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segunda-feira, 6 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23332: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (3): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte II: Inimigo, atividade militar


O emblema da CCAV 8350 (Guileje, 1972/73), "Piratas de Guileje", om o signo da morte por mote, concebido pelo J. Casimiro Carvalho, fur mil op esp.,   em 1972.  


Teor de uma carta enviada pelo J. Casimiro Carvalho aos pais, datada de Cacine, um dia depois da retirada de Guileje

Guileje está à mercê deles!

Cacine, 22/5/73:

Queridos pais: Vou-lhes contar uma coisa difícil de acreditar como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada [a bold, no original], ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel, ou se foi ordem dada pelo Comandante-Chefe, mas uma coisa é certa: GUILEJE ESTÁ À MERCÊ ‘DELES’ [, em maíusculas, no original].

Não sei se as minhas coisas todas estão lá, ou se os meus colegas as trouxeram. Tinha lá tudo, mas paciência.

Se foi com ordem de Bissau que se abandonou a nossa posição, posso dar graças a Deus e dizer que foi um milagre, mas se foi uma insubordinação, nem quero pensar…

Mas… já não volto para lá!!! Não tinha dito ainda que Guileje era bombardeada pelos turras há vários dias e diversas vezes por dia. Os soldados e outros não tinham pão, nem água. Comida era ração de combate e não se lavavam. Sempre metidos nos abrigos e nas valas. A situação era impossível de sustentar. Vosso para sempre (…). (Fonte: Poste P1784, de 24 de maio de 2007).
  
(Cortesia de J. Casimiro Carvalho, 2007)



A "arma que mudou a guerra", o míssil terra-ar Strela, de origem russa, introduzido na Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, em 20 de janeiro de 1973, na sequência da escalada da guerra

SA 7- Grail (designação NATO), míssil terra-ar, de origem russa (9k 32 Strela 2), desenhado por volta de 1964 e operacional em 1968. 

(...) "A evolução da guerra colonial na Guiné tomou um rumo dramático em 1973-74, quando o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) adquiriu a última versão do míssil soviético terra-ar SA-7 (Strela-2M). A utilização desta arma pela guerrilha provocou profundas alterações no emprego da aviação e na eficácia das operações aéreas. Aproveitando os efeitos tácticos do míssil, que tiveram reflexos estratégicos, os guerrilheiros lançaram várias operações de grande envergadura e a guerra entrou numa fase muito delicada. Surpreendida, inicialmente, a Força Aérea tomou rapidamente várias contramedidas que reduziram a eficácia do míssil. Que impacto teve, verdadeiramente, na actividade aérea e qual o efeito das contramedidas adoptadas é o que se pretende analisar neste artigo. (...)

(...) É inegável que o aparecimento do míssil na Guiné teve consequências nas operações aéreas e no uso do poder aéreo, mas as várias contramedidas adoptadas, ao longo do ano, surtem efeito, pois mais nenhum avião volta a ser abatido até ao final de 1973, embora as equipas de mísseis continuem activas dando cobertura às acções no terreno.

Desde finais de abril até dezembro de 1973, são referenciados 15 disparos contra aviões Fiat, mas nenhum avião é atingido (...) . Este indicador mostra que os pilotos da BA12 conseguiram, ao longo do resto do ano, contornar a ameaça antiaérea e recuperar o controlo sobre a generalidade das acções de apoio que prestavam às forças terrestres. (...) (*)



1. A Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), mais conhecida pelo acrónimo CECA, fez um trabalho notável de recolha, análise e sistematização da informação sobre o dispositivo e a actividade operacional no TO da Guiné, por anos e por contendores (NT e PAIGC). O título genérico é Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (e abrange os diversos teatros de operações, Angola, Guiné e Moçambique).

Referimo-nos, em particular, ao 6.º Volume (Aspectos da Actividade Operacional), Tomo II (Guiné), e aos seus três livros. Este trabalho, relevante para a historiografia militar, merece ser conhecido (ou melhor conhecido) dos nossos leitores, e em particular os antigos combatentes. 

Com um ano de antecedência estamos já recordar uma importante efeméride os 50 anosndos acontecimentos político-militares de 1973, e em particular de maio/junho de 1973, à volta de 3 aquartelamentos fronteiriços emblemáticos (Guidaje, Guileje e Gadamael). 

Foram meses e meses de brasa: o assassinato de Amílcar Cabral, em 20/1/1973, a utilização do míssil terra-ar Strela contra a nossa aviação, pela primeira vez, em 25/3/1973, o fim do mandato Spínola como com-chefe e governador geral em 6/8/1973, a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau em 24/9/1973, etc.. (**de )

O ano de 1973 será recordado como um "annus horribilis" para os dois beligerantes... que sabiam que nunca poderiam ganhar a guerra pela simples força das armas. O PAIGC perdeu o seu histórico e carismático líder, Amílcar Cabral, assassinado fria e cobardemente por um dos seus homens, formatado pela escola militar soviética.

Por seu turno, Spínola regressou a casa, cabisbaixo, sem poder ver concretizada uma solução negociada do conflito, que seria sempre uma solução mais política do que militar. Na metrópole, os "ultras" do regime não lhe perdoam as suas veleidades "federalistas" e a tentativa (gorada) de "negociar" com os "inimigos da Pátria" a secular soberania portuguesa sobre os seus territósrios ultramarinos.

Aqui vai, para os nossos leitores mais interessados na visão integrada dos acontecimentos, a continuação da publicação um excerto do referido trabalho da CECA. É também uma ocasião para lembrar os bravos que passaram por Guidale, Guileje e Gadamael, entre outros aquartelamentos que se destacaram nesta guerra.

É bom lembrar que, "do outro lado do combate" (usando uma expressão grafada pelo nosso coeditor Jorge Araujo), resta muito pouca informação documental, comparada com a que temos no Arquivo Histórico.Militar... "O arquivo do PAIGC existente em Bissau, justamente referente aos aspectos operacionais, desapareceu quase completamente, destruído em grande parte pelas tropas senegalesas aquando da guerra civil de 1998, bem como a maioria dos documentos do INEP (72,3 % dos arquivos históricos destruídos!)".(**)

Além disso, os poucos documentos sobreviventes, do espólio de Amílcar Cabral, foram entregues pela sua viúva aos arquivos da República de Cabo Verde e à Fundação Mário Soares, onde foram  objecto de um notável e minucioso trabalho de recuperação e digitalização,  integrados no Arquivo Amílcar Cabral  

Os jovens guineenses, nascidos já depois da independência, se quiserem conhecer a história recente do seu país, vão ter que recorrer também a fontes portuguesas como estas, que resultaram do gigantesco trabalho da CECA. E, modéstia àparte, também a este blogue que fez, em 23 de abril de 2022, 18 anos de existência. Um blogue que pretende continuar a ser uma fonte de partilha de memórias, informação e conhecimento entre Portugal, a Guiné-Bissau e Cabo Verde, e nomeadamente entre antigos combatentes que fizeram a guerra colonial (Guiné, 1961/74).


CAPÍTULO III > ANO DE 1973 > 1. INIMIGO

1.2.
Actividade militar


O ano de 1973 constituiu marco importante também na vertente militar do inimigo, se bem que a morte de Amílcar Cabral tenha provocado alguma desorganização militar e logística iniciais e mesmo assinaláveis dissidências entre cabo-verdianos e guinéus, tendo-se verificado agressões, assassinatos e roubos.

No início do ano a actividade principal da iniciativa do inimigo caracterizou- se por ataques aos aquartelamentos das nossas tropas no norte e no leste e mais reduzidos no sul, na sequência dos procedimentos registados no ano anterior.

Paralelamente, a actividade operacional empenhou-se também em criar dificuldades às nossas tropas nos trabalhos de alcatroamento das estradas, particularmente nas estradas Jugudul - BambadincaNova Lamego - Piche -- BuruntumaBinta - Guidaje, e Cadique - Jemberém, onde foram montadas emboscadas e engenhos explosivos contra as nossas tropas.

Em Janeiro, o número de engenhos explosivos implantados aumentou 152% e a actividade inimiga, no seu conjunto, provocou às nossas tropas algumas baixas, mas em número inferior à média mensal de 7 mortos e 70 feridos registados no ano de 1972.

As alterações nos objectivos de ordem táctica e estratégica decididos pela nova cúpula do PAIGC e os novos meios militares de que o inimigo passou a dispor, alteraram profundamente a relação de forças no terreno, materializada nos seguintes aspectos essenciais:

(i) no inimigo passou a privilegiar o incremento da luta armada relativamente à actividade política externa;

(ii) a luta armada passou a concentrar elevados meios materiais e humanos contra algumas guarnições das NT previamente seleccionadas, em detrimento de acções de guerrilha dispersas;

(iii) o inimigo reforçou-se fortemente em efectivos e armamento e reviu a sua doutrina e a orgânica de modo a adaptar-se aos novos materiais de que passou a dispor: entre o armamento introduzido, destaca-se a nova arma antiaérea - o míssil SA-7 "Strela";

(iv) concentrou efectivos de vulto na região do Boé, a leste da Província, com o suposto propósito de ali defender a todo o custo a sua primeira "região libertada" e estabelecer a fisionomia do novo Estado.

A opção dos dirigentes do PAIGC em incrementar a luta armada, para além do empenho dos novos dirigentes nesse sentido, considera-se também um imperativo das circunstâncias, dada a maior influência que Sekou Touré passou a exercer no partido, após a morte de Amílcar Cabral.

Com o fim de rentabilizar as acções de fogo das suas armas pesadas e melhorar os resultados obtidos nos ataques aos aquartelamentos das NT, o inimigo nomeou especialistas para frequentar cursos no estrangeiro. 

URSS treinou guerrilheiros do PAIGC em Simferopol, Potche, Odessa e Moscovo, onde se formaram em várias especialidades. 

Os especialistas de artilharia e morteiros, regressados às suas unidades de combate, passaram a fazer cálculos de tiro com base em cartas topográficas e a determinar com precisão as distâncias das armas aos alvos e a forma de corrigir o tiro, assim aumentando significativamente a eficácia das acções de fogo das suas armas.

Mas a alteração nuclear ocorreu nas limitações que o inimigo passou a impor às actividades da nossa Força Aérea, quando empregou, com êxito, os mísseis terra-ar, afectando significativamente a actividade operacional, a logística e o moral das forças terrestres.

Do antecedente, as aeronaves da Força Aérea actuavam com total liberdade de acção e este facto, só por si, condicionava seriamente a duração, o efectivo e o efeito das acções de fogo, quer durante o dia quer à noite.

A partir de Março todo este quadro se modificou, depois de o inimigo abater em 28, um avião "Fiat G-91" com um míssil antiaéreo "Strela", de origem soviética, na região do Boé, junto à fronteira com a República da Guiné, e de outro "Fiat G-91 ", três dias antes, se ter despenhado na área de Guileje, atingido por outro míssil, tendo-se ejectado o piloto.

Esta arma afirmou-se como o factor principal da viragem da situação no terreno, na medida em que passou a permitir ao inimigo concentrar fortes efectivos, em pleno dia, em locais onde pretendia exercer esforço, particularmente nas zonas de fronteira e na zona sul, enquanto reduziu a capacidade de exposição ao risco por parte das nossas tropas, por limitar a segurança e a eficácia do apoio da Força Aérea, quer em operações em terra, quer na evacuação aérea de feridos e doentes.

No mês seguinte, em 6 de Abril, o inimigo abateu mais três aeronaves - um "T-6" e dois "DO-27" na região de Guidaje/Binta, a norte, e, a partir daí, as equipas de cinco combatentes que constituíam a guarnição do míssil antiaéreo "Strela", que inicialmente actuavam junto às fronteiras, passaram a actuar no interior da província, condicionando a actividade da Força Aérea na maior parte do território.

O enorme reforço de meios materiais e humanos de que o inimigo passou a dispor no interior do território, foi também um dos factores que fez pender para o seu lado a balança do potencial relativo de combate. 

Os ataques levados a efeito pelo inimigo aos aquartelamentos das NT passaram a ser feitos muito mais demorada e assiduamente que até então e em pleno dia, com relevo para os ataques a Guileje e Gadamael Porto, a sul, e a Guidaje, a norte, todos próximo das fronteiras. 

Em Maio, o número, a violência e a duração dos ataques inimigos ao aquartelamento das NT em Guileje, junto à fronteira sul com a República da Guiné, obrigaram as nossas tropas a retirar desta posição, situação que teve impacto negativo no moral e dá uma ideia da gravidade que a situação atingiu.

Os efectivos e os meios de que o inimigo dispunha no terreno, vinham sofrendo evolução desde Janeiro, quando alguns bigrupos apresentaram uma orgânica diferente do habitual e passaram a estar armados com material russo diferente e bastante melhor que o anterior.

Durante todo o ano, foram chegando, reforços da Rússia, China, Cuba e mesmo mercenários vindos do Mali e Mauritânia, conforme assinalou o
serviço de informações militares português.

O material chegado constava de vedetas rápidas, canhões de 130 milímetros, carros de combate, viaturas anfibias, rampas de lançamento de foguetões, etc..

No final do ano de 1973, o serviço de informações militares atribuiu ao inimigo um efectivo de:

  •  73 bigrupos;
  • 15 grupos;
  • 13 batarias de artilharia;
  • 9 grupos de foguetões:
  •  2 grupos de artilharia convencional;
  •  10 grupos de artilharia antiaérea (mísseis "Strela");
  •  17 grupos de sapadores;
  • 3 bigrupos de fuzileiros:
  •  2 viaturas blindadas;
  • 1 grupo de canhões sem recuo; e 
  • 7 grupos especiais de lança- granadas foguete.

Havia ainda informações de que o inimigo dispunha de um número não determinado de carros de combate e aguardava o fornecimento próximo de aviões "MiG" de fabrico russo, outros meios blindados e lança-torpedos a utilizar contra unidades navais. 

Logisticamente a URSS estava a apoiar o PAIGC desde 1970 com 4 equipas médicas que trabalhavam em hospitais de campanha e davam formação a pessoal auxiliar.

A situação geral foi-se progressivamente deteriorando. O inimigo aumentou os ataques às guarnições das NT e incrementou o uso de engenhos explosivos a partir de Março, com os quais aumentou o número de baixas provocadas às nossas tropas e às populações.

O arsenal de que o inimigo dispunha levava a admitir, como modalidade de acção possível, que após o reconhecimento do novo "Estado" por um número significativo de países, poderia tentar uma ofensiva geral em todas as frentes de luta, lançando mão do grande potencial de combate de que dispunha, eventualmente apoiado por países estrangeiros.

O quadro geral das acções de iniciativa inimiga e das baixas provocadas nas nossas tropas foi o seguinte:

Em Janeiro o inimigo desencadeou 77 acções ofensivas, entre os quais 48 ataques a destacamentos das NT, implantou 21 engenhos explosivos e provocou 4 mortos e 62 feridos às nossas tropas e 10 mortos, 33 feridos e 7 capturados às populações.

Em Fevereiro levou a efeito 52 acções ofensivas, entre as quais 33 ataques a destacamentos e implantou 45 engenhos explosivos, que provocaram 7 mortos e 50 feridos às NT e 6 mortos e 119 feridos às populações.

Em Março desencadeou 63 acções ofensivas, entre as quais 30 ataques a destacamentos, implantou 62 engenhos explosivos e provocou 10 mortos e 90 feridos às NT e 10 mortos e 69 feridos às populações.

Em Abril foram desencadeadas 84 acções, das quais 50 ataques a destacamentos e implantados 143 engenhos explosivos, que provocaram 12 mortos e 80 feridos às NT e 14 mortos e 63 feridos às populações.

Em Maio foram desencadeadas 243 acções ofensivas, das quais 166 ataques a destacamentos e implantados 66 engenhos explosivos, que provocaram 63 mortos e 269 feridos às NT e 16 mortos e 82 feridos às populações.

O inimigo atacou Bigene, a norte, 21 vezes e Guileje, a sul, 36 vezes, obrigando à retirada deste último destacamento das NT no final do mês, em virtude dos ataques inimigos serem realizados com armas de longo alcance posicionadas na República da Guiné e o tiro ser regulado por observadores avançados, garantindo grande eficácia. 

Havia clara intenção inimiga de isolar e reduzir as posições das NT. o destacamento de Guidaje, a norte, foi atacado 43 vezes e durante alguns dias ficou mesmo isolado. Nessa altura, as NT dispunham de informações que indicavam estar o inimigo prestes a ser dotado com meios blindados e aéreos, e que proclamaria para breve a independência.

Em Junho o inimigo desencadeou 145 acções, das quais 101 ataques a destacamentos, implantou 59 engenhos explosivos e provocou 31 mortos e 128 feridos às NT e 5 mortos e 35 feridos às populações.

Após as NT terem retirado de Guileje, o destacamento de Gadamael Porto foi atacado durante 20 dias, perfazendo um total de 70 ataques.

No entanto o inimigo não obteve resultados práticos significativos de tais iniciativas, apesar de ter disparado cerca de 1000 granadas de armas pesadas de artilharia (morteiros 120 mm, canhões sem recuo e canhões 130 mm), tendo situado na vizinha República da Guiné, a maior parte das vezes, as bases de fogos de tais ataques.

Para este conjunto de acções, o inimigo empregou, além das batarias de artilharia de Kandiafara e de peças de artilharia antiaérea, 2 bigrupos de Tombali, 2 bigrupos do Boé, 1 bigrupo do Cantanhez e 1 ou 2 bigrupos de fronteira.

O abaixamento da pressão sobre Gadamael Porto começou a verificar-se a partir de 17 de Junho, em resultado das baixas que sofreu por acção dos bombardeamentos da Força Aérea e das acções das forças terrestres em missões de segurança próxima.

Foram também referenciados vários combatentes inimigos de tez clara.

Na estrada Cadique - Jemberém, o inimigo implantou 10 minas "MAC TMD-46".

No 2.° semestre, a actividade do inimigo diminuiu, quer globalmente, quer relativamente ao período anterior, em virtude de se terem concentrado na República da Guiné os quadros e dirigentes dos aparelhos político, administrativo e militar do PAIGC que tomaram parte no 2°
Congresso e na Assembleia Nacional Popular.

No entanto e apesar disso o inimigo manteve a pressão sobre Gadamael  Porto, na zona sul, e o emprego de mísseis terra-ar em várias frentes do território.

O quadro geral das iniciativas do inimigo no 2° semestre, foi o seguinte:

Em Julho, a actividade perfez um total de 87 acções de sua iniciativa, entre as quais 49 ataques a destacamentos das NT, tendo ainda implantado 57 engenhos explosivos. Esta actividade provocou 15 mortos e 89 feridos às NT e 4 mortos e 7 feridos às populações.
o destacamento das NT em Gadamael Porto foi atacado 21 vezes, neste mês.

Em Agosto, a actividade inimiga totalizou 75 acções (das quais 44 ataques a destacamentos), implantou 71 engenhos explosivos e provocou 8 mortos e 99 feridos às NT e 6 mortos e 13 feridos às populações.

O destacamento de Gadamael Porto foi atacado 28 vezes.

Em Setembro, a actividade inimiga perfez 45 acções (das quais 29 ataques a destacamentos), implantou 64 engenhos explosivos e provocou 7 mortos e 74 feridos às NT e 11 mortos e 17 feridos às populações.

O destacamento de Gadamael Porto foi atacado 4 vezes.

Em Outubro o inimigo totalizou 49 acções (das quais 26 ataques a destacamentos), implantou 28 engenhos explosivos e provocou 5 mortos e 37 feridos às NT e 10 mortos e 16 feridos às populações.

Em Novembro, a actividade inimiga perfez 44 acções (das quais 23 ataques a destacamentos), implantou 36 engenhos explosivos e provocou 2 mortos e 44 feridos às NT e 16 mortos e 55 feridos às populações.

Em Dezembro, a actividade inimiga totalizou 78 acções (41 ataques a destacamentos), implantou 64 engenhos explosivos e provocou 17 mortos e 138 feridos às NT e 12 mortos e 45 feridos às populações.

(Continua) (CAPÍTULO III > ANO DE 1973 > 2. Nossas Tropas)


Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo ads Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 245-250.

[ Seleção / revisão / negritos / fixação de texto pata efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15336: FAP (93): O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné - III e última Parte (José Matos, historiador e... astrónomo)

 (**) Último poste da série > 4 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23323: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (2): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte I: Inimigo, atividade política

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23319: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (1): A pontaria dos artilheiros... (Morais da Silva / C. Martins)

Peça de artilharia 130 mm M-46, de fabrico soviético (ano de introdução: 1954). Este tipo de armamento foi usado pelo PAIGC contra Guileje em maio de 1973, a partir do território da Guiné-Conacri. O seu alcance (máximo, com cargas propulsoras suplementares) pode ir aos 27,5 km. Tem uma guarnição de 7 homens.

Fonte: Wikipedia (em finlandês) (2007) (com a devida vénia...)

1. Guidaje, Guileje e Gadamael, os famosos 3 G, ou a "batalha dos 3 G", já aqui tão acaloradamente discutida, analisada, comentada, ao ponto de alguns de nós termos perdido a serenidade e a contenção verbal que devem ser apanágio deste blogue de antigos combatentes...  

Para o ano, os três G vão fazer meio centenário... Bolas, como estamos velhos!

Estamos em crer que ainda há muito coisa para dizer, e aprender, sobretudo aqueles de nós que não viveram na pele as agruras daqueles longos, trágicos mas também heróicos dias de maio e junho de 1973... Dias que  não se podem resumir à contabilidade (seca) das munições gastas ou das baixas de um lado e do outro (e foram muitas). (*)

Hoje, que passam 49 anos sobre a Op Amílcar Cabral, em que o PAIGC jogou forte (em termos de meios humanos e materiais mobilizados) contra as posições fronteiriças de Guidaje (no Norte) e Guileje e Gadamael (no Sul), parece-nos oportuno repescar alguns postes e comentários que andam por aí perdidos... E publicar novas histórias. Daí esta série "Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra?"...

Felizmente que ainda temos muitos camaradas vivos, que podem falar de cátedra sobre os 3 G, Guidaje, Guileje e Gadamael... Outros, entretanto, já não estão cá... Já do lado do PAIGC, é cada vez mais raro poder-se contar com testemunhos, orais ou escritos, sobre os acontecimentos de então.

Referências não faltam no nosso blogue... Alguns dirão, "ad nauseam"... Citemos entre outras:

Dossiê Guileje / Gadamael (56)

Gadamael (384)

Guidaje (255)

Guileje (540)

Op Amílcar Cabral (6)

Curiosamente, não temos nenhum descritor "Batalha dos 3 G", consagrado pela historiografista pró-PAIGC...


2. C
omecemos pelo poste P20103, que é já um "clássico" (**). O cor art ref António Carlos Morais da Silva, membro da nossa Tabanca Grande [, foto atual à esquerda], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972 (***), professor de tiro de artilharia na Escola Prática de Artilharia e da Academia Militar, é um homem frontal, nortenho, natural de Lamego, que gosta de chamar os bois pelos cornos

O cor art ref Morais da Silva tem autoridade para falar sobre as nossas (e as do PAIGC) "perícias artilheiras" porque é um especialista em tiro de artilharia e conheceu o terreno, passou por Gadamael, embora já não sendo contemporâneao da famigerada "batalha dos 3 G"...

(...)  A  narrativa artilheira deste senhor [o Osvaldo Lopes da Silva, ] é uma salgalhada sem ponta por onde pegar. (****)

"Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê, se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?! 

Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? 

Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante. 

O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT.  Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição,  nunca mais o conseguiram fazer,  passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). 

Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".

Morais da Silva
Cor Art Ref
Professor de tiro de Artilharia 
na EPA [Escola Prática de Artilharia] e na Academia Militar  (...)


3.  E fiquemos por agora pelo comentário do C. Martins, beirão, hoje médico reformado, antigo comandante de um Pel Art que esteve em Gadamael (1973/74) (*) (. Nunca se increveu formalmente na Tabanca Grande, por razões pessoais e profissionais, mas é um leitor assíduo e ativo, com mais de 35 referências no blogue)

(...) Guerras, guerrinhas, obuses, peças, granadas, cargas e por aí vai....

Factos: por vezes flagelavam com morteiro 82, canhão s/r, grad [fogute 122 mm] e possivelmente com a peça, essa de longo alcance. [peça de artilharia 130 mm, M-46, do exxército da Guiné-Conacri].

Felizmente raramente acertavam.

Ninguém contava as granadas IN 
[muito menos de lápis e papel na mão]  .

Nós éramos bem treinados na EPA [Escola Prática de Artilharia, emVendas Novas] e nos cálculos de tiro. As cartas eram muito boas.

Alguns subvertiam o número de disparos para que a reposição fosse aumentando de forma a ter cada vez mais granadas.

As granadas do obus 14 eram de fabrico USA, apesar de o obus ser de fabrico inglês.

Após a desgraça de maio/junho de 1973, em Gadamael houve um reforço de material e humano, a saber; 3 companhias, 2 pelotões de milícias, 1 pelart de obus 14, 1 pelotão de canhão s/r, 1 pelotão de morteiro 81, o que dava em média cerca de 600 homens em permanência.

Raramente a contrabateria surtia efeito, a alternativa era fazer batimento de zona que tinha pelo menos bastante efeito psicológico no IN (soube à posteriori).

Tínhamos bons abrigos subterrâneos.

E assim se passavam os dias,  uns melhores outros piores mas sempre arruinando o orçamento de Estado.

Na atualidade as melhores peças de artilharia são as de fabrico sueco, como quase todo o material de guerra fabricado por eles. (...)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23317: A nossa guerra em números (17): chuva de granadas sobre Guileje (18-21 mai 1973) e Gadamael Porto (31 mai-11 jun 1973)

(**) Vd. poste de 28 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20103: Dossiê Guileje / Gadamael (33): "Basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante" (diz o cor art ref Morais da Silva, antigo professor de tiro de artilharia da EPA e da Academia Militar), a propósito da comunicação de Osvaldo Lopes da Silva, apresentada em Coimbra, em 23/5/2013`

(***) Vd. poste de 20 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16218: Dossiê Guileje / Gadamael (28): A situação de Gadamel, ao tempo da CCÇ 2796 (1970/72), que teve dois grandes comandantes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e Cap Art António Carlos Morais Silva (Vasco Pires, (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

(****) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."

Vd. também poste de 30 de agosto de 2019>  Guiné 61/74 - P20107: Lições de artilharia para os infantes (7): Tal como o Strela reduziu a liberdade do nosso movimento aéreo, o radar de localização de armas (vulgo contra-morteiro) teria congelado a artilharia do PAIGC... (Morais da Silva / António J. Pereira da Costa / Luís Graça / Manuel Luís Lomba)

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20103: Dossiê Guileje / Gadamael (33): "Basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante" (diz o cor art ref Morais da Silva, antigo professor de tiro de artilharia da EPA e da Academia Militar), a propósito da comunicação de Osvaldo Lopes da Silva, apresentada em Coimbra, em 23/5/2013

1. Comentário do cor art ref António Carlos Morais da Silva, membro da nossa Tabanca Grande [, foto atual à esquerda], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972, professor de tiro de artilharia na Escola Prática de Artilharia e da Academia Militar  (*)


A narrativa artilheira deste senhor [Osvaldo Lopes da Silva] é uma salgalhada sem ponta por onde pegar.

"Calcula" coordenadas geográficas de que locais? Das posições? Para quê,  se não as tem do objectivo pois procurou obter orientação azimutal via clarões das bocas de fogo de Guilege?! 

Ligou as posições com uma poligonal?! Como assim? Como define azimutes sem linha de vista? Como calcula distâncias? A passo, a corta-mato?! E como orienta a caminhada? 

Ou também calculou latitudes e longitudes? Apurou a posição relativa das bocas de fogo de Guilege! Para quê? Fazer de cada uma um objectivo?!

Enfim, basófia muita, ciência pouca e assistência benévola ou ignorante. 

O que certamente aconteceu foi ajustar fogos com observação avançada consentida pelo "recolhimento" das NT.  Assim aconteceu em Fevereiro de 71, em Gadamael, mas felizmente os intervenientes na observação e no cálculo eram analfabetos na direcção do tiro. Tomadas medidas de interdição,  nunca mais o conseguiram fazer,  passando a executar fogos escalonados em alcance (tiro rolante). 

Na Guiné, as artilharias das NT e do IN eram baratas tontas que actuavam por "intuição" a partir do som e do conhecimento do terreno (quem o conhecia a palmo). 

Muitas vezes pedi ao meu Cmdt-Chefe que me arranjasse um radar contra-morteiro e o problema da artilharia IN era assunto arrumado. Infelizmente nunca recebi o "presente".

Morais da Silva
Coronel de Artilharia
Professor de tiro de Artilharia na EPA [Escola Prática de Artilharia] e na Academia Militar

_____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 27 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20100: Dossiê Guileje / Gadamael (32): O texto, inédito, de Osvaldo Lopes da Silva, um dos principais cérebros da Op Amílcar Cabral; mesa-redonda em Coimbra, 23/5/2013: " O ataque a Gadamael, na sequência da queda de Guileje, não foi a melhor opção. Melhor seria um ataque a Quebo (Aldeia Formosa) com forte pressão sobre Tombali. Com a queda de Guileje, Gadamael tornara-se uma inutilidade que não incomodava a ninguém. A sua guarnição devia ser deixada entregue aos mosquitos e ao tédio."

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18675: Dossiê Guileje / Gadamael (31): A Retirada de Guileje foi há 45 anos (22MAI73). Poderia não ter acontecido? (Coutinho e Lima, ex-CMDT do COP 5)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A população e os militares abandonaram Guileje, às 5,30h, a caminho de Gadamael. Esta foto, dramática, é da presumível autoria do Fur Mil Carlos Santos, da CCAV 8350 (1972/74), segundo informação do seu e nosso camarada e amigo José Casimiro Carvalho, também ele da mesma unidade ("Os Piratas de Guileje") mas que nesse dia estava em Cacine. Faz parte do parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje. 


Foto: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados. [ Editada por C.V.]


1. Em mensagem do dia 21 de Maio de 2018, o nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), lembra a retirada de Guileje, ocorrida sob as suas ordens em 22 de Maio de 1973.


A Retirada de Guileje foi há 45 anos (22MAI73) > Poderia não ter acontecido?

1. Introdução

Poderia, como vou explicar a seguir.

Antes disso, devo afirmar que, nas circunstâncias que se verificavam, em Maio de 1973, em Guileje, a minha decisão de efectuar a retirada foi a única que se impunha.

Com efeito, as informações que o Comandante do COP 5, que era eu, e o conhecimento da zona, em consequência da 1.ª comissão (1963/65, em Gadamael) esperava que o PAIGC criasse dificuldades, nomeadamente através de implantação de engenhos explosivos nos itinerários Guileje/Gadamael e Guileje/Mejo e eventuais emboscadas nesses itinerários, para impedir ou tornar mais difícil os reabastecimentos e a recolha de água. A propósito desta, não posso deixar de considerar muito estranho que, tendo Guileje sido ocupado em Março de 1964, isto é, passados 9 anos, ainda não tivesse sido resolvido o problema da água no aquartelamento.

Previa também que o Inimigo, com grande probabilidade, flagelasse as Nossas Tropas e população de Guileje, com maior ou menor intensidade e periodicidade. E nada mais, o que já não era pouco.


2. Documentos do Comando-Chefe

Mas o Comando-Chefe, como não podia deixar de ser, tinha mais informações sobre o Inimigo. Quando tive acesso ao processo que me foi instaurado, tomei conhecimento do seguinte documento (página 608 do processo):

2.1- “EXTRACTO DO RELATÓRIO DE INTERROGATÓRIO N.º 108
271800DEC72

De: MÁRIO MAMADU BALDÉ – Sexo: MASCULINO – Idade: 25 ANOS Grupo Étnico: FULA – Naturalidade: CACINE – Estado: Solteiro
[...]

INTENÇÕES DO IN
[...]

a. NA FRONTEIRA: Refere que o IN pretende fazer um ataque com bastante força a GUILEJE, porque pretende obter uma maior liberdade de movimentos logísticos e de pessoal no corredor de GUILEJE. Para isso, ficaram em KANDIAFARA alguns elementos que vieram recentemente dum estágio de Art.ª na Rússia, para fazerem reconhecimentos na área de GUILEJE e preparar esta acção.
MODOS DE ACTUAÇÃO
Os chefes sabem que as flagelações aos aquartelamentos não têm obtido resultados compensadores e por isso resolveram mandar vários elementos ao estrangeiro receber uma instrução mais adiantada de Artilharia.
Esses elementos ficam a saber trabalhar com cartas topográficas, para poderem determinar com precisão as distâncias de tiro. Aprendem também a trabalhar com goniómetros-bússolas e outros aparelhos, assim como ficaram a saber através da regra do milésimo converter as correcções métricas em direcção, em correcções angulares. Estes elementos ficarão normalmente em observadores avançados durante as flagelações, ligados por telefone às bocas de fogos, dirigindo a acção e regulando o tiro.
[...]”

Este documento merece-me os seguintes comentários:

- Ao que se sabe, o Estado-Maior do Comando-Chefe (nomeadamente a Repartição de Informações – (REP/INFO), não lhe “ligou nenhuma importância”, esquecendo uma regra básica das Informações, que é não desprezar nada, por mais inverosímil que pareça. A REP/INFO tinha a obrigação de confirmar ou infirmar o seu conteúdo, tanto mais que, os “modos de actuação” faziam todo o sentido, nomeadamente para os Artilheiros (que não era o caso do Sr. Chefe da REP/INFO, que era oriundo da Arma de Infantaria, mas que poderia e deveria, se tivesse dúvidas (que não deve ter tido), consultar os seus camaradas sobre o assunto.

- O Comando-Chefe e o seu Estado Maior, nada fizeram para impedir, ou no mínimo dificultar, que o IN fizesse os reconhecimentos no sentido de preparar a acção de concretizar “um ataque com bastante força a GUILEJE”. como deveria ter sido. Seguramente se tivesse sido informado do teor desse documento, teria afirmado, junto do Sr. Comandante-Chefe, que o COP 5 não tinha meios para contrariar a intenção do In, pelo que necessitava de ser convenientemente reforçado; mesmo que não me fosse atribuído qualquer reforço, não me esqueceria do que me esperava e, com os parcos meios de que dispunha, tudo faria para contrariar o que o IN preparava, nomeadamente através de patrulhamentos adequados; e, certamente, neste caso aplicar-se-ia o ditado popular: “Homem prevenido vale por dois”.

O que é certo é que, tudo o que consta no Relatório de Interrogatório n.º 108 de 27 de Dezembro de 1972 (antes da criação do COP 5), se veio a confirmar mais tarde, pelo Comandante do PAIGC, Sr. OSVALDO LOPES DA SILVA, em artigo publicado no jornal Público em 26 de Julho de 2004, (pág. 358 a 361 do meu livro), em que descreve, com pormenor, o trabalho de reconhecimento e levantamento topográfico realizado, durante vários meses, iniciado no final de 1972 e que culminou com o ataque em força sobre Guileje, a partir de 18MAI73, com total surpresa da minha parte, por falta de informação, INEXPLICÁVEL, da parte do Comando-Chefe.

Ainda acerca do documento transcrito atrás, pode perguntar-se por que foi incluído no processo que me foi instaurado.

Durante o tempo em que estive preso preventivamente, fiz vários requerimentos.

Em 30 de Julho de 1973, enviei um requerimento dirigido ao Senhor General Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, solicitando, nos termos da Art.º 411.º do Código de Justiça Militar, o fornecimento de cópias de diversos documentos, constantes de uma grande lista, também incluída no citado requerimento. A consulta dos documentos destinava-se à organização e devida fundamentação da defesa e desde já das novas declarações que for autorizado a prestar no corpo de delito e era essencial para o exercício do direito de defesa.

O despacho de 2 de Agosto de 1973, do Sr. General Comandante-Chefe, foi do seguinte teor:
“Forneçam-se os elementos solicitados com os seguintes condicionamentos:
- Os documentos classificados devem ser entregues ao oficial de polícia judiciária militar para serem apensos ao auto de corpo de delito, devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial.
- O relatório e elementos relativos à operação “Ametista Real”, não devem ser fornecidos por não dizerem respeito aos factos que estão na origem do auto de corpo de delito.
- A documentação solicitada que não se encontre já elaborada ou não tenha sido difundida pelas repartições, não deve ser fornecida por estar fora das atribuições das repartições a sua elaboração, mormente numa situação de manifesta carência de pessoal.
- Os documentos classificados já apensos ao corpo de delito, como é óbvio, não devem ser fornecidos.”

Em 08AGO73, o Sr. Chefe de Estado-Maior do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, através de uma guia de entrega, enviou ao Sr. Oficial da Polícia Judiciária Militar (PJM), Sr. Brigadeiro Leitão Marques, 124 documentos, para serem juntos ao auto do corpo de delito, o que aconteceu em 10AGO73.

O Sr. Oficial Da PJM – Sr. Brigadeiro Leitão Marques, nem sequer cumpriu o que o Sr. General Comandante-Chefe determinara : “...Os documentos classificados... devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial.” Foi mais uma prepotência que o Sr. Brigadeiro entendeu tomar. De facto, não me foi dado conhecimento do documento referido (se o tivesse lido nessa altura, não deixaria de fazer mais um requerimento, em termos contundentes, como se impunha, a solicitar explicações sobre o assunto.

O Extracto do Relatório de Interrogatório n.º 108, transcrito atrás, era o n.º 105 da lista de entrega referida. Não se percebe que, tal documento, altamente comprometedor para o Comando-Chefe e seu Estado-Maior, pelas razões indicadas nos comentários que fiz sobre o seu conteúdo, tenha sido junto ao processo. Em minha opinião isso aconteceu, pela forma negligente como foi elaborado o auto o corpo de delito, pois, nem o Sr. Chefe do Estado-Maior Int.º, Sr. Tenente-Coronel do CEM do CTIG, António Hermínio de Sousa Monteny, (que autenticou a cópia daquele documento), nem o Sr. Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe (que assinou a guia de entrega), nem o Sr. Oficial da PJM (que ordenou a sua junção após autos), se devem ter apercebido do seu conteúdo; se alguma das entidades indicadas o tivesse feito, seguramente teria sido retirado daquela lista de 124 documentos. Ainda bem que assim aconteceu, porque, em caso contrário, tal documento não seria conhecido.

Com efeito, se eu tivesse sido julgado (e isso não aconteceu, apenas por ter sucedido o 25 de Abril de 1974), o meu Advogado, Sr. Dr. Manuel João da Palma Carlos, (que se deslocou a Bissau), requereu em 18 de Fevereiro de 1974 autorização para consultar o processo (o que foi autorizado), seguramente tomou conhecimento do já referido “Relatório de Interrogatório” e no julgamento não deixaria de exigir explicações sobre o conteúdo do mesmo, o que causaria grande desconforto ao Comando-Chefe e seu Estado-Maior, que seriam responsabilizados pelo que não fizeram (e deviam ter feito), no que ao tal documento dizia respeito.

Do mesmo modo se pode entender a amnistia, que permitiu o arquivo do um processo e poderia não ter sido, bastando por exemplo limitar a sua aplicação a crimes cuja moldura penal não excedesse 2 anos de prisão.


2.2 - Reunião de Comandos realizada em 15MAI73

Em 15MAI73, realizou-se no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, uma Reunião de Comandos, presidida pelo Sr. Comandante-Chefe, Sr. General ANTÓNIO DE SPÍNOLA, estando presentes o Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES (viria pouco tempo depois a ser nomeado Oficial da Polícia Judiciária Militar, encarregado de me instaurar auto de corpo de delito, na sequência da Retirada de Guileje), Senhores Comandantes-Adjuntos, Comodoro ANTÓNIO HORTA GALVÃO DE ALMEIDA BRANDÃO, Comandante da Defesa Marítima da Guiné); Brigadeiro ALBERTO DA SILVA BANAZOL, Comandante Territorial Independente da Guiné; Coronel Piloto Aviador GUALDINO MOURA PINTO, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné. Tomaram igualmente parte na reunião, o Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe, Coronel do Corpo de Estado-Maior (CEM) HUGO RODRIGUES DA SILVA e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do QG do Comando-Chefe, respectivamente, Tenente-Coronel de Infantaria ARTUR BATISTA BEIRÃO e Tenente-Coronel do CEM MÁRIO MARTINS PINTO DE ALMEIDA.

Nos trabalhos de pesquisa para escrever o meu livro A RETIRADA DE GUILEJE, encontrei, no Arquivo Histórico-Militar do Exército, a ACTA dessa Reunião de Comandos, com 62 páginas. Dessa acta, transcrevo o que considero mais significativo, no que se relaciona com Guileje.

- Da intervenção do Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES:

“[...]
No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica – isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietnam.do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano.

O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? ...O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado.
[...]”

(Nota – os sublinhados são meus).

- Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações (REP/INFO), Sr. Ten-Cor. de Inf.ª BATISTA BEIRÃO:

“Na ZONA SUL, ...o In ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE a partir da REP GUINÉ, para o que concentrou meio sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas.
[...]
No imediato, julga-se que o IN:
[...]
- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL, GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições.
[...]
Num futuro próximo, prevê-se ainda que o In....
- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional.
[...]
Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação do esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o TO, sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta zona de preocupação, na qual dificilmente se podem, de momento, visualizar priorizações.”

(Nota – os sublinhados são meus)

Este último parágrafo é incoerente com o que consta nas transcrições anteriores. Vamos ver se nos entendemos: se não se podem visualizar priorizações, como se afirma as intenções do In , no imediato e num futuro próximo?

- Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações (REP/OPER), Sr. Ten-Cor. do CEM – PINTO DE ALMEIDA

“...Assim, considera-se essencial:

a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira.

Para este reforço computam-se as necessidades em:
Sector Sul... 3 Companhias
[...]

3. ...Se não forem concedidos os reforços solicitados... julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais...”

Certamente que o Sr. Chefe da REP/OPER, de acordo com as transcrições feitas, tinha em mente, entre outras, a guarnição de Guileje.

3. - O que se esperava que o Comando-Chefe fizesse, (face ao constante na Acta da Reunião de Comandos de 15MAI73)

Considerando as intervenções:

- Do Sr. Brigadeiro Leitão Marques:
“ ... o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de ...Guileje ...Isto está já ao alcance das suas possibilidades militares...”

- Do Sr. Chefe da REP/INFO:
No imediato, julga-se que o IN:
[...]
“- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra ...GUILEJE... visando o aniquilamento ou captura da guarnição...”

- Do Sr. Chefe da REP/OPER:
“a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira.”

O Comando-Chefe, ao constatar, em 18MAI73, quando o IN iniciou as flagelações a Guileje, que se concretizava a sua intenção de um ataque em força, que conhecia desde 27DEZ72 (Relatório de Interrogatório n.º 108, referido atrás), deveria, de imediato accionar o conveniente reforço da guarnição de Guileje , conforme preconizara o Sr. Chefe da REP/OPER.E não se argumente que o Comando-Chefe não tinha meios para reforçar o COP 5, porque se assim fosse revelava uma incompetência total.

Para accionar o reforço imediato, dispunha da Companhia de Paraquedistas n.º 121, que segundo as declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, (quando ouvido como testemunha em 27AGO73), “encontrava-se em Bissau em descanso”, desde 20ABR73. Esta Companhia podia embarcar na noite de 18MAI, chegando a Gadamael na manhã do dia 19 e a Guileje no mesmo dia. Esteve a reforçar Guidage, desde 23 a 30MAI (mesma informação do Chefe da REP/OPER); possivelmente não seguiu para Guileje, porque já estava “prometida” ao COP 3 (Guidage)!... Além disso, estavam na Península do Cantanhez, outras 2 Companhias de Paraquedistas que, com facilidade poderiam deslocar-se directamente, por terra, para Guileje; estas Companhias foram mais tarde reforçar Gadamael. Não tenho a certeza de que se o COP 5 tivesse sido reforçado, em tempo oportuno, isso resolveria o problema. Não tenho qualquer dúvida que, se esse reforço tivesse sido accionado, não teria decidido a retirada.

O não reforço só poderá entender-se, com grande esforço de boa vontade, se o Sr. Chefe da REP/OPER, estivesse à espera das 3 Companhias, vindas da Metrópole, para reforçar o Sector Sul. Se foi assim, bem podia esperar sentado...

O Sr. Comandante-Chefe decidiu deixar à sua sorte a guarnição de Guileje, demonstrando total insensibilidade, relativamente a centenas de pessoas, cujas vidas estavam em perigo e desresponsabilizou-se da sua obrigação, passando toda a responsabilidade para o Comandante do COP 5, que teve que decidir o que fazer.


3. - Conclusão

O teor do Documento de Interrogatório n.º 108 (27 de Dezembro de 1972) e da Acta da Reunião de Comandos de 15 de Maio de 1973 reforçam a justeza da minha decisão.

Oportunamente farei uma reflexão escrita do que teria acontecido, se a minha decisão tivesse sido esperar pela chegada do Sr. Coronel Paraquedista, RAFAEL DURÃO, novo Comandante do COP 5.

Quando regressei a Guileje, em 21 de Maio de 1973, de regresso de Bissau, onde expus ao Sr. Comandante-Chefe a necessidade de reforço de uma Companhia de Tropa Especial (já solicitado por mensagem) e face à situação encontrada, fiquei perante a oportunidade, mas também a grande responsabilidade de ter que decidir sobre o destino de centenas de vidas humanas (militares e civis).

Ciente das consequências que me esperavam, com incidências imediatas para minha vida militar, não hesitei decidir a retirada, de todo o pessoal que estava em Guileje. Pela minha ousadia paguei um preço bem caro, (um ano de prisão preventiva), mas VALEU A PENA.

A responsabilidade material da retirada foi minha, mas a responsabilidade moral foi do Sr. Comandante-Chefe, Sr. General Spínola (o Comandante é sempre o responsável por tudo que se faz ou deixa de fazer) e do seu Estado-Maior.

Alexandre da Costa Coutinho Lima
(Coronel de Artilharia Reformado
Único Comandante do COP 5, em Guileje)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17919: Dossiê Guileje / Gadamael (30): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (2) (Coutinho e Lima)

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (100): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > c. 2011 > Restos do Memorial à CCAV 8350 (1972/1974) e ao alf mil Lourenço, morto por acidente em 5/3/1973. De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica.  

Outra das baixas mortais da CCAV 8350 foi o alf mil art Artur José de Sousa Branco: foi morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73, era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Foram duas das 9 baixas mortais dos "Piratas de Guileje" e dois dos 75 alferes que perderam a vida no CTIG.

Foto: © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > c. 1973/74 >  "Dos poucos momentos que passei em Bissau... Junto às LFG Orion, Lira e Argos (da esquerda para a direita)"

Foto: © J. Casimiro Carvalho (2017). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada Francisco Godinho [, foto  à direita] recuperou, muito a propósito e oportunamente, em 24 do corrente, na sua página do Facebook, um texto do J. Casimiro Carvalho, que merece ser reproduzido no nosso blogue.

O J. Casimiro Carvalho, o nosso "ranger", ex-fur mil op esp, CCAV 8350, "Os Piratas de Guileje (Guileje, 1972/73),  é membro sénior da Tabanca Grande, e tem já cerca de 8 dezenas de referências no nosso blogue.

Publicámos, em tempos, as suas "cartas do corredor da morte" mas há lacunas de informação sobre o período em que esteve em Gadamael (e onde foi ferido).  Desde sempre o tratei, e muito justamente, como "herói de Gadamael". Nunca teve, ele e os outros "heróis de Gadamael", o devido reconhecimento público...

Não sei qual é a origem deste texto que o Francisco Godinho "recuperou".  Trata-se, em todo o caso de um relato dramático, na primeira pessoa, da uma saída para o mato, nas imediações do quartel de Gadamael, sitiado por forças do PAIGC, que acabou tragicamente para 5 dos 12 integrantes da "patrulha fantasma". Temos o dever recordar, mais uma vez, a sua memória e a trágica circunstância da sua morte... (LG).


O J. Casimiro Carvalho administra, desde 2/2/2014,  a página do Facebook Tabanca da Maia Tertúlia, reunindo já mais de meio milhar de membros, entre militares, ex-militares, familiares e amigos, com residência na Maia e imediações. É um grupo criado fundamentalmente "para convívio e para nos conhecermos" (sic). O grupo reúne-se, em almoço-convívio, no último sábado de cada mês. Além do  administrador (J. Casimiro Carvalho), tem um moderador (António Silva).  "Assuntos proibidos: religião, política e futebol"...


2. (De) Caras > J. Casimiro Carvalho > Gadamael, 4 de Junho de 1973: "A Patrulha Fantasma”

Em Gadamael, a mortandade era tanta, a cadeia de comando rompeu-se e houve fugas para o mato e para o Rio Cacine.

De salientar a bravura do capitão Ferreira da Silva (Comando/Ranger) (*), que avocou a si o comando desse pequeno contingente [, que restava em Gadamael,] e debaixo de fogo coordenou os cerca de 30 ou quarenta, verdadeiros heróis, que até à chegada dos abnegados Paraquedistas [do BCP 12], aguentaram aquele apocalipse!

Não havia condutores, o pessoal andava atarantado... aterrorizado e sem chefias que chegassem. Era assim em Gadamael em 1973.

A enfermaria estava pejada de cadáveres, um cheiro nauseabundo, os mesmos eram constantemente regados com creolina, não haviam urnas, os bombardeamentos eram constantes, as granadas caíam com precisão dentro do quartel, se fugíamos para o rio, elas caíam no rio, se fugíamos para o parque auto, caíam aí, havia coordenação de tiro por parte do IN.

Cheguei a conduzir uma Berliet, dos paióis para as bocas de fogo, de tal forma que,  quando havia saídas de fogo, nós já não as ouvíamos. Comigo andava um açoriano [, o 1.º cabo Raposo] (**), dois autênticos loucos varridos, saltávamos em andamento e, quando acabava o fogachal, voltávamos ao camião e seguíamos com o serviço.

Nessa altura, mais valia estar no mato, estávamos sitiados, e por isso,  quando formaram uma patrulha "ad hoc" onde me incluíram, até fiquei contente. Nessa patrulha ia o alferes Artur Branco, que antes tinha dito que o mandaram para ali, e que ia morrer; iam dois putos que tinham vindo voluntários para a tropa (, dois meninos!), aos quais ordenei que ficassem no quartel, ao mesmo tempo que disse: "Sois muito novos para morrer" (ainda se lembram disso e sempre o repetem aos filhos, dizendo que me devem a vida); ia um negro (o "pica"), o cabo José Neves e os soldados F. Anselmo [Fernando Alberto Reis Anselmo, natural de Macedo de Cavaleiros]; e A. Serafim [António Mendonça Carvalho Serafim, natural do Cartaxo] (um destes soldados nunca saíra para o mato), e outros que desconheço. Era uma “patrulha fantasma”.

Saímos para a zona da pista abandonada de Gadamael, as ordens era para emboscar nessa zona, para prevenir aproximações IN. Fomos em fila indiana ao longo do rio Cacine junto ao tarrafo. Passámos por um sítio, onde se vislumbrava uma pequena clareira, de capim médio, e o pica disse: "Alfero, melhor ficar por aqui, boa zona para montar emboscada"... O alferes Branco retorquiu que as ordens eram ir para a pista velha, pelo que continuámos. Uns 200 metros à frente, o negro disse que a pista estava minada e armadilhada pela tropa anterior. Posto isto, o alferes reuniu comigo e chegámos a consenso: que o melhor era recuarmos.

Recuámos em silêncio e ordeiramente, até chegarmos à tal zona da clareira, e começámos a entrar na mesma, agachados para passarmos por baixo do tarrafo.  Normalmente eu ia em 2.º ou 3.º nas patrulhas, e ao entrarmos nessa clareira, um dos militares deu-me passagem, e eu disse que não: "Ide entrando que 'eles' podem estar aí",  num tom bonacheirão e em sussurro, e assim foi.

Uns seis já tinham passado, quando ouvi uns estalidos e, com gestos e murmúrios, dei a entender que estava ali algo. Todos pararam espaçados e em silêncio. Como mais nada se ouviu, eu disse: “Deve ser passarada, avancemos” .... logo a seguir, outra vez o estalar de ramos e mexer de vegetação. Imediatamente gritei: “Emboscada!”, coloquei a arma em modo de rajada, e atirei-me para o chão, não sem antes ver a cara do alferes desfeita por uma rajada, com sangue e ossos (?), a saltar.
Já no chão e com um fogachal tremendo, próprio de armas russas, com a cara de lado bem rente ao mato, passou-me a vida pelo cérebro, e a mente a pensar na “minha mãe”. Estou neste estertor, pensando se abria fogo ou não, pois iria denunciar a minha posição, imaginando um turra a disparar nas minhas costas, deitado.

Nestas fracções de segundos, ouço uma G-3 a disparar ao meu lado, o som era mesmo nosso, então comecei a dar rajadas de 3 ou 4 tiros, enquanto outro militar dava tiro a tiro, compassadamente. Freneticamente, tirei o carregador vazio e coloquei outro, disparando pequenas rajadas por cima da cabeça, que continuava “colada ao solo”. Ao pegar no 3.º carregador, o tiroteio IN parou abruptamente, quando vislumbro um turra no meio da vegetação que se levantou, e assim mesmo levou uma rajada minha que o “tombou” logo ali, depois uma gritaria infernal, por parte deles, e eu, sozinho com um militar ao meu lado, berrei para o mesmo: "Vamos, ou morremos aqui".

Ele gatinhou à minha frente, passámos pelo cadáver do cabo Neves [José Inácio Neves, natural de Alcobaça] e seguimos para o rio, em direcção ao quartel, sempre a olhar para trás a ver se algum IN nos mirava para nos abater. Larguei cinturão, com a ração de combate e os restantes carregadores, para melhor correr, fugindo da morte certa, levando apenas a G-3 sem carregador nem munições.

Chegado ao quartel, sozinho, o meu corpo colapsou, e todos pensaram que eu morrera ali mesmo.  Fui recolhido por camaradas daquele inferno, tão aterrorizados como eu, e descansei um pouco, bebi água sofregamente, sem saber ao certo quantos morreram.

De seguida, saíram paraquedistas [da CCP 122, um Gr Comb, comandado pelo alf paraquedista Francisco Santos]  e foram ao local (a 1200 metros) da emboscada, onde encontraram aquela cena traumatizante, derivado ao que os turras fizeram aos meus camaradas, que me dispenso de pormenorizar aqui, tal o horror.

Quando regressaram, eu quis ver os meus camaradas, que estavam numa Berliet, e não me deixaram. Peguei numa G-3, meti bala na câmara e berrei: “Ou vejo, ou varro esta merda toda”!... Claro que vi, e essa imagem persegue-me ainda hoje, como fantasmas do passado!

Passados uns dias, noutro bombardeamento, fui ferido, e evacuado pelos fuzos até à [LFG] Orion, para Cacine. No entanto, quando fiquei bom, ofereci-me para ir outra vez para o holocausto, onde os meus camaradas morriam.

Andei 20 anos sem sequer mencionar que andei na guerra, ainda que militar da GNR BT [, Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana].

Hoje, falo abertamente, sofro em silêncio e não só. A minha esposa encontra-me por vezes a chorar convulsivamente e já não diz nada: Ela sabe...

Décadas se passaram, e numa simples conversa, descobri quem era o herói que ao meu lado disparou até ao último segundo (o tal da decisão de viver... ou morrer): era o soldado Borges, da CCAV 8350 "Piratas de Guileje", o qual abracei chorando e soluçando, revivendo aquele tormento.

Por isso, agora, quem me vê, nas comezainas, convívios, com alegria: e a disparar sorrisos para todo o lado, lembre-se, é um hino à Vida e uma forma de esconjurar os fantasmas do passado. (**)

José Casimiro Carvalho
ex fur mil Op Esp

PS - Nunca poderei esquecer a LFG Orion, seus marinheiros, os fuzileiros, que desobedeceram ao Gen Spínola e acorreram aos militares que morreriam sem o seu socorro.

Os Paraquedistas... nem tenho mais adjectivos: os meus heróis.

Um excerto de "A Guerra": Episódio n.º 10 [Episódio 10 de 18]

Em Gadamael, no sul da Guiné, poderia ter ocorrido um grande desastre militar. Perante ataques do PAIGC, quase toda a guarnição se refugiou no rio, ficando um pequeno grupo a defender o quartel. Spínola ameaça afundar um bote com militares em fuga. Também proíbe o socorro dos náufragos, grande parte civis, mas a Marinha e os Fuzileiros não cumprem a ordem.


3. Comentários:

(i) Francisco Godinho [ex-Fur Mil da CCAÇ 2753, "Os Barões do K3)", Madina Fula, Bironque, K3 e Mansabá, 1970/72; é natural de Moura, vive no Seixal]

Não queria voltar a este assunto, nem de "evocar memórias passadas e tristes" e que não quero que voltem a ocorrer na história presente e futura deste País, que é o meu e o vosso, agora que, parece, está "cimentada" a liberdade e a democracia, (às vezes, fico em alerta, mas enfim) neste nosso rectângulozinho, à beira-mar plantado.

Mas, como conheço o assunto, o protagonista e actor principal, o José Casimiro Carvalho, que faço questão e tenho o orgulho em ter como camarada de armas e amigo, e como também, ainda, tenho pesadelos, ainda que não tão intensos como os dele, dada a dimensão dos acontecimentos que ele, o Casimiro, viveu. (Eu terei outros, talvez não tanto dramáticos, mas igualmente marcantes do ponto de vista psico-social-emocional).

Mas, para que a memória dos portugueses/portuguesas, não se apague, não se deixe embalar em "cantilenas", e também porque, de vez em quando, (como ele muito bem diz) é preciso "exorcizar os nossos fantasmas", aqui vos deixo, para reflexão e "amadurecimento de memória", este pungente "relato real" de uma situação vivida por um jovem (tal como eu, na altura) soldado (, somos todos soldados, naqueles momentos) do Exército Português.

Repito, não para nos olharem como heróis, mas para, ao menos nos respeitarem e, principalmente, não esquecerem os sacrifícios e os "custos" que esta democracia, digamos, "impôs", para existir. 

Um abraço tamanho do mundo, José Casimiro Carvalho, e até ao próximo encontro da nossa Tabanca Grande.


(ii) Manuel  [Augusto]  Reis [ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74; vive em Aveiro]:

Fui testemunha "in loco" de tudo o que relata o José Casimiro. Foi de uma violência tremenda essa emboscada e foram bravos esses homens que foram obrigados a efectuar esse patrulhamento. Eram 11 homens, mal equipados e mal armados, que partiram do aquartelamento sob os berros e ameaças do comandante de companhia.

Não calei a minha revolta e indignação pelo sucedido, o que me valeu uma despromoção de 2.º comandante, o que para mim constituiu um prémio. Acabei por ser massacrado com tentativas de aliciamento para depor num determinado sentido, caso fosse aberto um inquérito.

Permanece viva a imagem do alf Branco, chegado há dois dias à companhia e, na hora da partida, olhou para mim, incrédulo, como que a perguntar o que devia fazer. Nada disse, mas apeteceu-me gritar: Não vás! Coube-me a mim partilhar este sofrimento e dor imensa com a pobre mãe. Não gosto de recordar esta situação, mas o José Carvalho merece uma palavra amiga pela sua abnegação e doação ao próximo. Sem a sua bravura ninguém regressaria do mato. Bem hajas. [****)


 (iii) Tabanca Grande / Luís Graça:

O alf mil art Artur José de Sousa Branco, da CCAV 8350, foi morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73. Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado. O grupo cai de imediato numa emboscada e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12, acabada de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, sob o comando do cap paraquedista Terras Marques).

Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco e ainda consegue resgatar os corpos e os sobreviventes. "Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).

Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350 (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade): António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo); Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros); Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém); José Inácio Neves (Alcobaça).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

(**) Vd. postes de:

15 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I) (Luís Graça)



(***) Último poste da série > 14 de novembro de 2017 > uiné 61/74 - P17971: (De) Caras (100): Saia uma sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira, ex-alf mil, CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim / K3, Mansabá, 1970/72; médico reformado, Pombal)

(***) Vd. poste de  2 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P310: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

(...) "Nas reuniões anuais da nossa Companhia muitos falam dos actos de bravura deste furriel, desde, debaixo de fogo, conduzindo uma Berliet se deslocar aos paióis para municiar não só as bocas de fogo de artilharia, como para os morteiros, fazer ainda parte duma patrulha onde morreram vários militares ficando ele e outro a aguentar a situação, até serem socorridos, e ter sido ferido, evacuado para Cacine, o que não invalidou que passados poucos dias se tenha oferecido para voltar para junto dos camaradas no verdadeiro inferno em Gadamael. (...)

Vd. também poste de  17 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16099: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (37): O nosso Blogue e a sua importância (Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350)

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17919: Dossiê Guileje / Gadamael (30): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (2) (Coutinho e Lima)

Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.

1. Segunda parte do trabalho subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, da autoria do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviado ao nosso Blogue em 27 de Outubro de 2017, que devido a ser um pouco extenso foi publicado em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje

4. Reunião de Comandos realizada em 15MAI73

Em 15MAI73, realizou-se no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, uma Reunião de Comandos, presidida pelo Sr. Comandante-Chefe, Sr. General ANTÓNIO DE SPÍNOLA, estando presentes o Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES (viria pouco tempo depois a ser nomeado Oficial da Polícia Judiciária Militar, encarregado de me instaurar auto de corpo de delito, na sequência da Retirada de Guileje), Senhores Comandantes-Adjuntos, Comodoro ANTÓNIO HORTA GALVÃO DE ALMEIDA BRANDÃO, Comandante da Defesa Marítima da Guiné; Brigadeiro ALBERTO DA SILVA BANAZOL, Comandante Territorial Independente da Guiné; Coronel GUALDINO MOURA PINTO, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné. Tomaram igualmente parte na reunião, o Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe, Coronel do Corpo de Estado-Maior (CEM) HUGO RODRIGUES DA SILVA e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do QG do Comando-Chefe, respectivamente Tenente-Coronel de Infantaria ARTUR BATISTA BEIRÃO e Tenente-Coronel do CEM MÁRIO MARTINS PINTO DE ALMEIDA.

Nos trabalhos de pesquisa para escrever o meu livro A RETIRADA DE GUILEJE, encontrei, no Arquivo Histórico-Militar do Exército, a ACTA dessa Reunião de Comandos, com 62 páginas. Dessa acta, transcrevo o que considero mais significativo, no que se relaciona com Guileje.
 
4.1 - Da intervenção do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES: 
“(...). No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica - isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietname do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano. 
O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? (...). O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado. (...)”

(Nota – os sublinhados são meus).

 4.2 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações (REP/INFO), Sr. Ten. Cor. de Infª BATISTA BEIRÃO:
“Na ZONA SUL, (...) o In ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE a partir da REP GUINÉ, para o que concentrou meio sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas. 
(...)
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL,GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições.
(...)
Num futuro próximo, prevê-se ainda que o In
(...)
- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional.
(...)
Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação do esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o TO, sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta zona de preocupação, na qual dificilmente se podem, de momento, visualizar priorizações”.

(Nota – os sublinhados são meus)

Este último parágrafo é incoerente com o que consta nas transcrições anteriores. Vamos ver se nos entendemos: se não se podem visualizar priorizações, como se afirma as intenções do In, no imediato e num futuro próximo?

4.3 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações (REP/OPER), Sr. Ten. Cor. do CEM - PINTO DE ALMEIDA
“(...). Assim, considera-se essencial: 
a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira. 
Para este reforço computam-se as necessidades em: 
Sector Sul
(...)
3 Companhias
(...)
3. (...). Se não forem concedidos os reforços solicitados (...) julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais. (...)”

Certamente que o Sr. Chefe da REP/OPER, de acordo com as transcrições feitas, tinha em mente, entre outras, a guarnição de Guileje.

5. O que se esperava que o Comando-Chefe fizesse, face ao constante na Acta da Reunião de Comandos de 15MAI73 

5.1 - Considerando as intervenções: 
- Do Sr. Brigadeiro Leitão Marques:
“(...) o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de (...). Guileje. (...). Isto está já ao alcance das suas possibilidades militares...”

- Do Sr. Chefe da REP/INFO:
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
“- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra... GUILEJE... visando o aniquilamento ou captura da guarnição...”

- Do Sr. Chefe da REP/OPER:
“a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira”.

5.2 - O Comando Chefe, ao constatar, em 18MAI73, quando o IN iniciou as flagelações a Guileje, que se concretizava a sua intenção de um ataque em força, que conhecia desde 27DEZ72 (Relatório de Interrogatório n.º 108, referido atrás), deveria, de imediato accionar o conveniente reforço da guarnição de Guileje, conforme preconizara o Sr. Chefe da REP/OPER e não se argumente que o Comando-Chefe não tinha meios para reforçar o COP 5, porque se assim fosse revelava uma incompetência total.

Para accionar o reforço imediato, dispunha da Companhia de Paraquedistas n.º 121, que segundo as declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, (quando ouvido como testemunha em 27AGO73, como testemunha), “encontrava-se em Bissau em descanso”, desde 20ABR73. Esta Companhia podia embarcar na noite de 18MAI, chegando a Gadamael na manhã do dia 19 e a Guileje no mesmo dia. Esteve a reforçar Guidage, desde 23 a 30MAI (mesma informação do Chefe da REP/OPER); possivelmente não seguiu para Guileje, porque já estava “prometida” ao COP 3 (Guidage)!... Além disso, estavam na Península do Cantanhez, outras 2 Companhias de Paraquedistas que, com facilidade poderiam deslocar-se directamente, por terra, para Guileje; estas Companhias foram mais tarde reforçar Gadamael. Não tenho a certeza de que se o COP 5 tivesse sido reforçado, em tempo oportuno, isso resolveria o problema. Não tenho qualquer dúvida que, se esse reforço tivesse sido accionado, não teria decidido a retirada.

O não reforço só poderá entender-se, com grande esforço de boa vontade, se o Sr. Chefe da REP/OPER, estivesse à espera das 3 Companhias, vindas da Metrópole, para reforçar o Sector Sul. Se foi assim, bem podia esperar sentado...

O Sr. Comandante-Chefe decidiu deixar à sua sorte a guarnição de Guileje, demonstrando total insensibilidade, relativamente a centenas de pessoas, cujas vidas estavam em perigo e desresponsabilizando-se da sua obrigação, passando toda a responsabilidade para o Comandante do COP 5, que teve que decidir o que fazer.


6. Conclusão 

O que se passou em Guileje, com início em 18MAI73, foi da inteira responsabilidade do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior.

Na verdade, ao tomar conhecimento da intenção o In sobre Guileje (Relatório de Interrogatório de 27 DEZ73) e, não tendo levado em consideração essa intenção, nem tão-pouco informando desse facto o Comandante do COP 5, quando esse foi criado, permitiu que o PAIGC tivesse preparado a sua acção contra o aquartelamento de Guileje, durante vários meses (conforme se soube mais tarde), sem que houvesse, da parte das NT, qualquer iniciativa que a dificultasse. Se o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior tivessem actuado como era sua obrigação: confirmar o conteúdo do relatório, accionar o patrulhamento ofensivo por forças especiais e informar o COP 5 (quanto mais não fosse, porque “homem prevenido vale por dois”), possivelmente não teria impedido que o IN tivesse desencadeado o ataque; este, seguramente, não teria tido a intensidade e a duração que se verificou; é esta a minha convicção.

Mesmo depois de ter solicitado por mensagem, em 20MAI às 03.20 horas, o reforço de uma Companhia de Tropa Especial e no mesmo dia, ao fim da tarde, ter apresentado idêntico pedido, pessoalmente ao Sr. General Spínola, não me foi atribuído qualquer reforço. E o que fez então o Sr. Comandante-Chefe? Para responder a esta pergunta, socorro-me do depoimento do Sr. Coronel Para Rafael Durão, quando ouvido, como testemunha em 03JUN73, no processo que me foi instaurado.

“(...). No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de GUILEJE, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas que se encontravam em GADMAEL e CACINE e outros ainda a chegar de BISSAU. Efectivamente fui nomeado Comandante da Zona Sul, ficando o COP 5 sob o meu Comando”.

O meu pedido de reforços foi ignorado pelo Sr. Comandante-Chefe e era o Sr. Coronel Durão que iria verificar as necessidades em meios. Devo referir que o Sr. Coronel Durão nunca tinha estado no Sul da Província e, além disso, a colocação dos abastecimentos em Guileje, naquele momento era secundário; o que interessava era, como primeira prioridade, aliviar a pressão do IN, além de criar as condições mínimas de vida em Guileje, que passavam por assegurar o abastecimento de água e outras funções primárias. Acresce que, tendo chegada às matas de Mejo, (mensagem da REP/INFO do dia 20MAI, às19.00 horas) o 3.º Corpo de Exército do PAIGC, admitindo a possibilidade de actuar sobre Guileje, havia grande probabilidade de o Sr. Coronel Durão, na sua deslocação apeada de Gadamael para Guileje (se fosse essa a sua intenção) ser interceptado pelo IN.

Tendo-se iniciado o ataque do IN em 18MAI, só passados 3 dias (21MAI) é que o Sr. General Spínola nomeou o Sr. Coronel Durão para resolver a situação, demonstrando assim a sua pouca preocupação pelo problema, estando em grande risco centenas de vidas humanas: militares, milícias e população de Guileje.

É também de realçar a missão que o Sr. Coronel Durão recebeu directamente do Sr. General Comandante-Chefe “para manter a todo o custo o destacamento de Guileje, naquele local”. A defesa a todo o custo significa resistir até ao último homem. É altamente discutível se, naquelas circunstâncias, face ao poderio do Inimigo, se devia exigir tal missão.

Regresso à acta da reunião de 15MAI73 (3 dias antes do início da acção inimiga), para transcrever outra parte da intervenção do Sr. Brigadeiro leitão Marques.

“Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir a captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa... Tal elemento será aproveitado ao máximo para desmobilizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU... O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante?”

Se não tivesse tomado a decisão de retirar, haveria grande probabilidade de se verificar o que previa o Sr. Brigadeiro (captura de grande número de prisioneiros) e, neste caso, Guileje poderia ter sido o “Dien Bien Phu Português”.

Lembro que a Batalha de Dien Bien Phu, travada entre o Viêt Minh e o Corpo Expedicionário Francês no Extremo Oriente, entre 13 de Março 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da guerra da Indochina.

Após 8 semanas de duros combates, as tropas do Vietname do Norte, uma força de cerca de 80.000 homens, que sofreu 7900 mortos e 15.000 feridos, venceram as tropas da União Francesa. Os Franceses registaram 2293 mortos e 5193 feridos; 11.721 soldados foram feitos prisioneiros e a maioria não sobreviveu ao cativeiro, tendo sido repatriados apenas 3290.

Comandava o Exército Popular Vietnamita o General GIAP; o Exército da União francesa era comandado pelo Coronel CHRISTIAN DE CASTRIES (nomeado General durante a batalha).

Para concluir, devo referir que o autor material da Retirada de Guileje fui eu, mas o autor moral foi o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
(único Comandante do COP 5, em Guileje – JAN a MAI 73)
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de outubro de 2017 > Guiné 63/74 - P17918: Dossiê Guileje / Gadamael (29): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (1) (Coutinho e Lima)