Mostrar mensagens com a etiqueta Lisboa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Lisboa. Mostrar todas as mensagens

sábado, 11 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24136: Os nossos seres, saberes e lazeres (560): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (93): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Ir visitar a Academia Militar e não conhecer a Bemposta, o palácio da rainha viúva D. Catarina de Bragança, a Biblioteca da Academia e a Capela Real dedicada à Nossa Senhora da Conceição, é como ir a Roma e não ver o Papa. Aqui se descreve muito abreviadamente que a Bemposta conheceu modificações de tomo desde o falecimento de D. Catarina em 1705, encerra um monumento nacional, é sede da Academia Militar, quem entra pela Gomes Freire terá que ficar assarapantado com aquela massa de edifícios agora sem préstimo, e depois passa a outro espaço, já estamos na Bemposta e numa entrada com largo átrio com impressionante azulejaria de Jorge Colaço, subindo a escadaria é um momento de emoção com a permanente evocação dos alunos da Escola que morreram em combate, em diferentes conflitos, tocante homenagem, estão ali alguns dos nossos camaradas tombados na Guiné; e mudamos de espaço, estamos na área do comando da Academia, outrora os aposentos e os salões da rainha viúva, novo itinerário até ficarmos embasbacados com uma biblioteca, seguramente uma das mais preciosas de Portugal, um espaço onde magnificamente se expõem livros de diferentes séculos e se guardam verdadeiros tesouros; e, por fim, a Capela Real, mesmo vendo-se à vista desarmada que há para ali uns danos, uns repasses que vão exigir a competente cirurgia estética, é um templo soberbo que gera no visitante a sensação, depois das obras dos finais do século XVIII de que não há nada de mais impressionante em cenografia na pintura de uma casa de Deus como neste Paço da Bemposta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (93):
Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (2)


Mário Beja Santos

Na companhia do organizador da visita, o nosso emérito confrade, Coronel Morais da Silva, vamos visitar a Biblioteca da Academia Militar e a Capela Real do Paço da Bemposta. Acolhimento esfusiante, juntou-se o diretor do Museu Militar, as bibliotecárias multiplicam-se em comentários, escrevinhei tudo num caderno, não sei exatamente o que aconteceu, acredito que meti o bloco de notas numa sacola, vinha cheia de papelada, entrei esbaforido num autocarro no Campo dos Mártires da Pátria, sei que quando cheguei a casa o caderno tinha desaparecido. Felizmente que no site da Academia Militar se dá uma excelente nota introdutória a esta preciosidade, não me esquivo a dizer que está entre as mais belas bibliotecas que conheço.

Tem cerca de 40 mil títulos, correspondendo a cerca de 200 mil volumes, espalha-se por dois polos diferenciados, a Bemposta, onde se encontra a maior parte do acervo documental histórico, e o da Amadora, onde são disponibilizadas as publicações mais recentes e direcionadas a apoiar os alunos.

Esta belíssima construção constituiu-se inicialmente de um fundo de obras que pertencia à Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho, fundada em 1790, no reinado de D. Maria I. Já Escola do Exército, é atribuída à Biblioteca, em 1839, um avultado número de obras provenientes dos depósitos das livrarias conventuais e outras. Até 1894, a Biblioteca esteve alojada em quatro pequenos compartimentos e um sótão. Nessa altura, sob a direção do coronel Vasconcelos Porto, procedeu-se a uma intervenção monumental, e assim se chegou a este espaço dotado de magnificência, possuidor de uma galeria à volta, quem delineou a obra tinha um elevado sentido de equilíbrio e harmonia, para já não falar da impressão de magnificência que oferece ao visitante. E tudo bem cuidado, apraz dizer. A Biblioteca guarda alguns tesouros bibliográficos, do século XVI ao XIX, como é o caso da obra de 1514 – Ars Arithmetica, de Juan Guijarro Silíceo. Impossível que estas imagens não tentem o leitor a uma visita.
Ficam aqui alguns pormenores de tão requintado espaço, prossegue a visita espiolhando os espaços interiores que antecedem uma importante exposição didática sobre a Academia, afinal há muitas estantes que não são visíveis à vista desarmada, móveis imponentes e seguramente que o recheio não fica atrás, aqui fica uma amostra.
Para que o leitor ainda fique mais acicatado à visita, as amáveis bibliotecárias deixaram fotografar obras raríssimas, do tal acervo que se estende do século XVI até ao século XIX, é só para ver, ou em casos de estudo, de folhear com a mão enluvada.
Da muito esclarecedora exposição permanente, olhei para este objeto como boi para palácio e nem o facto da legenda dizer tratar-se de um sextante foi suficiente para eu ficar de boca aberta, assim que vi, até me arrepiei, o sextante foi inventado pelo glorioso Almirante Gago Coutinho, dentro da minha santa ignorância tomei o objeto como uma mina, imagine-se, perdoem-me os bem dotados de conhecimentos da navegação aérea.
Mudamos agora de edifício, por ali vai o coronel Morais da Silva a abrir caminho, vamos ser recebidos na Capela Real da Bemposta, quem vê fachadas como esta não pode imaginar que no interior está um tesouro nacional.
Entra-se na capela e a pintura de Giuseppe Trono atrai instantaneamente o visitante, isto independentemente de todos os cromatismos faiscarem e um tanto desnortearem quem por ali anda. Então os tetos, o da Capela do Santíssimo Sacramento, alusivo à transfiguração de Cristo no Monte Tabor, ou a pintura do teto da capela-mor representando Nossa Senhora da Conceição, rainha de Portugal. Alguém tem o cuidado de explicar ao visitante que este espaço sacro, a capela privada, tem dois momentos distintos, antes e depois do terramoto de 1755. Já li que afinal de contas os danos do terramoto não foram tão assustadores como alguns pintam, mas na verdade, nesta capela há dois gostos, sente-se perfeitamente o que era arte da Contrarreforma e numa segunda fase o Barroco e o Rococó, com a sua componente muito mais sensitiva, com pormenores altamente decorativos. D. Catarina fora educada de modo austero e quando regressou a Portugal aceitou viver num espaço marcadamente sóbrio, onde não faltava boa azulejaria, tapeçaria e mobiliário, a própria capela tinha um gosto severo que os senhores da Casa do Infantado alteraram profundamente. A Capela Real foi dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Começando pela fachada principal, sofreu alterações para lhe dar sumptuosidade e todo o seu interior ganhou uma certa presença cenográfica.

É uma igreja-salão, com uma única nave, mais alta e larga que a capela-mor. A única capela lateral, que podemos designar por autónoma, é a Capela do Santíssimo Sacramento, esta é uma riqueza, a sua pintura é dedicada à história do livro bíblico do Êxodo, é no teto que está representada a transfiguração de Cristo no Monte Tabor. Apraz lembrar ao visitante que silhares de azulejaria nos corredores e dependências merecem a atenção, não é por puro acaso que somos a maior potência mundial em azulejaria.
As pinturas da capela têm merecido a atenção dos investigadores e recentemente duas peritas italianas desenvolveram um estudo sobre a pintura de Giuseppe Trono, na Capela Real. Coube-lhes demonstrar que o autor da pintura do altar-mor, onde se pode ver a família real, que durante bastante tempo foi atribuído a Thomas Hickey foi, na verdade, obra de trono, a pintura que goza inequivocamente de originalidade, é um verdadeiros programa político-religioso, em baixo à direita temos a família real, à esquerda imagens de gente assistida e com destaque a virgem contemplando o Santíssimo Coração de Jesus, cujo culto estava bastante desenvolvido entre nós a partir dos finais do século XVII. Quanto à Nossa Senhora da Conceição, não nos esqueçamos que a coroa régia lhe foi doada. Também estas duas investigadoras assinalar o cruzamento estético e de artes plásticas entre a Basílica da Estrela e a campanha de obras que se concentrou nos anos de 1980 do século XVII, daí sentirmos na pintura a presença de Pedro Alexandrino, que trabalhou nos tetos da capela-mor, na nave e na Capela do Santíssimo Sacramento.
É um órgão de nos cortar o fôlego, impecavelmente mantido, não me importava de vir aqui ouvir um concerto com esta envolvente de tão extraordinária pintura.
Imagem da Capela do Santíssimo Sacramento
A renovação artístico-arquitetónica da Capela da Bemposta concluiu-se em 1793, por isso, à saída e no final desta inesquecível viagem, encontramos, como se pode ver na última imagem, uma tarjeta comemorativa, e traduzindo o latim pode ler-se: “Ao Supremo Condutor das coisas e à Virgem Mãe concebida sem mácula de origem, este templo construído com belíssimo trabalho de arte, para sempre, doce monumento de religião consagrou João, Príncipe do Brasil, da gente lusitana esperança e desejo para a salvação. 1793”.

E aqui me despeço da Academia Militar, plenamente convicto que a qualquer hora aqui regressarei com imenso entusiasmo.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 4 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24117: Os nossos seres, saberes e lazeres (558): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24132: Os nossos seres, saberes e lazeres (559): Um estranho convite para uma visita à RDA – República Democrática Alemã (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

sábado, 4 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24117: Os nossos seres, saberes e lazeres (558): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Começou a viagem pela rua Gomes Freire, ao gosto de conhecer o espaço do que foi a Academia Militar foi-se inculcando aquela medonha sensação que toda aquela estrutura onde se formaram oficiais, onde viveram os cadetes, tiveram aulas, fizeram ginástica, usufruíram de espaços de convívio, é território em quase abandono, sem préstimo, fica-nos a impressão de que estão ali milhões e milhões de valor que podiam servir para concentrar serviços da instituição, andamos a falar em economia circular, combate aos resíduos e desperdícios e temos ali aquele imenso gigante num quase abandono, agonizante. Impunha-se conhecer a outra parte e o nosso confrade, o Coronel António Morais da Silva ajudou a escancarar as portas, visitou-se a Bemposta a preceito, ali morreu a rainha em 1705, tem impressionante histórico porque foi pertença da Casa do Infantado, instalação de general napoleónico, residência de D. João VI, por aqui passou a Corte de D. Pedro IV, a Biblioteca é uma construção fulgurante, majestosa, sábia em aproveitamentos vários, e a harmonia da Capela Real deixa-nos sem fôlego. Como aqui se contará.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92):
Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1)


Mário Beja Santos

Por aqui já se andou, entrada pela Gomes Freire, para conhecer a Academia Militar, como ela foi e praticamente deixou de o ser. Tem longo historial: foi Escola do Exército entre 1837 e 1910, Escola de Guerra entre 1911 e 1919, Escola Militar entre 1919 e 1920, manteve o mesmo nome de 1920 a 1938, ano em que passou a Escola do Exército até 1959, e nesse ano nascia a Academia Militar. Visita com constrangimento, na companhia de um ilustre confrade do nosso blogue, o coronel António Morais da Silva, vou fazendo perguntas quanto aos edifícios e ao seu abandono visível, não entendo como todo aquele equipamento pode estar no mais completo abandono, independentemente de haver manutenção, visitou-se o que era possível visitar, e acordou-se em nova itinerância, a Bemposta, ultima residência da rainha viúva de Inglaterra, Catarina de Bragança, ao que parece a filha dileta de D. João IV, levou como dote uma fortuna, tinha que ser assim, precisávamos como pão para a boca de um aliado poderoso que fizesse frente à hostil Espanha, o tratado de paz ainda vinha longe quando Catarina partiu para Londres e se supunha dar continuação à dinastia dos Stuart, o que não aconteceu. Anos depois de viúva, foi decidido regressar, tomou a decisão de comprar o terreno (tão extenso, que mais tarde se separou aquela enorme parcela que é hoje o Hospital de D. Estefânia), tem hoje os seus limites atuais entre as ruas Gomes Freire, D. Estefânia, Jacinta Marto e Escola do Exército, a fachada principal do edifício do paço está virada para um largo, o Paço da Rainha. D. Catarina regressara a Lisboa em 1693, andou por vários palácios até que em 1699 adquiriu uma propriedade para ali construir a sua residência definitiva e pessoal. Mal sabia que depois da sua morte esta residência iria passar para a Casa do Infantado, D. João V concedeu-a ao seu irmão, o Infante D. Francisco; sofreu enormes estragos com o terramoto de 1 de novembro de 1755, fez-se a reconstrução; foi poiso de tropas napoleónicas, aqui se instalou o quarte general do general Delaborde, virá a ser palco de acontecimentos marcantes da história do liberalismo em Portugal, residência de D. João VI, aqui se instalou a Corte de D. Pedro IV; e em 1850, D. Maria II promulga um decreto que destinava o palácio à instalação da Escola do Exército, instituição fundada em 1837 pelo Marquês de Sá da Bandeira, general Bernardo de Sá Nogueira Figueiredo.

O rol de alterações, obviamente, é de uma extensão que deixa o visitante atabalhoado, quem por ali andar às cegas terá dificuldade (senão impossibilidade, de detetar no interior as marcas do início do século XVIII). Por fora é outra coisa, basta ver as sucessivas gravuras de diferentes épocas, manteve-se o sóbrio da fachada, apostou-se no que há de mais magnificente na escadaria e na fachada principal que leva à Capela Real. Há estudos sobre a residência régia, a riqueza dos materiais, os têxteis e os belíssimos azulejos. Na primeira visita mirei e fotografei o admirável conjunto que Jorge Colaço concebeu para a entrada do que é hoje a Academia Militar. Nesta visita à Bemposta, bem me deliciei com o património azulejar do espaço por onde a rainha teve aposentos e salões de receção.

A Academia Militar editou livro sobre D. Catarina de Bragança e o Paço em 2005, por ele me procurei guiar.

Capela e Paço Real da Bemposta, 1910, fotografia de Joshua Benoliel
Carlos II de Inglaterra e Catarina de Bragança na Old Somerset House - Escola Inglesa (séc. XVII)
Azulejaria na Sala do Conselho, tendo ao fundo imagens de alunos que foram Presidentes da República
Como se pode ficar indiferente a tão alta qualidade azulejar? Mas há mais, numa divisão contígua à Sala do Conselho (construção já da Academia) há um silhar de azulejos azul e branco que corre à volta de toda a divisão; na Sala do Conselho, são painéis com albarradas datados de finais do século XVII e inícios do século XVIII.

O citado livro fala de um vasto conjunto de alterações, havia um tanque de mármore no jardim que hoje se encontra em S. Pedro de Alcântara. A instalação da Escola do Exército exigiu uma nova disposição interna dos espaços como se escreve no citado livro: “O corpo principal do conjunto da Bemposta ficou destinado para a instalação dos serviços administrativos e logísticos daquela instituição, de espaços dignos para a receção das visitas oficiais, bem como de outros espaços indispensáveis ao apoio na formação dos alunos, a exemplo do que aconteceu na Biblioteca. Com o passar dos tempos, foi também possível proceder à constituição de um pequeno núcleo museológico de modo a preservar as memórias da Escola.”

É neste sentido que vale a pena deambular por esses espaços, outrora áulicos, agora com a dignidade necessária para acolher quem visita o gabinete reservado ao oficial general que comanda a casa, foi por ali que eu andei a bisbilhotar.
Está feita a visita, o senhor general teve a deferência de oferecer café a quem lhe bateu à porta, ainda há muito para ver, talvez o mais espetacular, a Biblioteca e a Capela Real, é o percurso a seguir.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O avô sentiu-se feliz em passear-se por tal museu, tão cheio de olhares sobre a História de Portugal no plano artístico. Um trabalho que se impunha que a neta elaborasse, impressões de uma viagem e o significado deste ou daquele museu, deu livre curso a um dia bem passado olhando obras-primas de barristas, diferentes telas com motivos religiosos, até se falou um pouco sobre as doações de Calouste Gulbenkian e a conversa com duas restauradoras que ali prestam serviço em torno dos chamados Painéis do Infante deixaram a menina um tanto dececionada, como explicar em relatório que não se sabe ao certo quem pintou aquela obra-prima ímpar, quem a encomendou, quem são aquelas figuras, o significado das relíquias, sente-se que há ali por detrás uma influência flamenga, mas o mistério perpetua-se, é bem provável que não haja cabal chave explicativa, mas por ali ficamos estarrecidos, e muito feliz me senti com aquela curiosidade da jovem andando à volta da Custódia de Belém, mirando-a de todos os ângulos, não escondendo a plena admiração. Foi um dia em cheio, só espero que o trabalho da neta, porventura ajustadamente ilustrado, mereça o aplauso da turma.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2)


Mário Beja Santos

Feita a pausa, e com o estômago reconfortado, lançamo-nos nesse prato de substância da grande pintura internacional, o quadro de Bosch anda em exposição, mas advirto a neta que preparei uma seleção de telas que vale a pena ela pôr em relatório. Vamos começar.
S. Jerónimo, por Albrecht Dürer, século XVI

É um Dürer muito especial, ficas a saber que este alemão é o autor daquela gravura do rinoceronte que tu tanto aprecias. Quanto ao tema, versa uma questão central da Doutrina cristã, advertência sobre a vaidade, tudo vai acabar em ossadas, o melhor é fazer bem aos outros e amá-los como nós gostaríamos que os outros assim nos tratassem.
Retrato de Lucas Vosterman, o Velho, por Anton van Dyck, c. 1630

Este flamengo, habilíssimo retratista, enxameia vários museus europeus, gente poderosa, pela certa, de religião severa, também pela certa, o leitor que compare este van Dyck com outro retrato mais abaixo de Jacome Ratton, de Thomas Lawrence, veja-se a perícia no domínio total do espaço, o contraste entre o fundo e a figura, aquela barba fulva e aquele bigode retorcido, o rosto dominante e o chispar do olhar, de quem nada teme. Que grande retrato!
Natureza-morta com frutos, Antonio Pereda y Salgado, século XVII

Gosto muito de comparar Pereda com a nossa Josefa de Óbidos, ponho sempre esta a ganhar, mas tenho que admitir que Pereda tinha uma capacidade na reprodução dos elementos da natureza-morta como poucos outros dos seus contemporâneos, veja-se a linha da mesa, a faca e o fruto cortado, os utensílios cuja forma em nada obstruem a visão dos produtos da Natureza. Dá gosto estar aqui diante de Pereda e gabar-lhe o seu talento.
Depósito de Armas, David Teniers, século XVIII

Tenho sorte de conhecer uma boa parte da obra de David Teniers, em museus belgas. O que mais me cativa neste “Depósito de Armas” é a solução que o mestre encontrou no jato de luz à esquerda que nos permite ver com absoluta nitidez quem figura em primeiro plano e numa extraordinária escala, é preciso ter mão de soberbo artista para pôr tanta figura em curto espaço e com o domínio absoluto do claro-escuro.
Obras de Misericórdia, pintura de Peter Brueghel, o Jovem, século XVII

Há uns bons anos, tive o privilégio de ver em Bruxelas uma exposição sobre a Firma Brueghel, foi uma autêntica fábrica que durou gerações, clientela abastada cria cópias de telas passadas, trocavam-se ou afeitavam-se alguns pormenores e o cliente ficava regalado. Brueghel pinta exemplarmente o mundo do seu tempo, velhos e novos, gente com saúde e aleijados, cenas brejeiras, bêbedos delirantes, folias em festas de casamento, aqui o cliente encomendou algo de bastante comedido e vemos em primeiro plano agasalhar quem vinha nu e dar pão a quem precisa. Não escondo que prefiro Brueghel, o Velho, mas rendo-me a esta capacidade da fábrica e ao génio de pôr tanto movimento e colorido em tão curto espaço.
Homem Cozinhando, Jan Steen, século XVII

Há uma razão especial para ter completado demoradamente este homem em preparos de cozinha. Fui amigo de um notável artista, de nome Rolando Sá Nogueira, alguém que foi um porta-estandarte da contemporaneidade pelos temas a que aludiu, desde o consumo à questão racial. Ouviu frequentemente clamar que Jan Steen era um dos santos do seu culto, e neste preciso momento aqui o recordei, sabendo amargamente que não há amigos que possam substituir os amigos que perdemos.
Doação de Leão do período ptolemaico (Egito) feita por Calouste Gulbenkian ao Museu de Arte Antiga
“General William Keppel, Storming the Morro Castle”, Pintura de Joshua Reynolds, século XVIII, doação de Calouste Gulbenkian.

O Sr. 5 por cento do petróleo quis manifestar o seu reconhecimento a Portugal doando algumas das suas obras de arte, abrangendo pintura, escultura, artes decorativas e algo mais. Ele adquirira, nomeadamente no período londrino, um conjunto de obras de arte de que se ufanava, caso do Turner exposto no museu com o seu nome, quadro a óleo de irreprimível beleza. E ofereceu ao Museu Nacional de Arte Antiga um pequeno conjunto de telas britânicas de incontestável valor, é o caso deste quadro de Joshua Reynolds de que nos atrevemos abaixo a dar um pormenor que revela a altíssima perícia do mestre.
Quadro de Jacome Ratton, pintado por Sir Thomas Lawrence, faz parte da doação Gulbenkian.

Jacome Ratton viveu na Rua do Século, numa casa apalaçada que é hoje o Tribunal Constitucional. Grande empreendedor, vamos vê-lo envolvido em negócios de aviação em Tomar. A minha conversa com a neta tinha a ver com o contraste de cores e luminosidade, um fundo um tanto neutro que assegura a revelação da indumentária austera, Ratton olha-nos um tanto enviesadamente, todo ele é imponência, um semblante de triunfador.
Este quadro de Andrea Mantegna, um dos nomes mais sonantes do primeiro Renascimento italiano, está aqui exposto por empréstimo, vem de Verona, é uma tela pintada a têmpera de ovo, a Virgem e o Menino rodeados por figuras magnas da Igreja, parece levitar, a Virgem e as figuras insígnias trajam roupa recamada que acabam por dar a ilusão de que vão ascendendo acompanhando na ascensão a Virgem e o Deus Menino. É de ficar estupefacto com o controlo do comprimento, altura e profundidade e a subtileza que nos permite questionar que o conjunto se encaminha para os céus.
É um momento crucial da visita, estamos diante dos chamados Painéis do Infante, a neta quer saber os porquês de tanto mistério. Conto-lhe como dois homens de letras encontraram casualmente esta ímpar obra-prima da pintura europeia do século XV abandonadas em S. Vicente de Fora, a série infindável de teses e teorias desenvolvidas à volta dos painéis, houve até gente profundamente desavinda, alguém se suicidou, e estava nesta lengalenga que ia aguçando a curiosidade da neta, quando saíram duas senhoras lá dos fundos do restauro, não tive pudor em interpelá-las, vejam as senhoras que estou aqui a procurar dizer à minha neta que não se sabe ao certo se os painéis são de Nuno Gonçalves, onde foram pintados, em que templo foram expostos, se estão completos e até o significado das figuras, as próprias relíquias são altamente contestadas, não se sabe se a figura central é S. Vicente, andou-se a dizer que a figura do Infante D. Henrique é indiscutivelmente aquela com o seu chapéu peculiar, as senhoras sorriram e simpaticamente disseram à menina que está tudo em discussão mesmo com a espectrografia não se consegue apurar nada em concreto. O que para o caso importa é que não há na pintura europeia do século XV esta mole humana representada com tanta determinação, parece mesmo que Portugal entrara numa viragem, e o seu vigor aqui ficou plasmado para todo o sempre. É claro que a neta não ficou satisfeita, que resposta para tudo, e a História muitas vezes troca-nos as voltas.
A visita caminha para o fim e vejo a neta interessada numa escultura, toca de ver a legenda, é do evangelista São Marcos, o seu autor é Cornelis de Holanda, nem falta o leão a seus pés, é a defesa da Doutrina, o respeito pela Palavra.
Nunca resisto a contemplar este Cristo, muito mais do que a dor e a transfiguração é a proporção e o equilíbrio das formas, e quem aqui o fixou, em lugar de honra, sabia as regras de ouro da museografia, na ausência da cruz escolhe-se um ângulo que admite que o Cristo Homem já partiu para o Pai.
Antes de partir, no andar inferior, levo a neta a contemplar a Custódia de Belém, ela que é cética ou no mínimo circunspecta quando lhe mostro os meus objetos classificados como artes decorativas, aproximamo-nos deste resguardo em acrílico e peço-lhe a atenção para os pormenores, onde é que tu alguma vez viste esta renda, esta adoração de figuras ascendentes, a elegância das proporções, até ao pináculo e o somatório de todas as razões e crenças, que é a Cruz de Cristo.
Perto da saída, no alto da escadaria, está esta fonte barroca como não conheço outra igual, fizeram bem pô-la sobre uma peanha, olha, neta, para o tornear dos pés, a delicadeza de todo o corpo da fonte e a solução encontrada para fazer subir o corpo alteado que termina sob forma de voluta. Posso confessar que a neta estava verdadeiramente impressionada.
Esta sim, é a última imagem da nossa itinerância, três restauradoras limpavam este imponente quadro escultórico, a deposição de Cristo. Meti conversa, explicaram que estava tudo numa sujidade inimaginável, veja estas cores, há quantos anos ninguém as vira como quando foram pintadas, este conjunto não é uma grande beleza? E com a saudação e admiração por tão belo trabalho aqui nos despedimos até à próxima viagem.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24059: Os nossos seres, saberes e lazeres (555): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (89): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (1) (Mário Beja Santos)