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domingo, 11 de maio de 2008

Guiné 63/74: P2833: Op Gavião (Belel, 4-6 de Abril de 1968) (Armando Fernandes, Pel Rec CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68)
















Cópias das páginas 43, 44 e 45 da História da Unidade: Batalhão de Artilharia nº 1904, 1966/68. Relatório da Op Gavião, iniciada em 4 de Abril de 1968: com a duração de três dias, e destinada a executar um golpe de mão contra o acampamento do Enxalé, do PAIGC, na mata de Belel, teve a participação da CART 2338, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 52 (Destacamento A), bem como da CART 2339, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 53 (Destacamento B). Foi comandada pelo 2º Comandante do BART 1904.


Documento digitalizado: © Armando Fernandes (2008). Direitos reservadas

1. Mensagem de Armando Fernandes, com data de 8 de Maio:

Professor Luís Graça:

Chamo-me Armando Fernandes, fui Alf Mil Cav, comandei o Pel Rec do BART 1904 que esteve sedeado em Bambadinca, de Janeiro a Setembro de 1968. Durante todo o ano de 1967 o Batalhão esteve sedeado em Santa Luzia, Bissau, onde rendeu, em Janeiro de 67, o BCAÇ 1876.

Entrei ontem, pela 1ª vez, no seu blogue e chamou-me a atenção o nome de uma operação referido em P2817 (1), Operação Gavião.

Sobre essa operação consta da história do BART 1904, pags.43/45 (edição não canónica em meu poder) que o Fur Mil Zacarias Saiegh nela participou,o que está em desacordo com uma resposta do Doutor Beja Santos registada em P2817. Parece, também, que relativamente à entrada em Belel há discrepância ente o registado na história do BART e o afirmado no mesmo post. Onde estará a verdade?

Em anexo envio cópia das páginas que referi.

Apresento os meus cumprimentos

Armando Fernandes

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, camarada Armando. É-nos muito útil essa informação. Vou dar conhecimento aos camaradas que têm escrito sobre a Op Gavião. A nós interessa-nos a verdade e só a verdade... Em muitos casos, há discrepâncias factuais entre os nossos relatórios de operações e os depoimentos pessoais. É normal.

O Mário Beja Santos , que comandou o Pel Caç Nat 52 (a partir de Agosto de 1968), não poderia obviamente ter participado nesta Operação Gavião (Abril de 1968). Socorre-se da memória dos seus antigos soldados, alguns dos quais felizmente ainda estão vivos e vivem em Portugal.

O ex-Alf Mil Torcato Mendonça e o ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), esses, sim, participaram nessa Op, e estão aqui entre nós... Também vou ler, com atenção, os documentos que tiveste a gentileza de nos mandar.

Ficas, desde já, convidado a ingressar na nossa tertúlia ou Tabanca Grande. No caso de aceitares, julgo que serias o primeiro do teu batalhão (que eu já não conheci: cheguei a Bambadinca no dia 2 de Junho de 1969...). Um Alfa Bravo. Luís Graça

PS - Já agora, uma curiosidadade: foi no teu tempo que houve grave acidente em Bambadinca, originando o incêndio do paiol ? Alguém me contou essa história, julgo até que foi um camarada teu, alferes, que encontrei há uns três anos ou mais anos, na casa de uma amiga, numa festa... Infelizmente, não fiquei com o contacto dele... Mas falámos muito de Bambadinca.

Há aqui um hiato nas nossas memórias sobre Bambadinca: falta-nos saber coisas do teu batalhão e dos anteriores (por ex., BCAÇ 1888, que estava em Bambadinca em 1966)... Seguramente nos pode ajudar a colmatar essa lacuna... 

A malta de Bambadinca de 1968/71 (BCAÇ 2852 e unidades adidas) tem por hábito encontrar-se todos os anos. Deves conhecer malta da CCS do BCAÇ 2852. O Comandante do Pel Rec Info era o Alf Mil João Alfredo T. Rocha... Deste batalhão faziam parte as CCAÇ 2404, 2405 e 2406... Eu pertenci à CCAÇ 12, africana, no período que vai de junho de 1969 a marçod e 1971.

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Nota de L. G.:

(1) Vd. poste de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2817: Blogoterapia (51): O Alentejo do Casadinho e do Cascalheira, o Tura Baldé, a Op Gavião... (Torcato Mendonça / Beja Santos)

(...) "(iii) Tempos depois a Operação Gavião, em Abril de 1968. Participaram a companhia do Enxalé (capitão Pires, Zagalo Matos e outros), a tua companhia [, a CART 2339,] e os Pel Caç Nat 52 e 53. Inicialmente, estava destinado a ser uma operação de 5 dias, ficou-se em menos de três. Vocês saíram do Enxalé, numa lala perto de Madina, Tura Baldé, um milícia de Demba Taco, ao beber água numa fonte encontrou-se com um soldado do PAIGC que lhe deu um tiro, desacasos da fortuna. Na operação Gavião, o guia era Quebá Soncó, o filho primogénito do régulo Malã, que foi atingido por um tiro numa rótula, foi-lhe amputada a perna.

"Não ia o Saiegh mas os furriéis Vaz, Altino e Monteiro (o Saiegh chegou em finais de Maio de 1968, o alferes Azevedo já estava em Bissau, eu só cheguei em 4 de Agosto). Falas em que "partiram" Madina, Belel e Sinchã Camisa, para Queta Baldé e Cherno Suane, não foi bem assim. Com o tiroteio para tentar liquidar o executor de Tura Baldé, Madina esvaziou-se, o que vocês encontraram foi milho, roupas, esteiras, pilões e coisas parecidas. Para os meus informadores, não havia rasto de gente ferida ou morta.

"Quanto a Belel, a única vez que se lá entrou pelas picadas e com tropa do Exército foi no Tigre Vadio, em finais de Março de 1970 (3). Podes perguntar ao Luís Graça como tivemos sorte e como foi muito doloroso. Despeço-me com a esperança de te ver em Monte Real, tenho um projecto para debater contigo, para aproveitarmos as tuas belíssimas fotografias. E vê lá se acabas com essa conversa mórbida em que andas a dizer que não se recomenda que não estejas vivo, precisamos do teu azedume, da tua indignação, da tua heterodoxia.

"Um abração de estima, Mário" (...).

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2823: Dando a mão à palmatória (11): Operação Gavião, 5 de Abril de 1968, com as CART 2338 e 2339 (Torcato Mendonça / Beja Santos)

1. Mensagem, com data de 7 de Maio, do Torcato Mendonça, algo enigmática, procurando esclarecer (?) alguns pontos (obscuros...) da actuação das NT no decurso da Op Gavião (Sector L1, Bambadinca, Abril de 1968, ao tempo do BART 1904, 1966/68):

Meu estimadíssimo Tigre:

Falamos… em Monte Real… O Cascalheira corresponde. Era amigo do Zé Almodôvar, etc. O Guia não foi no joelho [que foi ferido, foi morto] … Estás a imaginar a cervical... Pensa numa faca balanta (*)… O Saiegh seguia, no regresso, à frente com o grupo dele e eu, com o meu, à esquerda… A tua segunda memória não diz tudo. Não se escreve, fala-se… Falaremos.

O Tura morreu nos meus braços. Foi o primeiro e paro… Por que é o cheiro da morte, com sangue, doce ou adocicado ? Entranha-se e nunca sai.

Obrigado pelo texto sobre o Jacques Attali e outros. Manda sempore… Eu mando-te um abraço forte, extensível a quem nos ler. Quero estar a abraçar-vos breve, brevemente. O nosso caríssimo amigo Luís Graça tem as fotos. São de todos, se assim o entenderem.

Abraços do
Torcato Mendonça


2. Mensagem do Beja Santos, com data de 8 de Maio:


Mendonçal e Torcatal figura, camaradas: 

Uma rectificação em prol da verdade. Entraram-me à noite em casa numa gritaria crioula o Queta e o Cherno, as minhas duas memórias de conselho permanente. Durante a tarde, habituado que estou a conversar com os vivos e os mortos neste romagem a 40 anos atrás, dei comigo a conversar com o Saiegh, ele falava-me entusiasmado com a Operação Gavião, eu sabia que ele lá tinha estado, até porque o Pel Caç Nat 52 se chamava os Gaviões, certamente homenagem do Saiegh a esta operação.

A meio da tarde, ciente de que tinha conversado com o Saiegh, ciente que o furriel Vaz não podia ter ido na operação, tinha sido punido e deslocado para a zona de Geba de onde foi levado por forças do PAIGC, pedi aos meus conselheiros que viessem clarificar tudo. 

Quebá Soncó foi mesmo ferido, a entrada em Madina foi suave, vocês mandaram canhonadas (entenda-se morteiradas) sobre Belel. Lamento a falta de precisão e dou comigo a pensar porque é que não registamos os depoimentos de todos os Chernos e Quetas, a História vai perder a riqueza destes testemunhos. Seria interessante publicar-se o relatório da operação.

Um abraço para todos,

Mário Beja Santos

3. Mensagem do editor, L.G., enviada atraés da tertúlia:


Caríssimos, Mário e Torcato (c/c Henrique Matos e Carlos Marques dos Santos):

Vou rectificar, até por que também meti os pés pelas mãos, ao sugerir que o TM já estava xoné (ou, em alentejano, alzheimariado…) ao trocar a CART 2339 (que era a dele) pela CART 2338 (irmã gémea)… Ora, estas duas unidades participaram na Op Gavião (5 de Abril de 1968) bem como noutras operações, conjuntas, no Sector L1 (Bambadinca), embora a CART 2338 estivesse sediada em Nova Lamego… Mea culpa… Isto dá direito a palmatória… Um Alfa Bravo. Luís


PS – Vou ver se alguém tem o relatório da Op Gavião, que deve constar da história do BART 1904 (que anteceu o BCAÇ 2852, em Bambadinca) bem como da história da CART 2338 e/ou da CART 2339. 

Já em tempos publiquei um poste do Carlos Marques Santos, ex- Fur Mil da CART 2339, onde há um relato pormenorizado da Op Gavião (era sempre dramático andar pelo Cuor, até Belel, quanto mais a Madina…). Vou republicar este texto (memorialístico)… 

O CMS foi um activíssimo e precioso colaborador da 1ª Série do nosso blogue (que já fez três anos, em abril passado…), que por razões de saúde tem andado um pouco mais afastado das lides bloguísticas (mas vamos ter oportunidade de lhe dar um grande Alfa Bravo, em Monte Real). Foi ele que pescou o TM para a nossa tertúlia.

30 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXIII: Diário do CMS (CART 2339)(1): Um homem ficou para trás e não há voluntários para o ir buscar...


PS - Já agora, Mário [Beja Santos] e Henrique [Matos], digam-se se houve mortos vossos, sepultados in loco, em Missirá, no Enxalé, em Porto Gole… Sei que houve, no meu tempo e do Mário, um soldado do Pel Caç Nat 52 que desapareceu no Rio Geba… Os vossos mortos guineenses onde foram sepultados ? Em Bambadinca ? Nas terras natais ? Vd. lista do A. Marques Lopes que foi acabada de publicar e donde não constam… os portugueses guineenses… LG
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Nota dos editores:

(*) Vd. poste de 7 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2817: Blogoterapia (51): O Alentejo do Casadinho e do Cascalheira, o Tura Baldé, a Op Gavião... (Torcato Mendonça / Beja Santos)

(...) Resposta do Beja Santos (ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

(...) Tempos depois a Operação Gavião, em Abril de 1968. Participaram a companhia do Enxalé (capitão Pires, Zagalo Matos e outros), a tua companhia [a CART 2339] e os Pel Caç Nat 52 e 53. Inicialmente, estava destinado a ser uma operação de 5 dias, ficou-se em menos de três.

Vocês saíram do Enxalé, numa lala perto de Madina, Tura Baldé, um milícia de Demba Taco, ao beber água numa fonte encontrou-se com um soldado do PAIGC que lhe deu um tiro, desacasos da fortuna. Na operação Gavião, o guia era Quebá Soncó, o filho primogénito do régulo Malã, que foi atingido por um tiro numa rótula, foi-lhe amputada a perna" (...).

sábado, 19 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2778: Álbum das Glórias (45): Bacari Soncó, ex-comandante do Pel Mil Finete e actual régulo do Cuor, Janeiro de 2008 (Beja Santos)

Guiné-Bissau > Janeiro de 2008 > Fotografia de estúdio de Bacari Soncó, antigo comandante de milícias de Finete, na altura em que o Beja Santos era o comandante do Pel Caç Nat 52, e estava em Missirá (Agosto de 1968/Outubro de 1969), e actual régulo do Cuor.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem enviada pelo nosso amigo e camarada Beja Santos, em 7 de Fevereiro último. Recorde-se que

No dia de Natal de 2007, fui a casa do tenente-coronel Henrique Jales Moreira, o último oficial de operações em Bambadinca, [ BART 3873,] e entreguei-lhe uma carta para Bacari Soncó, um dos meus mais queridos amigos, antigo comandante de milícias de Finete e actual régulo do Cuor.

A resposta acaba de me chegar pelas mãos de Cherno Suane. Ficamos a saber que Bacari Soncó também nunca me esquece, que sente a responsabilidade de zelar pelas gentes do Cuor e sofre com os estilhaços de uma bala que lhe dificulta o andar.

Vou já escrever-lhe para lhe dizer que no dia 6 de Março [de 2008] só pensarei nele no lançamento de um livro onde os Soncó são exaltados como gente hospitaleira e de uma bravura inexcedível (1).
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Nota de L.G.:

(1) 1) Vd. postes de

8 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2617: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2647: Imagens da apresentação do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

sexta-feira, 14 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O Fur Mil Op Esp Humberto Reis, da CCAÇ 12, junto aos brazões das unidades que passaram por Bambadinca, e ao pau ao da bandeira. Ao fundo, vê-se a escola onde leccionava e vivia a misteriosa professora do ensino primário, caboverdiana, Dona Violete, aqui evocada, mais uma vez, por Beja Santos, que fez dela uma informante privilegiada sobre a história e a cultura da região. O Humberto Reis, pro sua vez, é o principal contribuinte (líquido), em termos de créditos fotográficos, do livro do Beja Santos, Diário da Guiné: 1968/69: Na Terra dos Soncó (Lisboa: Temas & Debates, 2008), cujo lançamento no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa, foi um acontecimento literário e social... Os parabéns ao autor, Beja Santos, nosso querido amigo e camarada, à editora Temas & Debates / Círculo de Leitires e ao nosso querido co-editor Virgínio Briote que aproveitou para fazer uma reunião da nossa tertúlia... Quem perdeu este memorável evento fui eu, que estive no Simpósio Internacional de Guiledje, em Bissau... Aproveito para agradever publicamente, à Dra. Isabel Mafra, da editora Temas & Debates, a oferta de um exemplar do livro e as palavras amáveis que me dirigiu, a mim e ao nosso blogue... (LG)

Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-o-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu). As Daimlers limitavam-se a fazer segurança à pista de aviação e, às vezes, às colunas logísticas para Mansambo e Xitole... Não sei se alguma vez chegaram ao Saltinho... A viagem a Bafatá era um passeio dominical... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 2 de Janeiro de 2008:

Luís, enquanto aguardo as tuas notícias, aqui vai o episódio n.º 23. Seguem igualmente propostas de ilustrações. Lembrei-me, caso concordes, podíamos mostrar a imagem da escola, já em derrocada. Tens aí também fotografias do Vacas de Carvalho, do Xime e de Amedalai. Recebe um abraço do Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXIII: OPERAÇÃO TOPÁZIO VALIOSO
por Beja Santos


(i) O regresso a Bambadinca, vindo de Bissau

No Dakota, mal saímos de Bissalanca, comecei a escrever febrilmente no caderninho viajante: recordações maravilhosas de um jantar em Mansoa, pela primeira vez atravessei o rio na jangada em João Landim, os casais Payne e Rosa acertaram pormenores quanto à vinda da Cristina; anoto que é urgente ter resposta se Bafatá me concede, a título excepcional, o gozo de uma licença para casar em Fevereiro, a Cristina anunciou que tem todos os papéis, está a prepara a cerimónia; procurar conversar com a Sr.ª D. Violete e escrever a Teixeira da Mota sobre a questão intrigante de Abdul Indjai, do Oio, premiado com o regulado do Cuor por Teixeira Pinto, e mais tarde banido para Cabo Verde, é importante esclarecer este triunfo e queda de um ídolo da Guiné do princípio do séc. XX.

O avião chega a Bafatá, o mercado ao ar livre está em todo o seu esplendor, compro um lenço para a Cristina, uma bolsa para a Celeste, caju para os meus sobrinhos, cola para enviar ao Paulo e ao Fodé. Enquanto não chega o jeep que me levará de regresso a casa, vou aos estabelecimentos Eduardo Teixeira onde descubro dois livros numa estante poeirenta de quinquilharias, entre policiais, que se revelarão muito boas leituras: Lenine, do filósofo Roger Garaudy, e O Socialismo no Futuro da Península, de Vitorino Magalhães Godinho. Aproveito ainda para escrever à minha Mãe, participando-lhe a iminência do meu casamento e pedindo-lhe para depositar dinheiro na minha conta.


Chego a Bambadinca, recordo que estava um céu límpido, um dia quente, na escola as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio. Dirijo-me ao quarto e nisto oiço uma gargalhada estentórica e depois o bom acento alentejano. Acabo de conhecer o José Luís Vacas de Carvalho, o comandante do pelotão Daimler 2206, que vem substituir o Machado, o tal antigo estribeiro-mor de D. Violete.



O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Foto: © (2006). Direitos reservados

Se as nossas armas eram anacrónicas, nunca consegui perceber a utilidade daqueles veículos na guerra de guerrilhas. As Daimler pareciam apropriadas para as batalhas no deserto, no tempo do Afrika Korps, aqui, pensava eu, o seu desempenho era irrelevante. Todas as colunas ao Xitole levavam uma Daimler à frente, com a sua metralhadora Dreyse, lá dentro seguia um condutor e um apontador. O Vacas de Carvalho levava uma vida santa, sempre que aterrava um avião na pista de Bambadinca havia uma Daimler a montar segurança, ele comandava uma dúzia de praças e um furriel, vivia ocupado como instrutor de tiro das milícias, ouvimo-lo regularmente quando estávamos destacados na ponte de Udunduma, ele também era encarregado da escola e procurava fazer milagres com os soldados analfabetos, como todos nós cumpria tarefas como oficial de justiça e colaborava no reordenamento dos Nhabijões.

Irá revelar-se como um dos animadores das mesas de lerpa, aqui há uns tempos encontramo-nos no British Bar, em pleno Cais do Sodré, rememorámos façanhas e comédias e com a mesma voz possante do passado ele começou a sua narrativa neste modo:
- Beja, a primeira imagem que me vem à cabeça és tu a correr atrás de mim a atirares-me Lauroderme, aquele pó de talco que sempre usavas antes e depois das operações...

Enquanto conversávamos, foi como me viesse à memória esse dia, em finais de Janeiro, tinha a porta do meu quarto o furriel Vitorino Ocante, que se queria apresentar, bem como o Príncipe Samba, Albino Amadu Baldé, oriundo do Corubal, comandante de milícias de Missirá, uma das vitimas da mina anticarro de Canturé, em 16 de Outubro passado, tinha ainda os pés engessados, apoiava-se em muletas, vinha também cumprimentar e informar que seguia para Bissau para nova cirurgia. Após esta troca de cumprimentos, veio Bala, o ordenança do comandante, informar que o major de operações tinha urgência em falar comigo. Aproveitei para pedir ao Bala para falar com a Sr.ª D. Violete, pedia-lhe para me receber a seguir ao jantar.

(ii) Uma conversa com o major Herberto Sampaio


Mal entrei no gabinete, o major de operações [ do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70,] indicou-me uma cadeira em frente ao mapa e ter-me-á dito algo como isto:
- Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Buruntoni. Chama-se operação Topázio Valioso. Não sei o que é que vocês vão encontrar, no reconhecimento aéreo não se vêem trilhos, não há sinal de vivalma. No entanto, eles estão activos. No dia 13, houve uma operação entre o Xime e a Ponta do Inglês, emboscaram com violência. A mata ali é muito fechada, não se consegue ver nada. Aqui há dias, a CCAÇ 12 e a companhia do Xime foram à Ponta do Inglês, de repente surgiu um trilho, foi-se por aí e apanharam população civil que andava a lavrar na bolanha do Poidom. Vamos agora saber se eles partem do Buruntoni, se têm alguma base entre o Baio e o Buruntoni. A companhia de Mansambo e o pelotão 63 saíram de Mansambo em direcção a Gundaguê Futa-Fala, se houver condições vocês regressam todos juntos até ao Xime, se não for possível fazer o reencontro, vêm separadamente. Aproveito para o informar que o mês foi anormalmente calmo, Missirá, Finete, Mansambo e Taibatá foram flageladas sem consequências, o prisioneiro que você levou para Bissau já regressou e deu muitos problemas, têm aparecido minas na estrada Xime-Bambadinca, foram detectadas a tempo. Hoje descansa, amanhã de manhã vai a Samba Juli e depois aos Nhabijões, é tudo uma coisa ligeira, a meio da tarde partem para o Xime. Recordo que chegou o tempo das insolações, cada um de vocês deve levar dois cantis, não esqueçam o mosquiteiro.



(iii) Um serão com D. Violete: recordações de uma professora no Cuor



À saída do gabinete, tenho o Mazaqueu à espera, o meu jovem amigo quer esferográficas, cadernos e algum dinheiro para doces e uma laranjada. Num aerograma para a Cristina, datado de 29 de Janeiro, refiro a minha preocupação com as cartas recentemente recebidas do Carlos Sampaio. A vida operacional em Cabo Delgado está a arrasar-lhe os nervos, a despeito da captura de armamento e de uma excelente relação com os seus militares. As suas cartas só falam dessa atmosfera a ferro e fogo, aqui e acolá há referências ao nosso futuro no projecto editorial para o qual ele me convidou, mas a sua prosa é crispada, há indícios seguros de desalento. Termino o aerograma lembrado-lhe que a minha ida a Lisboa é ainda uma completa incógnita, pelo que apoio a ideia de haver o casamento civil a 7 de Fevereiro, o resto fica tudo em aberto e renovo o meu pedido para visitar o major Cunha Ribeiro e o Casanova, ambos no Hospital Militar Principal. É nisto que Bala me vem informar que a Sr.ª D. Violete confirma que está disponível nesse serão.~

A professora recebe-me com a sua afabilidade habitual, mudou a oxigenação no cabelo, está maquilhada a rigor e conduz-me para a mesa da sala de jantar, sai e regressa com um bule fumegante. Enquanto serve o chá, recorda-me que lhe prometi levá-la a Bafatá em breve. Não esconde o sorriso quando eu abro o meu caderninho e atalhou prontamente:
- Sr. alferes, estou preparada para o seu interrogatório.

Comecei por lhe falar de Sambel Nhanta, vem nos livros como residência do régulo do Cuor, o nome não consta nos mapas, só Sansão e Missirá. Abro um desses livros, mostro-lhe, ela vê e responde:
-É Caranquecunda, uma terra de fulas, a tabanca dos sapateiros, são os artistas que fazem sapatos e os amuletos para trazer as mezinhas, os guardas de corpo. Era importante pelo seu comércio, tinha lojas, as tropas de Bissau chegaram a pernoitar aqui. Mas não era uma povoação importante no Cuor. Verdadeiramente importantes, há cinquenta anos atrás e mesmo quando a guerra começou, eram Cancumba, Canturé e Mato de Cão, tudo por causa das destilarias e do amendoim.

Perguntei-lhe se já tinha ouvido falar de Abdul Indjai, o tal herói deportado. Sim, confirmou, Abdul era sobrinho de Infali Soncó, quando este se rebelou contra as autoridades portuguesas, ele ajudou a esmagar a rebelião e fora nomeado régulo. Mais tarde Infali voltou, mas acabou por ir morrer na região de Quínara, sucedendo-lhe Bacari, que ela ainda conhecera. Perguntei-lhe depois se tinha sido professora no Cuor.
-Estive três anos em Gã Gémeos, senhor alferes, entre 1959 e 1962. No fim desse ano, a luta começou e logo muito intensa, desapareceu a grande tabanca de Canturé, Chicri, Mato de Cão, Malandim, Cancumba, Maná, Aldeia do Cuor, Sancorlã, Paté Gidé, foi um mundo que se desmoronou, fiquei com a escola vazia, as populações fugiram para o mato, para Bambadinca, Galomaro, para as tabancas de Joladu. Gã Gémeos permitia-me ir de barco de manhã cedo e regressar a Bambadinca a meio da tarde. Estava perto de Canturé, onde residia grande parte da população do Cuor, aqui a agricultura era muito rica, o islamismo já tinha grande peso mas as famílias mandingas queriam que as crianças soubessem português. Este tremor de terra acabou nos inícios de 1963, só os Soncó ficaram em Missirá, todas as famílias juraram morrer com o seu régulo. Finete desapareceu nessa altura, creio que foi por volta de 1965 que voltaram quando as tropas da milícia vieram para os proteger. Era eu professora em Fá Mandinga, em 1957, quando dei pela presença de Amílcar Cabral a trabalhar entre Gambana e Canturé, se o senhor alferes lá voltar, irá encontrar blocos de cimento a assinalar os quilómetros em direcção a Geba. Aqui me tem em Bambadinca, a ensinar meninos que vêm fugidos de vários regulados, habituaram-se a viver aqui, estão à espera que a guerra acabe para voltar para as suas terras. Tenho saudades de Gã Gémeos, de subir o rio, ir até ao Gambiel, ali a floresta é muito bela.

Confirmei essa beleza, tinha estado várias vezes no Gambiel, um dos locais mais formosos e paradisíacos que conheci. Despedi-me, voltando a pedir licença para voltar em breve.
-Que tema quer tratar a seguir, senhor alferes?.

Beijando-lhe a mão, agradecendo o saboroso chá preto, lancei-lhe o desafio:
-Se concordar, vamos falar do islamismo, como tem sido possível não haver nesta guerra de guerrilhas uma guerra religiosa.

Ficou entusiasmada com a sugestão.


(iv) Queta Baldé fala-me do Xime

É escusado pôr a memória de Queta à prova: sabe muitíssimo mais do que esqueceu, antes de chegarmos ao regulado do Xime, que ele conhece como as suas mãos, pedi-lhe informações sobre as povoações que visitávamos a partir do eixo Bambadinca-Bafatá, descreveu-me Bantajâ Mandinga, Bantajâ Assá e Bantajâ Cuta como se lá tivéssemos ido ontem, recordou-me o caminho para Quecuta, as diferentes tabancas do regulado de Badora, como Sinchâ Dembel e Bricama. Fui deslizando a conversa para o Xime, a vivacidade de Queta aumentou. As suas recordações passavam por uma placa que o PAIGC afixara em Gundaguê Beafada, em 1964, dizendo “aqui começa a Guiné Cabo Verde”, e qual tinha sido na reacção das tropas vindas de Bafatá.

Queta é de Amedalai, vira nascer o quartel de Bambadinca, fizera parte das milícias que defenderam a Ponta do Inglês, vira formarem-se pelotões de milícia que defendiam Amedalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, conhecia a palmo a região da Ponta do Inglês até ao fundo do Corubal. E vira também desaparecer quartéis, vira desmantelar-se regulados, considerava uma desgraça total o abandono da Ponta do Inglês que viera permitir a total liberdade do PAIGC no Poidom e em Ponta Varela, a sua enorme capacidade ofensiva na estrada entre o Xime e Bambadinca, sobretudo entre Taliuará e Ponta Coli, aqui o mato é denso e as emboscadas ferozes de gente que vem bem armada e que não foge só porque há reacção das tropas portuguesas.

E depois da conversa ziguezagueante, perguntei-lhe se se recordava de mais um fiasco, a Topázio Valioso, cerca de trinta horas a vaguear entre o capim alto e o arvoredo frondoso, com dois guias permanentemente perdidos que ora iam em direcção de Gundaguê Beafada, ora em direcção do rio Corubal.
-Nosso alfero, passados estes anos todos, continuo a pensar que era um erro muito grande quando chegávamos a um quartel não se perguntar à tropa quem é que conhecia a região, todos nós tínhamos que aceitar andar atrás de um guia , ou de dois guias, só porque eram propostos pelo régulo do Xime ou pelo chefe de tabanca. A maior parte das vezes, esses guias tinham ido uma ou duas vezes ao Buruntoni em miúdos, a natureza tinha mudado completamente. Na época seca, estava tudo diferente, os guias fugiam da estrada, quando encostávamos para as palmeiras de Gundaguê Beafada começava a desorientação. Era aqui que se podia ir em direcção ao Baio, ao lado do rio Buruntoni, mas era muito perigoso, começava aqui uma terra de lalas, o PAIGC tinha sentinelas, foi aqui que perdemos em 1967 o nosso bazuqueiro, Mário Adulai Camará. Perdemo-nos no rio Buruntoni, na manhã seguinte a avioneta denunciou-nos, os dois guias não sabiam bem o que andavam a fazer, fomos arrastados para perto da Ponta do Inglês, quando chegámos ao rio Buruntoni era o fim da tarde, tivemos que descansar. Na manhã seguinte, continuou o castigo, nem nos encontrámos com a tropa de Mansambo, nem avistámos trilhos e depois veio a ordem da avioneta para regressarmos ao Xime a meio da tarde, já sem água e sempre a pensar em emboscadas na mata fechada de Madina Colhido. Felizmente que nada aconteceu, mas ficámos chateados, aquilo não era maneira de fazer guerra. Foi assim que se criou a ideia que não era possível ir ao Buruntoni, ora era possível ir ao Buruntoni a partir de Mansambo ou de Moricanhe, caminho que nunca se fazia porque em Mansambo não havia guias e nunca ninguém perguntou se nós servíamos para guias. Podíamos tê-los apanhado de surpresa e nunca aconteceu. Foi triste.

(v) Uma semana de leituras incomparáveis

Não há exagero, foram mesmo leituras incomparáveis. Primeiro, Um homem de talento, de Patricia Highsmith. Tom Ripley é, pelas minhas contas, o primeiro assassino metódico realmente bem sucedido. A pedido de um industrial afortunado, Herbert Greenleaf, Tom, um pequeno escroque, sem eira nem beira, sempre à procura de expedientes, vai até Mongibello, em Itália, para ver se traz de volta Richard Greenleaf, Dickie, que tenta a vida artística. Vai começar a vida afortunada de Tom, que começa por ter férias pagas e congemina o assassínio de Dickie, apropriando-se da sua identidade, até o fazer desaparecer, deixando poucos vestígios, desnorteando a pouco motivada polícia italiana. Tom, disfarçado de Dickie, passeia-se por Roma, inventa desculpas para não ver nem visitar amigos, escreve à namorada de Dickie em termos tais que esta se convence que os afectos se esfumaram. Nas cartas forjadas para os pais de Dickie, vai deixando no ar o sentimento de uma depressão, de um abandono. Em Roma, em desespero de causa, é obrigado a matar Freddie, um amigo de Dickie, numa situação desesperada que podia ter levado à revelação da trama urdida. Tom vai viver para Veneza e aí inventa um testamento de Dickie. No final, vai receber uma boa maquia, depois de andar inquieto com os interrogatórios policiais.



Capa de Um homem de talento, por Patricia Highsmifh, colecção Vampiro, nº149. "É uma obra determinante,irrecusável.Depois deste livro,o crime cerebral ganha ampla dimensão,passou a ser possível matar sem receber a sanção exemplar. Depois, está escrito como nunca se escrevera, mesmo sabendo-se que Georges Simenon é um gigante da literatura. Neste caso, a tradução de Mário Henrique Leiria ajuda muito" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tal como Sherlock Holmes era o detective inteligente, capaz de pôr a dedução ao serviço do problema, tal como Ellery Queen pusera fim ao detective dos músculos e ao policial de acção, introduzindo um equilíbrio entre o problema e o desfecho prodigioso, Patricia Highsmith reconstrói o policial dentro das regras da grande literatura, deixando-nos na dúvida se é necessário, doravante, acrescentar à literatura o qualificativo de policial. Um homem de talento é, com efeito, muito boa literatura e indisciplina os convencionais desfechos punitivos do criminoso. Eu ainda não sabia, mas Mr. Ripley ia ficar gloriosamente na literatura e até passar ao cinema.

A outra experiência avassaladora foi O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca. Já li na Guiné Seara de Vento e Aldeia Nova, bem como alguma muito boa poesia. Mas este livro de contos instala a minha reconciliação com os cânones do neo-realismo: é uma escrita afogueada, vibrante, medularmente alentejana, é tudo simples e grande, sem pormenores balofos, piruetas popularuchas. Logo o arranque do primeiro conto:

“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoínha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila”.

São contos inesquecíveis: como a telefonia mudou aqueles lugares no fim do mundo; as declarações de amor entre miúdos, as maldades de um velho sovina que controla a existência de um filho adulto; uma noite de Natal numa venda, os amores de lavradores alentejanos, histórias de ódios, de misérias, de solidão. Manuel da Fonseca escreveu pequenas obras primas e faz-me amar ainda mais o Alentejo dos ganhões e malteses, universalizando o sofrimento desta terra bastarda.

Capa do livro O fogo e as cinzas, de Manuel da Fonseca. s/data, sem referência ao capista,1ªedição,Editorial Gleba, Lda (BS)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Para a semana vou casar-me, haverá mesmo festa em Bambadinca. É um mês de Fevereiro em que vou descobrir que não tenho direito a férias nem a nenhuma licença. Espera-me a ponte de Udunduma, duas vezes irei ao Xitole, andarei em emboscadas e um dia abro uma carta e, aturdido, descubro que perdi o meu maior amigo na guerra. O mundo ia adquirir uma outra importância, a minha vida um outro significado. Será que vale a pena tentar falar desse meu sofrimento, desse desabamento?
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Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 29 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!
(2) Sobre a Professora de Bambadinca, vd. os seguintes postes:
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2511: Álbum das Glórias (39): Bacari Soncó, o actual régulo do Cuor (Beja Santos)

Guiné-Bissau > Região de Baftá > Cuor > Missirá > Bacari Soncó, o actual régulo do Cuor, fotografado em Janeiro de 2008.




Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem de 7 do corrente: Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70; autor do livro Diário da Guiné: 1968-1969: Na Terra dos Soncó, Lisboa: Círculo de Leitores /Temas e Debates, 2008)



No dia de Natal de 2007, fui a casa do tenente-coronel Henrique Jales Moreira, o último oficial de operações em Bambadinca, e entreguei-lhe uma carta para Bacari Soncó, um dos meus mais queridos amigos, antigo comandante de milícias de Finete e actual régulo do Cuor. A resposta acaba de me chegar pelas mãos de Cherno Suane.

Ficamos a saber que Bacari Soncó também nunca me esquece, que sente a responsabilidade de zelar pelas gentes do Cuor e sofre com os estilhaços de uma bala que lhe dificulta o andar. Vou já escrever-lhe para lhe dizer que no dia 6 de Março só pensarei nele no lançamento de um livro onde os Soncó são exaltados como gente hospitaleira e de uma bravura inexcedível.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/69) > O Alf Mil Beja Santos, ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandande do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; a direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102. Estas subunidades está sob o comando do Alf Mil Beja Santos. E lá ficaram, agora que o ´Beja Santos e o Pel Caç Nat 52 são transferidos para Bambadinca, em meados de Novembro de 1969.

Foto : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Depois de um interregno de duas semanas, por causa da quadra natalícia e da festa de Ano Novo, retomamos a publicação da série Operação Macaréu à Vista - Parte II, do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). O episódio nº 14 foi-me enviado em 12 de Novembro de 2007 (LG):

Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14):

O DEDO MINDINHO DO FURRIEL PINA

(i) Operação Truta Vivaz com o Pel Caç Nat 54 e a CCAÇ 12


De 14 a 19 de Novembro estou ao serviço de Missirá através do Pel Caç Nat 54 e do Pel Mil 101 que está novamente todo reunido. Com efeito, as duas secções que andavam destacadas regressam a Missirá e, vendo-as chegar a 15, ao alvorecer, interrogo-me se não valeu bem o esforço de me carpir permanentemente em Bambadinca pedindo um contingente compatível com as idas diárias a Mato de Cão, emboscadas, patrulhamentos e um sem número de digressões logísticas e actividades de faxina.

O Alves Correia, [comandante do Pel Caç Nat 54,] veio a 14, quando escurecia e gentes de Madina/Belel fogueavam para dentro do aquartelamento, com um grau de destruição mínima. Trazia instruções do major de Operações para desencadear, no amanhecer de 16, a Operação Truta Vivaz, de colaboração com um grupo de combate da CCAÇ 12. E mostrou-me a ordem de batalha, que me deixou estupefacto: 60 homens iam fazer um patrulhamento ofensivo entre Finete, Sinchã Corubal, São Belchior e Saliquinhé.

De imediato chamei o guia e picador Quebá Soncó, e dei as seguintes sugestões: o Pel Caç Nat 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 ao amanhecer de 16, em Finete. Seguiriam por Malandim até Gambana, sempre a corta-mato atravessariam o palmeiral de Chicri sobre Mato de Cão e, no caso de não haver quaisquer indícios da presença de gentes de Madina/Belel nas imediações, subiriam até muito perto da antiga tabanca de Sinchã Corubal. A manter-se a falta de indícios, a força em patrulhamento aproveitaria a luz do dia para atravessar o palmeiral junto ao rio de Ganturandim, fazendo o reconhecimento de Iaricunda.

Esclareci o Alves Correia que subir este rio até ficar de frente a Madina fazia correr riscos desaconselháveis para dois pelotões que desconheciam inteiramente o terreno. A única vantagem dessa operação temerária seria a de detectar eventuais novos trilhos, preço que me parecia muito elevado. Sugeria que se reduzissem os riscos emboscando abaixo de Sinchã Corubal, se possível junto de um trilho inimigo, e partindo de manhã cedo para S. Belchior espiolhando as bolanhas até Saliquinhé, em toda a orla do Geba, no intuito de procurar canoas que fizessem a cambança para os Nhabijões.

O Alves Correia aceitou este plano, falei olhos nos olhos com Quebá Soncó, pedindo-lhe para não se desviar um milímetro do que aqui se acordara. A 16, o Pel Caç Nat 54 parte para Finete pelas três da manhã e eu fico a cuidar do quartel com as milícias.

Enquanto decorrem operações de arrumos dos milícias que chegaram, o burrinho vai à fonte de Cancumba e as crianças estão na escola, tenho a minha última conversa com Lânsana. Ele beberrica chá verde enquanto falamos de questões vegetais. Com a sua voz lenta e o seu olhar doce, fala-me dos mangais e as suas palmeiras de azeite, dando como exemplos Mato de Cão e São Belchior.

Respondendo às perguntas que lhe vou fazendo sobre as árvores das florestas, veio comigo até à porta de armas para me falar dos poilões de diferente porte, o tempo que é necessário para um bissilão ficar gigante, mostrou-me o pau-conta e falou do pau-incenso e do pau-veludo, bem como da farroba e do pau-bicho e da calabaceira que existiam para lá de Cancumba, sim, era possível encontrá-las, por exemplo entre Sancorlã e Salá. Lembrou-me também que a paisagem da savana pode ter bambu, cibe, tambacumba e poilão-forro. Quando regressámos ao interior de Missirá, Lânsana falou com Bubacar Baldé, o comandante das milícias em exercício, pedindo-lhe que me mostrasse as árvores da savana quando me trouxesse até Finete.

Arrumo todos estes dados no meu caderninho viajante, anoto os temas que quero ainda desenvolver: paludismo, doença do sono, elefantíase; choros e fanados; culturas do arroz e do amendoim, fundo e mandioca; pesca na bolanha. Fecho o caderno e vou falar com Malã, começando por discretamente lhe devolver o anel de Infali Soncó:
- Régulo, o seu filho Quebá é um valoroso guerreiro, um dia vai suceder-lhe é ele quem tem dignidade para usar este anel. Nunca esquecerei a confiança que depositou em mim e os laços de família que me unirão para todo o sempre aos Soncó.

É então que o régulo começou a exaltar Alá como o Deus misericordioso e me perguntou o que é que eu pensava da sua infinita clemência e do que disse o Profeta. Terei respondido algo como isto:
- Régulo, o Deus que orienta as nossas vidas é o amor. O Corão diz claramente que os fiéis, os judeus e os cristãos e todos aqueles que praticam o bem serão recompensados no Juízo Final. O Corão fala de um Deus revelado a Abrãao e às tribos de Israel, e que não há distinção entre este Deus e o Deus dos muçulmanos. Para quê, então, não aceitar as nossas diferenças cantando glórias a Deus, sem nenhuma intolerância?

Malã continuou a falar no Livro de doutrina e de adoração a Deus, abracei-o e pedi-lhe para irmos pela última vez rezar juntos à mesquita. O dia continuou placidamente, tive tempo para fazer termos de juntada em vários autos, de um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa que me foi oferecido em Bafatá, de 1952, li o conto “Éguê Baldé”, de Fausto Duarte, que me impressionou muito pelo drama de uma jovem fula que é vendida a um velho e está louca de dor. Fausto Duarte fala de casos de lepra na tabanca, na vergonha e repugnância de Éguê, no espancamento a que a sujeita o pai e de um régulo corrupto de quem não se pode esperar justiça.

Aproveitei também para ler um pequeno ensaio de autoria do Ruy Cinatti intitulado “Tipos de casas timorenses e um rito de consagração”. A dedicatória é muito bela: “Para o Mário olhar para as casas antes de as habitar... Com um pé no pedal e a mão no coração, Ruy”.

Ele descreve a habitação no sudeste da Ásia, revela as distinções, as fases fundamentais da construção e o que se diz na consagração da casa, que tem uma força poética assombrosa. Dizendo que está a transcrever da língua tetun de timorenses construtores de casas rectangulares, sinto perfeitamente o sopro do poeta Ruy Cinatti:

Em terra umbigo, em terra centro,
Em pedra angular, pátio sagrado,
Terra plana, terra nivelada.
A terra alarga-se, a terra rasga-se ...
Passada a primeira fase, cortados os primeiros prumos,
Depois que tudo correu bem,
Fazer como, fazer de que modo?
Ir pedir de novo, suplicar novamente,
Pai Deus, Mãe Deus,

Avós Deus, Impérios Deus,
Agora mesmo fazer como, agir de que maneira?


Isto pode ser um rito de consagração timorense, mas está aqui o halo místico e religioso de um dos maiores poetas do nosso tempo. Fiz a escala de reforços, conversei com os sentinelas, escrevi aerogramas, dormi como um justo.

A Op Truta Vivaz acabou bem, sem encontros nem desencontros, não se deu pela presença do inimigo, as tropas do Alves Correia vêm ensonadas, aproveito para levar as milícias até à ponte do rio Gambiel, despeço-me dos mais lindos palmeirais que já vi em toda a minha vida.

No dia seguinte, vistorio com o Alves Correia tudo quanto está no depósito de víveres, examinamos as metralhadoras e os morteiros. Cá fora, à volta do quartel, depois em Cancumba, em Morocunda e junto a Mato de Madeira conferimos as zonas minadas e armadilhadas pelo Reis sapador. E ainda fomos à Aldeia de Cuor, visitámos as ruínas, mostrei-lhe os carris e as vagonetas ferrugentas.

(ii) Uma despedida emocionada de Missirá e de Finete

Chegou a hora de partir e aproveito a coluna que vai buscar arroz a Bambadinca. Junto todas as minhas forças para esconder a emoção da despedida. O meu espólio foi levado a 14, por Ussumane Baldé, guarda-costas em exercício. Uma multidão silenciosa aguarda-me na porta de armas. Prometo voltar em breve, um Soncó volta sempre. Peço para ir a pé, quero despedir-me do Cuor captando-o em todo o seu esplendor: paro em Cansonco junto da destilaria do açoriano, olho os ferros dos alambiques e os despojos da maquinaria apodrecida, o que resta das paredes do que terá sido uma bela construção de carácter colonial; na estrada para Canturé, observo o caminho que dá para Gã Joaquim, depois Gã Gémeos, vejo os laranjais, os imensos morros de baga-baga, os limoeiros e os cajueiros em flor, em Canturé ajoelho-me e rezo ao pé dos destroços do 404, desfeito pela mina anti-carro de 16 de Outubro, mais adiante desço a ladeira íngreme de Finete, cumprimento o chefe de tabanca, os homens e as mulheres grandes, visito Bacari Soncó e recordo-lhe que ele é um irmão muito amado, abraço e beijo o meu querido Abudu Cassamá.

À saída do aquartelamento, procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata-borrão e reter a panorâmica entre Santa Helena, Ponta Nova, até Malandim, só falta a bola de fogo do fim de dia tropical. Junto ao Geba, antes de embarcar na canoa e me despedir de Mufali Iafai, olho pela última vez o meu Cuor, sinto que algumas lágrimas me bailam nos olhos. Volto as costas, subo a rampa de Bambadinca, começa neste instante uma nova etapa na minha vida.


(iii) Uma nova (!) vida... Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70)


A minha habituação não vai ser fácil. Fiquei num quarto de quatro camas, os outroslocatários em permanência são o Abel [foto à esquerda] e o Moreira [foto à direita, a seguir, ladeado pelo Reis e pelo Levezinho], ambos da CCAÇ 12. Desenvolverei com eles, nos próximos dez meses, uma excelente relação. Mas tudo aquilo me confunde, a gritaria dos corredores, as portas que se abrem e fecham subitamente, o estar longe dos soldados, o ter confirmado à chegada as diferentes condenações sem apelo nem agravo que nos esperam:
- ir ás tabancas fazer psico;
- montar segurança nos Nhabijões, onde está uma equipa coordenada pelo alferes Carlão;
- passar noites em desespero numa alfurja que dá pelo nome dos abrigos do rio Udunduma;
- fazer emboscadas na missão do sono, no Bambadincazinho;
- ir levar e buscar correio a Bafatá;
- patrulhar a estrada entre o rio Udunduma e Amedalai, patrulhando também junto ao Geba para dissuadir as cambanças dos que vêm de Madina;
- fazer colunas ao Xitole;
- colaborar em todas as operações dentro do sector, com forte incidência nas regiões do Xime e Mansambo...

Várias vezes o Queta Baldé termina as reuniões que temos para recordar ao múltiplos episódios que vivemos juntos desabafando:
-Vínhamos à espera de encontrar descanso em Bambadinca, estávamos estafados, logo ficámos rebentados, nunca mais houve um dia de descanso, a montar segurança, a ir a Madina Bonco, aquele rio Udunduma era o Inferno. Quero que o nosso alfero saiba que ficámos bem arrependidos por ter pedido para ir para Bambadinca!”.

(iv) Na estrada para o Xime, o furriel Pina mete o dedo na G3


A 20, estreei-me como oficial de dia e à noite fui montar uma emboscada para a estrada do Xime. No dia seguinte escrevi à Cristina:
- Tu não vais acreditar neste episódio burlesco: saímos depois do jantar para uma emboscada decidida pelo major de Operações, a caminho do Udunduma, em ataque anterior a Bambadinca foi aqui que os rebeldes puseram os canhões sem recuo e morteiros. Estava uma noite serena, saí com duas secções, acompanhou-me o Pina, o Pires tem agora trabalho numa terra aqui perto chamada Sinchã Mamajai. Teríamos feito um quilómetro por um caminho saibroso, e subitamente um grito medonho atravessou a noite, logo me apercebi que não era nem emboscada nem mina. Fui ao local da gritaria e dei com o Pina estatelado no chão a gritar com um dedo mínimo dentro do cano da espingarda. Tentei tirar-lhe o dedo, impossível. Ele escorregara no saibro e acontecera aquela coisa impensável. Imagina o que é regressar a Bambadinca com o Pina lívido, um soldado a segurar-lhe a arma, ele a gemer com o seu dedo esfanicado lá dentro. À cautela, retirei-lhe o carregador para evitar acidentes. Fomos para a enfermaria, ele sentado com a arma em cima da marquesa, com braço estendido. O David ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro. O Reis sapador foi buscar varetas, começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Pina deu um urro, tal era o sofrimento, o Reis enfureceu-se e enfiou-lhe um tabefe, não sei que é que ele se julgava, se feiticeiro ou a desmontar uma mina, pedi ao David para lhe dar uma injecção ao Pina que o deixasse a dormir... Lembrei-me então que tínhamos desempanadores e pedi para falar com o Alexandre. O primeiro cabo desempanador Alexandre conhecia perfeitamente Missirá, dizendo que sempre que a visitara fora recebido à morteirada. Foi ele quem conseguiu desatarraxar o tapa-chamas, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fractura exposta, lá se deu um calmante ao Pina (que foi na manhã seguinte evacuado para Bissau) e eu regressei para os mosquitos na emboscada (2).

(v) O novo médico do batalhão, Joaquim Vidal Saraiva

Os tempos que vêm são de duros para me aclimatar a esta atmosfera de sede de batalhão, viver aqui em permanência. Na manhã seguinte, volto a Bafatá, por causa do correio, compro na Casa Teixeira uma História da Filosofia, de Nicola Abbagnano, dos pré-socráticos a Aristóteles.


Cap do romance policial A Mulher Fantasma, de W William Irish. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio, 38). Capa de Cândido Costa Pinto.


Voltamos por Galomaro para entregar caixas de armas. De Bambadinca vou a Afiá buscar doentes que vão ser vistos na enfermaria pelo David. Começou a minha vida nova, à tarde vou para os Nhabijões, à noite novamente para uma emboscada. O correio que recebo é cada vez mais doloroso. Amanhã volto a Bafatá e vou buscar a procuração para o casamento civil.

Ao almoço, na messe de oficiais, Jovelino Corte Real [, comdante do BCAÇ 2852,] apresenta-nos o novo médico, Joaquim Vidal Saraiva, que veio de Guileje. O David Payne parte para Bissau, manteremos sempre o contacto, ele irá ajudar-me imenso quando em Janeiro eu passar uma semana a dormir graças ao Vesperax e outras drogas.

O Vidal Saraiva (3) vai ser um grande amigo, estou a vê-lo desesperado a tentar salvar Uam Sambu, ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970.

(vi) O Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque


Estou empanzinado de bons policiais. Primeiro, li A mulher fantasma, de William Irish. É hoje um clássico: um casal à beira da rotura, o marido sai de casa depois de uma discussão conjugal, janta e vai a um espectáculo de variedades com uma estranha que encontrara num bar. Quando regressa a casa, a mulher fora assassinada, ele é preso, apresenta um álibi que ninguém confirma, sim, ninguém se recorda se ele estava acompanhado, no bar, no jantar, no espectáculo de variedades. Condenado à morte, recorre à ajuda de um amigo para procurar desesperadamente aquela mulher e vão suceder-se mais mortes. Um polícia desconfiado reabre o processo e irá prender o verdadeiro criminoso. Scott Henderson, o falso assassino, é inesquecível pela vontade indómita em que se esclareça a verdade. Os capítulos começam sempre assim: O centésimo quinquagésimo dia antes da execução, o vigésimo primeiro dia antes da execução, um dia após o dia da execução... Um suspense bem equilibrado, perfis psicológicos bem desenhados, uma atmosfera de angústia devidamente condimentada.

O Caso Benson, de S.S. Van Dine, traz a apresentação de Philo Vance, esse superculto e aristocrático detective. Van Dine excede-se no barroquismo do seu retrato, depois de exaltar o método analítico e interpretativo que ele aplicou nas investigações criminais: coleccionador sofisticado de arte, rodeado de primitivos italianos, de Cézanne e Matisse, desenhos de Miguel Ângelo e Picasso, gravuras chinesas, ânforas romanas, vasos coríntios, estatuetas Ming, marfins e tesouros egípcios. Vance pratica desporto, desde esgrima ao golfe. É rico, bem parecido, viajado, é inteligente e quer descobrir criminosos.

O Caso Benson foi uma estreia feliz, com Philo Vance a decifrar a estatura do assassino de Alvin Benson, a não dar importância a sinais que apontavam para uma mulher que visitara Alvin na noite do homicídio, induzindo o criminoso a estar tranquilo até à revelação final. Sempre gostei muito deste Philo Vance, às vezes canastrão, e tenho já aqui outros livros dele para me deliciar.

Capa do romance de Ercih Maria remarque, Arco de Triunfo. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 6). Capa de Bernardo Marques.


Mas o prato de substância da semana foi o Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque. Estamos nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, vamos conhecer o drama dos refugiados que vivem em Paris. Ravic é um médico alemão que conseguiu fugir às garras da Gestapo e sobretudo ao seu algoz, Haake. O romance começa com o encontro entre Ravic e Joan Madou, haverá uma história de amor e uma separação triste. Ravic descobre Haake em Paris e mata-o. Joan é morta numa cena de ciúmes, por um apaixonado de ocasião. Vem a guerra, os refugiados, políticos e judeus, vão todos para um campo de concentração francês. São páginas memoráveis, registo uma frase que ainda hoje me persegue: “O destino nunca é mais forte do que a serena coragem com que o enfrentamos”.

Antes de entrar no camião que o leva para o campo de concentração, Ravic despede-se do seu amigo Boris Morozow e dizem: “ - Encontrá-lo-ei, depois da guerra, no Fouquet. - De que lado? Campos Elíseos ou George V? - George V”. E separam-se. E assim termina o romance: “ O veiculo seguiu ao longo da Avenida Wagram, ingressando na Praça da Étoile. Não havia luz em parte alguma. A praça estava imersa em trevas. Tão escuro que nem se via o Arco do Triunfo”.

Deitado na minha cama, na minha nova morada, fecho o livro e recordo o filme com Charles Boyer a interpretar Ravic, Ingrid Bergman esplendorosa em Joan Madou e Charles Laughton quase sublime no tenebroso carrasco Haake. Mal sabia eu que dentro de dias vou ver cinema em Bambadinca, uma Ford T a cheirar a gasóleo, a resfolegar ruidosamente a correia de transmissão. Há uma bobine que se projecta sobre uma tela, ouvem-se muitos tiros e há muita acção para divertir militares na guerra. O primeiro filme chamar-se-á Hércules contra Ciclope, com Steve Reeves no protagonista.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

(2) O Fur Mil Pina também integrou, posteriormente, o Pel Caç Nat 63, na altura comandado pelo Alf Mil Jorge Cabral.

(3) Contacto actual:

JOAQUIM VIDAL SARAIVA, Dr. (ex-Alf Mil Médico, CCS do BCAÇ 2852)
Esplanada Fernando Ermida,
284405-335 S. FÉLIX DA MARINHA
Telf 227810206 / 227624167

Vd. post de 21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1773: Lista do pessoal de Bambadinca (1968/71) (Letras C / Z) (Humberto Reis)

No nosso blogue temos, pelo menos, duas referências ao Alf Mil Médico Saraiva (de quem me lembro bastante bem, mas que não sabia que tinha vindo de Guileje; fizemos juntos a Op Tigre Vadio):

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

29 de Junho de 2006

Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...

O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...

O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Era pós-Beja Santos > Esquartejamento de uma peça de caça grossa (um antílope, segundo me parece) caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, e tranferido para Bambadinca). Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Alves Correia, referido no texto a seguir. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. (LG).

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca)> Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970> Era pós-Beja Santos > O Humberto Reis, em reforço, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca), do destacamento de Missirá, posa para a fotografia com um troféu de caça a seus pés: na ocasião um antílope, apanhado pelos homens do Pel Caç Nat 54 ou algum caçador local. O destacamento de Missirá ficava a norte do Sector L1, já em terras de ninguém. A sul ficava o destacamento de mílicia e a tabanca em autodefesa de Finete, na margem direita do Rio Geba, frente a Bambadinca... No texto a seguir - parte das memórias de Beja Santos nas terras dos Soncó -, o autor começa a despedir-se (e a fazer o luto pela perda) destas míticas paragens e das suas gentes que o marcaram indelevelmente para toda a vida... Pode, em boa verdade, falar-se, a partir de meados de Outubro de 1969, de uma era pós-Beja Santos... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto enviado em 19 de Setembro último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Luis, espero que estejas de boa saúde e a mergulhar no ano lectivo. Para a semana tenho que entregar o livro "Consumo, logo existo" e não sei como vai ser. Ainda por cima, para a semana vou escrever sobre a emboscada e a mina anti-carro em Canturé. Recomeço as aulas no mestrado de Tecnologia e Segurança Alimentar, no Monte da Caparica. Tenho saudades de almoçar contigo e vou desafiar-te. Os livros seguem pelo correio, como habitualmente. Faz os milagres do costume, escolhendo boas ilustrações. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vista - Parte II (8) > Memorabilia do Cuor
por Beja Santos


Cartas de um militar de além-mar em África para superiores ali perto e para a namorada em Portugal


(i) Carta para Jovelino Corte Real, comandante do BCAÇ 2852

Meu comandante,

Avizinhando-se a saída do Pel Caç Nat 52 de Missirá para Bambadinca, considero importante deixar-lhe uma “memória” sobre a situação do Cuor, no sentido de o manter habilitado para as decisões que entender dever tomar com o meu sucessor.

Primeiro, a influência do inimigo não decresceu nos últimos quinze meses: os abastecimentos junto dos Nhabijões, Mero e Santa Helena processam-se com regularidade, são vitais para Madina/Belel, a despeito das emboscadas e patrulhamentos que no passado impuseram respeito, não vejo declínio, a astúcia e a necessidade sobrepõem-se ao temor que possar ter de nós.

Percorremos todo o território do regulado, com excepção da área vizinha entre Quebá Jilâ e Madina e podemos confirmar que a norte, acima do rio Passa em confluência com o rio Gambiel, as tropas do PAIGC movem-se à vontade e controlam as populações que lavram as bolanhas. Não exagero dizendo que o inimigo lavra e colhe as suas produções a menos de sete quilómetros em linha recta de Missirá.

É facto que o inimigo nunca emboscou as nossas tropas, não roubou populações que cultivam a bolanha de Finete e reduziu a sua capacidade em flagelar seriamente Missirá. Não embosca pela simples razão que dispõe de informações quanto à forma como nos movemos diariamente até Mato de Cão: nunca percorremos o mesmo itinerário, de dia ou de noite. Dispõe igualmente de informações que mantivemos uma presença efectiva nos patrulhamentos. Podem atacar Missirá ou Finete mas dispomos, por enquanto, de uma boa capacidade de resposta. Estou em crer que em Julho se aperceberam que é preciso trazer muito material e um grande contingente para fazer estragos ou desmoralizar.

Segundo, continuo a considerar que a fixação de populações não se deve circunscrever a Missirá e Finete. Peço-lhe que repense em repovoar Canturé, há populações em Badora e no Cossé prontas a regressar desde que se faça um quartel, haja milícias e armamento. Canturé repovoada garantiria o afastamento das gentes de Madina de Mero e Santa Helena, dificultaria a circulação das colunas de abastecimentos à volta do Geba. O comandante de Bafatá não contestou os meus argumentos, só que foi seu entendimento que os Nhabijões eram a prioridade das prioridades.

Terceiro, perdemos a capacidade ofensiva a partir do momento em que nos retiraram duas secções da milícia de Missirá, mantendo-se a obrigação do patrulhamento diário a Mato de Cão e a emboscada junto do nosso aquartelamento. Não posso envolver a população civil no abastecimento de águas, nem nos reforços nem nas colunas a Finete. Resultado, estamos atados de pés e mãos, não se pode patrulhar e deixar o quartel entregue aos militares doentes e aos civis. Continuo a defender que Missirá precisa de um pelotão de milícias, um pelotão de caçadores nativos e uma ajuda persistente de Bambadinca seja nos patrulhamentos ofensivos seja nas idas a Mato de Cão.

Quarto, o aquartelamento de Missirá possui presentemente um bom dispositivo defensivo, faltam dois abrigos sólidos, os outros são resistentes, só precisam de manutenção. No essencial está tudo desmatado à volta, o arame farpado foi renovado e está sólido. A escola funciona, as idas periódicas ao médico alteraram muito o quadro de doenças que conheci quando aqui cheguei. O relacionamento com o régulo é excelente, não há quaisquer perturbações de maior na convivência entre militares e civis. No entanto, conviria melhorar as condições de vida das populações, sou adepto de se encontrar uma verba para pagar as obras de arranjo e desmatação feitas por civis, sobretudo na região de Gã Gémeos até Canturé e na estrada do Geba, entre Gambana e Mato Madeira. Trata-se de segurança militar e, claro está, segurança para os civis.

Estou inteiramente à sua disposição, como me compete, para o informar de tudo o que julgar importante para melhorar a sua informação sobre o Cuor. Os meus cumprimentos.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea do aquartelamento (e de parte da povoação, à esquerda), tirada no sentido noroeste-sudeste. Em primeiro plano, a pista de aviação, o perímetro em L de arame farpado, o campo de futebol, a antena das transmissões...Ao fundo, do lado direito, frente à grande bolanha de Bambadinca, o edifício do comando em U...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


(ii) Carta para o Major Ângelo da Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 (2)

Meu comandante,

Deve ser do seu conhecimento qual a situação logística que vou legar ao [meu substituto, o Alf Mil, ] Alves Correia. Noutra carta, com data de hoje, informei o nosso comandante dos aspectos militares que não devem ser silenciados. Entregarei ao meu sucessor os diferentes livros com o material à carga, as folhas de pagamentos dos militares de Missirá e Finete, bem como as duas secções destacadas em Cansamange.

Todas as requisições de material de engenharia estão em ordem. As duas viaturas carecem de substituição, estão envelhecidas, permanentemente empanadas, vivemos um calvário nesta época das chuvas. O gerador eléctrico continua aí em Bambadinca, só poderá aqui chegar por duas vias: ser transportado para o Xime e levado numa LDM ou LDG até perto de Mato de Cão ou entre Saliquinhé e São Belchior, tenho pedido insistentemente, nunca obtive resposta; ou fabrica-se uma jangada robusta que o consiga colocar na bolanha de Finete, mas até hoje não conseguimos.

Os abastecimentos em munições estão hoje facilitados com os dois novos paióis, o mesmo se passa com os paióis de combustíveis. O mais grave de tudo tem sido o abastecimento de arroz para os civis o que nos obriga a colunas infindáveis. Não proponho nenhuma solução, pois os civis não têm dinheiro e nós não podemos oferecer arroz em permanência.

O serviço de justiça está actualizado, saímos daqui com todas as diligências obrigatórias efectuadas até ao momento. Não lhe quero esconder que há graves problemas em Finete para resolver: Bacari Soncó devia ser nomeado comandante e escolhidos três sargentos; o armamento é deficiente e continuo a pensar que o inimigo não tem sido mais demolidor porque a população balanta local é enorme e não lhes convém acirrar os ânimos quando precisam de cambar o rio um pouco acima do quartel e até Boa Esperança. Importaria resolver o problema do professor de Finete, oferecer um balneário à população civil e remodelar o conjunto de bidões do chuveiro dos milícias.

Agradeço-lhe muito toda a compreensão que tem tido com os nossos problemas e jamais esquecerei a expressão de Tigre de Missirá que usa comigo. Receba o meu reconhecimento.

(iii) Carta para David Payne Pereira, médico do batalhão

Meu caríssimo David,

Mil anos que vivesse e não esqueceria a profunda dívida que tenho para contigo, tanto pelo bem com que me tratas, como pelo conforto que tens trazido às gentes do Cuor. Não há memória de um médico de batalhão visitar com tanta assiduidade os quartéis do mato, dar consultas seis dias por semana e ver dezenas de doentes todos os dias.

Em breve vou viver aí ao pé de ti mas quero deixar escrito um comovido muito obrigado. Deus te pague o que tens feito pela saúde desta minha gente. Aqui fica a minha admiração e o meu reconhecimento.

(iv) Carta para Herberto Sampaio, oficial de operações

Meu major,

Permita-me que junte algumas considerações sobre a evolução do nosso trabalho no regulado do Cuor. São tudo coisas que conhece perfeitamente, mas prefiro deixar tudo escrito, como se fosse um balanço de todas as minhas preocupações à volta dos pontos mais sensíveis com que o Alves Correia se irá dentro em pouco confrontar.

Antes de mais, independentemente dos militares doentes, é já milagre irmos todos os dias a Mato de Cão e fazermos a emboscada nocturna. Chegamos a sair de Missirá com onze militares válidos e quinze a vinte civis armados para nos reforçarmos em Finete e então seguirmos para Mato de Cão. O Pel Caç Nat 54 terá a sua vida muito dificultada se não se encontrar uma solução de trazer mais milícias para Missirá.

Diz o povo “rei morto, rei posto” e bem gostaria que o meu sucessor tivesse outros meios que eu aqui não encontrei, sobretudo nos últimos meses. Bom seria igualmente que se encontrasse uma solução para as idas a Mato de Cão. Quando aqui cheguei, em Agosto do ano passado, era frequente irmos em média quatro a cinco vezes por semana a Mato de Cão, o que dava possibilidade de conjugar patrulhamentos, vigilâncias e emboscadas. Agora, como desde há largos meses, vamos lá praticamente todos os dias. Quando o quartel ardeu em Março deste ano centrámos toda a energia no seu reaparecimento e nas obrigações da segurança de Mato de Cão. Fomos perdendo gente em Missirá e o meu major criou a obrigação de uma emboscada nocturna perto de Missirá. Nasceu um problema novo: deixámos o mato todo entregue às gentes de Madina.

Peço-vos que revejam esta situação, as próprias populações civis estão inquietas com a presença assídua do inimigo perto de nós, flagelando-nos, sabendo-nos impotentes. É por isso que eu gostaria que o Alves Correia pudesse dispor de outros meios e até vir a poder contar comigo em patrulhamentos nesta região. É este o meu veemente pedido, que submeto à sua consideração.


(v) Para a Cristina Allen

Meu adorado amor,

Desculpa o meu silêncio, é tudo cansaço, a azáfama dos preparativos da partida, conferências de material de tudo o que possas imaginar, desde fronhas e lençóis, passando por pratos e panelas até metralhadoras e víveres armazenados. O meu estado de saúde também está abalado, ainda não me recompus psicologicamente do colapso nervoso do Casanova. O Pires ajuda-me imenso, tem-se revelado um colaborador surpreendente, enquanto um vai a Mato de Cão o outro põe a escrita em dia.

Ainda não se sabe quando terá lugar a nossa transferência para Bambadinca, mas será em breve. Tu perguntas-me na última carta o que vou fazer em Bambadinca e se lá vou ficar até ao fim da comissão. Segundo o comando, vou ficar na intervenção, expressão que quer dizer que posso ir buscar correio, montar seguranças à volta do quartel, emboscar, entrar em operações, fazer colunas, colaborar nos reordenamentos, tudo é possível. Já me disseram que vou para a ponte do rio Udunduma, é uma posição defensiva perto de Bambadinca, uma ponte com uns abrigos horríveis, um sítio sem o mínimo de condições para estar, um quartel que pode ser pulverizado se for bem flagelado.

Mas nada sei sobre o futuro. Não te zangues com o que te vou dizer: sinto imensa tristeza por partir de Missirá. Aqui ainda éramos de algum modo senhores da situação, havia uma relação a construir com as populações, vivíamos juntos, partilhávamos tudo juntos, a começar pelas inquietações e as ameaças constantes.

Em Bambadinca, viverei num quartel a cumprir escalas de serviço. Não sei explicar-te, foi em Missirá que a minha vida mudou, fascina-me toda esta beleza, os permanentes desafios para melhorar o bem estar de militares e civis. Compreendo os soldados, eles têm trinta e seis meses de Missirá, Bambadinca é a miragem do descanso. É escusado dizer-lhes que vão ainda trabalhar mais, depois será tarde, é assim que se aprende.

Amanhã, 15 de Outubro [de 1969], vou a Bafatá de novo tratar dos documentos de que te falei. Se os entregarem amanhã, seguirão logo pelo correio. Não para de aqui chegar correio cheio de fúrias, acusações e até insinuações. Não tenho energia para responder, sinto que perdi capacidade para ter os reflexos prontos, prefiro não responder a ninguém. Estou magoado, concentro-me na música e nos livros.

Li uma comédia assombrosa, “O Ente Querido”, por Evelyn Waugh. Tradução perfeita do Jorge Sena e ilustrações do João Abel Manta, que tu conheces do Diário de Lisboa. É uma sátira violenta no mundo anglo-americano de Hollywood, em que os não competitivos se suicidam ou são atirados para a valeta. O herói, Dennis Barlow, é um poeta que ganha a vida a incinerar animais, ao lado de embalsamadores de seres humanos. No Repouso dos Peregrinos e nos Prados Sussurrantes o que conta é o artifício e a tecnologia: maquilhagem, música ambiente, o automatismo das condolências. Dennis apaixona-se por Aimée, envia-lhe poemas clássicos como se fossem da sua autoria. O Sr. Joyboy, um perito em caracterização funerária, parece ser mais bem sucedido no coração de Aimée. Tudo acaba numa tragédia em tom chocarreiro, em que nos divertimos com o terror da morte. Porque aqui os mortos estão sempre mascarados de vivos, aqui quem ganha sempre é a tecnologia, que resolve todos os problemas da perda da eternidade.

Mas li mais, li os “Poemas Completos” do Manuel da Fonseca [, 1911-1993], um presente do meu padrinho. Gosto muito da prosa dele, o modo sério com que ele ultrapassa as soluções piegas do neo-realismo, e nos faz vibrar com as terras do Alentejo, as charnecas, as navalhas dos malteses, a vida tristonha dos funcionários camarários. Um dos poemas eu já o conhecia de o ter ouvido declamado pela Maria Barroso, com a sua vigorosa expressão dramática, “Estradas”. Começa assim:

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era a hora do poente.
Quase noite e quase dia.

Não achas isto uma perfeição, com este toque de simplicidade? Este livro e o de Evelyn Waugh vão para ti, deixo-os amanhã no correio de Bafatá.

Não esqueço o nosso futuro, os nossos projectos, não te esqueças do que representas para mim, a força que me dás para eu resistir a este turbilhão. Prometo agora escrever mais, parece que estou a sair do desânimo, sinto-me a renascer. Beijos, mil beijos, para quem acaba de fazer exames e nutre por mim a maior ternura do mundo.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina

(2) Carinhosamente conhecido, na caserna, como o Major Eléctrico

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

"Depois da flagelação de 19 de Março de 1969, em que perdi todos os meus livros (e discos),escrevi a muitos amigos que prontamente vieram em meu auxílio.

"O Mário Braga foi um deles. Tinha-o como uma referência da litertura neo-realista, sempre me dei bem com os seus contos,admirava-lhe a postura cívica. Ele veio até Missirá com livros de norte-americanos. Foi grande tradutor,e a sua mulher é nome obrigatório da tradução em Portugal. Falei já da tradução do Mário Braga, O silêncio e o Mar, de Vercors, que me deu uma grande companhia. Fui há dias ao seu aniversário, qualquer dia fará 90 anos"...



"Um dia fui visitar o Ruy Cinatti e ele disse-me: Estou a posar três vezes por semana para a minha vizinha. Vou ter quadro de artista, ela melhorou-me bastante.

"A Maluda estava na época no pico da notoriedade, já com as suas janelas e telhados. Vivia na Travessa da Palmeira nº12, 3º Esq., era portanto vizinha do Cinatti. Habituei-me a este belo quadro que estava pendurado na sala, não muito longe de um óleo do António Dacosta, obra que o Cinatti muito estimava. Um dia ofereceu-me esta fotografia que meti numa moldura e estava na minha secretária. Por testamento, este quadro faz hoje parte do património da Obra do Gaiato. É pena que não seja exposto num museu, nem que fosse a título temporário ou numa exposição dedicada ao Cinatti. Vamos esperar".

Fotos e legendas : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.




Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 17 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 57 (e último) da I Série da OperaçãoMacaréu à Vista, ou ao primeiro volume das suas memórias do Cuor, correpondendo cronologicamente ao seu 1º ano de comissão (1).

Caro Luís, aqui vai o texto revisto. Agora, começa a penitência da revisão geral, da ordenação da papelada toda. Estive a pensar, vou ordenar tudo por mesas: melhora os textos, dá uma melhor sequência ao leitor. Recebe um grande abraço do Mário.

Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)
por Beja Santos (2)

Para o Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father:

Agradeço-lhe do coração a sua carta. Tem razão, sou palavroso, manipulador, forço as palavras como forço as pessoas. E o resultado vê - se nos meus pseudo-poemas e nas relações humanas. Sensibilizou-me o seu poema "De um postal seu":

Donde sei
pra onde
não se sabe
sou
retirante.

O resto
irá por carta
ou
pelo telefone
- . -
Que outros relatem
o meu cansaço.

Eu anuncio
o poder da morte
lembrando tudo o que me prende à vida.

Viver a pedir,
receber, porquanto
quem recebe deve
- estranha condição.

Eu nunca pedi.
Devo solidão.

As minhas notícias, hoje não são famosas. Continuo punido, não posso ir a férias, vou repensar a minha vida e as decisões que vou tomar com a Cristina. Por aqui, com o contigente de Missirá reduzido, com a obrigação diária de irmos a Mato de Cão e fazermos uma emboscada, com a tropa doente em plena época das chuvas, ainda com obras em acabamento, estou atado de pés e mãos. Há quem pretenda consolar-me em Bambadinca dizendo que não há mais exigências operacionais para Missirá e Finete... como se eu pudesse desdobrar-me ou fazer uma vida operacional deixando dois aquartelamentos às moscas, entregues à população civil.

Dentro do que é possível fazer, há um pouco mais de conforto neste quartel, não tem falhado a abastecimeto de arroz para a população civil, os salários são pagos a tempo e horas, não há neste tempo sinais das destruições de Março, conseguimos pagar a um professor para dar aulas às crianças, acabou-se um paiol de munições e combustíveis, os cozinheiros podem fazer esparguete com chouriço, feijão com carne enlatada, galinha com legumes em conserva, a padaria funciona, temos no frigorífico águas Perrier e Vichy, os inimigos de Missirá e Finete sabem que andamos constantemente na mata.

Procuramos ajudar as famílias nos seus cultivos, não é fácil mantermos aqui centenas de pessoas na época das sementeiras mas é muito bonito ver as hortas cheias de tomate e beringela, as papaias são deliciosas, a população civil leva sempre um reforço militar quando vai cultivar para as antigas tabancas, há uma, chamada Canturé, entre Missirá e Finete, cheia de cajueiros, laranjeiras e limoeiros, com imensos morros de baga-baga, que é uma beleza. Tenho as consciência tranquila de que há empenho, uma boa relação entre civis e militares, o inimigo em respeito. Mas não podemos fazer mais nada, não posso levar civis para os patrulhamentos, não os posso pôr nas emboscadas nem nos reforços.

Os guerrilheiros estão relativamente perto de Missirá, no Gambiel, onde trabalhou o Prof. Armando Cortesão, colega do Teixeira da Mota. A propósito, estive com ele no início de Julho, jantámos, ofereceu-me livros e revistas (daí na sua carta escrever: "O Teixeira da Mota diz-me que V. está metido num buraco, vivendo como uma toupeira", o que não é verdade pois não me escondo debaixo da terra). Estou doente e não sei como resistir a algumas dores. Há dias, numa emboscada, um dos meus colaboradores mais capazes perdeu a cabeça e chamou-me branco assassino, sei muito bem que são frases demenciais, gritadas no instante, mas deixam marcas profundas, laceram o tecido afectivo, destroem a confiança. Enfim, o primeiro ano de guerra está feito, não sei por quanto mais tempo estarei em Missirá, adoro as gentes, a floresta, pergunto-me às vezes como é que esta experiência enformará o jovem adulto que sou. Receba a saudade e a profunda estima.

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Desculpe ser breve. A Missirá civil e militar quer notícias suas. A sua recordação está muito vincada nesta gente que cultiva o heroísmo. Posso compreender que V. pretende esquecer o que aqui viveu, mas asseguro-lhe que deixou memórias e amigos. Tornou-se uma lenda em Missirá. Todos falam de si como aquele que não tinha medo, que se dava ao respeito, que se interessava pelos problemas de todos. Estamos a viver um período difícil, subtraíram-nos mais soldados milícias, quase que não posso dar passo sem contar quem vai e quem fica, quem está doente ou vai de férias.

Despeço-me com uma novidade: regressou o bom senso, Enxalé voltou ao sector de Bambadinca. Eu vou comemorar, farei como V. fazia tantas vezes, meto-me ao caminho e vou almoçar com os camaradas de lá, na primeira oportunidade (espero que não se tenha esquecido que são cinquenta quilómetros ida e volta). A gente de Madina está muito activa, acabo de ter a notícia que foram descobertas nos Nhabijões várias canoas enterradas no lodo, com que eles fazem a cambança a partir da bolanha de Gambana. Ali perto, há dias, encontrei uma coluna de noite, escusa de me perguntar se havia mais militares ou população civil, morreu uma mulher, os outros fugiram porque um dos meus cabos perdeu a cabeça e desatou aos gritos. Escreva, por favor. Bem gostava de lhe mandar toda a estima que vejo no olhar de toda a gente quando se fala em Luís Zagalo.






Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe:

S. Pedro do Sul, 27/8/1969:

Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja


Querida Mãezinha,

Fiquei muito contente em saber que as suas férias nas termas de S. Pedro do Sul lhe trouxeram mais saúde. Cá recebi os seus livros, adorei o do Ruben A. Como se recorda, dediquei-lhe um programa que fiz nos serviços mecanográficos, onde trabalhei, fou uma exposição em 1966, depois disso ele recebeu-me na sua casa perto do Estremoz quando lá fui com o Ventura Porfirio fazer a reportagem sobre uma colecção de Cristos para o jornal Encontro. A sua autobiografia (O mundo à minha procura) é uma obra-prima.

Venho informá-la de que a redacção da minha punição foi alterada mas os dois dias de punição mantêm-se, pelo que só a poderei ver no próximo ano, se Deus quiser. Peço-lhe que não se mortifique, a vida continua, eu vou resistir como me ensinou. Ainda chove muito por aqui, mas estou cheio de saúde, o trabalho prossegue. Pergunta-me se vou ficar aqui mais tempo. Nada sabemos, até há uns meses atrás as comissões estavam divididas em doze meses em locais de alto risco e doze meses em locais com mais tranquilidade (em Bolama, por exemplo, a dar instrução). Agora é diferente, permanecemos praticamente nos mesmos locais e sempre ligados à mesma tropa. Fico contente quanto a este aspecto, a minha relação com os soldados guineenses é fraternal, gosto muitíssimo deles.

Estou a preparar a documentação para me casar, indeciso quanto à deslocação da Cristina, dadas as novas circunstâncias. Rezo todos os dias pela sua saúde, sinto-me cada vez mais feliz pela formação que me deu, sem ela eu não teria sabido resistir a todas as dificuldades com que me defrontei e defronto. Aceite a muita saudade e receba muitos beijinhos.


Carta para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Começo por te dar notícias de um livro arrebatador que trouxe de Bissau, A sangue frio, do Truman Capote. A tradução é preciosa, da mulher do Mário Braga, a Maria Isabel. Ao princípio, eu não sabia se estava a ler uma reportagem, um documentário ou um romance. Capote anuncia que o livro se baseia em relatos oficiais e em entrevistas. Começa-se a ler e fica-se confuso: ficção ou realidade? Fala-se de uma aldeia onde houve o assassínio de uma familía de quatro pessoas. O autor descreve com tanta agudeza o pai austero, o dia-a-dia de uma mãe convencional e dois jovens perfeitamente triviais, que se vacila entre a reportagem e o romance. Os diálogos, as descrições, as entrevistas são impressionantes. Depois a polícia descobre os dois homicídas. Regressa a confusão: é o autor que conversa com os homicidas? O detective é mesmo aquele homem que se chama Dewey? Os dois homicidas mataram por ódio ou por dinheiro? São centenas de páginas que se lêem com grande comoção, tal o gigantismo da palavra.

Enquanto lia este romance-documentário (existirá este género literário?) eu interrogava-me, roído de inveja, se não era um livro como este que gostaria de escrever sobre esta guerra da Guiné. Felizmente que tenho consciência da falta de méritos literários, mas gostava de dignificar um dia a epopeia nestas terras dos Soncós.

Obrigado por tudo quanto me tens escrito, os sopros de coragem e de ternura que aqui fazes chegar. Para ser sincero contigo, como tu gostas, ainda não me refiz da acusação de "branco assassino". Sei que vai sarar, mas sei também que me vou olhar de maneira diferente. Mantendo-se a punição, e sabendo-se agora em definitivo que só voltarei em 1970 aí, e não antes de Agosto, vamos ter de tomar os dois decisões importantes. Do meu lado, vou reagir à ofensa desta punição injusta, vou procurar de novo recorrer. Já me disseram que não é fácil recorrer de uma punição de um oficial general, mas estou por tudo.

Prometo-te que volto a Bafatá, para refazer os nossos documentos, já que havia declarações mal preenchidas, não estava lá o teu nome completo, faltava até a morada do meu pai ( a que propósito é que tenho que pôr a morada do meu pai, sendo eu maior e vacinado?). Não sei se estou a ser praxado, mas também me informaram que tenho de pedir ao comandante de Bambadinca autorização para o enlace. E lá vou ouvir de novo o secretário do Sr. Administrador, com o seu bigodinho à Clark Gable, a explicar-me o que é um casamento com separação de bens e uma convenção antenupcial. Nós não vamos desmoralizar. Sê prudente, não sofras com tudo aquilo que não se deve sofrer só porque não se compreende. Vivemos os dois esta agrura, não deixemos que as lágrimas se percam na terra.

Assim se passou um ano desde que a chorar me acenaste para o "Uíge". Graças a ti, ao ânimo que me trazes todos os dias, aconteceu este milagre de eu ter aprendido a resistir, a saber ultrupassar as dificuldades. Aprendi a fazer contas, a saber o que era a gestão de um quartel, aprendi a meter-me na mata profunda, a encarar como uma obrigação o defender e o combater. Não sabia o que era matar, aconteceu e não sei se voltará a acontecer. Sinto-me muitas vezes entorpecido, tenho saudades do cinema, do teatro, da música, do bailado, das conferências, das exposições, dos meus queridos amigos. Mas a vida ensina-nos as prioridades de um momento, colamo-nos a elas, e, a uma dada altura, descobrimos que valeu a pena e aceitamos a mudança como uma dádiva do Senhor.

Dói muito não poder fazer planos para o futuro. Missirá, a sua defesa e o seu combate, é o que tenho ao alcance da mão. Promete-me que me continuas a ajudar. Um belo dia, descobriremos os dois que mais um ano se passou. E que estamos preparados para viver um grande amor. Muito cansado, e para te dizer a verdade doente, beijo-te daqui até Lisboa.

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Notas dos editores:

(1) Vd. último post desta série: 20 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!

(2) nVd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)