis, até aerogramas em busca de nomes de gente e de terras. De peripécias também.

Para desfazer as dúvidas, fui forçado a mostrar-lhes fotografias do velho aquartelamento e da velha tabanca. Fotos que, pelo sim pelo não, levava comigo. Foram quase o meu cartão de apresentação. Mostrando-lhas, ia perguntando por cada um, este e aquele e aqueloutro, lembrando, também eles, nomes, capitães, alferes, furriéis, soldados, contando casos. E o reverso também foi verdade e eloquente. Daí a pouco, estávamos sintonizados, sem qualquer espécie de receios. Apesar da guerra e do tempo transcorrido sobre enxames de cicatrizes, não nos havíamos expulsado da vida uns dos outros. Por isso, não tardou a despertar a empatia de outros tempos. Agora, era só dar corda, fazer conversa. Desmontar o tempo e prolongá-lo. Desfivelar lembranças e dar-lhes guita.

Entre lágrimas e abraços largos ou contidos, estou entre gente negra e boa do meu tempo e de outras crianças, como então, igualmente de olhos mansos e muito húmidos e ainda de umbigos intumescidos. Crianças que os pais e os professores ensinam a aprender, devagar, um país novo, a soletrar outros sonhos, a adivinhar outros horizontes, a fazer contas de crescer. Mas confesso que logo senti o vazio de tanta gente que faltava, mas, sabia também, tinha uma certeza, que estava do meu lado de dentro, no vértice da alma. É certo que envelhecem as nossas mãos ao mesmo tempo, mas, às vezes, não envelhecem as memórias, apesar das sombras que carregamos de um tempo e de um lugar.

O terreiro ainda cheira às chuvas que tombaram de um céu de chumbo, anunciadas por relâmpagos tracejantes, ontem, e já esta manhã. As rajadas das chuvas e dos ventos queriam, à viva força, levar as cangras das moranças. O costume. As nuvens, volumosas e apressadas, correm para o sul. Como há trinta anos, Nas nuvens correm a minha alma e o meu corpo esfarrapado pelas memórias, restos de vidas de outros camaradas, enquanto o vento escreve ásperas melodias nos ramos de todas as árvores que no fundo incomodam. É isso que eu pressinto.

Com todos, o alquebrado chefe Gibril, que enxotava dois ou três cães magros, aturdidos pelas moscas, rilhando o dente, e com os mais velhos, parto mantenhas. Com as crianças reparto afectos na oferta de livros e lápis, lápis de todas as cores que África tem: branco-sumaúma, manga-laranja, banana-papaia, noitibó-colibri, azul eléctrico, azul-marinho, verde-tarrafo, pomba-verde, amarelo-dendém, negro-Papel-Balanta, chocolate-Fula-Futa, Fula, vermelho-acácia-buganvília, cadernos, muitos cadernos, para que pintem sua casa e sua terra, seus rios e suas canoas, um rebanho de volta, uma manada de vacas na cerca, um bando de pássaros conversando coisas de sempre sobre palmeiras e rios, gazelas e galinholas, sobre tanta coisa que sabem, pousados nos dorsos ou nos cornos de algumas vacas; livros, brinquedos, plasticina e, por acaso, meia dúzia de iô-iôs. Mas também bolachas e bombons, muitas bolachas e rebuçados. Esvaziei duas malas. Mais que fossem.

Foi uma festa. As crianças, descalças como no princípio do mundo, essas andavam num sino: batiam palmas, saltavam à minha volta, quase entravam em batuque, que é onde melhor se respiram os ritmos da alma africana e, em dias de ronco, onde explodem todas as paixões eróticas. Por mim, senti-me quase triste: tudo aquilo não era nada. Gesto de quase nada perante aqueles olhos infinitamente abertos, numa expressão de grande ansiedade, mãos desertas de pão macio e novo.

Nada, se comparado com as muitas caixas, cheias de livros escolares, novos e velhos, roupas e calçado, mais material hospitalar, mais mãos abertas, mais afectos, que, mais do que uma vez por ano, lhes deixa, com largas mantenhas e coração a derreter-se de ternuras e comoções, vicentinamente, o branco de coraçon, o rei-mago de prendas e afectos, que também viveu e sofreu na tabanca de Algures, o Carlos Silva. Trabalho cansado, dizem os mais velhos, mas muito gratificante e significativo, acrescento eu.

Os miúdos, esses arregalavam os olhos e voltavam a saltar, cantando; os homens e mulheres, com as mesmas chinelas plásticas de enfiar o dedo de há mais de trinta anos, interrogavam: quando volta home de coraçon, nosso alfero? Por certo, não iria demorar, adiantava-lhes como um crédito de esperança, o único banco para quem é pobre. Como eles.

As mulheres e as raparigas, mama firme, regressavam das lalas, que agora cultivavam sem medos e sem obrigação de dividir o arroz ou a mancarra por terceiros, com a resignação de quem aceita uma lei, de quem não tem meios para escapar à exploração, fossem administradores ou simples chefes de posto, que guardavam uma parte do fruto do seu suor e trabalho. Depois, ainda havia, antes da guerra, alguns lojeiros sem escrúpulos, onde as contas nunca diminuíam, pelo contrário, avolumavam-se como nuvem no céu em tempo de tornado.

Algumas mulheres chegavam, de balaios à cabeça, cheios de quase nada. As mais novas traziam as crianças atadas às costas com amplo lenço. As raparigas alegres como pássaros, com panos vistosos presos à cintura, mostravam a pele luzidia, a mama firme, sempre atraente, ardendo sonhos e desejos. Um ou outro homem vinha das bolanhas ou campadas com a velha catana debaixo do braço.

Todos queriam estar no centro do acontecimento. Era um homem branco. Olhos perscrutadores. Os homens mais velhos, de rostos enxutos (rapazotes ao tempo), mas, agora anavalhados de rugas, ali estavam ainda: Gibril Sosso, Mamadu Sissé. Esses contavam, no bentabá, histórias passadas, ou faziam tempo à sombra. O costume. Vida mansa, corriqueira, sem grandes horizontes. Entre as mulheres, que se iam juntando, receosas, reconheci pelos traços a Fili, a Sano, a Fatu, as belas raparigas do meu tempo, mas faltavam outras. Outras, mais novas, eram totalmente desconhecidas. Mesmo assim, sorriam a alma, mansamente, à minha presença. Pressentiam amizades antigas com seus avós.

Na contra luz, Algures desola-me. Mudou-se e não mudou. Não sei porquê, dói-me. Pouco ou nada sobra de nós. Uns pedaços de vida, mais de dor e morte, que a guerra não desaparece nunca. À primeira vista, só um marco ficou: a amizade.

A nova tabanca está mais pequena, julgo que com menos moranças, mas também posso estar enganado. E falta-lhe a serração do cabo-verdiano que, quando sentiu a ameaça do PAIGC, se escapuliu. O campo de aviação é uma seara de capim, onde só os pássaros pousam e levantam. Mais as nuvens das rolas. As populações reocuparam as antigas aldeias, como Fambantã, e os terrenos que haviam abandonado. Não há sinais da nossa passagem e de outros. Paisagem quase desabitada de nós. Ao contrário dos antigos aquartelamentos do sector (como Nema, Cuntima, Candjambare), tudo foi demolido e arrasados todos os abrigos das metralhadoras e do pessoal. Também, afinal, para que prestavam? Tudo, não direi bem. Salvaram-se a messe e a casa onde dormiam o capitão e os furriéis. E a bela Mónica, pois, num Natal, por sinal, sem dedos no gatilho. De qualquer modo, tudo me faz regressar mais de trinta anos atrás, quando a aldeia estava deserta e já não barulhava sob o estridular das máquinas de uma serração. Quando a tropa lá chegou, estava abandonada.

Rodeado de tantas mulheres, a quem custava falar, me pareceu, por via de todos os trastes que carregavam à cabeça e nas mãos (e não era por via disso, só entendi mais tarde) ou por outra razão que só elas sabiam, logo perguntei, como para confirmar o que, infelizmente já sabia, via Net, pela que fora a menina bonita da tabanca, do quartel, a mais querida, a inesquecível Usse ou melhor, na nossa terna linguagem, Usita, de corpo franzino e de uns olhos cintilantes, um sorriso profundo e tranquilo, e que, por vezes, à noitinha, muito terna, se ia sentar, ora nas pernas do Dr. H. S. Franco, solteiro, mas muito paternal, ora nas do furriel Lima, que Deus também já lá tem, muito solícito e menineiro, amparada de mimos nos seus braços. O resto do sol, alaranjado como cacho de palmeira, dourava-lhe a pele macia, o cabelo em trança. Nos pulsos usava malilas. Era sempre a primeira a esperar-nos junto do cavalo-de-frisa, feito de cibe, quando regressávamos do mato. Às vezes, chorava a nossa tristeza ou esconjurava o nosso desânimo com o seu sorriso enorme, pegando na nossa mão. Também outras a imitavam na sua inocência. Cenas ontem comoventes e lembradas agora dolorosamente no local com lágrimas que tentei apagar com palavras desconexas e puxando o boné para os olhos.

Mostrei-lhes uma foto, a cores, de Usita. Tinha uns belíssimos 18 anos. Trajava um vestido florido, onde sobressaía a cor rosa, e um lenço, apertado no coruto da cabeça, escondia-lhe o cabelo, todo em bandós, tombando sobre o pescoço, alto e elegante, adornado com um colar de várias e belas missangas. O vestido, nada decotado e sem mangas, era curto, bem por cima do joelho, e justo o suficiente para desenhar-lhe um grácil busto, onde marcavam pontos os seios rijos e as ancas cheias. Os olhos eram redondos e festivos. Dos lábios carnudos desprendia-se o lume de um sorriso fino e redondo, largo e infinito, arregaçado até à quase luxúria, bem desenhado por entre a fieira dos dentes, impecavelmente brancos. A pele luzidia. Macia e boa. Nas orelhas reluzentes brincos; no braço direito uma pulseira fina. Os dedos pingando uma malinha branca. Calçava sandálias de couro. Estava feliz. A tropa e o pessoal da tabanca continuaram a respeitar-se, depois de nós, era quase uma família. Por outro lado, Usita tinha ali, todos os dias, sob os seus olhos, às vezes sob os seus lábios, o grande amor da sua vida, o seu alfero. (Omite-se, obviamente, o nome, para salvaguardar relações actuais). A rapariga só tinha olhos para ele. Suponho, não tenho a certeza, que foi o próprio oficial miliciano que quis guardá-la, como num filme, aquele momento, no esplendor da sua beleza.

Por mim, confesso que, quando vi a sua foto no écran do computador, graças ao e-mail do Carlos Silva, fiquei radiante, a admirá-la. Encantadora, de verdade! Porém, este embevecimento foi efémero. Essa alegria logo entrou em ruína, quando, em nota de rodapé, soube que casara com um combatente da liberdade, que gostava tanto de usar as camisas cubanas, as goiabeiras, como as palavras e barbas de Fidel. Não sei por quantas vacas foi ajustada aos pais (também não será de bom tom perguntar-lhes, nem isso interessa para o caso) ou por quantos pesos. Duas vacas valiam mais ou menos quinhentos pesos. Mas sei que ela valia muito mais: respeito, amor, carinho, um chão livre.

Casada, fora então viver para “o chão papel” de Bissau, onde sofreu violência doméstica de toda a ordem, pois, desconsiderações, maus-tratos, vindo a morrer. Havia-se enamorado, bem antes deste casamento, esclareça-se, de um alferes com quem continuara, ainda por algum tempo, a corresponder-se em português escorreito. Ardendo paixão antiga, fogo ardente. As cartas eram verdadeiros hinos ao amor. Disse-mo o meu amigo e eu acredito. Estava ali, salvo as devidas distâncias, uma pequena sóror Mariana Alcoforado de África, que dizia do seu sofrimento pela ausência do alferes e das vezes que lhe passara pela cabeça pôr termo à vida.

“ (…) Não posso viver mais sem ti. A minha vida é um calvário, todos os dias. Escolhi o marido errado, que pensa mais na revolução do que em mim. Na revolução e nas mulheres combatentes. Vem buscar-me. Leva-me contigo. Combinaremos quando e como. Estou desesperada. Sozinha, não sei o que realmente fazer. Já pensei várias vezes em matar-me. Se calhar, é o que irei fazer, não sei quando, mas não tenho outra saída. A única é o teu amor por mim. Amo-te imenso, não me sais do coração, ora em fogo por ti, ora em revolta surda contra o Mamadu Candé (…)

Creia, meu tenente-coronel, que, ao confirmar, mais uma vez, a sua morte, levei um segundo murro no estômago. Ainda mais forte. Como se a terna rapariga fosse da minha família. Parece impossível, mas foi isso que aconteceu, passado todo este tempo.

Eu, como todos, gostava dela e do seu sorriso quente, orvalhado de azul. Duas lágrimas fenderam-me os olhos, doeram fundo, e lembrei ali o que já havia escrito, mais ou menos isto, numa pausa de tristeza e silêncio. Coisa pindérica, dirá, nunca foi com a poesia, mas, olhe, são palavras muito sofridas:

Choro, Usita, a tua ausência, nos teus eternos olhos transparentes e buliçosos de colibri. Durante quase dois anos, eu ia a escrever desde sempre, conheci os teus olhos e mãos, dedos longos, escrevendo em cadernos letra redonda, de mão firme e sábia, e doçuras na tardinha, quando vinhas trazer-me a roupa lavada. Lembras-te ainda? A tua mãe era a minha lavadeira. Dava-te sempre mais alguns pesos. As tuas mãos e os olhos inocentes traziam-me assim a força e o desejo da paz e sei que da tua boca se soltava um sorriso fresco como se fosse um pássaro azul. Hoje, trazes-me a tua lembrança branca de eternidade, dás-me de tão longe a tua mão branca. Talvez, um dia, ainda possa vir a escrever um livro ou um poema de África, que comece e acabe, exactamente, com o teu nome. O título até já o desenhei: “A menina que tinha sorriso de pássaro azul”. Ou já estou escrevendo. Hoje, trazes-me a África que passa constantemente por debaixo das janelas dos meus dias, da varanda da minha casa. Trazes-me a luz limpa das madrugadas amanhecendo o perfume e a cor das acácias vermelhas e o rumor dos rios. Não é o tempo que me faz falta. É o teu sorriso azul, o resto da tua história, da tua acesa paixão pelo alferes, bela como um conto de fadas… Com um fim que não merecia, eu sei.
Alá esteja contigo onde quer que estejas, querida Usita!
Alah uquibaro!


Quem também não enxerguei foi a bela Fatumata.
Fiz algumas perguntas: Casou com o João? Teve filhos? O que lhe aconteceu, que não a vejo? Que papel desempenhara na luta? Em que tabanca morou?

Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.

(Continua)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P359: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962) (Pepito)

Guiné > Bissau > Brá > 1965 O General Schultz (à esquerda)

© Virgínio Briote (2005)

Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)

Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.

Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços
pepito
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Comentário de L.G.:
Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
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Um conto de Natal

Noite luarenta de Dezembro …

Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.

Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.

O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.

Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».

Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.

Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.

Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.

Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.

- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.

A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.

Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…

Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

Artur Augusto Silva, 1962
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Nota de L.G.

(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)