Mostrar mensagens com a etiqueta João de Melo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João de Melo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Nome sonante da nossa república das letras, várias vezes premiado, professor, antigo conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Madrid, João de Melo registou neste livro duríssimo, em que se põe inequivocamente o lado do movimento de libertação, a vida da sua companhia em Calambata.
A todos os títulos, um romance poderoso, devorador e demolidor. Nunca me fora dado ler literatura portuguesa anticolonial em que o colono, o PIDE, o militarão, são postos de rastos, são imagens deformadas da barbárie, são desumanos, daí o ódio que ressuma nas sanzalas de Calambata.
Incontornável obra de ficção, há para ali imagens de dor que ultrapassam tudo quanto se sabe e ouviu sobre o sofrimento do combatente e dos inocentes civis.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (1)

Beja Santos

Cada um dos teatros da guerra que travámos em África gerou alguma literatura de primeiríssima água, obras incandescentes, que irão perdurar, possuem um valor intrínseco seja pelo engenho da construção, a carpintaria dos personagens e figurantes, o talento inequívoco da composição, roçando a obra-prima. Será o caso de “Nó cego”, de Carlos Vale Ferraz, “Olhos de Caçador”, de António Brito, quanto a Moçambique; “Estranha noiva de guerra”, de Armor Pires Mota, “Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia. Passando para Angola, considero que podemos por na primeira fila um romance duríssimo, excessivo, um terrível libelo acusatório, que permanece incómodo: “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo, com várias edições.

Passa-se em Calambata, não muito longe de S. Salvador. O território está muito confinado à vida daquela companhia. O leitor é prontamente agarrado pela linguagem poética que em nada contrasta ou desvaloriza o registo por vezes brutal das pessoas e dos lugares. Acresce uma inovação, João de Melo reconstitui os falares africanos, um português mascavado, que resulta quase sempre melodioso. Há descrições cruéis dos colonos, dos polícias, dos militares, eles são tratados impiedosamente e muitas vezes revelam-se ímpios. É um romance que se saboreia e relê, deixa-nos incrédulos, tal a dimensão dos excessos, tal a vastidão dos requisitórios ao colonialismo angolano. João de Melo foi furriel enfermeiro o que permite fazer supor que o furriel enfermeiro de Calambata é decalcado nos seus ideais políticos e da sua postura cívica. É um livro cheio de solidão, os cheiros angolanos inebriam, há feitiçaria, há minas e emboscadas, há até mesmo atitudes comuns que se agigantam e a literatura com elas. Logo no capítulo primeiro, aquela sentinela confusa que escuta passos para lá do arame-farpado, é um corpo indefinido, a sombra de um vulto, a sentinela angustia-se, entramos diretamente no seu estado de alma, até passamos a combatentes, aquilo é assunto estritamente nosso:
“Através da mira da arma, é uma silhueta sem espessura que se enrola sobre si, tropeça, segura-se à escuridão para não cair e depois salta para diante. Se era anjo, depenara-se: perdera as penas, a cauda, sobretudo as asas. Agora, lembra apenas um gafanhoto agachado, imóvel, com as patas tensas, postas em argo.
O soldado soube então que o pânico começaria a castigar-lhe as tripas. Pensou que levaria o dedo ao gatilho da arma pronta disparar. Assestara uma metralhadora do alto de um posto de sentinela, sobre essa coisa difusa – homem, anjo ou bicho – seria sempre um ato muito superior à sua vontade. Decide esperar. Brando, o grito escorre para dentro. O pior eram as mãos trémulas. Quem vem lá? Corriam perdidas, ao longo da arma suadas do visco de resina que se despegava do metal e lhe inundava de gordura os dedos inchados pelo frio.
A arma desfechou-lhe um coise no ombro. O soldado observou que o capim, os bidões de combustível para o gerador de luz, os ninhos de morteiro, a picada Pemba e a tonga do café estavam sendo bombardeados pelos ovos de fogo da sua arma”.

Os estrondos levam todos os outros a posicionarem-se nas valas, cedo se verificará que é fogo inútil, no escuro da mata não vem resposta. Surge o capitão Marinho, é logo desenhado para magoar, a caricatura é corrosiva:
“De cabelos esgrouviados, aos saculões dentro do pijama excessivamente curto, ele coçava os testículos e o nariz. Alguém devia tê-lo despido também dos seus galões azuis, despido até à nudez ridícula. A sua voz, espremida e medrosa, penetrou numa curta brecha do tiroteio e despediu uma frase sem glória: - Ei, rapazinhos dos meus tomates! Armas para o ar rapazinhos!”.

Segue-se o diálogo com a sentinela, capitão Marinho destila desprezo. A custo, o fogo cessou. Há razões para todos andarem inquietos. Depois das flagelações aos quartéis da Mama Rosa e do Luvo, todo o Norte esperava a sua vez, a guerrilha movia-se, atacara os postos fronteiriços, semeara minas por toda a região da Canda, encurralara os açorianos nas margens do Lufiko.

O segundo capítulo é arrepiante, o chefe da polícia branco, sô Valentim chicoteia o Romeu. A mulher grita, pede socorro, tudo começara quando Romeu dera dois pontapés no cão do chefe da polícia que o xingava, o chicote de rabo curtido de pacaça vai esquartejando Romeu. Natália vai chamar o soba Mussunda, é ele quem tem poderes na sanzala de Calambata. Mas Mussunda não pode intervir, os poderes estão bem limitados. As súplicas são tão existentes que Mussunda resolve enfrentar sô Valentim. A descrição é medonha:
“- Ah, tu vens acudir ao teu protegido, pedaço de cão de soba? Espera aí, que te dou eu a proteção, filho de um grande boi sem tesão!
E logo aí eu vi: o chicote desenrola-se do braço e sobe vertiginosamente no ar, por cima da sua cabeça, em espiral de morte pela mordedura. Vibra o primeiro golpe no pescoço de Mussunda, que abre muito os olhos de surpresa imensa; o golpe seguinte atinge-o na cara, às cegas. Logo a seguir o branco assenta-lhe um punho bem no centro da boca e estende-lhe uma joelhada por baixo, nos sítios mortos dos machos já sem alegria de mulher”.

No capítulo terceiro, participamos num patrulhamento, caminha-se ao encontro do inimigo. Somos ambientados:
“Trovoadas longínquas vinham então anunciadas no cacimbo varrido pelo vento. Havia no ar uma eletricidade turva e estival, de tempestades tão grossas que apenas lhes faltavam os peixes para serem mar. Se a chuva chegava, interrompiam a marcha, abrigavam-se, armavam à pressa as tendas numa clareira da mata, longe do morros de salalé; se não, lançavam-se pelo capim dentro”.
Cada um levava cinco rações de combate. E chegou o momento de conhecermos a enfermaria, o que faz e quem faz, estamos próximos de João de Melo:
“Às dez em ponto, o enfermeiro de serviço abria a enfermaria e iniciava a ronda sanitária pelas casernas. Havia o paludismo, as doenças venéreas e as diarreias de sangue; havia a flor-do-congo em redor dos testículos, feridas e ferimentos cosidos. O furriel Pacheco substituía o clínico do Batalhão, a residir no Cuimba, a setenta quilómetros de picada, bem perto do comandante, do álcool e do seu imenso medo de morrer sem a assistência adequada, e que se lixassem as setecentas e cinquenta pessoas de Calambata, entregues como estavam, ao expediente de um rapaz muito magro que sofria de insónias. De modo que o furriel Pacheco saía para as duas sanzalas e não queria saber de armas e de fardas; não queria saber do que o começavam a acusar: fuga de informação militar para as populações civis, elemento subversivo que inspirava núcleos de resistência – dizendo os relatórios do capitão, para a PIDE, para o Sector e para a própria Companhia, que estaria ligado a uma célula-bolsa de resistência de S. Salvador, onde oficiais menores preparavam a derrota do exército português em África e a falência dos governos de Lisboa. A sua esperança eram as crianças desprotegidas de Calambata, os partos artesanais das muito grávidas mulheres daquela terra, o olhar de lado das velhas, a tensão arterial, o pulso morno dos homens e o assobio dos seus pulmões.
Vacinava meninos contra a cólera, a difteria, o sarampo, a varíola e a tuberculose; receitava xaropes crónicos e vitaminas laboratório militar, o cálcio os comprimidos de quinino contra o paludismo, suturava dedos e lábios, lancetava flamões, desentupia seios com leite coagulado e infeto”.

O furriel Pacheco anda vigiado. As crianças à procura de restos de comida é um relato pungente.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5587: Notas de leitura (46): Os Anos da Guerra, de João de Melo (1): Alguns olhares sobre a literatura da guerra da Guiné (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2009:

Queridos amigos,
“Os Anos da Guerra” merecem ser conhecidos por todos nós.
Há ali prosa de muito valor. O João de Melo editou e reeditou esta antologia em 1988 e 1998. Seria bom que ele a voltasse a actualizar. Aliás, neste momento há já editores que pretendem antologias referentes à literatura dos três teatros de operações. Espero que se tome em conta que a escolha dos autores é do João de Melo e não deste humilde escriba, por favor, não façamos confusões.

Um abraço do Mário com votos de um 2010 cheio de sucessos pessoais, saúde e alegrias familiares


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (1)


Beja Santos

Apresentação

“Os Anos da Guerra, 1961 – 1975, Os Portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, com organização de João de Melo (Publicações Dom Quixote, 1988 e 1998) é uma obra de referência para o estudo da literatura portuguesa que tem a Guerra Colonial como pano de fundo. É não só a primeira recolha antológica dos principais escritores intervenientes ao tempo como se trata igualmente de uma (ainda hoje) desassombrada apresentação da problemática da literatura da Guerra Colonial, em que João de Melo equaciona, sem quaisquer complexos, fenómenos habitualmente tratados de modo disperso: a geração literária dos escritores que combateram a Guerra Colonial: em que medida a nova literatura de guerra é memória e anti-memória; se a literatura do período da colonização foi, de algum modo, precursora dos escritores de guerra; e se podemos dispor de uma visão de conjunto sobre todos estes prosadores.
Dado o caudal informativo e a necessidade de circunscrever o itinerário desta incursão à literatura que tem a Guiné como palco, propomos que esta recensão contemple as seguintes realidades: o ensaio de João de Melo sobre o impacto que a Guerra Colonial teve nas literaturas de língua portuguesa; ouvir os escritores que combateram na Guiné num tema raramente abordado que é o dos preparativos para a guerra, aqui se incluindo a recruta, a especialidade, a formação de unidade, etc.; e dar voz aos relatos decorrentes dos aspectos da comissão militar, pondo a funcionar, no auge da dor, a memória e a anti-memória. Convém recordar que se trata de uma recensão, nas situações em que me propuser extravasar as opiniões do autor expresso-o claramente, e os autores que irão ser mencionados sobre a guerra da Guiné decorrem, única e exclusivamente, da escolha de João de Melo. Esses autores são: Álvaro Guerra, Filipe Leandro Martins, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Urbano Bettencourt, José Luís Farinha e Sérgio Matos Ferreira


A Guerra Colonial nas literaturas de língua portuguesa

O escritor João de Melo começa por questionar em que termos é que uma colonização pode ser encarada como um acto prolongado de guerra colonial. Não se trata de uma provocação pois estando em jogo um longuíssimo período de colonização com literatura, haverá que perguntar até que ponto as obras de escritores como Castro Soromenho (porventura o maior romancista da sociedade colonial angolana) Baltazar Lopes, Manuel Ferreira ou Alexandre Pinheiro Torres devem, ou não, ser inseridos na galeria onde irão ser posicionados os escritores que estiverem envolvidos numa das três frentes da Guerra Colonial. A pergunta ainda poderá ficar mais complexa se se pretender também saber se esta literatura pode acolher a chamada literatura de guerra e de resistência (ou seja, aquela onde se faz um apelo veemente à paz e à completa libertação dos povos, podendo-se aqui incluir escritores como Sophia de Mello Breyner, José Cardoso Pires, Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, entre outros). É João Melo que responde à questão, dando-lhe a simplificação para efeitos do seu ensaio: nesta literatura que se vai pôr em antologia só lá cabe quem a viveu, militares e familiares, quer nos preparativos quer no teatro de operações. Convém não esquecer que houve quem escreveu em perfeita sintonia com o regime (caso de Reis Ventura, Armor Pires da Mota, Couto Viana ou Rodrigo Emílio de Melo), houve quem denunciasse a guerra antes da mesma findar (caso de Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco ou Álvaro Guerra) e sobretudo há que ter em conta aqueles autores que fizeram do tema da guerra o corpo central da sua obra: serão estes os autores incluídos na antologia organizada por João de Melo, o escritor a quem agora passamos a palavra:
“Nos livros portugueses da guerra, a ideia do absurdo, da angústia, da sem-razão, ainda que aparentemente obsessiva, está longe de confundir a solidão com a solidariedade. O inevitável dessa literatura é ela aparecer iluminada na sua consciência histórica: o homem que escreve não é o mesmo e porventura nunca esteve do lado do agressor. Daí que uma boa parte das suas fascinações resida na sondagem e na aproximação ao outro, isto é, daquele que estava do lado de lá e que era então o inimigo. Para muitos de nós, que lá estivemos e que só raramente víamos o inimigo, o guerrilheiro era um misto de anjo e de demónio da nossa guerra interior...”. Para João de Melo não existe uma reconhecida obra-prima no conjunto dos livros citados. E ele explica porquê: “Talvez todas elas, na medida em que se completam, e outro tanto pelas diferentes paixões e pelos níveis confessionais e estéticos que ao fim ao cabo as distinguem entre si. De resto, é de supor que estejam por vir os livros da distância, da frieza e de uma outra e objectiva narratividade. Na minha já longa relação com a literatura de guerra, fui muitas vezes confrontado com a existência de um sem-número de textos inéditos, o que prova que a literatura é talvez o único domínio da sociedade portuguesa a desaceitar o tabu de um passado que forjou e modificou para a vida uma nova geração de homens. Actualmente, ela é, com efeito um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja – essa literatura – muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade portuguesa do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continuo a comprazer-se com um espectáculo da sua própria violência interior”. João de Melo escreveu este texto em 1984, seguramente que há pontos de vista que se podem considerar ultrapassados, nos 25 anos posteriores a literatura enriqueceu-se e os tais livros da distância, da frieza e de uma outra e objectiva narratividade continua a aparecer. Mas esta questão não cabe nesta curtíssima apreciação do importante livro “Os Anos da Guerra”.


Os preparativos

Filipe Leandro Martins escreveu: “O Pé na Paisagem” em 1981. Nascido em 1945, em 1967 fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e é destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. Desertou em 1968 e exilou-se na Bélgica. Foi jornalista profissional desde 1976. O texto escolhido por João de Melo intitula-se “O couro selvagem das botas”, tal como se resume:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo solo provinciano à uma da tarde da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar...
Havia quem puxasse gorjetas para o cabo os despachar mais depressa e lhes escolher uma caserna boa, e o cabo arrecadava a massa e ria destas espertezas enquanto as levas de rapazes iam desaparecendo nas goelas das casernas, tragados pelos sargentos e amanuenses, e logo abandonados à mercê da máquina que aprendemos depressa a recear e a reconhecer no seu poderio misterioso de regulamentos e castigos ao menor deslize, que se levantava como parede velha, ameaçadora e sombria frente aos nossos mais pequenos desejos, muro pesado que nós ajudávamos a erguer – argamassa e medo, argamassa e medo – para não sair dali a sete pés”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5519: Notas de leitura (45): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa - II (Beja Santos)