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segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19853: Notas de leitura (1183): "Entre o Paraíso e o Inferno (De Fá a Bissá)", por Abel de Jesus Carreira Rei; edição de autor, 2002 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
É mais do que merecido o reconhecimento a este diário de Abel Rei, escrito com tanta sinceridade, envolto em tanta ternura, um registo também da vida de uma unidade que palmilhou o Xime, Amedalai, Denbataco, foi ao Buruntoni e ao Poidom, espalhou-se pelo Enxalé, Missirá e Porto Gole.
A um tempo em que os comandos tomaram a decisão de tirar a sede da Companhia do Enxalé para Porto Gole, perdeu-se a ligação a Missirá, em meu entender um erro crasso, as forças hostis eram as mesmas, de Madina, Belel, a região de Sara-Sarauol, são registos serenos os que o Abel Rei nos deixa, é um homem em conformidade com os seus princípios e valores, chega a refletir sobre as consequências do álcool depois de uma borracheira e lembra como esse mesmo álcool devastou a sua vida familiar.
Temos que ter orgulho neste diário, é o espelho de um homem de fé que vai regressar sereno à sua vida civil, sem traumas nem azedumes. Recomendo vivamente a sua leitura.

Um abraço do
Mário


Faça-se justiça a um belo documento, o diário do camarada Abel Rei

Beja Santos

Aprende-se muito com a releitura de certas obras, no caso vertente do diário da Guiné “Entre o Paraíso e o Inferno (de Fá a Bissá)”, por Abel de Jesus Carreira Rei, confessa-se ter havido uma certa ligeireza na primeira apreciação. É um documento de valor excecional, pela sua simplicidade, pelas páginas tocantes que nos lega falando do correio, das patrulhas, das amizades, dos encontros festivos com gente patrícia ou aparentada, pela genuinidade das apresentações, regista as suas devoções, o que o confunde e deslumbra quando a natureza explode em uníssono, veja-se o que ele escreve em 24 de abril de 1968, um amanhecer em Porto Gole:
“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte minutos da madrugada (do dia, é o melhor termo neste momento!). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia de um prazer, rápido, com a aclamação de toda a natureza à sua volta. Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias, estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim. Também à minha volta, vejo agora nitidamente os mosquitos, que durante estas duas horas de reforço, tomaram o pequeno-almoço do meu sangue.
Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador, já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para o outro (sou obrigado, de vez em quando, a interromper-me, a sacudir os mosquitos da minha pele).
Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a fonte – um poço que se encontra rodeado de uma pequena horta, tendo algumas árvores em volta: mangueiros; laranjeiras; e cajueiros – de onde levam água clara, com que se saciarão durante o dia. (Os indígenas, não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro, e ela depois assenta). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’.
Começa a soprar uma ligeira aragem.
O padeiro já começou a sua tarefa, e o cozinheiro também já remexe os caldeirões. E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!”.

Em Bissá, andará a cavar, fica cheio de bolhas nas mãos, ele que diz no seu currículo que se iniciou a trabalhar com dez anos ao balcão de uma mercearia no centro da então vila da Marinha Grande, e aos quinze anos já exercia a profissão de serralheiro civil. É uma edição de autor de dezembro de 2002, estou aqui a fazer a confissão de que é obra de valor, um diário autêntico, daqueles que começam a pontuar dia após dia e depois esmorecem, há semanas e meses em branco. Embarca no navio Uíge, faz parte da CART 1661, um dos seus comandantes foi um arquiteto de fama, já falecido, Luís Vassalo Rosa, de Bissau segue para Fá, espera ansiosamente notícias da família, descobre o mundo tropical, a África desconhecida, diz singelamente que acaba de apreciar uma grande plantação de bananeiras, era a primeira vez. Não há perda de tempo, vai-se até ao Xime, descreve-se a tabanca, encontra-se gente de terras próximas. Do Xime vai-se até Enxalé, daqui viaja até Mato de Cão que ele designa por local bastante propício a emboscadas do inimigo, terão ido montar segurança a embarcações militares ou civis. Do Enxalé segue para Porto Gole, dá-se por feliz quando regressa a Fá, é sol de pouca dura, regressa-se ao Xime, encontrou conhecidos dos Pousos de Leiria e de Burinhosa em Alcobaça, é uma operação ao Poidom, estreia-se nos tiros, volta para Fá e regressa ao Xime para uma operação ao Burontoni, capturou-se armamento, deu apoio ao seu colega Saraiva, dos Moinhos de Carvide, que vinha completamente abatido. O cansaço começa a pesar, surgem alguns problemas de saúde, segue novamente para Porto Gole, operações, atribuem funções de vagomestre, em abril de 1967 regista um dia trágico, morreram sete africanos para as bandas de Bissá. “Eu confesso: apesar de estar cá há pouco tempo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Tinha morrido um capitão de 2.ª linha, mais seis homens nativos, todos pertencentes à Polícia Administrativa e todos eles com as famílias em Porto Gole. Morria o Capitão Abna Na Onça, corajoso e respeitado pelos negros e brancos”.

Gosta de Porto Gole mas trabalha que se farta. Quando tem saudades, vai para a beira-rio, apreciar a paisagem, ver as mulheres a apanhar uma espécie de caranguejos no lodo. E em maio começa o pequeno inferno de Bissá, um outro local inóspito, entre Mansoa e Porto Gole, destacamento de pouca dura, Spínola pôr-lhe-á termo. Falta água, as colunas de reabastecimento são um suplício, volta por um tempo a Porto Gole, as funções de vagomestre são de imensa responsabilidade. E regressa a Bissá em setembro, o quartel está numa lástima, as flagelações sucedem-se, a tensão é permanente. Nesse mesmo mês de setembro rebenta uma mina anticarro, em consequência quatro mortos e treze feridos graves. Estabelece boas amizades com a gente do Pelotão de Caçadores Nativos n.º 54. O correio é cada vez mais espaçado, sente-se fisicamente em baixo, volta a Porto Gole e ao Enxalé, visita Bafatá, não lhe descobriu interesse. O ano passou e em fevereiro de 1968 passa férias em Bissau, regista um ataque de foguetões à Base Aérea de Bissalanca, volta a Porto Gole em março, anota que as coisas correm mal em Bissá, há cada vez mais emboscadas. Gosta de confirmar dados consultando a história da CART 1661. Spínola visita Porto Gole no início de junho, as coisas estão cada vez pior em Bissá. Em novembro, a sua Companhia é rendida, são colocados no quartel dos Adidos em Bissau, viaja novamente no Uíge para Lisboa. Impossível não registar o que ele escreve quando se despede de nós a bordo do navio Uíge na manhã de 20 de novembro de 1968:
“A minha missão não foi das mais árduas; outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar. Nada paga tão imensa alegria, de podermos regressar ao lar, e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos ou chorarmos os mortos. A estes últimos: os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos, a estes, a minha modesta homenagem que se resume a desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará em mim eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!”.

Julgo ter reposto justiça pondo no pódio este magnífico diário do camarada Abel Rei.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19844: Notas de leitura (1182): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (8) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19452: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (13): António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor da CART 3493


Cobumba - António Eduardo Ferreira - Saída do abrigo, local que servia de sala de refeições.


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 23 de Janeiro de 2019:

Amigo Carlos Vinhal

Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos, e que o novo ano te corra o melhor possível.
Apesar de continuar a ser leitor assíduo do blogue há já algum tempo que não dava notícias, mas um sonho e a data que foi marcante para mim levaram-me a escrever aproveitando para dizer que estou vivo

Recebe um Abraço
António Eduardo Ferreira

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As voltas que vida dá

Hoje tenho algumas dúvidas, se é o tempo que passa depressa ou se somos nós que passamos pelo tempo sem reparar na velocidade a que seguimos, e algumas vezes, sem saber muito bem por onde. Isto para vos dizer que faz amanhã, dia 24 de janeiro, quarenta e sete anos que viajei pela primeira vez de avião. Cerca das seis horas da manhã partimos de Figo Maduro rumo a essa terra desconhecida, para mim, e para quase todos os que seguíamos a bordo, a então província da Guiné. Estava muito frio, cerca de quatro graus em Lisboa, depois de uma breve paragem no aeroporto dos Pargos, em Cabo Verde, tinham passado cerca de nove horas quando chegámos a Bissau onde a temperatura rondava os trinta graus. Se o desnorte já era grande, é fácil de imaginar como fiquei, eu e os que pela primeira vez faziam aquela viagem.

Quando ouvimos algumas pessoas agora acharem estranho como as coisas aconteciam, assim com normalidade, entre os jovens da nossa geração no que diz respeito à nossa ida para a guerra, por vezes dá que pensar. Mas a esta distância no tempo, não admira que assim pensem. Embora, por vezes, nos custe a aceitar o desconhecimento que a esmagadora maioria demonstra em relação àquela época.

Também eu chego a dar comigo a pensar como era diferente a vida da nossa gente naquele tempo. O meu primeiro filho nasceu no dia vinte e dois de Janeiro, ficou no hospital com a mãe e, dois dias depois eu parti para a guerra…

Todos sabemos como é importante arrumar o passado de forma a não lhe tropeçar, sobretudo, naquilo que menos desejamos. Levei muito tempo a arrumar o meu, não foi fácil, mas consegui, o que não significa que por vezes não lhe tropece. Foi que aconteceu na noite passada, quando dei comigo a percorrer quase todos os sítios por onde andei na Guiné, e foram muitos, ao mesmo tempo a ver todos os ex-camaradas que me eram mais próximos e muitas das situações que por lá tivemos de viver… Fiquei triste ou aborrecido por ter feito essa viagem? Não! Antes pelo contrário. Foi a oportunidade de rever a imagem de alguns amigos que já não estão connosco, e ficar com a certeza que esse tempo já não me causa perturbações como durante muito tempo aconteceu.

Serve também este texto para fazer a minha prova de vida, e desejar a todos, um novo ano com tudo de bom, o que nem sempre acontece, mas isso também é normal. Já agora, quero desejar também o melhor tempo possível a todos os que estão a contas com a chamada doença prolongada, como muita gente gosta de lhe chamar, eu por mim prefiro chamar-lhe oncológica, talvez por estar habituado à sua companhia há já quinze anos…

Um abraço a todos
António Eduardo Ferreira

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2. Comentário do editor

Caro António Eduardo, muito obrigado pelo teu contacto, pois há bastante tempo que não sabíamos nada de ti.

Sabemos que desde há alguns anos tens lutado contra a doença, esperamos que estejas "por cima", o mesmo que dizer, que estejas bem tanto quanto é possível, já que o inimigo é difícil de combater.

Ficas intimado a, pelo menos de vez em quando, dares sinal de ti com ou sem os teus contributos para o Blogue.

Em nome dos editores e da tertúlia, deixo-te um abraço com os melhores votos de saúde.
CV
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19436: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (12): António Paulo Bastos, que andou em viagem pelas arábias, ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953 (Teixeira Pinto e Farim, 1964/66)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19448: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXI: As colunas para o sudoeste do setor: Bafatá, Fá Mandinga e Bambadinca, eram mais de 200 km, ida e volta


Foto nº 6A  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > c. set/out 1967 > Tabuleta com as indicações das distâncias, para Sul, Norte e Leste, localizada numa das saídas-entradas de Nova Lamego. Bafatá para sudoeste  a mais longa, com 53 kms, e temos de juntar mais cerca de 60 dali até ao porto fluvial e depósito da Intendência em Bambadinca [vd. mapa, em baixo].


Foto nº 1 >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Coluna  e de Nova Lamego e Bafatá, "no dia 29 de Janeiro de 1968, o meu aniversário de 25 anos".



Foto nº 9  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > Novembro de 1967 >  Na estrada entre Gabu e Bafatá, protegendo-me do pó levantado pelos camiões da coluna da frente, com um lenço, tipo cowboy do Faroeste. 


Foto nº  12  > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69)  > Janeiro de 1968 > Eu, no jipe  com o condutor Pita, impedido do Major Henriques, Oficial de operações, no regresso da viagem a Bafatá e a caminho de Nova Lamego.  


Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 >  Couna de Nova Lamego a Bambadinca >  Junto a um memorial, pela cruz, pode ser um local em que estivesse enterrado algum militar; foi uma paragem ocasional, ou para a fotografia, em que estou eu e os restantes são todos soldados condutores. 


Foto nº 3 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > Novembro de 1967 > Na ponte de madeira que liga Bafatá a Fá Mandinga. 


Foto nº 4 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > Outubro de 1967 >  Eu com um grupo de soldados CCAÇ 5, "Os Gatos Pretos", em Nova Lamego.


Foto nº 5 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 >Coluna deNova Lamego a Bambadinca > Paragem na estrada de Gabu para Bambadinca, numa coluna de reabastecimentos. Reconheço os nomes, em pé à esquerda o sempre presente e grande amigo, o soldado condutor o ‘Ermesinde’, Arlindo de seu nome. Do lado oposto, o Furriel Paiva Matos, o nosso vagomestre da CCS do Batalhão. Todos os restantes são reconhecidos, são condutores, quer da CCS do Batalhão ou da Companhia de Intervenção, CART 1742. 


Foto nº 6  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) > c. set/out 1967 > Tabuleta com a indicação das distâncias entre Nova Lamego e outras povoações da região leste.


Foto nº 7  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Janeiro de 1968  >  Foto icónica, perto de Nova Lamego, à saída para Bafatá, junto a um Padrão dos Descobrimentos, do qual não anotei o seu nome ou significado. Uma saída a algum lado, em  Unimog Unimog.


 Foto nº 8  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Novembro de 1967  > O meu grupo no meio da ponte para Fá Mandinga. São todos soldados condutores, posso identificar os nomes de dois: o da ponta direita, o Bourbon, impedido do Major Américo Correia, e o Pita, impedido de Major Graciano Henriques. 



 Foto nº 10  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Outubro de 1967  > 'Simulação’ de uma emboscada, na estrada entre Gabu a caminho de Bambadinca, antes de chegar a Bafatá, no meio da mata. Os meus companheiros são todos ‘operacionais’ do volante. 



 Foto nº 11  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Dezembro de 1967  > Coluna a Bambadinca. Vista geral da estrada no troço entre Gabu e Bafatá, tirada a partir da primeira viatura da coluna. 



 Foto nº 13  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Dezembro de 1967  > Uma ‘brincadeira’ de guerra entre índios de arco e flecha. São os soldados condutores do meu Batalhão. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá.


 Foto nº 14  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >  Dezembro de 1967  > Preparação de uma  coluna para Bafatá-Bambadinca, dentro do aquartelamento do Batalhão em Nova Lamego. Pode ver-se o Furriel Rocha,  o 'Algarvio’ e outros furriéis e milícias. 

 Foto nº 15  >  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  CCS / BCAÇ 1933 (1967/69) >   31 de Janeiro de 1968  > Vista aérea do aquartelamento de Nova Lamego, e a sua pista à distância. Foto aérea captada de um avião Dakota, pronto a aterrar na pista de Nova Lamego.


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > Nova Lamego.

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) (*)

 :
T061 – AS COLUNAS DE NOVA LAMEGO PARA SUDOESTE  DO SECTOR: BAFATÁ, FÀ MANDINGA; BAMBADINCA  



Tentei passar todas estas fotos para um ou dois Postes, mas eram tantas as fotos, que nunca foi editado, e ainda bem que não. Assim, reorganizei esta fase da minha estadia, isto é, as mais de 200 fotos, em vários Temas mais pequenos, que estão a ser numerados e legendados a partir do T060.

Este tema pretende mostrar alguma da minha actividade, extra minhas funções, que nunca me furtei de participar, quem em deslocações a vários aquartelamentos do sector, bem como às várias colunas que se faziam regularmente a Bambadinca, de reabastecimentos, que chegavam àquele porto fluvial, vindos pelo Rio Geba acima desde Bissau

O percurso era aproximadamente de 100 quilómetros, para baixo e outros tantos para cima, em estradas de terra batida e outras de alcatrão mal tratado. Tinha como ponto da passagem obrigatório a cidade de Bafatá, onde se concentrava o ‘Comando do Agrupamento’, e sendo assim era bem protegida, os perigos não eram previsíveis.

Por isso fui ‘nomeado’ várias vezes para ‘comandar’ estas colunas, com vários camiões e um Jeep, onde me deslocava. A maioria do pessoal que compunha estas colunas eram os condutores dos próprios camiões e Jeep, e alguns poucos militares ditos operacionais. A segurança seria uma dúvida, vendo agora à distância, mas naquela altura, na idade de vintes, não se pensava nisso, eu pelo menos não pensava, só queria era sair do mesmo sítio, que me sufocava, ver outras terras nem que fossem sempre as mesmas, mas mudar os horizontes.

Quando não era nomeado, eu próprio, podendo, metia-me no meio e lá ia sem ninguém saber, visto que tinha grande margem de manobra para gerir a minha função.

Conheci muitas aldeias e as cidades de Bafatá e Bambadinca, bem como Fa Mandinga. Nunca tivemos nenhum problema com a guerrilha, só com os macacos e outros animais que se atravessavam na estrada, e com os inúmeros montes da formiga ‘baga baga’ que eram verdadeiras fortificações e abrigos contra bombardeamentos.

Fazíamos a viagem, como se diz agora na gíria, sempre a abrir, os condutores eram doidos, davam o máximo nos camiões, felizmente nunca houve despistes, a sorte esteve sempre comigo e com os outros.

As paragens eram frequentes em qualquer lugar, o mato existia de um lado e de outro da estrada, mas era preciso fazer estas pausas para as necessidades de cada um, pois estas operações levavam um dia inteiro. Comia-se a ração de combate para todos

Acho que passei uma boa estadia, eu gostava daquilo que fazia, não ia contrariado em nada, fazia tudo por gosto, por aventura, pura adrenalina dos anos vintes. Por isso ainda aqui estou para poder recordar, mostrar e contar a minha história.

Não é para me enaltecer, mas a maioria dos oficiais milicianos do meu batalhão, não faziam estes serviços, nunca soube porquê, nem hoje me interessa, correu tudo bem, estou vivo.

As fotos foram selecionadas, muitas são de cenas ridículas, como ‘simular’ uma emboscada, e palhaçadas do género, fruto da idade, que apesar de tudo era maior do que todos os restantes.

Espero que sejam apreciadas pelos leitores, e que lembrem a alguns as suas memórias de 50 anos atrás.




Guiné > Mapa Geral da Província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Bambadinca , Bafatá e Nova Lamego... A distância por estrada era de cerca de 110 km. Só o troço de Bambadinca-Bafatá é que era alcatroado no final de 1967. Na época o porto fluvial era muito movimentado, quer por embarcações civis quer da mrinha de guerra (, incluindo as LDG - Lanchas de Desembarque Grande)... Em 1969, as LDG já só ficavam no porto fluvial do Xime. A partir de 1972, há um nova estrada, alcatroada, que vai ser a espinha dorl da a região leste, do Xime até Piche e depois atá Buruntuma.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


II – Legendagem das fotos:

F01 – Estrada entre Nova Lamego – Gabu – e Bafatá, a cerca de 60 quilómetros, a bordo do Jeep, com protecção contra o vento e poeiras. Foto captada na estrada entre Nova Lamego e Bafatá, no dia 29 de Janeiro de 1968, o meu aniversário de 25 anos.

F02 – Junto a um monumento, ou pela cruz, pode ser um local em que estivesse enterrado algum militar, falhou-me aqui tirar os apontamentos, mas não pode ser outra coisa senão um local de memorial. Foi uma paragem ocasional ou para a fotografia, em que estou eu e os restantes são todos soldados condutores. Foto captada na estrada entre Nova Lamego e Bambadinca, num dia de Dezembro de 1967.

F03 – Na ponte de madeira que liga Bafatá a Fá Mandinga. Foto captada na ponte para Fá Mandinga, num dia de Novembro de 1967.

F05 – Paragem na estrada de Gabu para Bambadinca, numa coluna de reabastecimentos. Reconheço os nomes, em pé à esquerda o sempre presente e grande amigo, o soldado condutor o ‘Ermesinde’, Arlindo de seu nome. Do lado oposto, o Furriel Paiva Matos, o nosso Vagomestre da CCS do Batalhão. Todos os restantes são reconhecidos, são condutores, quer da CCS do Batalhão ou da Companhia de Intervenção, CART1742. Foto captada na estrada entre Nova Lamego e Bambadinca, num dia de Dezembro de 1967.

F06 – Placard-Tabuletas com as indicações das distâncias, para Sul, Norte e Leste, localizada numa das saídas-entradas de Nova Lamego-Gabu. Bafatá para Sul é a mais longa, com 53 kms, e temos de juntar mais cerca de 60 dali até ao Porto e Depósito da Intendência em Bambadinca. Foto captada na saída de Gabu para Bafatá, em finais de Setembro de 1967. Provavelmente uma das primeiras fotos captadas em Nova Lamego, e por isso na Guiné, a quando da minha chegada solitária àquela terra.

F07 – Foto icónica, perto de Nova Lamego, à saída para Bafatá, junto a um Padrão dos Descobrimentos, do qual não anotei o seu nome ou significado. Uma saída a algures, num camião Unimog, e uma paragem para a fotografia. Foto captada na estrada entre Nova Lamego e Bafatá, num dia de Janeiro de 1968.

F08 – O meu grupo no meio da ponte para Fá Mandinga. São todos soldados condutores, posso identificar os nomes de dois: O da ponta direita, o Bourbon, impedido do Major Américo Correia, e o Pita, impedido de Major Graciano Henriques. Foto captada na ponte para Fá Mandinga, num dia de Novembro de 1967.

F09 – Na estrada entre Gabu e Bafatá, protegendo-me do pó levantado pelos camiões da coluna da frente, com um lenço, tipo cowboy do Faroeste. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá, num dia de Novembro de 1967.

F10 – ‘Simulação’ de uma emboscada, na estrada entre Gabu a caminho de Bambadinca, antes de chegar a Bafatá, no meio da mata. Os meus companheiros são todos ‘operacionais’ do volante. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá, num dia de Outubro de 1967. F11 – Vista geral da estrada entre Gabu – Bafatá- Bambadinca, tirada a partir da primeira viatura da coluna. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá, num dia de Dezembro de 1967.

F12 – No Jeep com o condutor Pita, impedido do Major Henriques, Oficial de operações, no regresso da viagem a Bafatá e a caminho de Nova Lamego. Foto captada na estrada entre Bafatá e Gabu, num dia de Janeiro de 1968.

F13 – Uma ‘brincadeira’ de guerra entre Índios de arco e flecha. São os soldados condutores do meu Batalhão. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá, num dia de Dezembro de 1967.

F14 – Preparação de uma ‘Coluna’ para Bafatá-Bambadinca, dentro do aquartelamento do Batalhão em Nova Lamego. Pode ver-se o Furriel Rocha ‘O Algarvio’ e outros furriéis e milícias. Foto captada na estrada entre Gabu e Bafatá, num dia de Dezembro de 1967. 


F15 – Vista aérea do aquartelamento de Nova Lamego, e a sua pista à distância. Foto aérea captada de um avião Dakota, pronto a aterrar na pista de Nova Lamego, em 31 Janeiro de 68.

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BCAÇ 1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21Set67 a 04Ago69».

# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir. Nada mais. #

Fotos legendadas em 2018-11-22. Texto acabado de ser alterado, novamente, hoje,

Em, 2019-01-06

Virgílio Teixeira

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Nota so edior:

Último poste da série > 16 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19407: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LX: A Casa Caeiro e os comerciantes libaneses de Nova Lamego

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

Vista a partir da Serra do Pilar
Foto: © Dina Vinhal

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 29 de Setembro de 2017:

Caros amigos,
Junto nova história verídica que poderá ser incluída na série de "Memórias boas da minha guerra".
Informo que os nomes de pessoas e lugares tiveram que ser alterados devido à exigência do personagem principal.

Abraço
José Ferreira Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra

45 - Questões de sangue

No início de Janeiro de 1967, vindos de todo o país e em especial da zona norte, chegavam ao RAP 2 - Serra do Pilar, os seiscentos e tal militares, tidos como preparados para seguirem para a Guerra do Ultramar. Vinham formar o BART 1913 - Batalhão de Artilharia 1913 - que se destinava a cumprir uma Comissão de Serviço Militar na guerra, no CTI da Guiné.

Não fora o facto de ter acabado de frequentar o curso de “Rangers” em Lamego - o que me ligou logo à mobilização - e eu poderia sentir-me satisfeito por continuar a cumprir o serviço militar no norte (depois do GACA 3, de Espinho). Efectivamente, depois de uma razoável classificação no Curso de Vendas Novas (o primeiro sobre guerra subversiva), fui atendido nessas “minhas preferências” então registadas: Espinho, Gaia ou Porto. O que eu não sonhava era que esse pretenso percurso me levaria até à Guiné.

Ao contrário das outras chegadas a novo quartel, desta vez eram evidentes os rostos mudos, carregados de tristeza, apatia e resignação. Entravam cabisbaixos, fixando o chão cinzento-escuro dos gastos paralelos de granito enquanto deambulavam por toda a calçada, na subida até ao pavilhão central onde funcionava a recepção Assumiam, assim, o doloroso papel de “condenados”.
Foi ali que, partindo do zero, nos fomos agrupando em Secções, Pelotões, Companhias, formando o Batalhão. Assim, apareceram as respectivas formaturas, dando início à última e decisiva preparação para a guerra. Claro que reencontrámos alguns camaradas já conhecidos em quartéis anteriores, mas muito poucos a seguirem o mesmo percurso. Uma coisa era certa: iríamos todos para a Guiné.

Da Serra do Pilar, desfrutávamos de vistas deslumbrantes em redor, em especial sobre a cidade do Porto e, planando o olhar, sobre o Rio Douro e sua foz. Agora, nos tempos livres, saíamos dali na esperança de saborearmos mais de perto os encantos daquela lindíssima e secular região portuense. Talvez por isso, era notória a movimentação dos militares a aproveitarem a sua passagem por ali. Em poucos minutos, eles afastavam-se, ansiosos, para contactos novos, pontuais ou não, parecendo quererem absorver conhecimentos, divertimento e os prazeres tripeiros.
Ao fim de uns dias, já havia verdadeiros apaixonados pelo “Puârto”, carago! As paisagens, os petiscos, a linguagem, a franca maneira de ser dos tripeiros, as “gajas” sérias e as outras - as “donzelas” - e, até, os “gajos” porreiros, eram razões mais que suficientes para encantar aquela saudável juventude. Embora eu passasse muitas noites fora dali, uma vez que me deslocava para casa (em Fiães, da Feira) a cerca de 20 quilómetros, tive a oportunidade de conhecer peripécias interessantes e de testemunhar algumas lindas histórias de amor.

Nas minhas histórias acerca desta malta, já destaquei a história do rapaz que casou com a prima empregada nos Caldeireiros (O rapaz do “sorriso parvo”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2016/07/guine-6374-p16268-memorias-boas-da.html, referi o caso do Mirandela que se apaixonou pela “donzela” que trabalhava junto ao largo da Cadeia (“Deixem-nos trabalhar”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/09/guine-6374-p12031-memorias-boas-da.html, os engates do Miranda, de Amarante, junto do Café Mucaba e o namoro do Silva “a calcantes” desde a Ponte D. Luís até Gervide, (Cegueira e religião) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/09/guine-6374-p6951-memorias-boas-da-minha.html.
Todavia, terei que contar ainda a história do Armindo Baptista, um alentejano de nascença e coração, mas um nortenho de sangue e de grande ligação. Seus pais, funcionários públicos, oriundos do Minho, acabaram por assentar em Beja, onde ainda residem, perto dos dois filhos e seus quatro netos.
Desde miúdo, apercebeu-se de que o sotaque de seus pais diferia do dos seus vizinhos. A par disso, notava também que eles se ligavam facilmente com toda a gente e que se predispunham muito no âmbito social e religioso. E ouvia os vizinhos dizerem:
- Eles são de sangue nortenho. São mais activos.

O Armindo cresceu, estudou e fez-se um rapagão, rodeado de alentejanos, com quem cimentou grandes amizades. Mas, sempre que ia ao norte visitar os avós, trazia o seu ego reforçado pelo que via, ouvia e sentia. Ele até aprofundava ali os seus conhecimentos históricos e sentia-se cada vez mais integrado no mundo dos nossos heróis, especialmente dos que nasceram e viveram no mesmo espaço que os seus parentes mais chegados. Sentia um orgulho enorme nessa ligação nortenha e estava sempre atento a tudo que ouvia desses lados, incluindo as notícias dos sucessos do F. C. do Porto.
Apesar de sentir a aproximação das miúdas mais lindas do Alentejo, parecia que via sempre nelas uma pequena sombra de sua mãe, a mostrar-lhe a energia que lhe sobrava e que não vislumbrava nessas belas alentejanas. Chegou à tropa sem compromisso amoroso e, agora, com 23 anos, na hora da partida para a Guiné, nem endereço levava para fazer uma madrinha de guerra.
Esteve na recruta das Caldas da Rainha e rumou para Tavira, para tirar a especialidade. Seguiu para Tancos, onde tirou o Curso de Minas e Armadilhas. Com esta última formação, ficou mobilizado e foi chamado para o RAP 2 - Gaia, para integrar a CART 1687, do nosso BART 1913, acima referido.

À saída da Porta de Armas do RAP 2, surgia logo de frente na Rua dos Polacos, um tasco/mercearia típico (o “Faca Afiada”), gerido pela família Moreira. Penso que todos os tropas que passaram pela Serra do Pilar visitaram esse tasco. Lá existia um grande balcão, interrompido por uma divisória, provocando uma zona mais reservada, onde se serviam alguns petiscos, se bebia e se faziam algumas ”jogatanas”. Passei por lá várias vezes, para tomar o último “reforço vitamínico”, antes de passar a Porta de Armas. E sempre encontrava lá o Armindo, conversando com os derradeiros clientes, nos intervalos de um quase contínuo assédio à moreninha que tanto ajudava os pais.

Logo nos primeiros dias de RAP 2, testemunhámos a presença de dois militares, regressados de rendição individual, que vinham fazer o espólio. Passavam o tempo todo no tasco “Faca afiada”. Um, o Jorge Ribatejano, era Furriel dos Comandos e exorbitava as suas façanhas guerreiras, fazendo relatos medonhos que nos assustavam. Exibia o seu corpanzil de pegador de touros, assumindo a sua superioridade e valentia, bem aproveitadas na preparação especial de Comando e nos seus relatos de heroicidade. O outro, o Furriel Carlos Barroso, negro, também estivera em Angola, onde não se encontraram e preparava-se para regressar à sua terra natal - a Guiné.

Não se sabia quem bebia mais. Mas notava-se que o álcool “atacava” mais o Comando. Este, farto de se exibir na sua aludida “matança de turras”, entrava agora no campo da provocação ao negro da Guiné:
- Os pretos são uns cobardes. Não valem um caralho!
O Barroso respondeu-lhe:
- Somos todos iguais. Somos todos portugueses e temos todos o sangue igual.
Irritado, o Jorge, eleva a voz:
- O caralho, é que é igual.

Pega no copo do brandy, bebe tudo de um gole, trinca as bordas do copo, estende o braço esquerdo de manga arregaçada e com o copo estalado e agarrado ao contrário pela mão direita, esfrega-o longitudinalmente pelo braço, provocando lanhos na carne, que já sangrava e grita:
- Estás a ver o que é o sangue e a coragem de um branco?
O Barroso, ferido no seu orgulho, tira-lhe o copo da mão e faz o mesmo no seu braço:
- Estás a ver, seu caralho? Onde está a diferença?

Quando cheguei ao tasco, já eles estavam quase apáticos, sentados e encostados à parede, com os braços feridos, encobertos por um pano meio ensanguentado. Por sua vez, o Armindo, aproveitava para assumir um papel de moralizador, muito do agrado do Senhor Moreira e da sua filha moreninha, a quem ele queria impressionar.
Pois, o Armindo ficou preso à Leonor, logo que a viu pela primeira vez. Passava ali todo o tempo disponível, enquanto estivemos aquartelados no RAP 2. Em pouco tempo, todos os militares ficaram a saber que a Leonor do “Faca Afiada” estava inacessível e presa a um Cabo Miliciano que não saía de lá.

Saímos da Serra do Pilar em direcção a Viana do Castelo, de onde seguiríamos para a Guiné, em finais de Abril. Com este afastamento, acentuou-se o amor do Armindo e da Leonor, provocando uma inesperada paixão que os fazia sofrer diariamente. Contra toda a lógica e expectativas, resolveram casar a escassos dias da partida dele para a guerra. Creio que poucos acreditavam no sucesso dessa ligação, com alguns prenúncios de loucura e fatalidade.

Pouco convivemos na Guiné. A minha companhia saiu do barco Uíge, fundeado ao largo de Bissau, seguindo directamente em barcaça para Bambadinca, enquanto o Batalhão ficou sediado em Catió. O Armindo pertencia à Cart 1687, que se fixou em Cufar, após uma passagem pelo Cachil. Quando estivemos em Catió, vindos do norte, fizemos várias operações militares com passagem por Cufar. Ali convivemos pontualmente e recordámos algumas ligações anteriores. Porém, era evidente que o Armindo acusava um estado bastante sorumbático e cansado. Parece que passou grande parte do tempo afastado das operações, justificando-se com doença e deslocações a Bissau. Sempre pensei que esta relação se iria desvanecer. Com tristeza minha, porque nutri bastante simpatia pelo casal, especialmente pelo Armindo.

Alguns amigos bem conhecidos no nosso Batalhão

No dia 29 de Abril de 2017, participei no Convívio do 50.º aniversário da partida do nosso Batalhão para a Guiné. Teria que ser o mesmo local - a lindíssima e simpática cidade de Viana do Castelo. Quando estávamos dentro do quartel, do Castelo, precisamente no largo onde fora a Parada das tropas, vejo o Francisco Machado (O Chico d’Alcantara) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/02/guine-6374-p7710-memorias-boas-da-minha.html, a “puxar “ um casal, ao mesmo tempo que dizia:
- Ó Silva, olha aqui o Armindo.
- Qual Armindo? - perguntei.
A Senhora avançou:
- O Armindo que casou com a moreninha do “Faca Afiada”?

Que surpresa agradável! E mais agradável se tornou, à medida que eles iam contando a sua vida deste meio século e aparentando uma felicidade imensa.

Quando me afastei do Convívio, aproveitei para dar uma última olhadela ao baile onde o Armindo e a Leonor dançavam sem cessar.

Nota: - Das conversas que trocámos nesse dia, fiquei a saber que o Armindo perdera o rasto do Comando que trincava o copo de brandy, mas mantivera uma boa relação com o Carlos Barroso, que veio, muito mais tarde, a desempenhar um alto cargo na estrutura do Estado da Guiné-Bissau.
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Nota do editor CV:

Último poste da série de 13 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17462: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (44): O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual

domingo, 18 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17482: (De) Caras (77): Fausto Teixeira, deportado político em 1925, empresário em Bafatá, de quem o 2º tenente Teixeira da Mota, ajudante de campo do governador Sarmento Rodrigues dizia, em 1947, ser um "incansável pioneiro da exploração de madeiras da Guiné"... Mais três contributos para o conhecimento desta figura singular (José Manuel Cancela / Jorge Cabral / Armando Tavares da Silva)


Guiné > Bissau > s/d [.c 1969] > À esquerda, o José Manuel Cancela. O terceiro é o António Teixeira, filho do Fausto Teixeira, que irá depois, em 1971, como furriel miliciano para Angola. "É curioso. O António Teixeira nunca me falou de um sobrinho nascido em Bafatá. Falava-me de um irmão mais velho que vivia em Palmela, tal como ele e o pai, o sr. Fausto".

Foto (e legenda): © José Manuel Cancela (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá > Fá > Serração mecânica de Fausto Teixeira > 7 de fevereiro de 1947 > Visita do Secretário de Estado das Colónias, eng. Rui Sá Carneiro, e comitiva, no regresso a Bissau, vindo de Bafatá.

Segundo a "nossa leitura", do lado esquerdo, teríamos o eng. Rui Sá Carneiro, o prefeito apostólico José Ribeiro de Magalhães e o governador Sarmento Rodrigues; em segundo plano, rodeado dos seus empregados, parece ser o dono da empresa, observando (e possivelmente dando explicações sobre) o corte de um grande toro de madeira (à direita). O administrador da circunscrição de Bafatá, Carlos Costa, também terá integrado a visita, tal como o 2º ten Teixeira da Mota, ajudante de campo do governador. Não sabemos quem é o autor desta fotos e das restantes que acompanham o extenso e altamente detalhado relatório da "visita ministerial", que é assinado por Teixeira da Mota. Não temos até agora nenhuma foto do empresário Fausto [da Silva] Teixeira,

Fonte: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol II - Número Especial, [Comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné], 1947, p. 370 . [O número completo está disponível "on line" aqui]

[Imagem digitalizada a partir de cópia pessoal pertencente ao prof Armando Tavares da Silva,  historiador, membro da nossa Tabanca Grande]


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Grupo de combate do Alf Mil Torcato Mendonça (que hoje vive no Fundão e é um dos nossos colaboradores permanentes), antes de a CART 2339 ser colocada em Mansambo, cujo aquartelamento iria construir de raíz. O arriar da bandeira ... 

Tirando as patrulhas ao mato Cão, para montar segurança aos barcos civis que atravessavam o Geba Estreito (Xime-Bambadinca-Bafata), Fá Mandinga era uma "verdadeira colónia de férias", beneficiando de "instalações ótimas"... Já aqui se escreveu, erradamente, que tinha sido uma "antiga estação agronómica por onde passara, nos anos 50, o engº Agrónomo Amílcar Cabral, licenciado pelo ISA - Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa"... o que parece ser falso. O engº agrónomo Amílcar Cabral trabalhou e viveu, isso, sim, em Pessubé, perto de Bissau, com a sua esposa e colega portuguesa, Maria Helena Rodrigues.  

Segundo o Torcato Mendonça, as "instalações civis" estavam, na altura, à guarda de um civil, mandinga, o Marinho, que deveria ser pago pela administração [circunscrição de Bafatá ?] (Veja-se a deliciosa história do bode que foi roubado ao Marinho, quando o grupo de combate do alf mil Torcato Mendonça recebeu ordem para deixar Fá...].

Foto: © Torcato Mendonça (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais 3 contributos para o conhecimento desta história singular, a de um deportado político que se torna um importante empresário na época colonial, exportador de madeiras tropicais:


(i) José Manuel Cancela, natural de (e residente em) Penafiel (ex-sold ap metr pesada, CCAÇ 2382, Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1968/70):

Amigo Luís.
Vou tentar responder às tuas perguntas, a partir do que ainda lembro.
O meu conterrâneo, que também se chamava Teixeira, sem ter traços familiares com o patrão [, o madeireiro Fausto Teixeira],  veio embora após o 25 de Abril. Estava muito revoltado por ter perdido o emprego, e culpava o exército por não ter acabado com a guerra. Enfim!!!

Infelizmente não me pode ajudar no que toca a este tema. Faleceu ainda nos anos oitenta, não tinha cinquenta anos.

Recordo-me que, nos princípios de 71, estava ele de férias, perguntei-lhe pelo António. Disse-me que passou por Bissau, com destino a Angola, como furriel miliciano. Junto uma das minhas fotos, onde estamos juntos, em Bissau, eu e o António.


(ii) Jorge Cabral, ex-alf mil art, Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71] [o segundo, na segunda fila, na foto à esquerda]

Obrigado Luís!
Fá estava dividido, em duas partes, a de cima e a de baixo. Esta foto parece-me ser na parte de baixo.

Como te disse ao telefone, existia um guarda civil, o Marinho do qual tanto eu como o Torcato Mendonça [ex-alf mil, CART 2239, Fá e Mansambo, 1968/69], já falámos. Terá sido contratado, por via do fim da serração? 

Penso que a tropa só lá se instalou, em Fá,  a partir de 1965. Foi sede de Batalhão e de muitas Companhias. Em Julho de 1969 e pela primeira vez, foi entregue a um Pelotão, o meu. 

Era na parte de cima que se encontravam as melhores instalações. Uma casa óptima com vários quartos e duas vivendas, além de mais dois edifícios. Teria tido água canalizada e com certeza um potente gerador, que ocuparia uma casa própria, que o meu soldado Dairo aproveitou para a sua residência. 

Entre Julho de 1969 e Fevereiro de 1970, data da chegada da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, as mulheres e os filhos dos meus soldados viveram no Quartel. Não ocupámos nem a parte de baixo, nem a "casa grande" e as duas vivendas. 

Quem pagaria o ordenado do Marinho, que até fazia rondas nocturnas, munido apenas de uma lanterna e que uma vez foi alvejado pelo meu soldado Mamadú que, estando de sentinela, ao ver uma luz,  disparou ?... 

Abraço,   J. Cabral.


(iii) Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.).  

Luís,
O Fausto Teixeira faria parte de um grupo de 26 membros da Legião Vermelha que, a bordo do cruzador Carvalho Araújo,  foram deportados para a Guiné, onde chegaram em Junho de 1925.

A Legião Vermelha era um grupo anarcossindicalista que varreu o país com uma onda de atentados bombistas contra figuras de destaque no campo do comércio, indústria, etc.,  supostamente conservadoras. A 15 de Maio de 1925 atentam contra a vida do comandante da polícia, coronel João Maria Ferreira do Amaral, que fica ferido. É na sequência deste atentado que um grupo destes anarquistas é deportado para a Guiné [entre eles, Gabriel Pedro, pai de Edmundo Pedro]. Era presidente do ministério Victorino Máximo de Carvalho Guimarães.

Foi o mesmo grupo que, em 1937, atenta contra a vida de Salazar.


Gabriel Pedro, pai de Edmundo Pedro, com outros deportados para a Guiné, em 1925, alegados membros da misteriosa "Legião Vermelha". Neste grupo, é provável que conste o Fausto Teixeira. O Gabriel Pedro é o terceiro da segunda fila, a contar da direita.

[Fonte do fotograma:  You Tube > A Legião Vermelha - Portugal 1920/1925]




Excerto do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nº especial, dezembro de 1947, pp. 368-370, a partir de cópia pessoal do nosso amigo Armando Tavares da Silva
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Nota do editor:

Vd. poste de 16 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17477: (De) Caras (83): Ainda o madeireiro Fausto da Silva Teixeira, com residência familiar em Palmela, amigo do "tarrafalista" Edmundo Pedro... Apesar da "amizade" com Amílcar Cabral e Luís Cabral, teve um barco, carregado de madeiras, atacado e incendiado no Geba, a caminho de Bissau...

terça-feira, 13 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17462: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (44): O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual




1. Em mensagem do dia 10 de Junho de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos uma história, no mínimo, estranha. Não é que nós até conhecemos os intervenientes?

Caros amigos
Tal como na anterior história sobre o Zé Manel dos Cabritos, existem várias coincidências que podem induzir em interpretações precipitadas. Quero-vos garantir que esta é mais uma história de ficção que quase nada tem a ver com os amigos, acontecimentos e lugares que nos rodeiam.

Grande abraço do
JFSilva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra

44 - O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual

O Zé Manel dos Cabritos é sobejamente conhecido entre os ex-combatentes em geral e muito em particular com os que lutaram na guerra da Guiné. Entre estes, acentuou a fama de açambarcador de cabritos, ao ponto de ser acusado da sua exterminação numa importante zona dessa região africana.
Por outro lado, o facto de ter sido um emigrante de sucesso, parece ter despertado algum sentimento de inveja, por parte desses “amigos mais chegados”.

Ultimamente tenho tido um relacionamento mais próximo do amigo Zé Manel. Ele, que é sistematicamente acusado de “açambarcador mafioso” no controlo e no proveito dos cabritos no leste da Guiné, esconde, naquele fundo de guloso e de espertalhão, muita bondade e muita ânsia de sã camaradagem. Por isso, ele tem desabafado comigo sobre essas acusações infames e de outras coisas que ele não quer que se saiba. Porém, há uma a que não posso resistir.

Perguntei-lhe se tinha emigrado logo que veio da Guiné e ele respondeu:
- Não. Voltei ao Antero, para me dedicar aos trabalhos na pedra. Já andava lá há uns meses, mas como eu era muito desenvolvido no trabalho de série e rápido noutros serviços, o patrão não me dava oportunidades para me desenvolver na arte de esculpir figuras. E foi num dia de verão que decidi que aquele seria o meu último serviço em Portugal.
O patrão pediu-me para eu ir perto de Bragança levar a escultura de um macho, para ser colocada sobre uma fonte que iria ser inaugurada no Domingo seguinte. Carregaram a escultura numa carrinha Datsun, de caixa aberta, bem amarrada e bem protegida. Levei a carrinha para casa, a fim de seguir, directamente, no Sábado, para Trás-os-Montes. Ainda em casa, pus-me a mirar a obra em toda a volta do carro e cheguei à conclusão de que o “badalo” do burro estava demasiado grande e torto. Peguei no cinzel e fui dar-lhe uns retoques. Só que, não sei porquê, o “badalo” caiu e partiu-se em vários bocados. Fiquei aflito e não sabia como havia de o recolocar no macho. Pensei, pensei e, quando já estava mais calmo, voltei a retocar a zona sexual do animal, destruindo-lhe os tomates e o resto que ficara do badalo. Perdi um tempão naquelas operações delicadas mas, no final, convenci-me de que conseguira travesti-lo numa bela mula.
Faltava, agora, convencer o cliente, que estava a aguardar o macho há várias horas. Ribeira da Raia ficava para lá de Bragança, perto da fronteira, por onde passavam os emigrantes clandestinos. Passei por uma placa que dizia FRANÇA, onde, vim a saber depois, era onde os passadores mais vigaristas, largavam alguns clientes como etapa final desse “salto” clandestino. Fui andando e acabei por parar junto a um rio, onde me apercebi de algum barulho em redor de uma fogueira.

Passava das duas e meia da madrugada. Ouvi alguém dizer:
- Deve ser o gajo que vem trazer o matcho.
- Ó diatcho, agora não vem nada a calhar. Ali o Tono já está a dormir co’ a borratcheira, tuJaquim, estás meio fodido e eu, sozinho não aguento.
- Deixa-te estar Alfredo, que tu estás melhor.

Aproximei-me, passaram-me a caneca colectiva e indicaram-me o local exposto do presunto, salpicão, alheiras, queijo, chouriço, pão etc. etc.
- Olhe, o que o safou é que o Regedor trouxe para aqui material, para esperarmos por si até de manhã. Foi-se deitar e disse que você pode ficar cá, mas que convinha, antes, colocar o matcho, para lhe cimentarmos as patas. Mas estou a ver que isto vai ser difícil.

Pensei logo em desenrascar-me o mais depressa possível. Acompanhei-os nos comes e bebes e ajudei-os a alegrar-se. Acordámos o Tono e fomos descarregar o macho.

Logo que desamarramos a escultura, ali junto à fonte e sob um poste de luz eléctrica, o Tono exclamou:
- Olhem, o matcho não tem margalho!
- É porque vem capado – disse o Jaquim.
- Ó amigo, isto parece mais uma mula. Não me parece que seja o que o Regedor encomendou. – disse o Alfredo.

Olhei para ele, abeirei-me e, lamuriento, exclamei:
- Vocês têm razão. Estou aqui desesperado porque me aconteceu isto, assim, assim… e assim.

Perante o silêncio prolongado, o Tono arrebitou e ordenou:
- Vamos descarregar a puta da mula e colocá-la no sítio do matcho. Afinal sempre gostamos mais de fêmeas e o rapaz, coitado, tem de ir à sua vida. E querem saber uma coisa? A mula vai chamar-se Lola, em homenagem ao nosso amigo Betinho da Rosita, que era unha com carne com o Regedor, e que num dia de Benfica-Porto foi para Lisboa com o Tininho de Bragança e nunca mais voltaram. Parece que o jogo foi em 1963 ou 1964 e empataram a 2-2.

O Alfredo, que não se mostrou muito de acordo, foi avisando:
- Vocês sabem que o Regedor não vai gostar dessa brincadeira, até porque dizem que ele ficou solteiro, à espera desse Betinho.

O Jaquim acrescentou:
- Não sei se sabem que o Betinho fez uma operação, cortou a piroca, abriram-lhe um buraco e que agora se chama Lola e que é um bom pedaço de mulher. O Tono já a viu, não é verdade?
- Sim, é verdade. – disse o Tono, que continuou:
- Um dia em que fomos a Lisboa procurá-la numa boite, perguntámos-lhe pelo Betinho mas ela não nos passou cartão. O Regedor ficou pior que estragado. Até lhe chamou paneleiro. Ela respondeu-nos que não se lembrava desse nome, que era transexual e que se chamava Lola. Quando vínhamos embora, o Regedor confirmou-me que, quando comprara à D. Rosinha, o campo das hortas, fora para pagar a tal operação.

O Jaquim ainda lembrou os tempos de infância do Betinho, dizendo que ele “tinha a mania de tocar ao bicho dos colegas”.

De repente colocaram a mula lá em cima, foram buscar a caneca e brindaram:
- À nossa Lola, a primeira mula transexual de Portugal! 

Nota:
Acredito nesta história do Zé Manel dos Cabritos porque, por volta de finais dos anos 70, eu costumava ir pescar nessa zona raiana e lembro-me de ver o carinho e a admiração que essa gente local prestava às mulas. Também vi a estátua sobre uma fonte. E, enquanto bebíamos uma cerveja no Bar de uma Associação Recreativa e Cultural, contaram-nos que por altura do 25 de Abril, tinham retirado a Lola, “porque era ofensiva à honra das nossas mulas e, ao mesmo tempo, se identificava com o único panasca transmontano”.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17438: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (43): O Zé Manel dos Cabritos e os amigos invejosos

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17341: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (42): O Arturinho do Bonjardim, a relojoaria, o negócio das carnes, os vários circuitos e destinos, até ao reagrupamento do… Bando

O Bando


1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos mais esta história para a sua série...


Memórias boas da minha guerra

42 - O Arturinho do Bonjardim, a relojoaria, o negócio das carnes, os vários circuitos e destinos, até ao reagrupamento do… Bando

O Alferes Artur Bastos está ligado a algumas das histórias que venho relatando aqui no blogue. Já o referi em “A honra não tem preço” (P16511) e em “O galã de Nhacra” (P15836). Porém, dada a sua ligação e importância da sua convivência com vários companheiros, desde a escola até à guerra da Guiné (e posterior tempo de convívios de ex-Combatentes), julguei oportuno registar com mais pormenor algumas passagens da sua vida.

“…Nos primeiros anos da década de 1920, terminada a Grande Guerra, a instabilidade cresceu: para além dos governos se sucederem a um ritmo alucinante (foram 23 os ministérios entre 1920 e 1926), os atentados bombistas e a forte actividade anarco-sindicalista criavam no país um clima pré-insurreccional que fazia adivinhar um fim próximo para o regime….” 
(in Wikipédia – Revolução de 28 de Maio de 1926). 

Gomes da Costa e suas tropas desfilam vitoriosos em Lisboa (6 de Junho de 1926) 

Foi por essa altura que a Emília do Campo casou com o Zé da Serra. Ela, uma mulheraça carregada de vida, bonita e bastante desejada e ele, um rapagão, capaz de satisfazer o mais exigente patrão madeireiro e qualquer mulher. O desejo de se unirem era mais forte do que a instabilidade política e social reinante. Todavia, esse golpe de 28 de Maio parece ter provocado alguma esperança entre os portugueses (já bastante cépticos quanto à governação republicana).

Em poucos anos, a Emília dera à luz uma meia-dúzia de filhos. Todos saudáveis e robustos como os pais. Porém, mesmo com as medidas rígidas de poupança e restrições, impostas pela crise e pelo novo regime político, a sua sobrevivência tornara-se um grande problema. Foram tempos muito difíceis. Tempos de fome. Tempos em que muitas vezes o trabalho era pago com uma frugal refeição. Desde crianças, muitas das raparigas eram distribuídas na serventia das famílias mais abastadas e muitos dos rapazes eram aproveitados para ajudar nas fábricas e na construção civil. A escola era luxo difícil de conseguir.

Das três filhas assim distribuídas, uma delas foi para o Porto. Foi a Rosita, a tal que sempre se entusiasmava quando a tia Candidinha vinha de visita à terra, por altura da Páscoa, Natal e de outras festas familiares.

A Candidinha foi uma rapariga de sucesso numa casa de putas, na zona do Bonjardim. Dizia-se que ela se havia especializado em Lisboa, junto dos meios republicanos, então muito voltados para a rebeldia e estrangeirismos, modernices ou libertinagem. Era muito disputada pelos frequentadores mais exigentes nesse “negócio de carnes”. Foi tal o sucesso que a Candidinha passou de protegida da Madrinha do Lar para a amiga/amante do senhorio desse Lar das Donzelas. Uns anos atrás, o Senhor Lopes fora abandonado pela sua mulher que o deixara só e que, após algumas tentativas de gravidez falhadas, mudou de homem, talvez na convicção de que o “defeito” era dele. Mais tarde, ela quis regressar mas o Lopes sentia-se muito bem servido com a Madame Candidinha.

A Rosita, embora auxiliasse a tia nos serviços domésticos, teve a oportunidade de frequentar a Escola Primária da Fontinha. Nas visitas à aldeia, a Rosita mostrava algumas saudades dos irmãos e do calor do ambiente familiar. Como as dificuldades continuavam, o pai Zé da Serra, viu que seria oportuna e desejável a entrada de mais uma féria na família. A Rosita lá ficou para trabalhar numa fábrica de cortiça, em Lourosa. Inicialmente não lhe desagradou a mudança mas, cedo se apercebeu de que agora, o futuro que esperava deveria ser diferente. Cresceu e amadureceu naquele ambiente de fábrica, cerimónias de Igreja, festas pagãs e de santos. Em poucos anos, deitou corpo de mulher. Agora, com 16 anos, já se via cortejada pelos rapazes da terra.

Subitamente, a Rosita foi de novo para o Porto. A tia Candidinha adoecera e passava a maior parte do tempo na cama. Pediu para que a Rosita a fosse ajudar, com a promessa aos pais de que, agora, os compensaria monetariamente.

A Rosita apareceu grávida. Há quem diga que isso fora o resultado de um namorico, iniciado com um colega de fábrica, lá de Lourosa. Porém, a Rosinha não queria comprometer o rapaz. Mas, como ela era menor, o pai não aceitava que o assunto ficasse assim. Valeu-lhe a ajuda da tia Candidinha, que a protegeu e lhe assegurou o apoio, até ao nascimento do Arturinho.

O Arturinho foi muito bem recebido pelo Lopes e pela Candidinha. E a Rosita foi ficando por ali, pelo Bonjardim, sem vontade de ir à aldeia mostrar o filho.
Porém, a Emília do Campo veio a ter um problema de saúde e insistiu que deveria ser a filha Rosita a ir ajudá-la. A tia Dina concordou e até gostou de ficar com o Arturinho.

Nos dias que se seguiram, a Rosita encontrou-se com o Eduardo Valente, o tal rapaz com quem ela já havia namorado. O Eduardo mostrou-se interessado em reatar o namoro com a Rosita. Desta vez, ele apareceu bastante credenciado pelo suporte social da pequena empresa corticeira que o seu pai havia criado. A empatia que os ligava veio ao de cima e, em pouco tempo, assumiram apaixonadamente a desejada relação amorosa e amadurecida.

O casamento foi muito bonito. O Arturinho levou as alianças e a tia Candidinha e o Senhor Lopes foram os padrinhos. Até teve vários automóveis. Tínhamos que parar o jogo da bola no largo, para que eles passassem. Eu teria já os meus 7 anos.

A reforçada paixão dos noivos foi tal que nem se preocuparam com a tutela do Arturinho. Embora o Eduardo estivesse convencido de que teria de assumir a paternidade do miúdo, a Rosita conseguiu libertá-lo dessa pressão, facilitando a sua permanência no Porto junto da tia Candidinha. Digamos, de passagem, que o Arturinho, graças ao mimo que o envolvia, sentia-se um principezinho no Bonjardim.

O Artur frequentou a escola primária perto de casa, na Fontinha. Na escola era conhecido por filho do Lopes da Relojoaria e da Dona Nandinha, apesar da idade já um pouco avançada que aparentavam. Não era mau aluno, mas um bocado preguiçoso. Porém, a Mãe Dina sabia impor-lhe a disciplina necessária. Por outro lado, o Pai Lopes era um bolas, entretido com o trabalho da relojoaria e com algumas tardes de pesca, junto à Ponte D. Maria.

Quando o Arturinho passou a frequentar a Escola do Infante Dom Henrique apanhou alguns colegas novos, oriundos de várias zonas típicas do Porto e de outras fora da cidade. Foi desta forma que começou a tomar maior contacto com gentes e costumes portuenses.
Por sua vez, o Arturinho cedo ficou referenciado como o puto vizinho das Donzelas do Bonjardim. É que ele, sem se aperceber, dava o seu endereço que era próximo de uma casa de putas, precisamente por cima de uma loja de relojoaria e jóias. A relojoaria do Pai Lopes era onde, segundo a especificação do Teixeira de Salgueiros, se vendiam os “broches” que eram fabricados ali mesmo por cima. E o Arturinho, muito fascinado nas jóias e relógios do Pai Lopes não fazia ideia dessa actividade “artística”, fora de Gondomar.

Efectivamente, o Arturinho sempre manteve uma ligação privilegiada com as vizinhas do prédio da relojoaria do Pai Lopes. Ainda criança e já sentia o carinho das vizinhas que o beijocavam quando se cruzavam, lá no Bonjardim. E muitas das vezes via lá a Mãe Dina a conversar com a Dona Laidinha (a Madrinha do Lar), aparentando sempre uma boa relação. E sempre recebia alguma carícia doce, acompanhada pelo cumprimento especial:
- O Arturinho está a ficar um homem!

Um dia, podia tê-las ouvido cochichar:
- Olha que ele já deve andar a tocar ao bicho. Qualquer dia temos que o levar lá para cima.
- Já notei isso e confesso-te que ando preocupada. Tenho medo que se meta com as badalhocas, sem controlo sanitário, e lhe peguem alguma doença. E tu sabes bem o que isso é.
- Fica descansada que vou preparar um bom petisco para ele. Vais ver que ele nunca mais vai esquecer as Donzelas do Bonjardim! Quando entenderes que é oportuno, manda-o ir lá acima levar-me um recado, para se ir ambientando.


Ele já sabia qual o verdadeiro ramo de actividade do Lar das Donzelas. E a malta da Escola espicaçou-o de tal forma que ele já passava grande parte das horas livres junto do Pai Lopes. Creio que ele ainda não teria feito os catorze anos. A Mãe Dina mandou-o levar um pequeno embrulho à Dona Laidinha. Ele, surpreendido, fitou-a de tal forma que ela o esclareceu:

- Ó rapaz, não tenhas medo, que elas não te fazem mal nenhum. São mulheres como as outras.

Propositadamente, a Dona Laidinha fê-lo esperar, enquanto lhe mandou servir um refrigerante. Algumas Donzelas estavam em serviço de quarto mas outras vieram cumprimentar o rapaz com reforçados carinhos. Quando vinha a descer as escadas, a Dona Mariota acompanhou-o, para lhe segredar:
- Leva o meu relógio para arranjar. Quando estiver pronto, vem-mo trazer.

Quando o Arturinho chegou à relojoaria junto do Pai Lopes já tinha pensado num esquema:
- Pai Lopes, podias arranjar este relógio de um amigo meu, lá da escola.


A Dona Mariota era já entradota na idade para aquele métier. Era a última das colegas da Madrinha Laidinha e da Madame Candidinha. Mantinha-se ainda ao serviço, graças às suas renovadas capacidades. De cara, já acusa os seus 50 e tal anos mas, do resto, conserva o aspecto de “bambolona”, tão do agrado dos olhares masculinos de quase todas as idades.

Logo que o Arturinho apanhou o relógio arranjado, aproveitou o período da sesta daquele dia primaveril e subiu ao Lar das Donzelas. Entrou e encontrou tudo muito calmo e não se via ninguém. De uma porta entreaberta viu surgir a Dona Mariota que lhe fez sinal para entrar. Recebeu o relógio com manifesta simpatia, puxou-o e abraçou-o agradecida. De seguida, disse-lhe para se sentar na cama e ficar à vontade. Fechou a porta, abriu a camisa e enquanto abanava a saia ligeiramente levantada na frente, dizia:
- Ui que calor!

Mostrou que lhe queria pagar o concerto do relógio mas ele recusou qualquer valor monetário. Cada vez mais grata, ia-lhe manifestando simpatia. Seguidamente, enquanto se coçava sobre a anca direita, voltou-se de costas e pediu-lhe:
- Ó Arturinho, por favor vê se encontras aí alguma coisa. Sinto comichão.

Com a saia levantada, ele regalava os olhos para o seu avantajado traseiro. E como ele dizia que não encontrava nada, ela mandou-o apalpar, mas com cuidado. De repente, virou-se de frente, de forma a aparecer-lhe com a “entreperna” diante dos olhos, e desafiou-o:
- E agora, vês?

Ele sorriu, enquanto ela lhe agarrou numa mão e pousou-a sobre o seu farto e escuro ninho.
- Não tenhas medo. Isto ferra mas não magoa.

Fê-lo levantar, e ao apalpa-lo entre as pernas, exclamou:
- Carago, tens aqui um pedaço de categoria, deixa-me ver.

Sentou-se de pernas abertas, enquanto lhe desapertava a portinhola, para soltar o leão. Desceu-lhe calças e cuecas e pôs-se a fazer-lhe caricias eróticas. Chegou a beijar-lhe o animal. Como ela sentiu que o rapaz já estava bastante excitado e antes que ele ejaculasse precocemente, abriu mais as pernas e encaminhou-o para a desejada penetração. O Arturinho andava nas nuvens; já fora ao pito, já era um homem. Agora parecia ver o mundo de uma forma diferente. E não olhava mulher alguma sem a imaginar de pernas abertas e acessível como a Dona Mariota.

Entretanto, o tempo ia passando mas sempre que se olhava ao espelho, sentia alguma preocupação com a escassez de barba e com o excesso de borbulhas. Na Escola do Infante, onde passava despercebido, agora sentia-se mais homem que os outros. Já discutia sexo com outros colegas mais velhos. E, até, acabou por entusiasmar alguns, que levou ao Lar das Donzelas.

Um dia a Dona Mariota, que lhe andava a dar umas “borlas” às escondidas, disse-lhe que podia marcar com os seus colegas de Escola uns “servicinhos” mais acessíveis e em segredo, mas fora do Lar.

Quando sussurrou essa proposta a alguns colegas, foi surpreendido com o entusiasmo do Marinho da Sé. Inicialmente, imaginou-o demasiado amaricado e um tanto identificado pela popularidade do vizinho Carlinhos da Sé. Depois, ficou bem esclarecido quanto às suas capacidades e experiência no “negócio das carnes”. Não fora a “escola” recebida do tio Júlio, e ninguém lhe imaginaria tais capacidades.

Quando o Arturinho perguntou ao Marinho a confirmação da sessão colectiva, foi logo esclarecido:
- Não te preocupes, já seleccionei a malta que vai, leva a gaja para o sítio combinado, que está tudo organizado.

Quando a Mariota entrou naquela casa abandonada, manifestou logo a sua discordância. Porém, o Marinho acalmou-a e adiantou-lhe uma verba jeitosa, fazendo-a hesitar quanto a uma possível desistência.
O Arturinho foi aguentando mas quando se apercebeu da real situação, tentou reagir. Logo foi ameaçado, especialmente pelos mais velhos, que agora estavam em maior número. O Marinho havia arranjado os clientes, recebera o dinheiro e controlava a situação. A Mariota, que já fora ameaçada e agredida, agora, via-se amarrada sobre uma improvisada cama: o tampo de uma mesa antiga.

À saída, o Marinho estendeu a mão ao Arturinho com algum dinheiro:
- Pega lá e vai buscar a gaja lá dentro.

O Arturinho esquivou-se e respondeu:
- Fica com o dinheiro todo e não me apareças mais.

Revoltado, o Arturinho abandonou a Escola do Infante. Ainda pensou ir para o Liceu Alexandre Herculano mas teve receio de encontrar dificuldades de adaptação às Letras e, também, aos meninos queques, mais frequentes nessa escola. Acabou por se decidir pela Escola Oliveira Martins, onde se veio a sentir muito bem.
Entretanto, sentia-se inibido em voltar ao Lar das Donzelas. Foi precisa a intervenção da Madrinha Laidinha. Ela nada soube do que se passara, mas estranhou o seu afastamento do Lar. Todavia, tinha conhecimento de que ele andara a desenrascar-se minimamente com a Mariota. Pois, a Madrinha esmerou-se em agradar e prender aquele jovem, tido como filho da casa.

Arranjou-lhe um serão espectacular. Meteu-o num quarto onde estava escondida uma jovem menor, acompanhada de uma amiga mais madura. Agarraram-se a ele e atiraram-no para cima da cama. Ele limitou-se a deixá-las despi-lo e descalçá-lo. O resto, foi um mundo de meiguices, de loucura e de prazer. Deram-lhe tudo. Até de comer. Foi nessa fartura que se apercebeu da fama do Bonjardim, onde se comiam os 3 pratos.

O Arturinho adaptou-se facilmente à nova escola. Foi ali que ficou esclarecido sobre os “Chulos da Sé”, os Carteiristas da Costa Cabral e Areosa e dos Pipis da Foz, tidos como ricos. Porém, estes também tinham a fama dos Manteigueiros, devido à pobreza de outros Fozeiros (os da parte velha, mais do lado da Cantareira), sem dinheiro para os cremes protectores solares. Também ficou a saber que os gajos da Ribeira eram tidos como Rufias, os do Marquês e Paranhos tinham a mania de ser Dândis e Cinéfilos, enquanto que os de Campanhã eram famosos pela boa vida, bons passeios e muitas festas. Ah!... e os das Antas eram os Andrades.
Foi com estes que mais conviveu e mais cresceu. E foi com alguns destes amigos que “percorreu” o Porto, desde a Ribeira ao Amial ou do Castelo do Queijo até Campanhã. Também foi com eles que rompeu panos de bilhares e fundilhos das calças nos cafés Embaixador, Palladium, Imperial, Guarani, etc. E com um grupo mais restrito, “passou” para fora do Bonjardim, conhecendo muito do mundo nocturno portuense, do Marquês à Ribeira ou dos Caldeireiros à Trindade ou Santos Pousada.

De tempos a tempos, iam enfiar umas cervejolas na “CUF”, na “Sá Reis” ou no “Pereira”, uns petiscos no “Buraquinho”, “Flor dos Congregados”, na “Mãe Preta” e no “Olho” e umas francesinhas na “casa mãe”, Restaurante Regaleira, precisamente onde foi criada essa famosíssima especialidade da culinária portuense.

A autoria desta criação pode não ser tão debatida como a da Ilíada, mas aqui o Homero é Daniel David Silva, um ex-emigrante que pegou na tradição da tosta francesa (ou croque-monsieur), adicionando-lhe molho, e criando uma iguaria que rapidamente ganhou fama. Corria o ano de 1953 e um dos actuais sócios, Augusto Marinho, era então seu ajudante. Hoje, guarda consigo o segredo do molho (que é bem picante), e mantém a tradição de usar carne assada entre fatias de pão de bijou, o que lhe permite dizer que a sua francesinha é "única". Como os juízos de valor são complicados, só podemos garantir que, por ser tão purista, se trata de uma versão diferente. Augusto Marinho ironiza: "Se tivesse registado a patente, agora éramos donos do mundo."

Enquanto a maioria dos amigos já andava na tropa e na guerra, o Arturinho, que ficara adiado para acabar o curso, ia mantendo a tradição de alimentar alguns dos seus hábitos de vida nocturna. Entretanto, acabara por conhecer a vizinha Lenita, a tal especialista em sexo oral, cuja bicha de clientes, por vezes, se estendia pela estreita escadaria de madeira, desde a entrada até à pequena sala de estar do 1º andar. Curiosa a fama desta “artista” que não admitia que lhe tocassem no corpo, o qual escondia até ao pescoço, enquanto, de mangas arregaçadas, exercia os serviços de criteriosa limpeza das mãos, da boca e do instrumento do cliente.

Também frequentava os bares de streap. Foi no Gata Preta que se perdeu um pouco mais. A Joaninha, a jovem menor que conhecera no Lar das Donzelas, actuava ali em grande estilo. De tal forma que ganhava umas boas coroas. Entusiasmada com o seu relacionamento com o Arturinho, pagava todas as despesas. Ela preocupava-se com o seu aspecto e até insistia que ele deveria puxar o cabelo para trás e assapá-lo com fixador e brilhantina. Um dia levou-o a Sta. Catarina, para lhe oferecer um fato ao seu gosto, um fato escuro de listas largas, inspirado nos personagens do filme “O Padrinho”.


Quando chegou o tempo de tropa já o grupo se havia desfeito. Haviam seguido um para cada lado. O Teixeira tinha ido para as Artes Reunidas, o João fez-se Professor, o Jorge entrou na área Comercial de componentes de Escritório, o Manel seguiu Mecânica, o Jotex foi para Delegado de Propaganda Médica, o Carvalho entrou na Petrogal, o Monteiro andava no Instituto de Contabilidade, o Arturinho em Eng. Civil e o Francisco em Eng. Electromecânica. Com o desaparecimento da malta, foi crescendo a curiosidade de se saber por onde andavam.

Quase por instinto, a malta quando estava livre, passava à tarde pelo Café Progresso, na esperança de encontrar alguém que desse notícias dos outros. E foi assim que se soube que seguiram uns poucos para a recruta nas Caldas da Rainha e para a especialidade em Vendas Novas. E que a estes se juntaram outros, vindos de Santarém e Mafra, os quais se foram misturando por Espinho, Gaia e… Guiné. Por vezes juntos, mas com tempos de serviço diferentes. Desta forma, o Café Progresso foi servindo cada vez mais, como ponto de encontro da malta, cujo percurso muito coincidira em importantes momentos da sua vida.

Dessa malta, lembro bem o Egas e o Rio Tinto, em Santarém, o Delfim no GACA 3 e nos Rangers, o Teixeira, em Catió e o Gonçalves em Vendas Novas e Cufar. Eu conhecia o Arturinho pelas suas origens lá da terra, pela sua família e pelas suas regulares e pontuais visitas. Nunca consegui encontrá-lo durante o serviço militar. Porém, mais tarde, vim a contactar bastante com ele, quando era engenheiro na construção da Barragem de Crestuma. Foi nessa altura que também me contou que o Pai Lopes o declarara único herdeiro, pouco antes de falecer. E que a mãe lhe segredara recentemente, que o Pai Lopes era o seu pai verdadeiro.

Passada a fase da Guerra do Ultramar, cada um fez-se à vida, constituiu família, andou por casa do carago e amadureceu. As visitas ao Café Progresso foram rareando e reduzidas aos mais vizinhos. Até que o Teixeira (Portojo), recentemente falecido, e o Jotex se lembraram de “determinar” que, pelo menos uma vez por mês, se efectuasse um Almoço Convívio, para se perpetuarem a camaradagem e as amizades conquistadas. E até lhe deu um nome: “Bando do Café Progresso - das Caldas à Guiné“.

Com a chegada do Facebook, acentuaram-se os contactos e alargaram-se as relações. Actualmente, o Bando agrupa ex-combatentes com percursos guerreiros diferentes mas de sensibilidades coincidentes.

Agora, para além do bom convívio mensal, onde diversificamos o local, o programa e a componente gastronómica, por vários pontos de interesse do norte de Portugal, mantemo-nos diariamente em contacto, o que tem contribuído imenso para uma boa camaradagem entre todos.

Por outro lado, tem sido maravilhoso poder ouvir, reviver e registar histórias que perdurarão e que vincarão o nosso envolvimento na Guerra do Ultramar.

Nota: - Mais tarde, o Arturinho passou a loja de Relojoaria e Jóias e criou uma Casa de Alterne. Porém (estranhamente!) essa sua iniciativa empresarial viria a tornar-se desastrosa, o que o obrigou a dedicar-se definitivamente aos trabalhos de engenharia. 
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17095: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (41): Dimensões guerreiras