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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Não vale a pena determo-nos muito tempo sobre os primeiros meses da governação de Spínola, são bem conhecidas as suas diretivas, as admoestações e castigos a oficiais de superiores removidos para a metrópole, a sua estrondosa exposição no Conselho Superior de Defesa Nacional onde aludiu à probabilidade de um colapso militar, tendo recebido, como contrapartida, alguns milhões para o seu programa Por Uma Guiné Melhor e alguns recursos militares. Os autores dão conta de que a retirada de quartéis na zona Sul e Leste suscitou um novo quadro de atuação para a Zona Aérea, as chamadas ZLIFA conheceram uma substituição praticamente semântica, se bem que continuasse a existir, em poder do PAIGC, sistemas de defesa antiaérea operacionais, particularmente na zona Sul. Aqui se faz um sucinto relato deste período inicial da governação de Spínola.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 4: “A pedra angular”


Muitos autores já se debruçaram sobre o diagnóstico feito por Spínola, passados os três primeiros meses desde que chegara à Guiné em maio, deixou relatórios bem incisivos e dirá mesmo na reunião do Conselho Superior da Defesa Nacional que poderia estar iminente um colapso militar. Não esconde que o PAIGC tomara a iniciativa militar, estava mais motivado, cada vez mais bem armado e que controlava um conjunto impressionante da superfície do território. Terá mesmo provocado um sobressalto nos altos-comandos quando alertou para que tal colapso iria criar “uma onda imparável de apoio aos movimentos de libertação”, suscetível de levar Angola e Moçambique à independência. Ao formular a sua estratégia para evitar tal colapso, o Governador e Comandante-chefe advertiu que a guerra revolucionária que se enfrentava na Guiné tinha que ser totalmente invertida com a conquista das pessoas, não podia haver uma abordagem puramente militar, mas sim “uma solução genuína, clara e decisiva através da revolução social, com programas que concretizassem as justas aspirações do povo”. A peça central deste seu programa foi designada “Por Uma Guiné Melhor”.

O governo de Marcello Caetano abriu os cordões à bolsa, vieram meios para a construção de aldeamentos, mais escolas, postos médicos, estradas e portos. Aumentou o número de matrículas escolares, surgiram empreendimentos infraestruturais, intensificou-se o apoio à agricultura e surgiram os Congressos do Povo, era um compromisso de Spínola para dar à população uma aparência de representação política. Através deste conjunto de programas, Spínola esperava privar o inimigo de razões para mais adesões a apoio a luta armada.

Entrou em marcha a operação dos reordenamentos, Spínola pretendia que estes novos aldeamentos separassem fisicamente a população que aceitava a soberania portuguesa da que apoiava o PAIGC, e assim também se privaria estes insurgentes de fontes de informação, alimentação e de locais de presença temporária. Igualmente foi implementada uma campanha psicológica para que as populações participassem neste conjunto de reformas. Mas não havia ilusões, tais programas não obstavam a que se dinamizasse uma mentalidade ofensiva e para tal o novo comandante-chefe determinou mudanças nas Forças Armadas. A princípio, Spínola norteava-se com uma economia de recursos, dada a improbabilidade de muito mais reforços, provocou mudanças na quadricula, procurando gerar a concentração no dispositivo militar, foram retirados efetivos militares de locais junto das fronteiras com a República da Guiné e na área do corredor de Guileje, bem como no Boé; obviamente que este abandono de posições abriu espaço, tanto no Sul como no Leste a uma maior presença dos grupos insurgentes. Amílcar Cabral fez questão de anunciar que a retirada destas posições portuguesas era o prenúncio para vitórias de decisivas. Mais tarde, Nino Vieira veio vangloriar-se de que podiam avançar muito mais quilómetros sem avistar o inimigo.

Para tirar partido de que estavam em curso grandes mudanças político-militares, Joaquim da Silva Cunha, Ministro do Ultramar, visitou a Guiné durante nove dias em março de 1970, foi uma sucessão de eventos cuidadosamente planeados para se mostrar o andamento do programa Guiné Melhor e também para mostrar ao Governo que havia uma ampla liberdade de movimentos em toda a Província. Com efeito, o ministro visitou diferentes partes do território, apareceu a ser saudado com entusiasmo em todos os lugares. E mesmo quando Silva Cunha foi a Madina do Boé, quartel de onde as forças portuguesas se tinham retirado em fevereiro, o helicanhão sobrevoava a visita meramente propagandística do ministro, como observou o Coronel Kruz Abecassis, o ministro partiu e o PAIGC regressou. A retirada de guarnições periféricas criou desafios e oportunidades para a Zona Aérea, ficou delineado de forma mais clara áreas seguras de áreas contestadas. Com a redistribuição das forças de superfície, Spínola apelou à Força Aérea para compensar os setores mais vulneráveis com apoio de fogo oportuno e expandiram-se áreas reservadas, tanto como zonas exclusivas de intervenção aérea ou de intervenção de artilharia móvel ou de forças aerotransportadas.

Schulz, com a concordância da Zona Aérea estabelecera a chamada Zona de Livre Intervenção da Força Aérea (ZLIFA) e Spínola implementou novos procedimentos, introduzindo o conceito de Zona de Intervenção do Comando-Chefe (ZICC), foram criadas sete ZICC, mais ou menos correspondendo às chamadas regiões “libertadas” do PAIGC ou territórios desocupados recentemente pelas forças terrestres portuguesas e onde agora a Força Aérea poderia atuar por ordem direta do comandante-chefe, sem necessidade de coordenar as suas operações com os comandos locais. As ZICC permitiam à Zona Aérea a agir rapidamente quando surgiam informações que necessitassem respostas imediatas.

Para gerir de forma mais eficiente os meios aéreos que estavam atribuídos à Zona Aérea, Spínola dividiu conceitualmente, os ativos, uns dedicados a apoio direto às unidades (logística, ligação, reconhecimento e apoio de fogo), e outros como componente aérea da manobra do comando-chefe. Spínola atribuía uma grande importância a esta componente dada a precariedade dos percursos terrestres e a sua limitada capacidade de reagir em tempo útil – era a “pedra angular“ da sua estratégica. Spínola enfatizava que o objetivo não era o da aniquilação do inimigo, ele precisava de tempo para alcançar objetivos primários do seu programa socioeconómico e, portanto, a Força Aérea desempenhava um papel crucial de apoio logístico e informações de ataque ou assalto e até de retaliação nas áreas transfronteiriças. Spínola foi confrontado pela retoma da guerra pela supremacia aérea. Em 28 de setembro de 1968, um par de Fiat lançara foguetes para silenciar “armas pesadas não especificadas” que tinha disparado contra eles durante uma missão de reconhecimento armado perto de Guileje. Três meses mais tarde, em 6 de janeiro de 1969, quatro Fiat atingiram uma ZPU-4 de 14,5 mm que estava a apoiar um ataque do PAIGC ao quartel de Gadamael, no extremo norte da Península do Quitafine. Veio-se a saber mais tarde que a arma antiaérea fora destruída e danificadas armas pesadas, todo o pessoal que operava a arma antiaérea morrera, as tropas portuguesas que foram inspecionar o terreno recuperaram a mira ótica da ZPU-4.

Embora se tenham registado incidentes esporádicos noutros lugares da Província, o ambiente antiaéreos mais intenso permanecia no Sul, particularmente no Quitafine. Em finais de 1968, um par de Fiat que patrulhavam esta região avistaram uma ZPU-4 na abandonada aldeia de Cassebeche estava cercada por cinco ou seis armas antiaérea de 12,7 mm. Dadas as dificuldades até então sentidas em destruir armas antiaéreas apenas mediante ataques aéreos, Spínola ordenou um ataque de forças paraquedistas para garantir a eliminação da ameaça após uma série de ataques aéreos. O Comandante-chefe determinou que a operação fosse adiada na esperança que o PAIGC ainda concentrasse mais meios adicionais de defesa aérea na região, o elemento surpresa ficou à espera de uma nova data, sabia-se estar em presença de um inimigo alertado e bem-preparado.

Uma escola primária a funcionar em zona de soberania portuguesa. O programa Por Uma Guiné Melhor privilegiava a educação (Arquivo da Defesa Nacional)
Ministro do Ultramar na sua visita à Guiné em março de 1970, imagem efetuada na região do Gabu (Coleção António de Spínola)
Imagem tirada durante a retirada do aquartelamento de Madina do Boé, em fevereiro de 1969, veem-se em primeiro plano Spínola e a seu lado o Coronel Hélio Felgas, Comandante do Agrupamento de Bafatá (Coleção Álvaro B. Geraldo)
Zonas de intervenção do Comandante-chefe, agosto de 1970 (Matthew M. Hurley)
Poster de propaganda evocativo da viagem de Silva Cunha à Guiné, em março de 1970 (Coleção José Matos)

(continua)
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Notas do editor:

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Último post da série de 19 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25189: Notas de leitura (1668): "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva; Temas e Debates, 2024 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. 

Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:

“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:

“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições:

 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 
2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 
3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 
4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 
5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 
6) Um aparelho de luz elétrica; 
7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 
8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 
9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 
10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:

“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” 

E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:

“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. 

Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:

“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” 

O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: 

"pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25189: Notas de leitura (1668): "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva; Temas e Debates, 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Impõe-se um esclarecimento, antes de mais, este texto que ponho à vossa consideração seguiu igualmente para alguns órgãos da imprensa regional, entendi que tinha aqui pleno cabimento fazer referência, nos mesmissimos termos, de um livro que, estou certo e seguro, durará décadas até que venha uma outra investigação tão potente de um olhar diferente, talvez mais original. Há livros assim, como a biografia política de Salazar, de Filipe Ribeiro Meneses, demorará muito tempo investigar-se mais e melhor, como a biografia de Hitler, da autoria de Ian Kershaw, ou a de Churchill, de Martin Gilbert. Mas quanto a biografias de Amílcar Cabral, cometeria a mais grosseira injustiça não referir outros trabalhos como o livro premiado de Julião Soares Sousa, as biografias de António Tomás, Oscar Oramas, ou as Memórias de Aristides Pereira e Luís Cabral, não esquecendo uma obra de consulta obrigatória de Leopoldo Amado, as entrevistas que fez para o livro de Aristides Pereira intitulado "O Meu Testemunho".

Um abraço do
Mário



Aqui se revela o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral

Mário Beja Santos


Publicado no ano do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, temos finalmente uma biografia escrita por um investigador português que é simultaneamente um livro de história, de política e de direito, em torno de um líder revolucionário africano que criou o PAIGC, que deu voz aos movimentos nacionalistas africanos de língua portuguesa nos areópagos internacionais, admirado pelo seu pensamento original, pelos seus dotes diplomáticos e como estratega militar. O seu nome está associado à construção de duas nações, à renovação do pensamento revolucionário à escala mundial e ao determinante contributo que deu à queda da ditadura e à descolonização portuguesa: "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva, Temas e Debates, 2024.

Devo fazer uma declaração de interesse: o autor honra-me com a sua amizade desde longa data, fui sentindo, pelos anos fora, como esta escrita lhe ia pulsando da investigação, credora de um olhar completamente distinto de outras obras de cariz biográfico.

 Posso afirmar, sem a mínima hesitação, que se trata de uma investigação memorável, tem uma moldura biográfica tão distinta que põe esta obra ao nível dos ensaios biográficos que resistem aos caprichos do tempo. O autor tem um currículo firmado, de grande qualidade científica, que inevitavelmente o catapultou para este exercício que comporta uma conclusão que certamente assombrará muitos leitores: ao delinear um modelo praticamente idêntico numa colónia em guerra fazer uma consulta popular que culminaria numa declaração unilateral de independência, nunca Cabral imaginou que tal processo iria, a breve trecho, escancarar as portas à descolonização portuguesa. Como o próprio autor declara:

“Concluo que a declaração unilateral de independência do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, como ato e prova da soberania e da autodeterminação interna e externa, foi, pelo seu êxito e impacto no fim do colonialismo português e apesar de formalmente posterior ao seu assassinato, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral.”

É um longo itinerário discursivo onde cabem as primeiras reuniões dos movimentos unitários contra o colonialismo português, a reunião de Bissau em setembro de 1959, os primeiros opúsculos e memorandos, como o PAI/PAIGC se foi afirmando à escala internacional, a preparação da luta e os apoios à formação de quadros, os primeiros relacionamentos com a ONU, a consolidação do pensamento ideológico (a constituição da vanguarda, o papel da pequena burguesia e da massa camponesa); a convulsão no Sul da Guiné, a partir do segundo semestre de 1966, a Operação Tridente, o Congresso de Cassacá, o crescimento imparável da guerrilha, os assentamentos em território colonial, o apoio cubano, Schulz, Spínola; a formulação de Cabral de que a luta de libertação nacional é um processo cultural, libertador, um regresso à identidade; as preocupações de Cabral em estabelecer pontes para a organização de um quadro jurídico que levasse à aceitação internacional, uma gestação que preludia a decisão de tomar a iniciativa de fazer uma declaração unilateral de independência; o reconhecimento de Spínola de que não se podia ganhar militarmente a guerra e a proposta de medidas que os órgãos de soberania recusaram; a ofensiva político-diplomática culmina em 1972 com a visita da missão especial da ONU, em Abril, a eleição da Assembleia Nacional Popular, a última tentativa de Spínola de negociar um entendimento, recusa de Marcello Caetano; e chegamos ao assassinato do líder revolucionário e o autor observa: 

“O PAIGC ficou sem cabeça, pois não havia ninguém capaz de o substituir, especialmente na discussão de ideias, na definição de grandes objetivos e na diplomacia. Morto, Cabral deixava pronto o processo de independência da Guiné-Bissau, um programa mínimo conseguido, um programa maior para aplicar e uma unidade orgânica com Cabo Verde por concluir.”

O autor disseca os antecedentes de declarações unilaterais de independência e como Cabral foi preparando uma recetiva atmosfera internacional. Em 1972, obtém apoio soviético para deter uma arma que leve a guerra a um patamar mais elevado – os mísseis terra-ar, que farão destruições a partir de março de 1973, e deixaram as forças portuguesas em polvorosa. 

Numa reunião de chefias em 8 de junho com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, tomou-se a decisão de retrair o dispositivo português, o objetivo era consolidar um reduto que pudesse garantir uma solução política. 

“Em reunião com Costa Gomes e os ministros da Defesa, do Ultramar e da Marinha, Marcello Caetano pôs a hipótese de preparação a retirada progressiva das tropas, para não prolongar um sacrifício inútil, designando um oficial-general para liquidar a nossa presença, ao que Costa Gomes terá retorquido ser possível a defesa militar enquanto não aparecesse a aviação.”

E temos o legado de Cabral: o II Congresso do PAIGC (julho de 1973), a cerimónia no Boé, em 24 de setembro, a proclamação da Constituição, a decisiva resolução 3061 da ONU, de 3 de novembro, a admissão da Organização da Unidade Africana, também em novembro; o acordo de Argel, a 26 de agosto de 1974; as iniciativas para a descolonização e independência de Cabo Verde, e a assunção da nova república; e o caminho para o desastre da unidade Guiné-Cabo Verde, a governação de Cabral, o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a cisão partidária.

“O Estado da Guiné-Bissau nasceu frágil e rapidamente entrou em colapso. Bissau tornou-se uma cidade-Estado e devorou a luta de libertação nacional. A revisão constitucional de 1980, destinada a consolidar a unidade Guiné-Cabo Verde, trouxe o fim do regime. No início da década de 1990, ambas as Repúblicas transitaram para a democracia representativa e pluralista. Em 1998, uma rebelião militar originou uma guerra civil e a Guiné-Bissau derivou para Estado-falhado. Sob a tutela das FARP, o PAIGC manteve-se no poder. Assumira-se sucessivamente como um partido político autónomo, binacional e clandestino, um movimento de libertação nacional, um Partido-Estado, a força dirigente da sociedade, um partido nacional, o partido único e um partido político democrático. Embora com sobreposição destas diferentes naturezas, estatutos e funções, ainda sobrevive; não passa de uma mescla, dotada de uma sigla antiquada, equívoca e desgastada. Em Cabo Verde foi substituído por um partido herdeiro e novo, o PAICV.

Com Amílcar Cabral, seu ideólogo e líder, o PAIGC ficará na história como o movimento de libertação nacional que alcançou a independência associada da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que contribuiu decisivamente para o fim do império colonial português. Política, diplomática e juridicamente, o momento transcendente foi a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral, fundador do PAI primordial e PAI das Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e Cabo Verde, pelas quais deu a vida.”


De leitura obrigatória, documento da maior exigência para a consolidação das relações luso-guineenses, devia ficar nas mãos de todos os investigadores de estudos africanos em Portugal e na Guiné-Bissau, e ser alvo de estudo continuo dos estabelecimentos escolares da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Tenho sérias dúvidas que esta abordagem venha a ser ultrapassada nas próximas décadas.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25176: Notas de leitura (1667): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25176: Notas de leitura (1667): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Os autores procedem a um balanço final dos quatro anos da governação Schulz, chamando a atenção para a preocupação deste comandante-chefe em querer decidir a sorte da guerra de guerrilhas predominantemente pela força, não tendo levado a efeito um programa mais incisivo de captação das populações. Embora sejamos levados a dar-lhes razão (outros autores também apontam esta deficiência no comando estratégico de Schulz), causa uma certa surpresa não ter em consideração o estado de desarrumação demográfico que Schulz encontrou em abril de 1964, não era só a polvorosa no Sul, tudo se desarticulara na região Corubal, no Morés, os corredores de infiltração sentiam-se imunes. Houve que estabelecer ocupação do território, sem dúvida que não houve um plano de reformas como Spínola veio a pôr em prática, Schulz efetivamente teve meios militares mas jamais lhe foi concedido um orçamento generoso para tais reformas. E Spínola desencadeou a sua governação primeiro pela estratégia militar, visando seguramente mais longe, e com meios financeiros muitíssimo generosos.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 3: “Eram eles ou nós”


Em 1968, a guerra na Guiné tinha-se transformado num impasse estratégico. As forças comandadas pelo General Schulz revelavam-se incapazes de tirar a guerrilha do PAIGC dos seus redutos, as forças portuguesas espalhavam-se por destacamentos, quartéis (desde sede de batalhão a aquartelamentos a uma ou duas dezenas de quilómetros), aldeamentos fortificados, o que, obviamente, permitia aos guerrilheiros diferentes formas de gerar instabilidade, quer minando os itinerários, montando emboscadas, ou praticando toda a espécie de flagelações. Somente o poder aéreo na sua multiplicidade de funções evitava formas graves de deterioração do moral das tropas e das populações. A Força Aérea era o fator militar decisivo. Os esforços da Zona Aérea impediam a consolidação dos guerrilheiros e de ganhos territoriais; de acordo com uma avaliação norte-americana, enquanto os portugueses mantivessem o “domínio absoluto do ar”, o PAIGC não conseguiria demover as tropas portuguesas das suas bases ou das principais povoações. Qualquer discussão sobre a independência para a Guiné Portuguesa não passava de um exercício teórico.

O Comandante-chefe Schulz usou esta sua “carta do poder aéreo” com grande efeito, mas a eficácia não podia ser duradoura. E embora uma guerra prolongada pudesse ter agradado aos insurgentes, tornara-se um problema sério para os recursos portugueses. Gil Fernandes, funcionário do PAIGC, resumiu mais tarde a situação nos seguintes termos: “Seguimos uma estratégia destinada a assediar as forças portuguesas e também a fazer esvair a sua economia. Combinámos a pressão militar eficaz na colónia e a pressão económica em Portugal.”

Em termos orçamentais, a estratégia parecia estar a funcionar: em 1968, os custos diretos associados à guerra na Guiné aproximavam-se dos 350 mil dólares norte-americanos por dia ou mais de mil milhões por ano em dólares norte-americanos de 2023. Era um valor que representava 44% do orçamento de Defesa em 1968 – e o orçamento da Defesa representava mais de 1/3 de todos os encargos do Estado naquele ano. No total, os encargos portugueses com a Defesa triplicaram entre 1959 e 1968 para apoiar o contingente militar que duplicou durante o mesmo período, de 79.000 para 182.500 militares. Um outro desafio crescente tinha a ver com o recrutamento. Em 1961, a incidência da fuga ao recrutamento em Portugal era de 12%; em 1967, ultrapassou os 19%.

A explicação para esta evasão pode ser dada por uma combinação entre a onda migratória e uma certa oposição por razões ideológicas. A deserção entre militares aumentou para 1402 em 1967, no ano seguinte o número praticamente manteve-se. As candidaturas e adesões à Academia Militar iam diminuindo. Em 1968, apenas 149 candidatos “concorreram” para preencher 430 vagas e apenas 58 foram admitidos; em comparação, quase 90% das vagas na Academia, de 1960 a 1963, tiveram preenchimento.

Apesar de todas estas restrições, Schulz conseguiu um impressionante aumento das forças portuguesas na Guiné. O número de militares enviados para a província aumentou 50% durante o seu mandato, de 15 mil para mais de 22 mil, enquanto o acervo de aeronaves da Zona Aérea aumentou mais de 1/3. O defeito que se pode atribuir à estratégia de Schulz era a sua confiança numa solução militar para o problema da Guiné Portuguesa. Schulz pode ser visto como “um general clássico de Clausewitz” (Schulz era um oficial do Estado-Maior); como ele mais tarde confessou, caiu na clássica armadilha de tentar derrotar uma insurgência acima de tudo através da força. Embora ele entendesse muitos dos aspetos militares da contraguerrilha, preferia o poder de fogo à persuasão, um pouco à semelhança do comportamento do general norte-americano William Westmoreland no Vietname. Como observou Manuel “Manecas” dos Santos, comandante do PAIGC, “Schulz não conduziu uma guerra de guerrilha moderna, não trabalhou com a população. Pelo contrário, o trabalho que empreendeu baseou-se na repressão e esta aumentou a resistência, tornando-se quase objetivamente um nosso aliado.”

Frustrado com os seus objetivos iniciais, Schulz recorreu a uma abordagem predominantemente estratégica defensiva estática, pontuada por episódicas ofensivas, principalmente de domínio aéreo. A sua estratégia ficou cada vez mais dependente dos meios aéreos disponíveis, e em meados de 1968, os aviões e as unidades helitransportadas constituíam a maior da capacidade ofensiva das forças portuguesas na Guiné. Revelou-se insuficiente, apesar do número crescente de missões realizadas, das bombas lançadas e dos alvos destruídos, a influência do PAIGC não abrandou, espalhou-se por toda a Guiné. Schulz admitiu mais tarde que este tipo de ações não se enquadrava com o que ele pretendia.

A situação exigia um comandante que pudesse recuperar a iniciativa e que encontrasse uma saída satisfatória para o “atoleiro” da Guiné. O escolhido por Salazar, António de Spínola, alterou não só o curso de guerra, mas também o destino político do Estado português e o destino do seu Império.


Capítulo 4: “A pedra angular”

“A Força Aérea, devido ao seu elevado potencial de fogo e potencial de reação rápida, é efetivamente a pedra angular da atividade operacional no teatro de operações da Guiné.” – Spínola, 10 de dezembro de 1968

O Brigadeiro António de Spínola assumiu as suas funções de Governador e Comandante-chefe em 20 de maio de 1968, trazendo consigo uma reputação de dinamismo, imaginação e determinação. O novo comandante era uma figura extravagante com um certo “modo fanfarrão”, ostentando monóculo e trazendo sempre um chicote nas suas frequentes visitas (não anunciadas) por toda a Guiné, algumas vezes dentro das alegadas zonas libertadas do PAIGC.

Austero, renunciando ao conforto pessoal e até mesmo ao ar condicionado, um jornalista estrangeiro descreveu que entrou no seu gabinete de trabalho vindo da antessala climatizada “como se tivesse entrado num ambiente de forno morno”. Intempestivo e caustico até com os seus colaboradores, era direto no confronto com os seus próprios superiores, e no campo de batalha deixou projetada deliberadamente uma aura de bravura, muitas vezes aparecendo desarmado à frente das tropas para pasmo dos soldados da linha da frente. Spínola já contava com quatro décadas de experiência militar na Arma de Cavalaria quando chegou a Bissau. No final da década de 1930, então tenente, teve a sua primeira exposição no combate enquanto organizava ajuda às forças franquistas durante a Guerra Civil espanhola. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou numa missão de observação na Alemanha de Hitler, que incluiu visitas às posições da linha da frente em Leningrado. De 1961 a 1964, comandou um Batalhão de Cavalaria em Angola, foi elogiado pela sua bravura e eficácia, conquistou a admiração nos meios militares e chamou à atenção de Salazar. Agora, Spínola defendia uma abordagem inteiramente nova, adequada ao dilema político-militar suscitado pela luta de libertação. Como Spínola procurou explicar a Salazar antes de aceitar o posto para o qual estava a ser convidado, a única forma de evitar a expulsão da Guiné era através de uma campanha de desenvolvimento económico, de reforma política e “revolução social”. Só assim se poderia reforçar a confiança daquela população, preparando-a ao mesmo tempo “para assumirem as suas responsabilidades na administração local em pé de igualdade com a metrópole.”
Spínola numa das suas deslocações diárias (United Press Europix)
Quando Spínola chegou à Guiné, em 1968, a iniciativa militar estava francamente do lado da guerrilha (s. (Reg Lancaster/Express Hulton Archive/Getty Images)
Spínola lançou um programa socioeconómico por reformas (a Guiné melhor), era o seu objetivo ganhar confiança das populações descrentes ou pouco crentes na soberania portuguesa (Coleção António de Spínola)

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 12 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25163: Notas de leitura (1666): "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões; Empresa Nacional de Publicidade, 1966 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois de percorrer longamente a região Sul, o tenente da Armada Real identificou a nova porção de território da Guiné portuguesa, a península de Cacine, voltou a Bolama, aproveitou para fazer inventário, seguiu para o Casamansa, região que descreve primorosamente, mesmo recorrendo a documentação do colega francês, naquela data é hasteada a bandeira francesa, Portugal perde qualquer influência na região do Casamansa. Mas o tenente Costa Oliveira não se irá despedir de qualquer maneira, refere a importância de Bolor, está em ruínas, fará imensas considerações sobre o modo de desenvolver a Guiné, escreve com elegância, revela-se um observador atentíssimo. Pena é que este registo histórico não seja alvo de revisitação, que um estudioso procedesse a comentários à luz da atualidade, o mínimo que se pode dizer de tão precioso relatório é que ele faz parte do bilhete de identidade tanto da Guiné portuguesa como da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: Viagem à Guiné Portugueza, por Costa Oliveira (6)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesa da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

É um relato quase em forma de diário, percorre-se toda esta zona do Sul, no fundo a comissão francesa faz a entrega histórica à comissão portuguesa da região de Cacine e percorrem-se territórios da fronteira do lado ocidental. Regressa-se a Bolama e o relato agora é sobre o Casamansa, é a vez da comissão francesa ir tomar formalmente conta da região. Costa Oliveira cita o seu colega francês M. Brosselard, ele começa por enaltecer a importância de Ziguinchor, e temos depois comentários da descida do rio Casamansa e Zinguichor, aqui se deixa o registo dado o seu inegável interesse:

“Acima de Sedhiou (Selho, em português) pode subir-se a algumas milhas além de Dianah. Deste porto às origens a distância não pode ser vencida senão por canoas ou pirogas de fundo chato. De Adeane a Dianah as duas margens são revestidas de uma luxuriante vegetação e árvores gigantescas, principalmente em Yatacounda, onde as únicas clareiras que se encontram são ocupadas pelas aldeias. A enchente vai até Selho e facilita a navegação de cúteres e goletas da ilha de Gorée. Um vapor vai em doze horas da embocadura do rio a Selho, as embarcações de vela gastam três dias.”

A missão francesa voltou a 24 de abril no aviso Goëland a Ziguinchor e tomou posse da aldeia portuguesa que tinha sido evacuada alguns dias antes. O pavilhão francês foi arvorado no dia seguinte de manhã na presença dos principais habitantes e saudado com 21 tiros de peça regulamentares. Mas voltemos às observações do tenente da Armada Real.

Em Ziguinchor as habitações confortáveis são raras, o mais que se pode encontrar são três ou quatro casas de negociantes construídas à europeia, as outras habitações são cubatas bastante elevadas. A ocupação de Ziguinchor regula a questão da posse do Casamansa, que se tornou de facto num rio francês. Antes de tomar posse da aldeia portuguesa, os vapores vindos da Europa descarregavam em Gorée, onde recebia os produtos do Casamansa. Doravante, estes vapores virão diretamente às pontes de Ziguinchor, esta é uma pequena colónia que parece ser destinada a capital do distrito de Casamansa; Selho conservará a sua importância militar e Carabane será o posto aduaneiro do rio. Costa Oliveira continua a invocar dados de M. Brosselard e há aqui uma observação bastante curiosa:

“A população muitas vezes mostrou a respeito do seu governador uma antipatia que se traduzia por atos de revolta. Entretanto, os portugueses manifestavam grande tolerância, haviam mesmo deixado subsistir costumes e usos pouco admissíveis sob a proteção da bandeiro de uma nação civilizada; também um dos meus primeiros atos foi suprimi-los.”

Voltemos agora ao discurso direito do Costa Oliveira, ele também se deu ao trabalho de se pronunciar sobre o Casamansa:

“A barra do Casamansa é desabrigada, cheia de escolhos, de difícil acesso a todas as embarcações, particularmente às da vela. É por isso que toda a navegação de cabotagem é feita pelos rios Cajinolle e Elinkin, e principalmente por este, mais profundo e largo do que aquele. É também por este rio, o Elinkin, que facilmente se consegue introduzir contrabando na Guiné portuguesa, como vamos explicar. Nenhum português, desconhecido daquelas tribos, se atreve a desembarcar em Bolor, e com maior razão as autoridades aduaneiras, militares ou civis. Sendo assim, como é, qualquer negociante, de Cacheu, por exemplo, pode estabelecer os seus depósitos ou armazéns, na certeza de que o fisco não o irá perturbar com as suas exigências legais! Estabelecidos os depósitos longe da ação fiscal, o resto é simples e pertence às canoas que de noite, ocultas pelas sombras dos mangais, vão rio acima descarregar os artigos que pretendem furtar aos direitos, nas pequenas sucursais espalhadas pelas margens dos rios e esteiros.”

Ocupada Ziguinchor, reunidas as comissões, e depois de longos debates, assina-se finalmente o processo verbal, Costa Oliveira regressa a Bolama e fica à espera de um paquete que o conduza a Lisboa. É neste compasso de espera que ele vai omitir opiniões e apresenta propostas, é talvez um dos pontos altos em que se revela o seu poder descritivo:

“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangais que tapam as margens, sotopostas às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo aonde prendem. A perspetiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.

É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba, do Corubal, o Grande de Bolola, o Tomboli (certamente o rio Tombali), o Cubac (?), o Combilham (Cumbijã) e o Cassini (Cacine).

Na embocadura do rio S. Domingos, em Chão de Felupes e no extremo de uma extensa praia de areia que para ali se estende desde a aldeia Jefunco, veem-se ainda hoje as ruínas do presídio de Bolor, que era formado por dois meios redutos horizontais e céspede e fachina sobre estacaria… miseravelmente tem caído em ruína pelo completo abandono em que tem estado aquele ponto, e, contudo, não merece tal desprezo: de toda a nossa Guiné é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às virações frescas do mar; pela sua situação já indicada é ali que deveria estar a alfândega de Cacheu e talvez a força, como queria Gonçalo de Gamboa; embora ficasse Cacheu como está, uma feitoria fortificada, os habitantes aqui viveriam em perfeito sossego e livres dos contínuos rebates a que em Cacheu estão sujeitos, nada tendo a recear do gentio Felupe, que adora os brancos; além do muito arroz que se faz anualmente neste chão e de que se sustenta a praça de Cacheu (a qual morreria de fome se lhe faltasse o arroz de Bolor), concorre a este ponto todo o trato de cera e couros da grande região dos Felupes, e o da mata de Putama, o comércio de Ziguinchor por aqui passa forçosamente para ir a Cacheu e também é aqui a escala entre Bissau e Cacheu.”


O relato do tenente da Armada Real vai agora prosseguir com uma descrição muito rápida das lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, seguir-se-ão ainda mais observações e, por fim, as conclusões, está praticamente no seu termo o relato admirável de alguém que foi assistir à chegada de uma porção de território, a região de Cacine, e ao fim da presença portuguesa no Casamansa.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25163: Notas de leitura (1666): "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões; Empresa Nacional de Publicidade, 1966 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Já aqui estavam referenciados alguns apóstolos da hagiografia jornalística, caso de José Manuel Pintasilgo, Horácio Caio, Dutra Faria, Amândio César. Inesperadamente, surgiu-me este trabalho de Martinho Simões, era inevitável que o trouxesse ao vosso conhecimento. Andou muito de quartel em quartel, graças à DO. Nunca se fala em bombardeamentos, nos nossos mortos e feridos, não há descrição de um aquartelamento, as conversas ficam circunscritas aos oficiais, dá como inteiramente fidedignos os comentários de quem lhe faz os briefings; não há quartéis do PAIGC dentro do território, são sempre bandoleiros que batem e fogem para o Senegal ou República da Guiné; Amílcar Cabral é um fantoche do comunismo, um traidor e um renegado, tem sofrido tanta deceção e repúdio das populações que é cada vez mais difícil recrutar gente para o terrorismo. É mais uma relíquia para juntar às outras. E a sua proposta para a existência de correspondentes de guerra não foi levada a sério.

Um abraço do
Mário



Martinho Simões, enviado especial do DN na Guiné, 1965

Mário Beja Santos

Sob a forma de livro, com o título "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões, Empresa Nacional de Publicidade, 1966, temos agora acesso às reportagens do enviado especial do DN a Moçambique, Angola e Guiné, em 1965, todas elas publicadas no jornal Diário da Avenida da Liberdade.

 Naturalmente que é uma obra apologética, combatemos terroristas, bandidos que têm bases perto das fronteiras das nossas colónias, felizmente que eles têm pouquíssimo apoio das populações que preferem a soberania portuguesa. Desconhecia inteiramente esta obra, faz todo o sentido aqui se deixar do seu conteúdo as ideias principais. Tinham dito a Martinho Simões (e ele reconhece que não passava de boato malévolo) que as populações guineenses viviam apavoradas; que os nossos soldados não se atreviam a sair dos quartéis; que os terroristas se não eram os senhores da guerra, tomavam, contudo, iniciativas que traziam a marca da confiança que nasce da superioridade; e que uma parte da província caíra em poder do inimigo. Ora a verdade desfaz o boato e a verdade disseram-lhe oficiais com quem contatou logo à chegada, mesmo o general Arnaldo Schultz. Não teve quaisquer restrições no seu trabalho, e apresenta o leitor a Guiné, a superfície, as etnias, a quase total lealdade a Portugal. Seja como for, a luta era dura e cruel, estes comunistas às ordens de Moscovo procuravam metodicamente a subversão.

Alude à História da Guiné, não deixa de se assombrar com a mistura de povos, refere o portuguesismo dos comerciantes da Guiné depois de nos dizer que os nativos eram os donos de todo o território da Guiné. Não sei onde é que ele foi buscar a convicção de que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, em 1920 já António da Silva Gouveia tinha empresa; e refere as obras sociais de grande significado de Barbosas & Comandita, da Casa Gouveia e da Sociedade Comercial Ultramarina; Martinho Simões esteve no Ilhéu do Rei e pôde apreciar o centro industrial da Casa Gouveia. Tece louvores ao trabalho do Movimento Nacional Feminino na Guiné, à sua importante atividade de assistência à família, lembranças aos militares, o seu serviço de contencioso, a sua intensa atividade em apoio das subvenções e pensões.

Vai de DO até perto da fronteira, nunca ficaremos a saber qual e onde; acompanhado pelo Tenente-coronel Rebelo de Andrade percorreu toda a linha da fronteira, desde a ponta Norte ao extremo Sul – o Cantanhez e a ilha do Como incluídos. 

“Posso acrescentar que passei algumas horas num posto, a meia dúzia de metros de terras da República da Guiné. Ao longe, os pobres palhaços de Amílcar Cabral (não resisto a nomear, desde já, o traidor) mantêm uma expetativa ansiosa, hesitantes entre as ordens dos seus chefes e o amor à pele que, mau grado e promessas discursatas, constituem um bem que lhes custa perder.” 

E avalia o potencial inimigo: 

“Os bandoleiros são cobardes. Vêm pela calada da noite, lançam os engenhos de morte que os comunistas lhes oferecem em abundância e fogem para os seus acampamentos centralizados nos países vizinhos”.

Visita o Comando da Defesa Marítima da Guiné, visita pela mão do Comodoro Ferrer Caeiro, reunião elucidativa, ouviu relatórios e explicações, viu mapas, examinou provas concretas e fez perguntas, recebeu respostas objetivas. E visitou as oficinas navais, em franco desenvolvimento. Esteve na base aérea, pôde avaliar o trabalho extraordinário na recolha de feridos, no transporte e ligação de militares e civis, em reconhecimentos e em missões táticas. Estranhamente, nem uma palavra sobre os bombardeamentos. Visitou o Batalhão da Intendência na Fortaleza de São José da Amura, viu o seu trabalho ciclópico para que os alimentos e iguarias chegassem a todos os pontos da Guiné para os festejos do Natal. Ficou surpreendido com o funcionamento do hospital militar, dá conta das camas, das consultas, das intervenções cirúrgicas. Apreciou o programa radiofónico das Forças Armadas, emocionou-se a valer quando viu um artigo do dr. Augusto de Castro, então diretor do DN, lido aos microfones da emissora provincial, em português, em crioulo e fula. Encontrou-se em Bula com o Tenente-coronel Henrique Calado, glória do hipismo nacional.

E veio a história do chefe dos bandoleiros da Guiné, o traidor e ingrato Amílcar Lopes Cabral, conhecido na subversão como Abel Djassi. Quanto lhe pagará o movimento comunista. Faz uma curta digressão sobre a FLING e a UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa) e como o traidor se sobrepôs a todos. Pior do que tudo, Abel Djassi naturalizara-se cidadão da República da Guiné e trabalhara para o Ministério da Agricultura local. Como castigo, o renegado, agora, só dificilmente podia fazer o recompletamento dos seus grupos desfalcados, fez-se amigo dos vietcongs, visita Havana. E ficamos a saber que em Paris há um outro libertador, Fradique Castro, que promete a independência de Cabo Verde e condena o PAIGC. De novo em avião, segue para Cabedu, dá como inteiramente demonstrado que este posto, situado entre o Cantanhez e a Ilha de Como, rechaça as investidas dos bandoleiros. 

“Estive em Cabedu e em Beli. Nos dois postos, os militares não se confinam aos estreitos limites dos quartéis, não se escondem atrás do arame farpado, não vivem amedrontados. De Cabedu e de Beli as patrulhas continuam a sair regularmente, batendo os caminhos e os campos limítrofes, restabelecendo a ordem que a subversão perdurou. O inimigo só de longe em longe aparece, em rápidas e cobardes incursões, para logo regressar às bases de onde veio – na República da Guiné.”

Visita Bolama, sente que a cidade perdeu animação e fulgor. Increpa-se contra o que ele chama o terrorismo branco – os derrotistas, os fabricantes de mentiras, aqueles que, no doce viver da paz, se esquecem dos que estão em guerra, os que entendem ser preferível a renúncia à defesa do património nacional. Lança críticas também ao jornalismo, não percebeu o silêncio da imprensa moçambicana com a guerra feroz que se trava no Norte. Mostra-se favorável ao aparecimento de correspondentes de guerra. 

“Só eles sabem e podem desenvolver e esclarecer as indicações forçosamente sintéticas dos comunicados oficiais, que, aliás, também não são em número suficiente.” 

Agradece a colaboração recebida nas três frentes. E comenta: 

“Apercebi-me do autêntico significado de terrorismo, das implicações de uma luta de guerrilhas, em que o inimigo se dilui e foge ao contato com as forças da ordem, em que os bandidos recusam, sistematicamente, o combate em campo aberto, contentando-se com surtidas eventuais.
Torna-se inevitável, portanto, uma tenaz perseguição, que lhes crie o desassossego, que os desmoralize, que lhes roube a possibilidade de qualquer iniciativa. É uma guerra sem quartel, fluida, por isso mesmo mais demorada e difícil.”

Jornalista Martinho Simões, imagens dos arquivos da RTP
Em Pequim, a preparação do primeiro grupo de revolucionários, vemos de pé, entre outros, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira e Francisco Mendes e de joelhos Nino Vieira, Saturnino da Costa e Rui Djassi
O centro de Bissau em 1966
General Arnaldo Schulz a dirigir a mensagem de Natal de 1966, arquivos da RTP
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Resume-se neste texto a atividade desenvolvida pela Força Aérea praticamente durante o primeiro semestre de 1968, correspondente ao término da governação de Schulz. Deixa-se esclarecido como houve uma escalada de poder de fogo e de operações especiais na transição de 1967 para 1968. A estratégia do PAIGC, delineada por Amílcar Cabral, visando contraria este vendaval de fogo teve duas dimensões: por um lado assistiu-se à reorganização do Exército Popular, que veio a ganhar mobilidade devido à decisão tomada em substituir os lugares das bases e acampamentos, tornando-os mais flexíveis, haveria menos danos face aos bombardeamentos aéreos; por outro lado, chegaram novas armas, entre elas o morteiro 120, como observam os autores o armamento do PAIGC era de longe superior ao das forças portuguesas, em termos de forças terrestres, e deu-se neste período uma intensificação de flagelações por toda a Guiné. Com a chegada do governador Spínola, bastantes coisas irão mudar, à busca por uma supremacia e com base numa estratégia de reorganização dos aldeamentos.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 3: “Eram eles ou nós”


Dando continuidade ao relato das atividades da Força Aérea em 1968, ainda correspondentes à governação de Schulz, recorda-se que os Fiat da Esquadra 121 continuavam em operações contra os sistemas de defesa antiaéreo do PAIGC e os Alouette III da Esquadra 122 intensificavam as operações de assalto aéreo. Os registos da Zona Aérea revelam mais 27 operações de assalto helitransportado de janeiro a junho de 1968, maioritariamente na zona Sul. Duas delas, a Operação Ciclone I (Quitafine, 10 de janeiro) e a Operação Tufão (centro de Como, 20 de março) foram as maiores operações de assalto helitransportadas na Guiné até então, cada uma delas envolvendo cerca de 200 paraquedistas em oito ondas de cinco Alouette III, com o habitual apoio de Fiat, T-6, helicanhão e DO-27 PCV. Os DO-27 sofreram danos causados por fogo antiaéreo durante as duas operações, bem como um Alouette III armado com canhão apoiava a Operação Tufão, o que evidenciava a ameaça do sistema de defesa antiaéreo no Sul da Guiné. Schulz e os seus comandantes da Força Aérea mostravam-se dispostos em enfrentar aqueles riscos, hipotecando mais aeronaves e pessoal nestas operações. Em comparação com as operações de 1967, o assalto médio de helicóptero que se realizou durante a primeira metade de 1968 foi cerca de um terço mais em termo de missões realizadas e tropas transportadas.

Em janeiro de 1968, a Zona Aérea também lançou uma série de ataques pré-programados contra infraestruturas a redes de apoio do PAIGC. A Operação Fogachol atingiu a aldeia de Quitafine no dia 8 de janeiro, e no dia seguinte foi atingida a área de Tafor-Canefaque. Em cada um destes ataques sete Fiat lançaram napalm (embalagens de 350 litros) e as estruturas visadas em ambas as operações ficaram praticamente destruídas. Na região central da Guiné, os T-6 levaram a cabo a Operação Dá-lhe Agora, uma série de ataques de três dias contra supostos centros rebeldes localizados em Dambol, Banir e Cauali. De 21 a 23 de janeiro, os T-6 realizaram 12 missões, estreitamente coordenadas com a atividade dos Fiat, nas regiões do Oio e Bafatá.

As aeronaves regressaram ao Como em 4 de fevereiro de 1968 para a Operação Crepúsculo, um ataque contra três acampamentos do PAIGC na zona do Caiar. Quatro Fiat e três T-6 lançaram cerca de três toneladas de bombas sobre os seus alvos, de que resultaram grandes explosões, produzindo rolos de fumo preto e fogo interesso sobre o arvoredo. Observaram-se detonações secundárias, o que levou a admitir a possibilidade de que o ataque tinha destruído com sucesso um depósito de armazenamento de munições. A Operação Crepúsculo seria a última operação independente do Grupo Operacional 1201, uma operação de ataque pré-programada no ciclo de operações até novembro de 1968, pontuando um período de intensa atividade da Zona Aérea, durante uma fase dinâmica e incerta da guerra. A adição do Fiat e do helicanhão, juntamente com quase duplicação das horas de voo do T-6, estimulou o crescimento explosivo no número de ataques aéreos, que aumentaram nove vezes entre 1965 e 1966, e cresceram mais de 60% no ano seguinte. Segundo fontes do PAIGC, só na península do Quitafine registaram-se cerca de 2 mil ataques aéreos durante 1967, que quase paralisaram o PAIGC na região. Notícias publicadas na imprensa estrangeira davam conta que a ofensiva aérea levava os habitantes de aldeias dominadas pelos insurgentes a fugirem tanto para o Senegal como para a República da Guiné, aldeões que abandoavam as suas colheitas, o que forçava os militantes a caçar e procuras plantas comestíveis para não terem fome. Facto ainda mais preocupante, alguns membros do PAIGC começaram a questionar abertamente a estratégia seguida pelo partido, enquanto quadros mais empenhados tinham de persuadir os aldeões mais aterrorizados a permanecerem nas chamadas zonas libertadas, apesar do risco do continuo bombardeamento aéreo.

A ofensiva aérea exigiu grandes mudanças na organização e nas operações do PAIGC. Como as suas áreas de base semipermanentes, acampamentos e instalações de apoio na Guiné figuravam com destaque a lista de alvos da Zona Aérea, desde o início da guerra, Amílcar Cabral e os seus comandantes, entre 1967 e 1968, mandaram proceder ao seu desmantelamento, reduzindo as bases, dividindo-as e, nalguns casos, ordenando a sua eliminação, como lembrou Cabral mais tarde. O líder do PAIGC também sentia que a vida sedentária neste tipo de bases era suscetível de reduzir a capacidade ofensiva dos combatentes, pelo que delineou uma abordagem que produzisse a uma vida mais nómada. Esta abordagem de maior movimentação acabou por tornar mais rápida a concentração de forças rebeldes, a articulação do PAIGC ia-se aperfeiçoando e o seu armamento melhorava. Em termos de manobra, a norma de formações era o bi-grupo complementada por forças especiais ou então reforçadas por bi-grupos que operavam em cada uma das Frentes ou Inter-Regiões do PAIGC; os bi-grupos mais robustos operavam como “forças de intervenção” em operações maiores. Quanto à melhoria do armamento, entrou em ação o RPG-7, a espingarda sem recuo T-21 Tarasnice de 82 mm, que houve pela primeira vez em junho de 1968; e chegaram também os morteiros de 120 mm, ficaram operacionais na segunda metade de 1968.

O PAIGC dirigiu estas novas aquisições para equipas especiais de artilharia e meios antiaéreos, que podiam ser utilizados em missões para apoiar operações maiores. Com a chegada deste armamento, o Exército Popular passou a funcionar como um exército semimóvel altamente flexível dentro da Guiné, apoiado por cerca de 30 campos ou bases localizados no Senegal e na República da Guiné. Estes santuários seguros e a “mobilidade permanente” do Exército Popular levou a 120 ataques em toda a Guiné durante os primeiros cinco meses de 1968, incluindo uma sucessão de flagelações durante as quais as unidades de guerrilha revelaram como tinha melhorado a iniciativa, o poder de fogo e a tática, um ataque do PAIGC contra Bissássema de Cima, a apenas 20 km de Bissau, envolveu cerca de 200 militantes armados com morteiros, granadas lançadas por foguetes e canhões sem recuo, rivalizando com intensidade de fogo e com o maior helicóptero português usados nas operações de assalto.

A escalada da guerrilha não impediu que o presidente Américo Thomaz tivesse passado seis dias na Guiné, a visita decorreu sem incidentes, foi recebido com entusiasmo em locais cuidadosamente selecionados, em Lisboa fez-se propagando pelo facto. Para o PAIGC, o evento foi apresentado como um dos maiores fracassos registados na história colonial portuguesa, denunciando que Thomaz e a sua considerável comitiva de segurança apenas tinham visitado alguns lugares na pequena parte do território ainda ocupado provisoriamente pelas tropas colonialistas. O repúdio da visita presidencial do PAIGC refletia perceções mais amplas, Schulz tinha pedido a demissão de Governador e Comandante-chefe, e o PAIGC dava como seguro que as forças portuguesas tinham perdido a capacidade de intervir, a iniciativa estava do lado da guerrilha.
Armamento e reorganização dos bi-grupos do PAIGC entre 1967 e 1968
Visita do presidente Américo Thomaz à Guiné em 1968 (Coleção Virgílio Teixeira)
Guerrilheiros do PAIGC com uma arma antiaérea ZPU-4 de 14,5 mm, de origem soviética (Arquivo Amílcar Cabral/Fundação Mário Soares)
Entrada da Base Aérea nº 12, em Bissalanca

(continua)

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Notas do editor:

Vd. posts anteriores de:

2 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)

26 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25112: Notas de leitura (1661): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9) (Mário Beja Santos)

19 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25088: Notas de leitura (1659): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (8) (Mário Beja Santos)

12 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25061: Notas de leitura (1657): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (7) (Mário Beja Santos)

5 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)

29 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25012: Notas de leitura (1653): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (5) (Mário Beja Santos)

22 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24987: Notas de leitura (1651): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (4) (Mário Beja Santos)

15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

8 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24931: Notas de leitura (1647): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (2) (Mário Beja Santos)

1 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24905: Notas de leitura (1640): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25138: Notas de leitura (1664): "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014 (Mário Beja Santos)