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sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

Fogo (e legenda) © Paulo Salgado (2005).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Ponte-cais de Bissau e não cais do Pidjiguiti (que ficava mais à direita e onde atracavam as embarcações de pesca e de transporte de cabotagem),

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea da Ponte Cais, e de parte da zona ribeirinha da Bissau Velha: à direita o edifício da Alfândega, em frente a praça e a estátua de Diogo Gomes e portão de armas e as muralhas (lado sul) do forte de São José da Amura (coberto de seculares poilões)... Do lado esquerdo (e já não visível na imagem) ficava o cais do Pidjuiguiti.

A ponte-cais do porto de Bissau (obra emblemática do governo de Sarmento Rodrigues, remontando o início das obras a julho de 1948) é inaugurada em 1953 por Raúl Ventura, subsecretário de estado do Ministério do Ultramar, sendo Sarmento Rodrigues ministro da tutela.

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).


Guiné > Bissau > s/d > Vista  da ponte-cais (ou porto) de Bissau, a partir da praça Diogo Gomes).

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).



Guiné > Bissau > s/d  [c. 1960/70] > Pormenor de monumento a Diogo Gomes (às vezes confundido com Diogo Cão) e Edifício das Alfândegas > Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 136". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Bilhetes postais: Colecção do nosso camarada, natural do concelho de Leiria, Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72,  Mansoa, 1972/74),



Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho, com as ruas rebatizadas pelo PAIGC > 1975 > Planta da cidade > Localização de: (i) fortaleza da Amura; (ii) cais ou porto  do Pidjiguiti (à esquerda); e (iii) porto de Bissau (à direita)... Alguns leitores confundem, por vezes, a ponte-cais de Bissau com o cais do Pidjiguiti (para sempre associado aos acontecimentos de 3 de agosto de 1959).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

1.  Os graves e trágicos acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no cais do Pidjiguiti, são uma página triste na história da presença portuguesa em África. Nunca deveriam ter ocorrido. Como já o dissemos, as autoridades da época, a Casa Gouveia e o seu gerente António Carreira ficam mal na "fotografia da História"... Mas passados mais de 60 anos continuam a ler-se versões díspares, nomeadamente sobre o que realmente aconteceu, a sua origem, processo e consequências.

Há poucos relatos contemporâneos.  E não há imagens, ao que parece (*). É importante continuar a confrontar, serena mas criticamente, as diferentes versões. Uma delas é a do nosso camarada Mário Dias que esteve lá, integrado numa força militar, uma companhia de recruta que foi desviada no seu regresso ao quartel de Santa Luzia, depois de prestar honras militares, em Bisslanca, a subsecretário de Estado da Aeronáutica, a caminho de Angola: os recrutas levavam mausers sem munições, não tinham quaisquer armas automáticas (**). 

A outra versão é a do Luís Cabral (LC) , na altura guarda-livros da Casa Gouveia, e que irá sair clandestinamente do território alguns meses depois, no início de 1960. 

Como  futuro dirigente do PAI (e depois PAIGC), tem uma leitura "enviesada" do que aconteceu, mas de que foi também testemunha ocular (parcial, como o Mário Dias).  Todavia, há erros factuais na sua versão, escrita vinte e tal anos depois, já no exílio: consta do seu livro "Crónica da Libertação" (Lisboa, O Jornal, 1984). Excertos dessa versão já foram aqui em tempos publicados (***). Mas justifica-se voltar a reproduzir uma parte e compará-la com a versão do Mário  Dias.

Excertos de Crónica da Libertação, 

de Luís Cabral (1984) (pp. 65-73)(**)

(i) Reivindicações laborais do pessoal das docas e do transporte de cabotagem

(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 75 e 150 euros, respetivamente]; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado". Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 7,50 euros] , quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

(ii) Contexto político, interno e externo

(...) A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [PAI] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

(iii) A greve

(...) A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. 

Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. 

Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

(iv) O ultimato aos grevistas por parte do António Carreira, gerente da Casa Gouveia

(...) Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia [referência ao cabo-verdiano António Carreira] , mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. 

Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

(v) Reacção das autoridades

(...) As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

(vi) Resposta dos grevistas

(...) Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heroicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

(vii) Tiros, mortos e feridos

(...) Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. 

Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.

(viii) Saída dos escritórios da Casa Gouveia

(...) Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. 

Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

(ix) No apartamento 
 [do LC, que pertencia à Casa Gouveia] 

(...) Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco 
 [BNU] onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

(x) Aproveitamento político por parte do PAI

(...) Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. 

Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. 

Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. 

(xi) O poder de influência do António Carreira que manda soltar o Carlos Correia

(...) No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides 
[Pereira, chefe da Estação Telegráfica] tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

(xii) Na iminência de ser preso pela PIDE, o Carlos Correia foge para Dacar

(...) Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto.

 O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo — disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.» (...)

(...) O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.

(...) Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos.

(...) À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7,30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda. (...)


Comentário do A. Marques Lopes (***):

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAI / PAIGC. Como refere o Luís Cabral (****), a páginas 75 e 76 do seu livro:

(...)   Na reunião com o Amílcar (19/9/1959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo.  (...)

[Transcrição: AML  / Seleção, revisão e fixação de texto, subtítulos, negritos e notas em parênteses retos: LG]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959


(...) "Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).


(***) Vd. poste de 18 de fevereeiro de 2006 > 18 de fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)

(****) Luís Cabral (Bissau, 1931 - Lisboa, 2009), meio-irmão de Amílcar Cabral (Bafatá, 1924-Conacri, 1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, filho do mesmo pai, o professor do ensino primário  Juvenal Cabral. Viria a ser sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo-verdiana do PAIGC. Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de Estado...

Publicou em 1984 as suas memórias (que vão da infância até à morte de Amílcar Cabral): "Crónica da Libertação"(Lisboa, O Jornal, 1984)

Luís Cabral era empregado, guarda-livros, da Casa Gouveia, do Grupo CUF,   em 3 de Agosto de 1959. E dirigente do PAI, na clandestinidade. Nessa data, o Amílcar Cabral estava em Angola, em trabalho, como engenheiro agrónomo, não tendo ainda passado à clandestinidade. Passou por Bissau em 19/9/1959 para se reunir  com o pequeno grupo dirigente do seu partido, que então se chamava PAI.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24112: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte IV: a visita da delegação militar da OUA, em 1965, às bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari, na região Norte do PAIGC




Três fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2104),

"Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43'').

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de n
otas avulsas de leitura do livro  "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (*):

Visita da missão militar da OUA em 1965 (pp. 287 –297)


Que fique claro: desde sempre falámos aqui, neste blogue, do PAIGC, da sua história, dos seus dirigentes e combatentes, da sua organizaçãoo, do seu armamento, das suas bases ("barracas") e linhas de infiltração, das suas operações, das sus baixas, dos países que o apoaivam (incluindo a Suécia), da sua propaganda, dos  livros e dos filmes que falam deles, etc... 

Sempre falámos sem quaisquer complexos. O nosso tom é  necessariamente  crítico: afinal somos um blogue de antigos combatentes e não combatemos contra fantasmas... ou extraterrestres... Esses fantasmas ou extraterrestres tinham um rosto e nome: Amílcar Cabral, Luis  Cabral, 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, etc. , figuras que já nem sequer estão vivas.... 

Nunca os exaltámos mas também nunca escondemos  que não os podíamos ignorar.  A guerra (que foi um sangrento jogo de xadrez)  já acabou há meio século e é natural que haja memórias que se cruzam, quer gostemos ou não...  Mário Dias, por exemplo, fez a tropa, o 1ºCSM,com o Domingos Ramos... Já escreveu aqui, em tempos, um poste memorável sobre os seus encontros e desencontros... E, de um modo geral, todos temos alguma curiosidade em saber como era o inimigo de ontem, por onde andava, o que se escrevia sobre ele, etc. 

Feita esta prevenção pedagógica, a título meramente introdutório,  voltamos a dizer que um dos problemas com que se depara o leitor, desapaixonado. atento e crítico, da "Crónica da Libertação", de Luís Cabral (Lisboa, O Jornal, 1984) (*), é a oum ralidade da narrativa: o autor segue um fio condutor temporal, desde o início da criação do PAI (e depois PAIGC), passando pelo desenvolvolvimento da luta e acabando no assassinato do Amílcar Cabral em janeiro de 1972. Mas nem sempre (ou raramente) há datas precisas.

Sabe-se,por outras fontes, que a primeira visita da missão militar da OUA - Organização da Unidade Africana, criada em 1963, em Adis Adeba, ocorreu em 1965, com início em 23 de julho: em 20 de agosto a comissão militar da OUA dá por findos os seus trabalhos, tendo consegudo visitar instalações do PAIGC mas não as da FLING. Temos de reconhecer, em todo o caso, essa não era a melhor altura do ano , pro se estar em plena época das chuvas, para visitar um território como a Guiné.  

É possível que a delegação se tenha desdobrado, com uns observadores a visitar o Norte e outros o Sul. Por outro lado, sabe-se que Amílcar Cabral escreveu   em julho de 1965,   um "projecto do programa de trabalho da Comissão Militar da OUA incluindo a visita ao Secretariado Geral e às instalações civis do PAIGC em Conakry, bem como às bases militares em Boké e Koundara", visita essa que seria feita, obviamente,  de carrro...

Em 1965 o PAIGC ainda se procurava legitimar, aos olhos de África e do Mundo, que era o único representante dos povos de Guiné e Cabo Verde. Nomeadamente no Senegal, havia (e era tolerada) a presença de representantes de outros movimentos nacionalistas, nomeadamente da FLING. Amílcar Cabral tinha já preocupações hegemónicas (para não dizer totalitárias), não admitindo que houvesse rivais, para mais "oportunistas" (sic) na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Por outro lado, a intenção do PAIGC (ou do seu estratega, Amílcar Cabral) era também a de convencer os membros da OUA, de que precisava de mais e melhor armamento para poder combater, com eficácia, a tropa portuguesa (incluindo a marinha e a aviação).  

Daí a visita da missão militar da OUA, há muito pedida, com uma delegação  que, no Norte, e segundo o Luís Cabarl (LC), era composta por representantes (todos oficiais subalternos) de 4 países: Guiné Conacri (tenente Djarra), Senegal (capitão Tavares), Marrocos (um tenente) e Mauritânia (um outro tenente) (pág. 288).  Naturalmente, uma missão militar, com postos de baixa patente, como está,  vale o que vale...

Curiosamente, a visita realizou-se, segundo o autor, numa altura de crise política entre estes países, entre Marrocos e a Mauritânia, por um lado, e entre o Senegal e Guiné-Conacri, por outro.  Mas o Amílcar Cabral pôs todo o empenho em que a visita decorresse da melhor maneira e com toda a segurança. 

Há instruções escritas  por ele para o 'Nino' Vieira que estava no Sul. Mas, no Norte delegou no seu meio-irmão, o LC, o acompanhamento da missão. Fala-se na chegada da missão militar (de 3 elementos) da OUA  a Conacri a 15 de junho, mas a carta, manuscrita, de 5 páginas não tem indicação do ano: "É muito possível que o Luís os acompanhe. Depois de visitarem o Sul, irão ao Norte, onde temos de acabar para sempre com as mentiras dos oportunistas" (sic) (referência à FLING):

A delegação da OUA, no Norte,  terá percorrido, durante quase uma semana, cerca de 250 quilómetros, o que nos parece exagero (no caso de o trajeto ter sido feito sempre a pé). Partindo do Senegal, começaram pela base de São Domingos, no noroeste do território, sendo armados (sic) pelo ‘comandante’ Lúcio Soares. O LC e o o seu protegido Xico Mendes acompanharam toda a missão que visitou também a bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari.

Esclarece-nos o LC, que a entrada principal para a Frente Norte, passando pela fronteira com o Senegal, durante muito tempo, situava-se no sector de Sambuiá (pág. 288).

A força do PAIGC ali estacionada tinha como missão assegurar a passagem de homens e material, da fronteira ao rio Farim.

A base situava-se “a pouco mais ou menos três horas de marcha da fronteira” (sic). A vegetação era exuberante, devido à elevada humidade da região. A base era, por isso, das mais frias da Frente Norte, sobretudo no final e princípio do ano . (A referência de LG ao frio que se fazia sentir logo de manhã, leva-nos a pensar que a visita tenha ocorrido em finais de 1965.)

O comandante da base de Sambuiá era então o Bobo Queita, antigo jogador de futebol.  A base tinha abrigos, estando ao alcance da artilharia de Farim. Daqui a missão seguiu em direção da cambança da margem direita do rio Farim, onde uma canoa devia transportá-los a Jagali (lê-se: Djagali) (pág. 289).

Entre a mata de Sambuiá e o rio Farim há uma “larga e descampada planície”, uma enorme lala em que se fica a descoberto.

“Nô pintcha!”, dizia-se então. A expressão tinha vários significados, segundo o autor: 

”Era a chamada para a guerra para a marcha, para a comida, talvez até para o amor” (…) Ou seja: “chamava à realização de algo que exigia a participação de mais de uma pessoa” (pág. 289). 

A expressão não se sabe onde nasceu, durante a guerrilha, se no Norte, no Sul ou no Leste, di o LC.

“A imensa lala de Sambuiá, que se atravessava sem um suspiro de descanso, devido ao perigo que representava ser-se ali surpreendido pela aviação inimiga, ia-se tornando cada vez mais pesada à medida que se aproximava do rio” (pág. 289).

O rio Farim era navegável. Os barcos das companhias comerciais (Gouveia, Ultramarina, etc.) iam a Bigene, a Binta e mesmo até Farim para trazer a mancarra, o coconote ou a “maalira” (que eu não sei o que é, mas presumo que seja uma corruptela de “madeira” ).

O LC aproveita para descrever a paisagem:

“A paisagem que se desfrutava da cambança era de uma beleza impressionante. O rio estenda-se em curvas sinuosas ao longo da sua bacia, bordada nas duas margens pelo verde exuberante das matas de tarrafes, com os seus ramos e raízes emaranhados, donde se destacavam troncos esguios de altura surpreendente (pág. 290).

As populações da margem direita “cedo aderiram à luta de libertação” (sic) (pág. 291), e por isso aquela era uma zona de guerra. Para a guerrilha era um risco permanente atravessar o rio. Sabemos que as NT (sobretudo os fuzileiros) montavam emboscadas em pontos de cambança já conhecidos. Será aqui que morreram em 1972 a Titina Silá.

Feita a cambança, em canoa, a missão dirigiu-se para Djagali, reconstruída pela população (pág. 292). Aquando da receção da comissão da OUA , um navio da marinha flagela Djagali (pág.293).

Mas eram “raras as pessoas” (sic) que se apresentaram para saudar os visitantes. Explicação do LC:

“Havia algum tempo que as populações abandonavam as suas habitações, depois do bombardeamento da tabanca, antes do romper do dia, para só regressarem depois do sol posto, quando a aviação já não podia trazer à tabanca a morte ou a dor com as suas bombas criminosas” (pág. 292).

Os combatentes das FARP eram jovens cuja idade média não ultrapassava os 20 anos” (sic). Trajavam uniformes “muito variados”, com “calças e camisas muito diferentes umas das outras” (pág. 292).

Uma hora depois LC e os seus convidados estavam em Maqué. O comandante era o Quemo Mané (pág. 294). À noite ouviu-se uma explosão, ali perto. Um jovem auxilitar de enfermagem tinha accionado uma mina A/P, que lhe provocou a morte.

“Elementos das milícias coloniais africanas de Bissorã tinham-se infiltrado na área, certamemte no começo da noite, para colocar a mina antipessoal (…) no caminho que ligava a antiga base à fonte de Maqué” (pág. 294).

Os militares da OUA ainda visitaram as bases de Morés e Canjambari. Sabemos, pelo que conta LC, que produziram um relatório. Eu gostaria de o ler e confrontar com o relatondo do LC. Mas onde encontrar, na Net, esse relatório da OUA de 1965?

Parece que as relações do PAIGC com o Senegal de Senghor melhoraram um bom bocado, a partir daí, autorizando o governo senegalês o trânsito de homens e mercadorias pelo seu território. Mas não autorizava ainda que o PAIGC dispusesse de depósitos de armas e munições. Foi um passo: a partir daqui começaram a aparecer, cremos  que em 1967,  os primeiros “armazéns do povo”  (nome algo pomposo...para abastecimento de víveres e outros artigos não só à guerrilha como às populações da linha fronteiriça sob controlo do PAIGC (pp. 296/297).

Sabe-se que em outubro de 1965 , o Amílcar Cabral tinha marcado mais uns pontos: o seu partido fora reconhecido pela OUA como "o único movimento de libertação" da Guiné. No mesmo mês em que Portugal conseguia obter o fornecimento de 40 Fiat-G 91 R/4 por parte da Alemanha, fora dos acordos da NATO.

(Continua)


Guiné > Região do Oio >  Localização aproximada de algumas das "barracas" (ou bases...) do PAIGC  por onde terá passado, em visita, em 1965, a primeira missão militar da OUA:  Sambuiá, Maqué, Morés e Canjambari... Não consta que tenham os homens da OUA tenham ido com o lC do a Sará, que era mais longe e arriscado...

Infografia: Jorge Araújo (2018)
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Nota do editor:

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24088: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte III: A fuga para Dacar, nos princípios de 1960, com a ajuda do madeireiro e antigo deportado político Fausto da Silva Teixeira


Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). A Associação (também comhecida por Câmara do   Comércio de Bissau) ficava junto ao palácio do governador... O projeto é de um jovem arquitecto de Lisboa, Jorge Chaves (1920-1981), e a remonta  à segunda  metade da década de 50. Depois da saída dos portugueses em setembro de 1974, a sede da Associação Comercial  passará a ser, muito naturalmente, a sede do PAIGC, ou seja dos novos senhores da guerra, com Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral (1923-1973), como primeiro presidente da jovem república da Guiné-Bissau.

Na opinião de outros arquitectos de renome que trabalharam para África, o edifício desenhado por Jorge Chaves (com murais de José Escada), pelo arrojo das suas linhas, conforto, mordernidade e até riqueza, não ficava atrás da arquitectura de Brasília, por exemplo, e era unanimemente considerado como o melhor edifício que Portugal  deixou  em Bissau, do ponto de vista arquitectónico.

Nascido em Santo Antão, Cabo Verde, J
orge Chaves não pertencia ao Gabinete de Urbanização Colonial (ou do Ultramar, como passou a ser chamado, a partir de 1951), e daí talvez a razão do projeto ter uma modernidade que não seria possível dentro do paradigma da arquitectura colonial de então, marcado pelos constrangimentos da funcionalidade, adaptação ao clima, resistência e uso de materiais de baixo custo de manutenção.

Foto: © Agostinho Gaspar (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


Anúncio comercal, publicado em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.  Digitalização: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné LG. O Mário Vasconcelos faleceu, infelizmente, em 2017.]

1. O madeireiro Fausto da Silva Teixeira podia ser considerado "simpatisante" da causa nacionalista (leia-se: do PAIGC). Mas nunca foi "militante"... Tinha serrações modernas, mecânicas, em Bafatá, Fá Mandinga e Banjara, antes da guerra.   A sua firma foi fundada logo em 1928. Sabemos que em 1947 já estava plenamente integrado na sociedade guineense, sendo um empresário respeitável... Como o próprio Amílcar  Cabral (AC), conceituado engenheiro agrónomo até 1960...

No nosso blogue temos uma dúzia de referências ao Fausto Teixeira. Num dos postes que já publicámos (*), reproduzimos um documento, de setembro de 1966, dactilografado, de 16 páginas (capa incluída), que tem a chancela do PAIGC, e  que se destinava a dar a conhecer (e a combater) "os interesses capitalistas estrangeiros (portugueses e não portugueses) na Guiné e Cabo Verde" (sic) (*). Estranhamente (ou nem por isso),  não vem o nome da firma Fausto da Silva Teixeira.

De facto, no ponto XII, há referências aos "madeireiros", mas as empresas citadas são apenas três, e nenhuma delas nossa conhecida... A omissão do nome do Fausto da Silva Teixeira, é capaz de fazer sentido.

Na altura dissemos que, em relação à fonte da informação documental, no essencial, e tendo em conta o detalhe dos dados, parecia-nos ser de origem portuguesa, fornecida pelos meios oposicionistas que então combatiam o regime de Salazar. (talvez a partir de Argel).

O nome de Fausto Teixeira  também  não aparece na lista das 600 personalidades que constam, como tal, no respetivo blogue e na respetiva página do Facebook ("notas biográficas de cidadãs e cidadãos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo"). 

Mas o mesmo acontece com outros dos seus companheiros de desventura: de facto, também não contam dessa lista os nomes de Gabriel Pedro (1898-1972) (igualmente desterrado para a Guiné e depois para o Tarrafal, tal como o seu filho Edmundo Pedro) e de Manuel Viegas Carrascalão (1901-1977) (operário gráfico, anarcossindicalista, preso sob a acusação de bombismo e de pertencer, tal como Fausto Teixeira e Gabriel Pedro, à "Legião Vermelha", acabando por ser desterrado para Timor em abril de 1927, no navio "Pêro de Alenquer", numa viagem que vai demorar 5 meses, com passagem por Cabo Verde, Guiné, onde desembarcam alguns deles e entram outros, e Moçambique onde é rendido o comandante do navio.).

No caso do Fausto Teixeira, a omissão do seu nome,  talvez possa ser devida ao facto de lhe terem perdido o rasto, desde que, com vinte e poucos anos, foi desterrado para a Guiné, em 1925, não pelo "fascismo" da Ditadura Militar / Estado Novo,  mas ainda pela I República em fim de vida.

De qualquer modo, Guiné e Timor eram dois dos piores sítios do nosso glorioso Império para onde o Estado mandava os desgraçados dos "desterrados políticos", sendo ali entregues à sua sorte. Para este inferno, que eram estas duas colónias, iam em geral os indivíduos de profissões manuais ou, no caso de militares, os soldados e os marinheiros. Enfim, até no exílio e deportação, todos eram iguais mas uns eram mais iguais do que outros.

Em todo o caso sabe-se, desde pelo menos a publicação, em Portugal, em 1984, das memórias do Luís Cabral ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 464 pp., uma edição miserável, o livro, brochado, em que as folhas nems equer são cosidas, apenas coladas, desconjuntando-se todo...), que a fuga deste para Dacar, capital do  Senegal, em princípios de 1960, só terá sido possível com a cumplicidade  e ajuda de dois portugueses, deportados políticos, e oposicionistas ao Estado Novo:

(i)  Maria Sofia Carrajola Pomba [Amaral da Guerra, por casamento], farmacêutica, dona da Farmácia Lisboa, em Bissau (alguns dos seus ajudantes ou empregados destacar-se-iam depois como militantes  do PAIGC, o Epifânio  Souto Amado e o Osvaldo Vieira); apesar de ter ficha na PIDE, vai para a Guiné, nos princípios dos anos 50, com o marido:

(...) "o seu apoio, ao embrionário nacionalismo independentista, é reconhecido pelos históricos dirigentes do PAIGC  que não poupam elogios ao seu papel na luta anticolonialista, nomeadamente no auxílio à organização clandestina de reuniões, na prestação de informações relevantes sobre prisões iminentes, como a de Carlos Correia, e na preparação de fugas, como a de Luís Cabral (auxiliado também por Fausto Teixeira)" (**)

(ii)  Fausto Teixeira (há dúvidas sobre a sua idade: um seu neto diz que nasceu em 1900 e morreu em 1981, mas sabe-se que desembarcou na Guiné em 1925).

2. Vamos ver, na "Crónica da Libertação",  algumas passagens sobre a fuga do Luís Cabral (LC)

O LC era "guarda-livros" (noutras passagens intitula-se contabilista...)  na Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF. Mas o seu trabalho político clandestino, no seio do PAI (ainda não se usava a sigla PAIGC) começou a levantar suspeitas da polícia política, mais organizada e ativa depois dos "acontecimentos" de 3 de agosto de 1959 (greve dos marinheiros e trabalhadores das docas do Pijiguiti). 

Na altura o PAI ainda estava confinado a Bissau e era formado por pouca gente,  sobretudo de origem cabo-verdiana, pequeno funcionalismo de 3 ou 4 empresas: além da Casa Gouveia, a NOSOCO, o BNU, os CTT... E a versão sobre o Pijiguiti, onde a Casa Gouveia e o seu subgerente, António Carreira, tiveram muitas culpas no desfecho trágico da greve (pp. 65-70) está muito mal contada por  LC: o PAI quis chamar a si, indevidamente, os louros...

Em contrapartida, "na Casa Gouveia, o meu trabalho profissionalmente sério continuava dando os seus frutos, num momento em que os homens do grupo CUF (Companhia União Fabrl) começavam a aceitar a necessidade de alguma africanização dos quadros superiores da empresa" (pág. 81).

Com uma boa opinião dos patrões, gabinete novo, casa própria, um bom salário, a mulher também tinha um bom emprego, um casal com respeitabilidade e  prestígio na comunidade, etc., o LC tinha tudo para fazer uma boa carreira na empresa. Mas a sua opção foi outra: seguir o irmão, AC, na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Estamos na véspera na inauguraçao da Associação Comercial, Agrícola e Industrial da Guiné, um edifício moderno, de arquitetura arrojada para a época, pago pelo Governo central.

Aristisdes Pereira,  que era chefe da Estação Telegráfica dos CTT (e o Fernando Fortes era  o chefe da Estação Postal, na prática os "donos" dos CTT) , em Bissau, consegue interceptar um telegrama em que o administrador da Gouveia (que tinha vindo  de propósito de Lisboa para assistiir às "festividades" em Bissau)  telefonou para a sede a pedir um novo guarda-livros para a empresa, já que o LC ia ser preso... Mas só "depois de encerradas as contas  do ano comercial findo",  a pedido da própria empresa...  (pág. 83), o que dá uma ideia da promiscuidade entre a PIDE e alguns meios empresariais...

A notícia, confirmada pela dra. Sofia Pomba Guerra (que tinha bons contactos com, pelo menos,  um oficial do exército), pôs em marcha o dispositivo para a fuga: "um antifascista português estava pronto a encarregar-se de me fazer sair, a todo o momento, do país" (pág. 83).

Fausto Teixeira é descrito como um "deportado político e muito conhecido pelas suas opiniões contra o governo fascista".

Pormenores da fuga, relativamente segura e discreta,  podem ser lidos nas páginas 83-87.

(i)  na véspera de partir o LC não escapou aos rituais da superstição que os seus "camaradas de Partido" lhe impuseram: ao sair de casa tinha que deixar cair um ovo no chão; se ele não se partisse,  devia desistir da viagem (!) (pág.  84);

(ii) o automóvel do Fausto era um Peugeot 203, pintado de cor azul forte ("se a memória não me falha") (pág .85);

(iii) o LC entrou no carro do Fausto, ja era noite, frente ao cinema UDIB, um dos sítios mais iluminados da Av. da República,  deitou-se no chão,  enquanto o carro  seguia lentamente pela Av. da República acima:

(iv) O condutor, por sua vez, "ia tranquilamente saudando as pessoas pelo caminho e  até parou  escassos segundos para dizer  algumas palavras ao inspector da PIDE que estava sentado na esplanada na Pastelaria Império " (pág. 85);

(v) a PIDE nunca suspeitou do plano: esperava que o LC caísse na armadilha de levar o seu próprio carro, daí ter posto guardas na ponte de Ensalma e à entrada de Mansoa: Fausto usou um dos seus camiões para ludibriar a vigilância dos guardas...

(vi) conhecido dos guardas, o Fausto não teve necessidade de parar: o LC atravessou a ponte escondido no  camião: já na estrada de Nhacra,  saiu do camião e voltou a entrar no automóvel e tudo correu bem até ao fim da viagem, perto da fronteira com o Senegal:

(vii) (...) "foi uma viagem agradável. O meu companheiro falou muito da sua vida política em Portugal, da sua prisão e do seu envio para a Guiné. Aqui o Governador deportou-o para a ilha de Bubaque, donde não podia sair.  Pouco a pouco a pressão  foi no entanto diminuindo, até ele poder viver como toda a gente" (pág. 85).

(viii) o LC acrescenta mais, para justificar o gesto altruísta do madeireiro:

 "Queria ajudar a luta de libertação da Guiné. (...) Considerava-se devedor dessa contribuição. Para já, estava em condições de tirar do pais qualquer militante que tivesse que sair. (...) Tinha pintado uma tira branca numa grande árvore, mesmo à entrada do entroncamento  que conduzia à serração, partindo da estrada de Mansabá a Bafatá" (pp. 86/87).

(viii) E conclui:

(...) "Entrámos na serração e logo a seguir continuámos em direção à fronteira, perto da localidade de Fajonquito. A  estrada tinha sido aberta pela Missão Geo-Hidrográfica e nunca era utilizada. A mata era tão cerrada que muitas vezes o caminho parece de longe não poder dar passagem a um carro. (....) Pouco depois, passávamos ao lado da tabanca de Fajonquito e  em seguida o meu companheiro parava o carro e mostrava-me  a tabanca senegalesa de Salekenié. (...) Devia ser por volta das três horas da madrugada quando nos separámos. (pág. 87).

Admitindo que o Fausto e o LC tenham partido às 20h00 de Bissau e chegado às 3h00 da manhã, à fronteira, logo a seguir a Canhanima (com Fajonquito à esquerda) e Cambaju (o "chão" do nosso Cherno Baldé) terão percorrido pouco mais de 200 km em 6/7 horas... Na época, e em plena estação seca (estávamos em janeiro), e ainda não havendo guerra (minas, emboscados, abatises...) até foi uma boa média... (No tempo das chuvas, e em plena guerra, eu cheguei a fazer um quilómetro por hora, na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho...)

Como não conhecemos outras versões deste episódio, não podemos confirmar ou infirmar a veracidade dos factos. Mas tudo indica que se terá passado mais ou menos assim como o LC descreve. (****)

PS - A grafia correta da aldeia fronteiriça senegalesa, em frente  a Cambaju,  deve ser Selikenié, segundo o mapa da Google,  e não Salekenié, como escreve o LC. (Mas aqui o Cherno Baldé deu-nos uma ajuda: a grafia portuguesa é Saliquinhé; não confundir com  Saliquinhedim, a sul de Farim, que os militares portugueses conheciam melhor por K3; os topónimos guineenses são tramados.)




Guiné > Carta da província (1961) > Escala 1/500 mil  > Provável percurso do Luís Cabral e do Fausto Teixeira, numa noite de janeiro de 1960, de Bissau até à fronteira do Senegal (Selikinié / Saliquinhé), passando por Mansoa. Mansabá, Banjara, Camamudo, Contuboel e Cambaju... Segundo o Cherno Baldé, os nossos homens teriam evitado Bafatá e seguido de Banjara para Camamudo, e depois apanhando a estrada Bafatá-Contuboel-Senegal... Fajonquito fica ao lado de Canhámina(estamos em pleno coração do "chão" do nosso amigo Cherno Baldé).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

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(***) Vd.postes de:


18 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17482: (De) Caras (84): Fausto Teixeira, deportado político em 1925, empresário em Bafatá, de quem o 2º tenente Teixeira da Mota, ajudante de campo do governador Sarmento Rodrigues dizia, em 1947, ser um "incansável pioneiro da exploração de madeiras da Guiné"... Mais três contributos para o conhecimento desta figura singular (José Manuel Cancela / Jorge Cabral / Armando Tavares da Silva)

16 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17477: (De) Caras (83): Ainda o madeireiro Fausto da Silva Teixeira, com residência familiar em Palmela, amigo do "tarrafalista" Edmundo Pedro... Apesar da "amizade" com Amílcar Cabral e Luís Cabral, teve um barco, carregado de madeiras, atacado e incendiado no Geba, a caminho de Bissau...

8 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17447: (De) Caras (75): Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925, dono de modernas serrações mecânicas (Fá Mandinga, Banjara...) a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e respeitável em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960..."Quem foi, afinal, o meu avô?", pergunta o neto Fausto Luís Teixeira (nascido em Ponte Nova, Bafatá, onde viveu até aos três anos)..

(****)  Vd. postes anteriores da série:

2 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos- Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24040: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte II: O comandante Pombo que intercedeu junto do 'Nino' Vieira por causa da situação humilhante em que se encontrava o Luís Cabral, detido no Forte da Amura, sem cinto nas calças e atacadores nos sapatos, depois do golpe militar de 14/11/1980


Foto nº 1 > Guiné > c. 1972/74 > O comandante Pombo aos comandos de um Cessna dos  TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) (era uma aeronave muito melhor equipada com instrumentos de navegação do que a DO-27)


Foto nº 2 > Guiné > c. 1972/74 > Imagens do Cessna, vermelho, pilotado pelo comandante Pombo (foto nº 1), dos TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) em que o nosso camarada Álvaro Basto, ex-fur mil enf, CART 3492 (Xitole, 1971/74)  fez várias viagens entre o Xitole e Bissau, nos anos da sua comissão.

Fotos (e legendas): © Álvaro Basto (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1º Srgt Pombo, piloto de F-86-F Sabre,
BA 5, Monte Real, 1961.

1. Há histórias que andam por aí perdidas, no nosso blogue, na floresta-galeria dos mais de 24 mil postes publicados desde 2004, e que fazem mais sentido se as situarmos num contexto de "memórias cruzadas". Por outro lado, é difícil dizer onde começa(m) e acaba(m) a(s) nossa(s) história(s), mesmo que seja(m) com h pequeno.

No seu livro de memórias (*), o Luís Cabral (1931-2009) não fala do seu piloto privativo, o comandante Pombo, pela simples razão de que o livro acaba no dia seguinte ao assassinato do irmão Amílcar Cabral (1924-1973).  

Ao que parece, esteve ( prometido um segundo livro com as "memórias presidenciais" (1973-1980) que, infelizmente, nunca chegaram a ser escritas ou, pelo menos, publicadas. E nesse segundo volume talvez o Luís Cabral quisesse (u pudesse) fazer a justiça de evocar, pelo menos, o nome do dedicado piloto, português,  do seu avião a jato, presidencial, um Falcon...

O mítico comandante Pombo, José  Luís Pombo  Rodrigues (1934-2017),  também já não está, fisicamente, entre nós. Morreu há seis anos, em 2/9/2017. Tinha 83 anos, feitos em 3 de junho desse ano.  

Tive o privilégio de falar com ele, duas ou trêz vezes, não na Guiné mas já cá, a primeira vez foi em 3/2/2015: tinha regressado, por razões de saúde, do Brasil (para onde fora viver em 2010). Tivemos uma longa conversa ao telemóvel. Depois conhecemo-nos pessoalmete e  estivemos juntos, pelo menos duas vezes, na Tabanca da Linha. 

Ao telefone, o nosso camarada, José Luis Pombo Rodrigues, popular e carinhosamente conhecido como o comandante Pombo, começou por falar-me dos problemas de saúde que o preocupavam então, e que terão motivado o seu regresso a Portugal. Transmiti-lhe os nossos votos de rápidas melhoras, em nome dos amigos e camaradas da Guiné, depois disso, recuperada a saúde, ele arranjaria, por certo, tempo e disposição para passar à escrita muitas das suas histórias e memórias da FAP e da Guiné, antes e depois da independência, e partilhá-las connosco. Infelizmente isso não chegou a acontecer. Mas ingressou, postumamente, na Tabanca Grande, e a sua presença, sob o nosso poilão, honra-nos a todos. (*)

O Pombo era então capitão piloto reformado.  Tinha feito, segundo bem percebi, 4 comissões na Guiné. Vivia em Bucelas, sendo grande amigo do major gen paraquedista Avelar de Sousa, que passou pelo TO da Guiné, integrando o BCP 12, como comandante da CCP 123 (1970/71), e foi ajudante de campo, entre 1976 e 1981, do gen Ramalho Eanes, 1º presidente da República eleito democraticamente no pós 25 de abril. E esse facto é relevante para se perceber a influência, discretíssima, que o comandante Pombo terá tido na libertação do ex-1º primeiro ministro da Guiné-Bissau, Luís Cabral, depois do golpe de Estado do ‘Nino’ Vieira em 1980.  Pareceu-me que não haver aqui imodéstia ou fanfarronice.

O comandante Pombo privou com os dois, o Luís Cabral e o 'Nino' Vieira. Dos dois era inclusive "amigo". Ao ‘Nino’ Vieira tratava-o mesmo por tu. E o Pombo continuou a ser o comandante Pombo, depois da independência da Guiné-Bissau. 

Terá havido, ao que parece,  um acordo entre as novas autoridades de Bissau e o governo português para que ele ficasse na Guiné... Desconheço as condições em que ele lá ficou. Sabemos que o PAIGC não tinha pilotos (muito menos MiG ou outros aviões). O comandante Pombo pilotava o pequeno Falcon que fora oferecido ao Luís Cabral, já não sei por quem (talvez pelos suecos). 

O Luís Cabral gostava muito do cmdt Pombo, e sempre que viajava com ele trazia-lhe uma garrafa de... champagne. (É interessante que o PAIGC não tinha ido buscar um piloto cabo-verdiano como o antigo sargento piloto, da FAP, o Honório Brito da Costa  (de resto mais novo, nasceu em 1941, sendo também um perfeito conhecedor dos céus da Guiné: depois de servir na FAP, no CTIG, onde terá feito duas comissões, regressou à sua terra; foi piloto comercial nos TACV - Transportes Aéreos de Cabo Verde, onde terá chegado a comandante).

Depois veio o golpe militar do ‘Nino’ em 14/11/1980 e o Luis Cabral ficou preso na Fortaleza da AmuraSem cinto, por alegadas razões de segurança!... (E possivelmente sem atacadores nos sapatos: é dos livros.)

O comandante Pombo foi visitá-lo e encontrou-o sem cinto, com as calças na mão, numa situação caricata e humilhante para um ex-chefe de Estado… Diziam-lhe, os seus carcereiros, que era para ele não poder fugir. Achando essa uma situação indigna, o Pombo foi falar ao seu amigo ‘Nino’, que lhe deu razão…

Mais tarde o Pombo moveu as suas influências, junto do seu amigo e camarada Avelar de Sousa… O presidente Ramalho Eanes, como é sabido publicamente, exerceu forte influência junto de ‘Nino’, no sentido de obter a libertação de Luís Cabral, preso há 13 meses. Primeiro, foi para Cuba e mais tarde veio para Portugal, tendo passado também, antes, por Cabo Verde.  Acabou por viver o resto da sua vida (cerca de 25 anos) em Portugal: viria a morrer, no antigo Hospital do Barro, em Torres Vedras, em 30/5/2009. Ramalho Eanes e Luís Cabral tinham muita estima mútua.

2. A este propósito o António Rosinha que viveu e trabalhou na República da Guiné-Bissau (era topógrafo na empresa TECNIL), depois da independência, entre 1979 e 1993, escreveu o seguinte comentário no poste P24031 (*):

"(...) Até certo ponto, o Presidente Ramalho Eanes teria dois motivos para receber bem, muito bem, o exilado Luís Cabral. E se não estou equivocado, também foi atribuída uma "mesada" ao presidente exilado.

Mas um dos motivos no meu entender, para Ramalho Eanes receber bem Luís Cabral, seria motivo político, era um ex-presidente de um PALOP.

O segundo motivo, no meu entender, seria um caso pessoalmente muito motivador, é que Luís Cabral proporcionou uma recepção na Guiné ao Presidente Ramalho Eanes, de tal maneira calorosa que passados mais de 2 anos dessa visita (1978), ainda se viam grandes cartazes com a foto do nosso Presidente, intactas e bem tratadas, nas mais importantes ruas da cidade de Bissau.

Mais tarde já com Nino na presidência, Ramalhos Eanes também foi bem recebido, mas não com tanta euforia. (...)"


Voltando ao comandante Pombo: contrariamente ao boato que corria na Guiné, no tempo da guerra colonial, ele nunca esteve feito com os “turras”… E a prova disso é que umas das aeronaves (não era um Cessna, era uma outra avioneta tipo DO 27…) foi perseguida por dois mísseis Strela, já depois do último avião da FAP ter sido abatido (em 31/1/1974, no leste do território)…

Ele contou-me os pormenores ao telemóvel: deve ter sido, deduzo eu, por volta de março ou mesmo abril de 1974, um ano depois do aparecimento dos Strela. O comandante Pombo vinha de Bissau para Farim, na “carreira normal” dos TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa)… O PAIGC (o Manecas dos Santos) conhecia o horário e os apontadores do Strela estavam à espera da aeronave nas imediações de Farim…

Havia a indicação de que a guerrilha queria mesmo cortar todas as ligações aéreas com o nordeste da Guiné. Deve ter havido falhas na segurança militar, nas imediações da pista de aviação… Para iludir os guerrilheiros, o comandante Pombo vinha com a sua avioneta a baixa altitude e a baixa velocidade. como mandavam as regras de segurança emitidas pela FAP no período pós-Strela. Mas antes de chegar ao destino ele fez inteligentemente uma mistura de combustível que não deixava rasto, isto é, "fumaça"… E, antes de aterrar, terá feito uma manobra de subida, na vertical, seguida de um voo a pique…

Foi o que eu percebi, desculpem-me se o relato é tecnicamente grosseiro… Mesmo assim não se livrou de ver passar-lhe, por perto, dois mísseis que lhe vinham dirigidos… Conseguiu, por fim, aterrar em segurança… "Não ganhei para o susto: os auscultadores saltaram-me da cabeça!", confessou-me ele...

3. Esta é umas das suas muitas histórias de piloto lendário, desde a famosa "Missão" de 1961, que já aqui foi contada (**)... De facto, o que muita gente também não sabia (eu incluído…) é que o comandante Pombo era um orgulhoso sobrevivente da “Operação Atlas”, a primeira (e única) travessia Monte Real – Bissalanca, feita pela Esquadra 51/201 (BA 5), constituída por aviões F-86F “Sabre”, realizada em agosto de 1961… Era então um jovem 1.º sargento piloto, com 27 anos...

O comandante Pombo esteve depois muitos anos no antigo Zaire em Kinshasa a trabalhar como piloto da companhia Sicotra Aviation (aviões de carga). Trabalhou ainda em Angola antes de ir para o Brasil em 2010.

O  que o Pombo nunca foi, isso não,  foi "piloto privativo" do Sékou Touré, a seguir à independência da Guiné-Bissau, como chegou a constar por aí... Esse boato foi desmentido pela filha, Maria João Pombo Rodrigues. 

Nas conversas que tive com ele, apercebi-me apenas que tinha pilotado o pequeno Falcon da presidência da Guiné-Bissau, tendo estado ao serviço do Luís Cabral e depois do 'Nino"... E que nessa condição chegou a levar várias vezes o presidente de São Tomé e Príncipe, Manuel Pinto da Costa, isso sim, no avião que era do Luís Cabral e que este emprestava ao seu amigo são-tomense... 

O comandante Pombo tem 24 referências no nosso blogue.  Já agora publicamos a seguir uma foto de grupo, tirada na BA 12, Bissalanca, em 1973, em que aparece o Pombo. Cortesia do Miguel Pessoa e do blogue dos Especialistas da BA 12, Guiné 65/74). (****)




Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1973 > Foto (histórica) de grupo com diversos pilotos (sargentos e oficiais, alguns já nossos conhecidos e referenciados no nosso blogue, como por exemplo - citamos de cor - o cor Moura Pinto, o ten cor Lemos Ferreira ou o cap Branco) e duas enfermeiras (a Giselda e a Piedade). O Pombo (que nessa altura já estava nos TAGP, não sabemos quando entrou) é o terceiro da primeira fila, a contar da direita para a esquerda. (E em quinto lugar, o nosso então ten pilav Matos, António Martins de Matos, hoje ten gen ref; o Miguel Pessoa não aparece na foto, pode ter sido ele o fotógrafo.)

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 2 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Vd. também o poste de 4 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O Nino e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)


(***) Vd. poste de 4 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14218: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (32): Falei ao telefone com o comandante Pombo, amigo de Luís Cabral e de 'Nino' Vieira... e sobretudo um orgulhoso sobrevivente dos Strela (em 1973/74) e da "Operação Atlas", em agosto de 1961 (travessia, com uma esquadra de F-86F “Sabre”, Monte Real-Bissalanca, num total de 3888 km e o tempo de 7h50 sobre o Atlântico) (Luís Graça, com José Cabeleira, cap TMMA ref, Leiria)

(...) No dia 8 de agosto de 1961, oito F-86F "Sabre" descolaram da BA-5 para dar início a uma longa viagem que os levaria até Bissalanca (!)... Os aviões escolhidos para a missão foram os seguintes 5307, 5314, 5322, 5326, 5354, 5356, 5361 e 5362. A missão foi executada com êxito, os 8 aviões aterraram em Bissalanca no dia 15 de agosto. Segundo informação do blogue dos nossos camaradas "Especialistas da BA 12, Guiné, 65/74", o Pombo terá levado para Bissalanca o F-86F "Sabre" 5314.  (...)



(****) Blogue Especialistas BA12 Guiné 65/4 > 28 de fevereiro de 2014 > Voo 3068 > A Minha Colaboração (Miguel Pessoa, cor pilav, Lisboa)