Mostrar mensagens com a etiqueta Esboços para um romance. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Esboços para um romance. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22585: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Naquelas férias de verão, Annette veio com o seu filho Jules, jovem desmotivado e com o astral em baixo, afetos acidulados e o trabalho precário não o larga, já revelou à irmã que foram umas férias excepcionais, parte amanhã, Annette decidiu passar este último dia só na sua companhia, foram para Sintra. Então, Paulo redige-lhe uma carta onde procura minimamente responder a uma pergunta que ela julga essencial para o contexto de toda a comissão militar que está a escrever, a evolução do estado de espírito, o que aconteceu àquele jovem cosmopolita, muito dado à cultura, que foi malhar com os ossos em Mafra, Ponta Delgada, Amadora e Guiné, em que acredita, que planeia para o futuro, já que se avizinha no horizonte o fim da sua guerra? E ele procura responder, não tem uma crença ideológica firmada, já leu e viu o suficiente para perceber como não tem pés nem cabeça o slogan de que andamos na Guiné há cinco séculos, mas o que seguramente aconteceu naquele seu processo de adultez foi a importância da sua relação com o Cuor, com aquelas gentes com quem manteve uma cativante fidelidade, como lhe tocou até à medula a solidariedade dos seus homens. Ele não sabe e não iria escrever a Annette o que não antevia, é como aquela experiência lhe calou fundo e indeclinavelmente o preparou para todas as empreitadas da vida que se seguiram.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (72): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorée, mon compagnon de vie, des projets, réseau de tous mes amours, envio-te esta carta para a Rua do Eclipse, enquanto tu estás aqui comigo nestas férias de verão. Jules parte amanhã para Bruxelas, tem andado radiante, mas sinto-lhe a tristeza do futuro improvável, parece que nenhum emprego lhe acerta e os desastres afetivos azedaram-lhe a existência, ele anda contente e não esconde, mas vai regressar ao centro dos problemas, fizeste bem em querer passar hoje o dia com ele, apanharam aqui à porta o comboio para Sintra, prometi preparar-vos um jantar de estalo. E procuro responder a uma questão que me puseste em dado momento, tudo a propósito das peripécias vividas no hospital militar de Bissau: que exame de consciência eu fazia da minha vida nos últimos anos? Deixo-te este breve esquema, juro-te perante Deus que era naquele tempo em que me preparava para deixar Bissau e regressar a Bambadinca, o modo como eu avaliava aqueles anos de juventude. Negligenciara os estudos em benefício de prazeres culturais que o dinheiro me dava no meu primeiro emprego, trabalhava em mecanografia e sentia-me finalmente feliz por não vestir a roupa dos outros, não ir a concertos só porque recebia borlas, o que sabia de África era através das narrativas da minha avó e da minha mãe, uma Angola idílica onde ambas tinham perdido os recursos no rescaldo da crise de 1929 que foi evidente em 1931, com a queda abissal do preço das matérias-primas. Não tinha crença ideológica clara, através do chamado catolicismo de vanguarda, assumia que o colonialismo tinha os seus dias contados, já havia papéis clandestinos suficientes que permitiam ver, sobretudo a partir de 1967, que os movimentos nacionalistas contavam com sólidos apoios e nós vivíamos com recursos financeiros finitos, como se comprovou, e isto sem já falar nos acontecimentos internacionais de 1973, quando eclodiu a crise petrolífera que deixou o Estado Novo com uma inflação a dois dígitos.

Houve descobertas importantes na minha vida militar, confiar na minha resistência física, ter percebido que havia para ali uma energia suficiente para longas caminhadas, para longas adversidades; a revelação de que possuía dotes de liderança; o ter sabido resistir aos dislates de um comandante de companhia que assegurava que um preto aguentava com trezentas agulhas espetadas no corpo e que confessaria tudo com umas boas palmatoadas com sola de pneu, o castigo foi ter vindo para a Guiné em rendição individual e comandar tropa africana; o Cuor deslumbrou-me, não pelo gosto dos tiroteios ou da caçada humana, era a inserção numa comunidade que me parecia milenária, poder trazer aportes de respeito e consideração, levar os doentes ao médico, encontrar professores para ensinar crianças e adultos, comunicar com diversas culturas a que eu era totalmente alheio, combater a seu lado, dar o exemplo de ir sempre à frente, incutindo-lhes mentalidade ofensiva; e ter ganho aquele desafio de Missirá em cinzas parcialmente reconstruída em tempo recorde; ter conseguido algum equilíbrio num diálogo interior entre o que era a minha cultura, simbolizada por aqueles caixotes de livros e discos, o ter mantido a curiosidade na leitura, com a abertura de espírito para procurar assimilar as riquezas culturais guineenses, e daí o gosto em procurar compreender a história daqueles povos, o que rapidamente me levou a perceber a gravosa mentira da propaganda que dizia que estávamos na Guiné há cinco séculos, o que gradualmente veio a acentuar a perceção de que os homens do mato lutavam pela posse da sua própria terra, que a nossa presença pouco mais dera que negócios e alguns quadros heroicos de tentativa de missionação. É nesse estado de espírito, meu adorado amor, que me leva a circular solitário por aquelas artérias de Bissau, a refugiar-me na messe de oficiais para confirmar a completa vulgaridade daquela retaguarda; e a experiência hospitalar abria-me novas pistas de observação, aqueles mutilados que se comparavam, como a guerra abre brechas na saúde mental; o meu corpo melhorava com aquelas injeções e comprimidos, a despeito da gritaria entre o capitão Oliveira e o furriel Alves. Circulava por Bissau, com um pé lá e outro em Bambadinca, encontrei-me com o meu querido amigo Teixeira, o cabo das transmissões, procurou-me para se despedir e fez-me pensar que a tropa que recebi em agosto de 1968 mudara literalmente de composição; mesmo do hospital militar enviara aerogramas aos meus sargentos, para pedir novas, as respostas não deixavam de inquietar: o pelotão fracionado em secções, nas mais diversas atividades; a descoberta de mais canoas em Samba Silate, prova irrefutável de que os guerrilheiros vindos do Cuor não desistiam de vir a Bambadinca abastecer-se ou informar-se ou subverter; nos Nhabijões, num patrulhamento noturno, houve recontro com uma coluna de abastecimento, um morto e três feridos, era gente do Corubal; o tratamento na Neuropsiquiatria parecia que me revigorara, fizera diferentes consultas médicas aos dentes e aos ouvidos e aos olhos, que não me preocupasse; e o médico deu-me alta e a meio de uma tarde de Bissalanca parto para Bafatá, consigo transporte para Bambadinca, venho encontrar tudo em confusão, há muita euforia, prevê-se para breve transferência de batalhões, ainda pergunto como vai a guerra, com alguma displicência respondem-me que há flagelações em Taibatá, Xime e Enxalé, e alguém se me apreça a informar que chegou o gerador elétrico para Missirá, bem contente fiquei depois de tanto porfiada diligência. A notícia daquele gerador, minha cronista do meu coração, é mais uma ponte entre o passado e o meu futuro na guerra e o outro futuro que anda tão confuso na minha cabeça, a não ser a crescente convicção de que me vou atirar aos estudos, sonho ser professor.

Consigo reunir o pelotão inteiro, converso com o substituto do Teixeira, chama-se Valente, um gordinho russo e bonacheirão, anunciam-se novas partidas, a do Domingos Silva pesa-me muito, foi meu intérprete em situações muito ingratas, deu-me muita dor de cabeça com as suas bebedeiras numa comunidade islâmica; alguém me informa, são notícias que se apreendem no mercado de Bambadinca, por isso é que a gente conversa com quem vem de fora, é assim que se processa no universo as sociedades que primam pela narrativa oral, que há muita desmoralização nas milícias de Amedalai, Demba Taco e Taibatá, corre a notícia de que vão encerrar a tabanca em autodefesa de Moricanhe, é o prenúncio de novas desgraças.

E é quando me dirijo para a messe de oficiais, está na hora de almoço, que o major das operações, num corredor pejado de caixões espalhados daquela gente impaciente que aguarda os substitutos e anuncia que esta tarde iremos conversar sobre uma operação que eu irei comandar, a Beringela Doce. Caio em mim, a guerra não faz intervalos, eu que me recorde que ainda tenho as colunas ao Xitole, as emboscadas nas imediações, escoltas, patrulhamentos noturnos, idas às tabancas na periferia, as obras permanentes nos Nhabijões onde é preciso montar segurança, o suplício na ponte de Undunduma. Houve já quem me dissesse que o PAIGC anda calmo, talvez porque se avizinhe a época das chuvas, são umas flagelações rápidas, algumas minas, ataques mitigados em tabancas em autodefesa, pouco mais. Pelo Pires fico a saber que afinal de contas a nossa tropa foi envolvida numa operação chamada Gato Irritado, coisa insignificante.

Minha adorada Annette, eu vinha recomposto graças às injeções e aos comprimidos de Tryptizol 25, o meu pelotão mudou de forma e figura, passam a toda a hora viaturas da Tecnil, são as obras do alcatroamento da estrada entre Xime e Bambadinca, naquele momento ainda não sei que vou ter cerca de um mês pela frente a sair de madrugada e aguentar a pé firme o dia todo, dentro do mato, a vigiar estes trabalhos. As surpresas não param: na manhã seguinte, recebo uma comitiva liderada pelo régulo Malan Soncó e os chefes de tabanca de Missirá e Finete, vêm-me convidar a assistir em Missirá à inauguração do gerador elétrico. Inexplicavelmente, digo que sim. Dois dias depois, num sintex, acompanhando o comandante da CCS, o capitão Figueiras, vou despedir-me do Cuor muito amado, da Missirá que guardo no olhar, sempre intocada, como a amei, ao longo de 17 meses.

Eram estes os apontamentos que te quis enviar para conheceres o meu estado de espírito, entendi que não devia carrear esta informação para as nossas férias. A despeito de tudo o que aqui se escreve, toma estas notas como uma carta, beijo-te muito, com uma ternura e uma admiração sem limites, quantas vezes me pergunto como foi possível que no teu gesto tão dedicado de cronista me tomasses por inteiro esta dádiva de amor, que é esperança dos nossos tempos futuros, bisous, Paulo.

(continua)

Avenida Marginal com o cais do Pidjiquiti
Bilhete-postal que todos nós enviávamos às famílias
Bissau Velho
Pormenor do monumento “O Esforço da Raça” na Praça dos Heróis Nacionais
Praça Honório Barreto, Bissau
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
A relação de Jules com Noémie é muito estreita, Jules veio bastante deprimido até às suas férias em Lisboa, a visita foi uma verdadeira lavagem da alma e ele descreve à irmã aqueles dias prodigiosos de uma cidade com mais de oito séculos de portugalidade, com os seus bairros típicos a caminho da gentrificação, a preocupação de Paulo de lhe mostrar a cidade e os miradouros, gostou dos museus, das igrejas, adorou os comes e bebes, enterneceu-se com aquela casa pejada de quadros de todos os tamanhos, fotografias espalhadas por todas as divisões, encantou-se com a varanda virada para quintais onde primam flores e árvores de fruto, deliciou-se com os serões, Annette nunca perde oportunidade, é uma cronista assumida, de continuar a escrever os relatos da comissão do Paulo, às vezes há um olhar lacrimejante do protagonista, noutras vezes Annette e Paulo dão gargalhadas, Jules a tudo assiste, sente a ternura que atravessa a vida daquele casal, sente-se parte integrada na felicidade da mãe, como conta a irmã. Esqueceu-se de lhe dizer que foi a primeira viagem, ele ainda não sabe mas regressará muito mais vezes a Lisboa, sempre feliz pelos doces regressos e por ver sempre a sua mãe tão feliz. Também se esqueceu de dizer que tinha prometida uma visita à Feira da Ladra, que ainda não aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Segunda e última carta de Jules Cantinaux para a mana Noé:

Chère Noé, muito provavelmente irás ler as minhas notícias quando eu já estiver na Bélgica, acordei com uma empresa de La Louvière, três semanas de trabalho em artes gráficas, no entretanto irei estabelecer contato telefónico contigo. No seguimento do que te escrevi, todos aqueles sete dias da minha estadia foram ocupados com os programas que fiz com o Paulo e a mamã. Ele ofereceu-me um livrinho chamando-lhe raridade para bibliófilos, é um livro sobre Lisboa com data de 1940, o autor do texto chama-se Norberto de Araújo e as ilustrações são de Maria Keil, esta conheci-lhe a azulejaria quando andámos no Metropolitano. Paulo ofereceu-me a edição em francês, além de um guia moderno, tem um conjunto de propostas de passeios, como é evidente não percorremos tudo, como te disse na carta anterior, visitei a Sé Catedral, o castelo de S. Jorge, a igreja e o Largo do Menino de Deus, a Graça, uma parte da Mouraria, estivemos num largo muito amplo chamado Campo dos Mártires da Pátria; como também terás visto na carta anterior, demos uma volta pela Madragoa, estivemos no Museu Nacional de Arte Antiga e fomos ao miradouro onde se vê o porto de Lisboa e a outra margem do Tejo. No dia seguinte percorremos Estoril e Cascais, era inevitável passearmos pela zona de Belém, vi no Mosteiro dos Jerónimos um claustro soberbo, passeámos à beira do Tejo e é impressionante o panorama que se avista da Torre de Belém.

Paulo insistia que devíamos voltar ao casco histórico e por isso saímos de manhã cedo e viemos até ao Terreiro do Paço, é um bom hectare de terreno, cercado de construções relativamente homogéneas, o Paulo referiu-me que estiveram ali muitos ministérios e seguimos por uma rua chamada Rua da Alfândega, ele queria mostrar-nos outra preciosidade do que aqui se chama estilo manuelino, um tardo-gótico do reinado de D. Manuel I. Ainda se pensou em voltar a Alfama, onde estivemos no primeiro dia, mas o Paulo queria mostrar outro lado do casco histórico, o Chiado, já estivera no café A Brasileira, agora foi a vez de irmos ao Largo do Carmo, voltámos a subir e entrámos numa igreja de nome São Roque, nunca vira esplendor igual, a mamã estava boquiaberta diante de uma capela chamada de S. João Baptista cujos materiais vieram diretamente de Roma. E seguimos para mais um miradouro, São Pedro de Alcântara, outro panorama esmagador sobre a cidade, atravessámos outro bairro antigo, de nome Bairro Alto, mas antes estivemos num local chamado Solar do Vinho do Porto a degustar esta saborosa bebida, sentia-me profundamente feliz não só pelo que estava a ver e que era uma inteira surpresa mas por sentir a alegria esfusiante da mamã, o seu olhar carinhoso para este seu bem amado português.

Lembro-me, querida Noé, de há uns bons anos atrás termos conversado sobre a solidão em que vivia a mamã, sempre nos pareceu que aquela maratona de viagens como intérprete camuflava a solidão, do que me foi dado entender depois da separação ela parecia resignada talvez ao papel de avó ou de se relacionar com mulheres da sua idade a caminho da velhice. Posso constatar a toda a hora que ela e o Paulo se entendem admiravelmente, como adiante te contarei como a história em que os dois gargalhavam sobre um episódio passado num hospital.

Os últimos dias foram para eu conhecer a Lisboa moderna. O Paulo gosta muito de Arte Deco e levou-me a uma igreja chamada de Nossa Senhora de Fátima, tu não podes imaginar o esplendor dos vitrais, senti-me esmagado num espaço destinado a batismos, eu conhecera este artista, de nome Almada Negreiros, quando num passeio na zona portuária o Paulo nos levou à Gare de Alcântara, fiquei siderado com aqueles painéis. Estes últimos dias já andámos sempre no carro do Paulo, ele queria mostrar-nos a Lisboa Oriental e o que se projetara construir com a exposição de 1998 que deu origem a uma zona moderna chamada Parque das Nações. Novo passeio à beira do Tejo, surpreende a estrutura da ponte que construíram de nome Vasco da Gama, ajardinaram espaços e temos ali uma zona de lazer magnífica. Visitámos bairros antigos da Lisboa Oriental, muito decadentes, há sinais de que estão a surgir novas construções, mas a um ritmo lento. Passámos por um local chamado Xabregas e o Paulo disse-me que no próximo passeio irei visitar um museu só com azulejos, e que depois desta visita perceberei porque é que Portugal é a potência nº 1 à escala mundial do azulejo.

Tenho muito mais coisas para te contar, saíamos sempre de manhã e regressávamos ao entardecer, o Paulo insistia em confecionar as refeições para nós, num espaço agradável na varanda com belos quintais. E sempre bem-dispostos íamos conversar para a sala, acompanhados de infusões de gengibre ou menta, a mamã muito disciplinadamente com o dossiê da tal guerra da Guiné nas mãos, dele extrai uma agenda onde toma freneticamente nota das conversas havidas com o Paulo. Creio que te contei que ele viera a Bissau para várias consultas mas impunha-se um tratamento mais cuidado para repor os sonos, meteram-no num serviço de Neuropsiquiatria numa divisão com três camas, os seus dois vizinhos eram pessoas altamente perturbadas, felizmente que a carga de medicamentos era de tal modo forte que passava uma boa parte do dia a dormir, havia a rotina dos preceitos higiénicos e das refeições, uma hora de visitas por todo o hospital, onde ele descobriu que os militares feridos se mediam com os danos corporais dos outros, uma vez viu alguém quase feliz por só ter perdido uma perna, foi neste ambiente de permanente discussão entre um capitão e furriel, tudo numa divisão em que as paredes tinham a brancura da cal, havendo uma janela ao alto com um discreto gradeamento, camas com colchas brancas destoando de um chão de pedra marmoreado que se irá passar um episódio em que me vi também a gargalhar com a mamã e com o Paulo, tratava-se da visita de senhoras benemerentes, Paulo falou na Cruz Vermelha e no Movimento Nacional Feminino, primeiro entraram as senhoras da Cruz Vermelha, traziam aerogramas, revistas um tanto puídas, os doentes tinham recebido instruções rigorosas para ter as mãos esticadas fora dos lençóis e da coberta e que não se atrevessem a qualquer dito inconveniente a tais senhoras de alto coturno.

Tudo parecia que ia correr bem, com as senhoras da Cruz Vermelha comportaram-se como três surdos-mudos, as senhoras devem ter pensado que eram doentes muito mortificados, e também com uma expressão mortificada saíram. Entraram as senhoras do Movimento Nacional Feminino, quem capitaneava a delegação era a mulher do comandante militar, mostrou-se afável, pronta a contatar as famílias, parecia a provedora do doente. Paulo e o furriel que escapara fisicamente incólume de um sistema de minas antipessoal olhavam seraficamente para o teto, mas o capitão parece ter perdido a tramontana, saiu da cama em pijama e gritou para as senhoras que estava ali como um prisioneiro de guerra, houvera uma cabala sinistra para o remover do seu posto de oficial de informações, que as senhoras o ajudassem prontamente, aqueles dois companheiros de quarto eram totalmente indesejáveis, o tal furriel não passava de uma máquina falante e apontando para o Paulo, em tom desdenhoso, disse que aquele menino de coro, com este arzinho de quem não parte um prato, não passava de uma fera adormecida, um hediondo criminoso, bastava saber que comandava pretos, deve ter sido escolhido pelos seus maus fígados, e gritava para as senhoras “tirem-me daqui, tirem-me daqui!”, as senhoras recuaram e fugiram, o zelador, o 1º cabo Morais discursou-lhes à bruta, iam ter todos um castigo. Querida Noé, ríamos os três, o Paulo era quem ria mais.


A mamã perguntou ao Paulo o que se seguia depois deste episódio do tratamento em Neuropsiquiatria, dois dias depois daquele despautério com as senhoras benemerentes o psiquiatra deu-lhe alta, levava umas mezinhas para conforto. Juntou os trastes, foi buscar a guia de marcha, ainda andou dois dias por Bissau à deriva antes de um avião o deixar em Bafatá. Percorre a cidade agradado por se sentir só, na messe de oficiais come e, em vez de ir diretamente para o grande dormitório que dá pelo nome de Vaticano III, passeia-se, escreve, regressou o gosto pelas leituras, voltou ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e comprou livros. Parte ao princípio de uma tarde de Bissalanca, durante a manhã fez compras para os seus bravos soldados. Durante o voo faz contas ao trabalho que o espera, recebera vários aerogramas dos seus colaboradores Ocante e Cascalheira, anda tudo numa rotina. Sente que a sua comissão se encaminha para o fim, já se deu a mudança de batalhão, sabe pois que irá encontrar novas caras. Mas grandes surpresas ainda o esperam, até que nos primeiros dias de agosto é conduzido ao porto do Xime, metido numa LDG, numa estranha viagem em estado de espírito contraditório, dilacerado pelo apartamento e a sonhar pelos desafios que o esperam. A mamã tomou nota de tudo. E momentos houve em que eu sentia que também fazia parte daquele romance da vida daquele casal que me parecia o mais surpreendente ao cimo da terra. O resto contar-te-ei de viva voz, irei de La Louvière a Uccle quando me convidares, minha querida irmã. Bisous, comme toujours, bien à toi, Jules.

(continua)

O BNU chegou a Bissau e instalou-se na Avenida da República, foi conhecendo melhorias, depois da independência foi ministério
Muralha da fortaleza da Amura noutros tempos
Portal manuelino da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, Rua da Alfândega, Lisboa
Igreja de São Roque, a sumptuosidade entre o Chiado e São Pedro de Alcântara
Painéis de Almada Negreiros na Gare de Alcântara
Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos
Rua da Madragoa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Jules acompanha Annette na viagem a Lisboa, passará uma semana na companhia dos dois. Paulo preparou-lhes um programa de arromba, muita digressão por lugares típicos, procura fazer comparações entre o passado da sua juventude e o presente, Lisboa conhecera um processo revitalizador depois da exposição de 1998, a dinâmica mantinha-se imparável, iam desaparecendo os armazéns que atravancavam a vista do Tejo, os bairros populares começavam a gentrificar-se e a conhecer referências no turismo internacional, os primeiros dias foram consagrados exatamente ao casco histórico tirando uma visita a Cascais e Estoril. Jules sente-se feliz com a receção, com as explicações que Paulo lhe dá sobre a evolução da cidade, mas tal como escreve à irmã o que o deslumbra é ver a felicidade da mãe, sempre entregue àquele estranhíssimo papel de cronista de algo que ultrapassa completamente Jules, uma tal guerra colonial em que Paulo andou metido, assiste a uma conversa estranhíssima em que se fala da vida hospitalar, de gente gravemente sinistrada, que compara as suas maleitas com as dos outros, e fica boquiaberto quando a mãe casquina uma cena tremenda de discussões no quarto onde Paulo tenta dormitar, um capitão furibundo com um furriel, chegam às vias de facto, um numa cadeira de pernas partidas e outro com uma faca romba, não se estivesse num hospital militar parecia uma comédia italiana.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Carta de Jules Cantinaux para a mana Noémie

Chère Noé, estou há quatro dias em Lisboa, sinto-me ultrapassado pela velocidade de tudo que o Paulo nos põe diante dos olhos, é uma cidade fascinante, ele começou por nos levar para uma zona chamada Alfama, tem a ver com a fundação da nacionalidade, depois da tomada de Lisboa aos Mouros nesta zona teriam ficado a viver as minorias muçulmanas e judaicas.

Quando olhamos este bairro histórico do Miradouro das Portas do Sol tem-se a sensação que tem um formato poliédrico, tudo pode ser posto a rodar, as formas encaixam perfeitamente. Quando cheguei, o Paulo logo me disponibilizou um mapa da cidade, um guia em francês, foi-me mostrando imagens antigas, reproduções de quadros de um pintor chamado Carlos Botelho, de um aguarelista chamado Roque Gameiro, falou-me da Lisboa antiga que ele conheceu nos anos 1950, os passeios que fazia aos fins-de-semana com a mãe, numa Alfama onde se cantava o fado, tal como noutros bairros populares que dão pelo nome de Mouraria e Madragoa. Procurou contextualizar a evolução da cidade, pediu-me para eu ler à noite alguns artigos sobre a cidade antiga e ler os textos do guia, fiz o possível por me documentar.

Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, tomámos um táxi os três, visitou-se a catedral românico-gótica, o Paulo asseverou que tem os fundamentos assentes numa mesquita, é um edifício sóbrio, foi muito afetado pelo terramoto de 1755, o tesouro de alfaias religiosas é de uma sumptuosa riqueza. Subimos até outro miradouro, de nome Santa Luzia, uma vista espraiada sobre o Tejo, Paulo disse que do outro lado estava o Castelo de São Jorge, onde houve paço real e mesmo castelo dos Mouros, durante séculos esteve ao abandono, em 1940, por causa das comemorações dos centenários da fundação de Portugal e da sua independência, foi alvo de uma grande intervenção, visitei-o dois dias mais tarde, é uma outra panorâmica estarrecedora, para mim a mais bela de todas, bom, voltámos a subir para um outro miradouro, as Portas do Sol, e descemos junto a muralhas antigas que Paulo lembrou que eram medievais, e assim entrámos na Alfama.

Noé, senti-me num mundo antigo, há muitas obras de restauro em curso, mas aquelas ruas estreitas, os largos, os becos, as igrejas, as casas apalaçadas, as conversas em voz alta nas ruas dão um ambiente magnífico, é um passeio que se faz sempre com a curiosidade desperta, percorremos Alfama de alto a baixo, visitamos uma igreja que segundo a tradição foi onde nasceu Santo António e o Paulo contou-nos a devoção da mãe pelo Santo, todos os anos no dia 13 de junho ele acompanhava-a na procissão, tocava-lhe profundamente o apreço que a mãe sentia pelo milagreiro e casamenteiro.

Almoçámos num restaurante muito curioso em gabinetes privados, em frente dessa igreja, nunca tinha comido choco panado, a mamã pediu chocos com tinta, o que eu me ri quando lhe olhei para os lábios e os dentes, tudo enegrecido, mas tudo tão bem apaladado, com boa batata cozida e batata frita aos palitos. O Paulo pediu iscas, explicou-me que a receita portuguesa inclui banha, as iscas ficam a marinar em vinagre com louro, sal e pimenta, devem-se comer com batata cozida e uma porção de salada. Impressionou-me a variedade de sobremesas, os flans, mas o Paulo insistiu que eu provasse requeijão com compota, uma delícia. A mamã sempre feliz, às vezes corrigindo certas expressões do Paulo, por deferência comigo a conversa foi sempre em francês. E após o café tomou-se um novo táxi para uma zona chamada Chiado, o Paulo mostrou-nos um café recheado de obras de arte, de nome A Brasileira, e dizendo que mais tarde faríamos um passeio ali a preceito, descemos ao Rossio, falou-nos num importante hospital que aqui houve até ao terramoto, mostrou-nos a Igreja de São Domingos, onde tinham lugar casamentos reais e de onde partiam os condenados da Inquisição para morrer na fogueira.

Seguimos para a Praça dos Restauradores, o Paulo é admirador de um arquiteto do período Arte Deco e mostrou-nos um antigo cinema que está transformado em hotel mas que mantém exteriormente linhas maravilhosas, um risco surpreendente em que se cruzam o moderno e o antigo. Foi nessa altura que a mamã acusou cansaço e pediu para regressarmos a casa, ali ficámos os três a conversar à varanda e a olhar os quintais onde vi damas da noite, buganvílias, jasmins, árvores de fruto, muitos vasos espalhados com hibiscos, sardinheiras e camélias. O Paulo propôs que no dia seguinte fossemos a Belém e depois tomássemos o comboio até Cascais, faríamos depois um passeio junto ao mar até ao Estoril. Aceitámos, foi mais um dia extraordinário. E ontem andámos pelo Castelo de São Jorge, não me esqueço do nome de um largo, Menino de Deus, subimos à Graça, a dois miradouros, novo almoço típico, espetadas de peixe para todos, e de táxi seguimos para um local chamado Campo dos Mártires da Pátria, novo miradouro, chamado Torel, ali avistámos a tal Praça dos Restauradores e o tal antigo cinema Éden.

Novamente de táxi seguimos para outro percurso, a Madragoa, foi entrada por saída, Paulo ainda queria que visitássemos o Museu Nacional de Arte Antiga, a mamã e eu ficámos deslumbrados até pela riqueza de Arte Flamenga. E quando regressamos a casa o Paulo disponibilizou-me o catálogo de uma exposição que ocorrera em 1991 em Antuérpia, com o título de Feitorias, no âmbito da Europália Portugal, ele gosta muito de Antuérpia e mostrou-me um bilhete que tem junto da sua secretária, uma reprodução da descida da cruz, pintura de Rubens, está na catedral.

Querida Noé, sinto-me profundamente feliz por dois motivos. Nunca pensei em ter umas férias como estas, os aspetos típicos e o caráter desta cidade deslumbram-me, o acolhimento do Paulo não podia ser melhor. E vejo a mamã enternecida, é grande o amor que os une e eles não escondem o apreço mútuo. Há momentos em que me ponho à margem só para os ver conversar, inevitavelmente o tema da tal guerra da Guiné vem à baila, numa das últimas noites a mamã dava gargalhadas com as descrições que o Paulo fazia sobre a sua ida para um serviço de Neuropsiquiatria de um hospital militar em Bissau. Ele falava numa enfermaria de três camas, numa estava um capitão que pedira por duas vezes a vinda de meios aéreos para entregar aerogramas para a mãe, ato inconcebível, tresloucado, para o capitão era a coisa mais natural do mundo, veio para o hospital para se tratar; noutras estava um furriel que pisara um sistema de minas antipessoal, andara pelos ares, ficara fisicamente sem danos mas com profundas alterações psicológicas, o Paulo viera para tratamento, tomava vários medicamentos ao longo do dia, tudo se tornava difícil com as discussões permanentes entre os outros dois doentes, o capitão acusando o furriel de chanfrado e o furriel verberando o capitão como tarado sexual, todos os dias aparecia por ali uma lavadeira a quem o capitão acariciava os seios e depois entregava vinte escudos, cena patética, o Paulo deitado, sem tugir nem mugir, o furriel encrespando o capitão, que não lhe respondia.

Mas a mamã deixou de rir quando o Paulo abordou um aspeto insólito daquela estadia, à hora da visita aos doentes, noutras enfermarias, ouviam-se conversas em que se comparava quem estava mais doente do que o outro, isto é, quem só tinha perdido uma perna, uma mão ou um olho parecia que estava mais confortado que quem perdera duas pernas, duas mãos ou a vista toda. Nesse período em que os doentes andavam numa certa liberdade, parecia que todos se concitavam para junto das varandas ver os helicópteros com os feridos, era uma estranha partilha do sofrimento alheio. Depois trocavam-se notícias, procuravam-se patrícios doentes, dava-se informação sobre quem veio queimado, quem estava no bloco operatório, se havia estilhaçados da cabeça aos pés… Se a contabilidade dos danos já era confrangedora, o Paulo sentia-se assombrado com ele voyeurismo dos sinistrados, passou lá uma semana e todos os dias olhava para este espetáculo arrelampado.

Ficou combinado que amanhã vão falar os dois à noite sobre a visita das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino, foi aí, naquele quartinho de três camas, que aconteceu o espetáculo mais insólito da estadia do Paulo. Vou estar atento a essa tão bizarra conversa, a mamã toma nota de tudo, está sempre a pedir fotografias, às vezes duvido que ela esteja interessada em escrever um livro e queira mais um álbum comentado, mas também percebo, aquilo é um mundo completamente novo na vida dela, este romance que ela prometeu escrever tem para ela um grande valor simbólico, é como um conto das mil e uma noites que une indelevelmente o narrador e quem o escuta. Querida Noé, estou tão feliz por mim e pela mamã, não acredito que tu não queiras fazer férias em breve em Lisboa. Sabe-se lá se a mamã não virá para cá viver quando chegar a idade da reforma. Escrevo-te antes de partir, está prometido. Bisous, ton frère, Jules.

(continua)

Hospital Militar Nº 241, Bissau
Rua do Arco do Marquês do Alegrete, aguarela de Roque Gameiro
Cerca Fernandina de Lisboa
Miradouro Portas do Sol, Alfama
Antigo cinema Éden, do genial Cassiano Branco
Sala do cinema Éden, interior do antigo cinema, as linhas puras e dinâmicas da Arte Deco
Um dos mil recantos da Lisboa antiga
Edifício da Rua dos Bacalhoeiros, ao lado da Casa dos Bicos, hoje Fundação José Saramago
Descida da Cruz, Rubens, Catedral de Antuérpia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22529: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22529: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
É com a maior satisfação que me socorro do livro Postais Antigos da Guiné, escolhidos por João Loureiro. Conheci este distinto advogado no Conselho de Publicidade, ele representava as agências e eu os interesses do consumidor. Sobrou uma consideração mútua e um dia pude escrever que o levantamento de património coligido pelo Dr. João Loureiro era inultrapassável, ele sistematizou uma invulgar coleção de quase dez mil postais fotográficos, sem dúvida uma imprescindível fonte iconográfica não só da presença portuguesa em África e no Oriente como também de um período que marcou os sinais da colonização portuguesa e a alvorada das nações lusófonas. A ele dedico hoje este despretensioso texto.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon adorée, presque à arriver à Lisbonne, não sei se é só o meu coração que te aguarda com a maior expetativa, em breve virás tomar conta da nossa casa, és tu que lhe dás vida e que me embalas o destino. Já que te estás a divertir com as peripécias da minha passagem pela Neuropsiquiatria do Hospital Militar nº 241, e que me pedes ainda mais aspetos caricaturais, episódios de pequeníssima história, sobre tudo o que tem sido a minha comissão, aqui vai um punhado avulso de rememorações. Na noite em que desembarcámos do Uíge para uma lancha que nos levou ao cais do Pidjiquiti, já era 29 de julho de 1968, alguns soldados com o olhar furibundo pela estafa que lhes estava a dar, foram arrastando os meus malões de madeira para um estranho portaló, sempre a imprecar, eis senão solta-se uma pega e aquele malão em forma de urna foi disparado para a barcaça, podia ter havido acidentes graves, alguém deu um grito estridente, quem ia dentro da barcaça afastou-se rapidamente, o malão acabou por assentar em cima de uma superfície mole, não tugiu nem mugiu, eu bem corria o risco de ver umas centenas de livros e discos a afundarem-se no Geba. Se achares interessante, adicionas ao tempo a que cheguei a Bissau. Como parti a 2 de agosto para Bambadinca, tive praticamente o último dia de julho e primeiro de agosto por minha conta, e andei a vaguear exatamente pelos mesmos pontos que agora referencio, em abril de 1970.

Penso nas pessoas que conheci e que já partiram, caso do Pedro e da Luísa Abranches, casal muito amigo da minha irmã Manuela, do Cruz Filipe, médico como o Pedro, e que sempre me acolheu tão calorosamente em casa, do Botelho de Melo, passo junto ao edifício do Comando da Defesa Marítima e logo sinto saudades do comandante Teixeira da Mota. Quando trabalhei uns fartos meses em 1991 na Guiné procurei saber o que era feito daquele tão delicado e dedicado funcionário do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o que me facilitava a descoberta de literatura que me permitiu ir conhecendo um pouco a Guiné. E automaticamente lembro-me dos sargentos e das praças que me deram tão profícua colaboração e que desapareceram da minha vida, caso do Zacarias Saiegh, do Luís Casanova, do Jolá Indjai, soldado que tuberculizou mal cheguei ao Cuor, tratou-se dois anos em Lisboa, e no exato momento em que embarco no Carvalho Araújo em Bissau, ele me apareceu curado e lembrando-me o carinho com que tinha sido tratado pelos meus familiares. Lembro o Paulo Semedo e o Fodé Dahaba. Sentado na esplanada da 5ª REP remexo nas guias que tenho para os médicos: ortopedia, para ver como tenho o joelho direito, fui operado a uma exostose em abril do ano passado; arrepio-me quando vejo a guia para o estomatologista, já visitei o carniceiro, no banco cá fora eu e muitos mais estremecemos a ouvir a gritaria ou os gemidos de quem está sentado na cadeira, só penso naquela broca que está sempre a zunir; e tenho o otorrino e o oftalmologista e depois a neuropsiquiatria, dou comigo a falar em voz alta e quando remexo nesta papelada, fui impedido de passar férias com os meus entes queridos, tenho agora férias de saúde a vários níveis de recauchutagem. Nisto olho em frente, sou tentado pela Casa Gouveia, entro aqui sempre e fico embasbacado com o estanco monumental, conheço o Rendeiro e o Zé Maria em Bambadinca, ali pode-se comprar deste o nastro ao petromax, aqui o festival fia mais fino, há pratas e porcelanas dispendiosas, estes importadores aproveitam uma alforria da pauta aduaneira e põem à disposição do público artigos de luxo de pouca probabilidade em Lisboa.

Adorada Annette, tomo as refeições na messe de oficiais e descobri um passatempo formidável, sentar-me num cadeirão e ouvir as conversas de militares e famílias, vale um dinheirão, os oficiais indignadíssimos com esta ou aquela postura deste ao daquele superior, as senhoras avaliando o trabalho das empregadas, comentando quem chega e quem parte, observo as gesticulações de uns e outros naquele aquário muito especial em que os militares andam enfurecidos com aspetos burocráticos e as senhoras com as ninharias do quotidiano, para eles o teatro de guerra é inexistente.

Alguém me recomendou que fosse conhecer uma instituição muito especial, a Pensão Central, gerida por uma figura lendária da cidade, Dona Berta. Subi umas escadas em ferro, entrei numa sala cheia de mesas, um empregado veio solícito perguntar se eu queria almoçar, pedi para conversar com a Dona Berta, a senhora apareceu, trazia a candura no sorriso, perguntou-me se fora colocado em Bissau e se queria ser comensal, ainda não tivera tempo para responder e já me dera o teor dos menus diários e o respetivo preço, quando lhe respondi que viera conhecer a distinta senhora ela logo me disse que almoçaria na sua mesa. Perguntou-me qual o prato que eu mais apreciava, não havia que enganar, a canja de ostra, Pitche-Patche. “Hoje não há, amanhã sim, é novamente meu convidado”. Será na Pensão Central que almoçarei e jantarei em 1991, naquele tempo não havia problemas de segurança, metia-me ao caminho para o meu dormitório, a CICER, o pior eram as noites escuras, tinha que andar cauteloso para não me espalhar, felizmente recebia muitas vezes a boleia do Delfim da Silva, colaborador do presidente Nino, que não morava longe.

Tive sorte em encontrar colegas de curso de Mafra, agora colocados em Bissau. Recordo algum turismo de fim de tarde, passeios até Quinhamel e Nhacra. Todas as consultas correram bem, chegou a hora de ir ao neuropsiquiatra, o David Payne disse-me que eu não podia demorar mais. Entrei na consulta, leu o diagnóstico do Payne, comentou em voz alta os sinais de desgaste, as insónias, os comportamentos agressivos, que eu não me apoquentasse, a viver com aquela enorme pressão era imprescindível repousar muito, ia preparar o esquema da terapêutica, amanhã de manhã ele dava entrada na enfermaria, conversaríamos uma semana depois.

Minha adorada, já vesti o pijama e sou conduzido pelo 1º cabo Morais para um quarto de três camas. Este 1º cabo é um homem de conversa económica mas disse-me um dia à queima-roupa: “Sou maqueiro por acidente, no que gosto de fazer é proteger algumas meninas coristas do Parque Mayer”. Mudei de universo, onde me encontro a hierarquia tem outro significado, quem aqui comanda é o 1º cabo Morais, ele pede para não ter que se irritar, quer ver tudo cumprido dentro desta rotina com horas para levantar e deitar, tomar a pica no rabo, engolir comprimidos, tomar banho, almoçar, voltar aos comprimidos, ter uma hora livre para visitar os outros doentes ou receber visitas, se houver condições ler ou escrever, jantar, engorgitar mais comprimidos e depois tudo muito pianinho, a noite e o sono são integralmente para respeitar com aquela luz de azul fosco que nos vigia sem cessar. Cabe-te agora pedires os esclarecimentos que precisas sobre a tragicomédia que vivi durante os nove dias que ali passei. Não achas melhor conversarmos sobre este assunto, dentro de dias, quando chegares a Lisboa? Estou impaciente por te ver, prometo tudo fazer para que o Jules passe uma semana muito agradável na nossa companhia. Bisous et à tantôt, Paulo.


Barbearia no Bissau Velho
Estamos no tempo da divulgação do exotismo. O editor foi a Neogravura de Lisboa, cerca de 1945. Os ocidentais, apanhados de surpresa, são confrontados com danças tribais, tatuagens, um mundo arabizante, um pedaço do continente perdido sob a nossa custódia. A imagem é poderosa, destaca o vigor físico de alguém que nos encara, orgulhoso de quem é.
Pescadora Papel do Biombo. O editor foi a Foto Serra, cerca de 1966. Quantos de nós não enviaram esta imagem para a terra? Mesmo com prudência, não era coisa que se mandasse à namorada (insinuações à parte)...
Mercado, edição da Casa Gouveia, cerca de 1970. Senti-me transportado para Bambadinca ou Bafatá, mercados mais pequenos do que os de Bissau. Não acredito que as cores tenham perdido vivacidade. Como eu gostava de deambular, comprar especiarias, sentir-me penetrado por esta atmosfera de vozes, movimentos, odores.
Morros de baga-baga, edição da Foto Iris, cerca de 1969. Que idades terão estes meninos hoje, que sonhos, que venturas? Despeço-me do álbum de João Loureiro com a nostalgia do futuro. Os meninos merecem sempre mais, em sonho e em esperança. O postal pode não ser muito bom mas gosto muito da linha do horizonte e da pureza das nuvens. E os meninos são sempre os meninos.
Pensão Central ou da Dona Berta, muito próxima da Catedral de Bissau
Avenida Marginal, Bissau
Monumento ao Esforço da Raça, com a Associação Industrial e Comercial ao fundo
Grande Hotel, Bissau, já conhecera dias melhores, galeria de fotos do Didinho, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22508: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Num estado um tanto lastimável, em desnorte, Paulo Guilherme parte para Bissau, nem lhe passa pela cabeça o que é uma cura de sono num hospital militar, metido num quarto com um capitão que pediu uma evacuação Y porque se esquecera de enviar nesse dia correio para a mãezinha e outra parentela, e um furriel que tivera a sorte bendita de pisar um sistema de minas antipessoal, andou pelos ares, não perdeu uma nesga de carne mas ficou frenético, não havia soporífero que o domasse; assistir-se-á a visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino que deixarão umas revistas puídas e alguns aerogramas; sob o olhar severo de um 1º cabo que se vangloriava de ter algumas coristas por conta num inesquecível Parque Mayer; e aquele trágico espetáculo que era a corrida de doentes de toda a espécie até à varanda para ver chegar qualquer helicóptero, para medir o estado de quem chegava e fazer a comparação dos aleijões, às vezes suspirando de alívio porque a contabilidade soprava a seu favor... Pois foi assim, para além de se ter sentado numa cadeira de dentista, ter tirado montanhas de porcaria dos ouvidos e ter tido o regozijo de o novo oftalmologista lhe ter assegurado que não havia danos nos olhos, os efeitos da mina anticarro tinham passado sem deixar marca.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (68): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo, mon adoré, mon Ulysse, estou quase a partir para Lisboa, o número de reuniões tende já a diminuir, disse-me o meu coordenador que de sexta-feira a oito dias é o último dia de trabalho, estarei três dias no Luxemburgo e até lá andarei por diferentes edifícios das instituições, reuniões da Comissão e do Parlamento. Telefonou-me a proprietária da galeria Tempera, Chantal de Elsouth, referindo que aguarda a tua decisão quanto à compra de uma das duas obras de Frédéric Brigaud, um bronze onde se vê a figura de um coelho e um desenho a grafite intitulado Cabeça de Herói. Vê se me comunicas rapidamente o que pretendes comprar, irá comigo até Lisboa.

Foi com muito agrado que recebi a tua encomenda com o livro Postais Antigos da Guiné, com uma linda dedicatória do autor, João Loureiro, tu dás a explicação de que é a maneira mais óbvia de ele conhecer a cidade de Bissau por onde circulaste durante aquele mês de abril de 1970. Juntaste um conjunto de folhas com matéria explicativa de tudo o que consideras mais relevante sobre este período em que tiveste a circunstância de te recompor psicologicamente, mesmo contrafeito pelo internamento na Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Pouco antes de partires para tratamento, andaste pelos Nhabijões com um príncipe de nome Xisto Bourbon-Parma, que dizes ter sido muito gentil e muito perguntador, vinha como repórter, tinha como fito avaliar os reordenamentos planeados pelo governador. Juntas várias imagens dos Nhabijões com dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo os antigos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga. Já tinhas referido haver sucessivos patrulhamentos a montar segurança ao empreendimento, dizes nos teus apontamentos que só meses mais tarde é que a guerrilha começou a implantar minas anticarro, mas não tinhas dúvidas que as populações de Madina-Belel e Baio-Buruntoni mantinham relações familiares amigáveis, quem vivia no mato queria abastecer-se de víveres e informações. Referes igualmente nestes apontamentos que não foi uma nem duas vezes que encontraste nos terrenos a beijar o Geba embarcações camufladas e indícios seguros da presença humana.

Em notas separadas, envias o registo dos teus dias a partir de 14 de abril: reunião com os furriéis para apreciar os pagamentos às praças, as trocas de fardamento, a chegada de novos equipamentos que vinham substituir o que já estava por um fio. Receberas a garantia do major de operações de que o teu pelotão ficaria seja na ponte do rio Undunduma, ou a apoiar colunas ao Xitole ou a fazer patrulhamentos dentro do setor, não haveria participação em operações de grande porte. E gostei muito daquelas duas folhas em que tu mencionas o que te vai na mente enquanto viajas de Bambadinca para o aeroporto de Bafatá, aquela intensa e viva rememoração do que se tem passado na tua vida desde que foste classificado como ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, parece que foi ontem, te adaptaste a viver lá num mato profundo do leste da Guiné, que um dia te ardeu um quartel, terá sido talvez o maior desafio da tua vida repor ordem, reconstruir, melhorar as condições de vida tanto dos civis como dos militares; que tinhas dois destacamentos para gerir com recursos mínimos, problemas graves de abastecimento para todos, constantes idas ao médico, assegurar professores para as crianças, os dias passavam vertiginosamente, continuava a ser um mistério como havia tempo para ler, escrever e ouvir música e que jamais esquecerias aqueles dolorosos momentos de lágrimas amargas pelos mortos e feridos; que um dia acordaste estremunhado e saíste do abrigo e tinhas o pelotão formado à porta para reivindicar mudança de poiso, queixavam-se daquele esforço quase desumano, aquelas caminhadas de 25 ou mesmo 50 quilómetros por dia, patrulhas e emboscadas e as operações também não faltavam, queriam sair do Cuor, como saíram, foi um abalo na tua vida, nunca te conformaste até ao fim da comissão com aquela pletora de intervenções multiusos, e sobretudo aquele punhado de operações que pareciam não ter pés nem cabeça, e assim chegavas àquele estado de desalento, à deriva como um pária, estranhamente sentias aquela fortaleza da camaradagem e fidelidade dos teus soldados, até mesmo da atmosfera agradável da vida entre oficiais e sargentos, em Bambadinca, só que o Cuor deixara saudades sem fim, quantas vezes desceste a rampa da Bambadinca só para ir ver o sol a caminhar para o acaso sobre o coberto florestal de Mato de Cão. Prometo-te, meu adorado amor, que tudo farei para pôr ordem em tudo quanto garatujaste durante esta viagem até embarcares para Bissau.

Fizeste bem em me teres enviado os aerogramas que mandaste à família logo que chegaste à cidade. Havia amigos que tinham partido, caso do Teixeira da Mota e do Botelho de Melo, mas sabias, e por eles nutrias uma forte dedicação e gratidão, que estavam no batalhão de engenharia o Rui Gamito e o Emílio Rosa, não foi por acaso que mal chegado a Bissalanca pediste uma boleia até Brá para os ires visitar, aquele tão estranho quartel feito de barracas Mague, umas estruturas metálicas com teto de lusalite, convidaram-te para almoçar, guardaste a recordação desses belos momentos. Depois deram-te transporte até à messe de oficiais, em Santa Luzia, onde deixaste os teus haveres e partiste à redescoberta da cidade. Tu descreves minuciosamente o primeiro passeio, felizmente para mim os postais organizados pelo João Loureiro ajudaram-me a compreender o que ias olhando e registando.

Apeaste-te na Praça do Império, e pela primeira vez entraste no edifício da Associação Comercial e Industrial de Bissau, acicatado pelas soluções arquitetónicas, dois arquitetos lançaram mão a soluções espaciais que criaram espaço desafogado, tendo por detrás uma área desportiva, com campo de ténis. Foste vagarosamente descendo a Avenida da República pelo lado direito, sempre a ver ao fundo o Pidjiquiti, passaste pelo Hotel Portugal depois de tomar uma bica no Café Império, passaste o mercado e entraste nos CTT, marcaste telefonemas para o dia seguinte, mudaste para o lado oposto e foste à catedral rezar, passaste sem parar pela Pensão Central e encaminhaste-te para um café de nome Bento, a que deste o estranho nome de 5ª REP, pediste uma água e observaste o bulício da esplanada, oficiais, sargentos e praças, sobretudo os que estavam em trânsito, bramavam aos gritos sobre tiros e desgraças, só faltavam os estampidos das minas e emboscadas. E depois de pagar foste visitar a pequena livraria que guardava surpresas, sobretudo de livros que a Censura tinha apreendido em Lisboa, folheaste cuidadosamente três ou quatro, amanhã por aqui passarás para comprar dois.

Mas o Cais do Pidjiquiti é irresistível, passas ao lado do Bissau Velho e ficas especado a ver as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, a linha do Ilhéu do Rei e a sua vegetação frondosa. E num desses aerogramas que envias para Lisboa dizes ter sentido um cansaço esmagador, convinha regressar, doía a memória, havia mesmo aquela inescapável sensação de culpa, o teu lugar era estar ao pé dos teus soldados e não a tratar maleitas, só sentiste alívio quando pensaste que a tua guia de marcha incluía oftalmologista, otorrino, estomatologista e, com que arrepio não soletraste, a neuropsiquiatria, o imperativo de recompor os sonos, naquele vendaval de insónias tão desgastantes.

Foi assim, meu adorado Paulo, que tu chegaste a Bissau, percorreste artérias já conhecidas, como dirás no outro aerograma, com aquela estranha sensação de que não há uma emboscada à espreita e de que não sentes o peso da espingarda. E ficamos por aqui, pois antes de partir para Lisboa ainda te vou dar conta de tudo o que viveste até chegares à tragicomédia da Neuropsiquiatria, espero que não fiques zangado se te disser que me fartei de rir com as facécias que escreves, mesmo sentindo arrepios quando tu contas a chegada dos helicópteros que trazem sinistrados e os estranhíssimos comentários daqueles militares que estavam contigo à varanda, alguns com membros amputados, fazendo as mais bizarras comparações entre o seu estado e quem chegava com a vida por um fio. Aguardo o teu telefonema, Jules e Noémie mandam-te saudades, Jules está impaciente pela sua semana de férias em Lisboa. Mas mais impaciente estou eu todas as doçuras da tua companhia. Bisous mils, comme d’habitude, Annette.


Restaurante Pelicano na Avenida Marginal, desaparecido
Associação Comercial Industrial da Guiné, sede do PAIGC
Edifício dos CTT na Avenida da República
Avenida da República, com o edifício da Casa Gouveia à esquerda, Bissau
Fortaleza da Amura
Edifício da alfândega, Bissau
Aqui funcionou o Museu da Guiné Portuguesa e o Centro de Estudos, bem como aqui se preparava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22491: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um período em que já não é possível esconder a exaustão física, o ataque de paludismo foi violento, Paulo começa a achar completamente descabido aquele plano operacional de idas e vindas ao Poidom que não levam a ponto nenhum. Foi o que se verificou com a operação pomposamente intitulada Pavão Real, em que se andou ali aos papéis, sempre a dizer que não se juntavam os destacamentos mas acabando por pôr-se cerca de 200 homens em cordão quilométrico. Ele vai partir para Bissau, alguns dos seus amigos já desandaram, ainda baterá à porta do batalhão de engenharia, visitará dois médicos para afinação de olhos e ouvidos e da estrutura óssea, vai seguir-se uma tragicomédia na psiquiatria do Hospital Militar de Bissau, foi o episódio mais delirante de toda a comissão, como Paulo adoraria rever o capitão Oliveira e o furriel Alves, nunca mais esqueceu uma estrondosa disputa entre ambos, e em pleno zaragateio exibiam facas rombas.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (67): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon étincelle en permanence, imagina tu que estava ontem a arrumar papéis de âmbito profissional, têm a ver com o meu trabalho de coordenador do Concurso Europeu do Jovem Consumidor, e não resisto a contar-te o que se passou no verão de 1998, escusado é dizer que ainda não nos conhecíamos. No início do ano letivo enviei para todos os estabelecimentos de ensino o anúncio do tema desenhado para esse ano, como publicitar um género alimentar saudável. Para meu desgosto, mesmo insistindo e voltando a insistir, sempre prontificando-me a dar qualquer esclarecimento ou a enviar documentação suplementar aos professores interessados, não ultrapassaram três dezenas as inscrições. Na hora da entrega dos projetos, verifiquei que uma escola do Alto Alentejo tinha feito um trabalho primoroso, imagina tu, a história do vinho e as qualidades do vinho da região, tema inequivocamente incompatível com o que se propunha, os jovens não podem beber álcool antes dos 16 anos. Em segundo lugar, apareceu um curiosíssimo trabalho sobre a Pera Rocha, uma fruta típica da região Oeste, rija e muito saborosa. Analisando o que enviaram, era tudo de altíssima qualidade exceto o vídeo inicial, uma daquelas paspalhices em que a senhora professora faz a preleção sobre a Pera Rocha e os meninos inclinam a cabeça, muito compostinhos. Convoquei a professora, reconheceu que era necessário dar uma volta às imagens do vídeo, sugeri as belezas locais, o Bombarral, acedeu e até se excedeu, tivemos que depurar, vinha extenso. E a prova dos miúdos era uma originalidade, ao som da música do Verão (das Quatro Estações de Vivaldi), soerguiam-se, e havia aquela metamorfose das peras se transformarem numa apoteose de dança. Tudo seguiu para Bruxelas como representante da prova portuguesa, a comitiva partiu para a prova final do concurso, fiz parte do júri, a convite do meu amigo Maurice Vlieghe, houve discussão acesa para os primeiros três lugares, o Bombarral ficou em segundo, tu não podes imaginar a alegria daqueles jovens quando perceberam que tinham sido premiados. Foi a única vez que um concorrente português esteve entre os três primeiros lugares.

Começa a ficar claro o que faremos durante os três primeiros quinze dias, vou enviar-te um plano de viagem, para tua aprovação, felizmente que tens aí ao teu dispor um bom acervo de livros sobre Portugal, podes propor alterações. E seguidamente vou procurar dar resposta às questões que me pões sobre aquelas malfadadas primeiras semanas de abril, eu sentia-me muito mal por tudo o que tinha acontecido na operação Tigre Vadio, era um remorso sem sentido, dirás tu, se não ajudei a matar a sede foi porque não houve circunstância, as transmissões falharam de terra para o helicóptero, o piloto tinha sérias razões para não andar ali com um vidro estilhaçado, despejou-me no quartel do Xime, senti-me apalermado a explicar aos meus camaradas o que se estava a passar, lá procuraram confortar-me, passei a noite em desassossego, tudo melhorou quando eles começaram a chegar a partir das canoas do Enxalé, muito perto do Xime, na margem direita do Geba. Os meus soldados andavam eufóricos, nunca se tinha ido àquele remoto Belel, com tanto sucesso destruidora. Voltámos à rotina, ultrapassei o ataque de paludismo, felizmente o único que tive. Conversei com os oficiais do Comando, procurei detalhar como era muito difícil chegar a Belel, do ar avistam-se os caminhos, mas o coberto florestal é imenso, eles foram hábeis, puseram acampamento bem dissimulado pela vegetação, como sempre habitações em colmo e adobe, havia uma extensa horta de mandioca e fundo, mas não foi por aqui que eles fugiram, meteram-se noutra mata densa, no chamado Corredor do Oio. Dentro da rotina, voltámos à ponto do rio Undunduma, recordo perfeitamente um patrulhamento à região de Samba Silate, uma manhã com muito pouco calor em que descobrimos novos trilhos em direção ao Geba estreito, os meus soldados demoraram a encontrar duas pirogas escondidas no tarrafo envolvidas em folhas de palmeira. Foram postas a navegar e destruídas a tiro.

Passado cerca de uma semana, sou novamente convocado ao major de operações. Ele insiste em que se faça uma batida em grande escala à foz do Corubal, duas companhias, a de Bambadinca e a do Xime e o meu pelotão. O major pretende que se constituam dois destacamentos, um sairia do Xime para emboscar na região de Madina Colhido, um local onde o grupo do PAIGC procura surpreender as nossas forças, tanto à ida como à volta; outro iria progredir de Ponta Varela em direção à foz do Corubal, ele contava comigo para voltar ao território que eu conhecera na operação Rinoceronte Temível, e no regresso passaríamos pelo rio de Burontoni, encontrando-nos com outro destacamento em Madina Colhido ou Gundaguê Beafada, seguindo-se o regresso ao Xime. Eu que acertasse pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e ajuda de carregadores e piscou-me o olho, que não me esquecesse de levar um pouco mais de água.

Abandonámos o Xime à hora aprazada, da minha parte, beneficiando de uma noite enluarada lá fomos progredindo pela bolanha do Poidom, flanqueando trilhos que eram nitidamente usados pela população ou pela guerrilha. Alvorecia quando avistámos à distância dois cultivadores que caminhavam descuidadamente na nossa direção, quando deram por nós escapuliram-se. Perdido aquele fator surpresa, metemos dentro da mata, e então a surpresa foi outra, encontraram-se onze casas de construção recente, dois depósitos cheios de arroz, mais uns casebres à frente, não havia armamento nem munições, eram seguramente habitações de quem lavrava a bolanha. Destruiu-se o que era possível destruir em tempo recorde e perseguiu-se a batida sempre na orla da mata. Do ar, para minha completa surpresa, o major informava que a força de Madina Colhido avançava em nossa direção, podíamos estar juntos na batida na Ponta do Inglês. Não houve felizmente qualquer dificuldade no reencontro, confirmámos a existência de muitos vestígios da presença da população, visitei pela primeira vez o que restava do aquartelamento da Ponta do Inglês e a Companhia de Bambadinca foi-nos mostrar as tabancas que tinham sido destruídas numa outra operação de nome Safira Única. Nada mais havia a fazer, partimos lestos para a orla do rio Burontoni e chegámos ao anoitecer ao Xime, sem qualquer contato. Na manhã seguinte encontrei-me em Bambadinca com o major de operações, percebi perfeitamente que ele não gostou do meu comentário: o Poidom estava par dar e vender, parecia-me completamente inútil este tipo de operações, era óbvio que os grupos de combate se acoitavam mais longe, lá no fundo do Corubal, se o senhor major quisesse resultados havia de propor operações de paraquedistas ou facilitar o transporte de tropas até Moricanhe e então sim, por aqui se podia chegar ao Baio e a Burontoni em condições físicas decentes. Encolheu os ombros e mandou-me sair, sem o mínimo de agradecimento.

Sinto perturbações na visão e nos ouvidos, deve ser um rescaldo tardio da minha anticarro, cresce em mim um sentimento de frustração, uma melancolia, o sono é péssimo, o Vidal Saraiva é um médico atento e informa o comandante que eu devo ir à consulta externa, enviará mesmo uma carta ao David Payne, então na psiquiatria do Hospital Militar nº 241, para que me aplique uma terapêutica conveniente. Digo automaticamente que sim, é exaustão a mais, é uma mágoa incontida, tenho felizmente três auxiliares de mão cheia, cada um na sua área, o Cascalheira, o Ocante e o Pires, com quem converso e que me prometem por sua honra que tudo vai correr bem. Arrumo a traquitana e parto de mala aviada, ninguém sabe, mas a mala que me acompanha foi-me deixada pelo José Manuel Medeiros Ferreira antes de desertar. Nauseado por uma vida aperrada a ocupações a toda a hora e por uma vida operacional que me parece ter pouco sentido, é com alívio que em Bafatá parto para consultas médicas ainda não sabendo a tragicomédia que irei viver no serviço de psiquiatria do Hospital de Bissau.

Desculpa ser tão breve, é muito tarde e terei o dia de amanhã absorvido por reuniões e a conclusão de um importante documento. Parece que estou contagiado pelo abatimento daquele mês de abril, que agora rememoro. Bisous mils, comme toujours, toujours, Paulo.

(continua)

Vista geral do Palácio das Exposições no Heysel, Bruxelas
Pormenor da fachada principal, a alegoria aos transportes
O Atomium, criado para a Exposição Universal de 1958, sito no Parque do Heysel
Não podia ter havido recordação mais terna que aquela que vivi em Belel, em 2010, depois de um percurso árido dei com uma escola buliçosa, o senhor professor ocupa o lugar central, hirto na responsabilidade de ficar para a história daquela viagem, a pequenada manifesta-se feliz, apareceu por ali uma senhora que quis ficar na fotografia. De todas as imagens que marcaram aquele meu itinerário de reconciliação esta é a que ainda mais me inspira, passados tantos anos
Andando às voltas dentro do que fora o velho quartel de Bambadinca, duas surpresas me esperavam, aquele belo e imponente poilão e ao fundo a mãe de água, faltou-me coragem de avançar, temi ir encontrar uma caranguejola enferrujada, quando aquela mãe de água era fonte da nossa vida, nos tempos de guerra
A única fotografia que tenho de Bacari Soncó, imaculadamente vestido em tom pérola, à esquerda, acompanhado pelo seu filho Bacari Soncó, que às vezes me telefona, vindo de Saragoça, Darmstadt ou Nantes, trabalha para uma empresa internacional, avisa-me que no dia seguinte vai visitar a família a Missirá e se tenho alguma lembrança para eles. Na fotografia, estão ainda Maria Leal Monteiro, que me acompanhou na visita a Missirá em 1990, e a Cristina, falecida em abril deste ano. Imagem tirada em casa da Maria Leal Monteiro, no bairro da Calçada dos Mestres
O Geba estreito, como aparentemente todo este mundo é pacífico e em certos ângulos sinuosos, daquele tarrafo pode escapar fogo de morte. No entanto, e para todo o sempre, é o rio da minha vida
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22471: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (66): A funda que arremessa para o fundo da memória