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quinta-feira, 10 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7919: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (80): Na Kontra Ka Kontra: 44.º episódio




1. Quadragésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 9 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


44º EPISÓDIO

Neste espectacular NA KONTRA o Dionildo conta a sua história:

Depois de o Alferes ter ido embora de Madina Xaquili e devido à pressão do PAIGC, passou a andar aterrorizado. Logo no primeiro ataque à tabanca, conhecendo o caminho para Bambadinca, resolve desertar. Contorna Galomaro de forma a não ser visto e em Bambadinca, apanha boleia de uma coluna que vai para o Xime com pessoal e material para embarcar numa LDG, com destino a Bissau. Numa situação como esta não era costume os próprios camaradas perguntarem pelas Guias de Marcha. Chegado a Bissau, junto do Cais da Amura onde as lanchas costumavam atracar, logo verificou que na Ponte Cais estava também o navio Uíge, de transporte de tropas. Soube que o barco ia partir à noite e pensou embarcar. Se bem o pensou melhor o fez. Apesar de ser o único militar a bordo vestido de camuflado, ninguém lhe perguntou o que quer que fosse, também pelo facto de irem no barco muitos militares de rendição individual. Ele seria mais um. Passada uma semana, desembarcava em Lisboa. Veste-se à civil com roupa que levava num pequeno saco e ruma ao Porto apresentando-se ao trabalho na empresa onde tinha trabalhado antes de ir para a tropa, a empresa do agora sogro do nosso Magalhães Faria. Passados precisamente quarenta dias aparece-lhe na empresa a Polícia Militar que rapidamente o mete num avião rumo a Bissau, agora com Guias de Marcha para a sua antiga Companhia, sediada em Madina Xaquili. Como perspectiva tinha outra comissão, a começar agora. Com o contínuo agravar da situação, passados poucos dias é planeada uma operação de alto risco, com a intervenção de um Pelotão de Comandos helitransportados e, para a qual, se pediram voluntários. O Dionildo viu ali uma possibilidade de limpar a sua “folha militar” e ofereceu-se. Tudo correu muito melhor do que esperava e até veio a ter um louvor. Retiraram-lhe o castigo e regressou à Metrópole com a sua Companhia. E o Dionildo termina dizendo:

- E aqui estou na empresa onde sempre trabalhei Senhor Faria.

– Magalhães Faria, Faria há muitos.

1990. Passaram 20 anos. Tinha havido a revolução de Abril. Deu-se a descolonização. Houve algumas convulsões na sociedade portuguesa. Embora readquiridas as liberdades a vida das pessoas não melhora substancialmente.

Quanto a Magalhães Faria as coisas não correm pelo melhor com a sua mulher. Não entrando em pormenores considerados íntimos nem considerando que tinham vinte anos de vida em comum ele, não suportando mais a situação artificial em que vive, escolhe o melhor momento e resolve divorciar-se. Os dois filhos do casamento, como já são crescidos compreendem perfeitamente o acto do pai.

Pouco tempo depois, por não querer estar dependente do pai da sua ex-mulher, começa a pensar em mudar a sua situação profissional. Para ganhar tempo e pensar bem na decisão a tomar, resolve fazer umas férias.

Na agora Guiné-Bissau não deixou de haver também convulsões políticas, inclusive com derramamento de sangue, muito sangue se pensarmos nos guineenses que serviram as tropas portuguesas. Em 14 de Novembro de 1980 e na sequência da política dos “burmedjus” de Luís Cabral, Nino Vieira, um papel, assume o poder. Em 1985 num considerado pseudo golpe, são fuzilados vários elementos ligados ao poder, entre eles Paulo Correia e Viriato Pã, conceituados balantas. Em 1990 são depurados mais balantas na continuação da mesma política de agradar às outras etnias. É neste ano que por causa da pressão internacional, o Presidente Nino anuncia a abertura democrática que se concretizará em 1991 com a revisão da Constituição.

É a pensar numa certa estabilização existente na Guiné, face à anunciada democratização, que Magalhães Faria, como que inoculado por um vírus, sente o chamamento de África. Pensa então numa ida a Bissau ver “in loco” como estão as coisas e se haveria alguma hipótese de montar lá um negócio. O recente divórcio muito contribui para isso. Combina ir com seu filho mais velho, proporcionando-lhe assim umas férias, e leva consigo o seu amigo de longa data, Dionildo.

Bissau, época seca. Chegados a Bissau são estabelecidos vários contactos. Magalhães Faria costuma reunir-se com os seus conhecidos no Café Restaurante da “D. Berta”, único local onde se sente à vontade, para além do Hotel. O Dionildo, pelo seu carácter mais extrovertido, já tinha estabelecido imensos contactos com vista ao que lhe pareceu, quer a ele quer a Magalhães Faria, ser uma boa oportunidade: Verificam que todos os transportes de pessoas e mercadorias eram feitos à custa de carrinhas de 8/9 lugares, conhecidas por toca-toca, transformadas para levarem o dobro de passageiros. Também de imediato verificam que essas carrinhas têm muita procura. Daí a congeminar um plano de trazerem viaturas usadas de Portugal e ganhar de sobra para viver, foi um passo.

Um dia, encontrando-se Magalhães Faria a almoçar com o filho na “D. Berta”, chega o Dionildo e de chofre diz-lhe:

- C… sabe quem está ali em baixo à porta? A sua primeira mulher.

O filho do Magalhães Faria arregalou os olhos e este ficou lívido.

- E sabe quem está com ela? Aquela bajudinha muçulmana que nasceu em Madina Xaquili, quando lá estávamos e a quem puseram o nome de Sextafeira. Agora está uma mulheraça.

Um NA KONTRA inusitado.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7915: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (79): Na Kontra Ka Kontra: 43.º episódio

quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7915: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (79): Na Kontra Ka Kontra: 43.º episódio




1. Quadragésimo terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 8 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


43º EPISÓDIO

Em Lisboa, o ainda Alferes Magalhães, desembarca por volta das nove da manhã e como era de rendição individual, toma um táxi, leva as malas à Estação de Santa Apolónia onde as deposita e sempre no mesmo táxi vai aos Adidos e à sua Unidade de Mobilização, o RAL 1, tratar da sua desmobilização. Chega novamente a Santa Apolónia, paga a corrida de toda a manhã com uma nota de cinquenta escudos e ainda tem tempo para almoçar um óptimo coelho de cebolada, num restaurante ao lado da estação.

Porque do barco, por questões de segurança, não se podiam mandar telegramas, apenas receber, o agora simplesmente Magalhães Faria não pode avisar ninguém da sua chegada, pelo que aparece no Porto de surpresa.

Junho de 1970. Com a mulher colocada no Liceu Alexandre Herculano no Porto, Magalhães Faria tenta reatar o curso de Arquitectura que interrompera. Devido às convulsões académicas existentes nesta altura na Escola de Belas Artes, onde se tenta implementar um novo processo de ensino, a chamada “Experiência”, sente-se desfasado, sem os antigos colegas, e acaba por desistir. Para essa tomada de posição muito contribui o facto de o sogro ser empresário e lhe “acenar” com um emprego estável na sua empresa.

Um belo dia, o agora Senhor Magalhães Faria, ao inspeccionar um armazém de matéria prima da empresa, onde se encontravam vários empregados a trabalhar ouve nas suas costas a alguma distância dois C… F…

Magalhães Faria como que ficou paralisado. Aquelas expressões com aquela voz só podiam ter vindo de uma pessoa, o Dionildo. Não se voltou de imediato pois custava-lhe a acreditar na aparição daquele que passaria a ser conhecido pelo morto-vivo.

Neste espectacular NA KONTRA o Dionildo conta a sua história:

Depois de o Alferes ter ido embora de Madina Xaquili e devido à pressão do PAIGC, passou a andar aterrorizado. Logo no primeiro ataque à tabanca, conhecendo o caminho para Bambadinca, resolve desertar. Contorna Galomaro de forma a não ser visto e em Bambadinca, apanha boleia de uma coluna que vai para o Xime com pessoal e material para embarcar numa LDG, com destino a Bissau. Numa situação como esta não era costume os próprios camaradas perguntarem pelas Guias de Marcha. Chegado a Bissau, junto do Cais da Amura onde as lanchas costumavam atracar, logo verificou que na Ponte Cais estava também o navio Uíge, de transporte de tropas. Soube que o barco ia partir à noite e pensou embarcar. Se bem o pensou melhor o fez. Apesar de ser o único militar a bordo vestido de camuflado, ninguém lhe perguntou o que quer que fosse, também pelo facto de irem no barco muitos militares de rendição individual. Ele seria mais um. Passada uma semana, desembarcava em Lisboa. Veste-se à civil com roupa que levava num pequeno saco e ruma ao Porto apresentando-se ao trabalho na empresa onde tinha trabalhado antes de ir para a tropa, a empresa do agora sogro do nosso Magalhães Faria. Passados precisamente quarenta dias aparece-lhe na empresa a Polícia Militar que rapidamente o mete num avião rumo a Bissau, agora com Guias de Marcha para a sua antiga Companhia, sediada em Madina Xaquili. Como perspectiva tinha outra comissão, a começar agora. Com o contínuo agravar da situação, passados poucos dias é planeada uma operação de alto risco, com a intervenção de um Pelotão de Comandos helitransportados e, para a qual, se pediram voluntários. O Dionildo viu ali uma possibilidade de limpar a sua “folha militar” e ofereceu-se. Tudo correu muito melhor do que esperava e até veio a ter um louvor. Retiraram-lhe o castigo e regressou à Metrópole com a sua Companhia. E o Dionildo termina dizendo:

- E aqui estou na empresa onde sempre trabalhei Senhor Faria.

- Magalhães Faria, Faria há muitos.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7910: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (78): Na Kontra Ka Kontra: 42.º episódio

terça-feira, 8 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7910: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (78): Na Kontra Ka Kontra: 42.º episódio




1. Quadragésimo segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 7 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


42º EPISÓDIO

Aproxima-se o dia da boda e são os próprios noivos que decoram a capela com uma única espécie de flores: Narcisos poetas.

O casamento do Alferes Magalhães na
capela da Boa Nova.

O casamento é celebrado pelo pároco de Leça da Palmeira. São tiradas as fotografias da praxe e o almoço de casamento é servido no restaurante ali ao lado. Ao fim da tarde, o agora casal, segue para a viagem de núpcias. A intenção é irem ao longo da costa até ao Algarve. Porém no primeiro dia não passam de Coimbra…

De boas intenções está o inferno cheio, como se costuma dizer e é bem verdade: No segundo dia não “conseguem” passar de São Martinho do Porto e no terceiro, de Óbidos… Depois Lisboa foi uma autêntica barreira para continuarem mais para Sul. Para isso também contribuiu muito o terem ficado alojados num Hotel em plena Baia de Cascais, local espectacular que ele conhece muito bem. No curso intensivo sobre Informações que tinha tido em Lisboa antes de ir para a Guiné, tinha ficado alojado na messe dos Altos Estudos, em Pedrouços, perto de Cascais.

Nos dias que aí se mantêm, sempre lhes servem o pequeno almoço na varanda do quarto após o que rumam à capital onde muito há que ver. Não deixam de ir à feira da ladra, outro sítio que o Alferes conhece bem pois é nas imediações que se situa o “Casão” da Manutenção Militar e também o departamento onde o então Aspirante Magalhães frequentou o tal curso intensivo.

Já de regresso ao Porto, resolvem parar no “Pedro dos Leitões” pois ambos gostam muito de leitão à Bairrada. Quando estavam a deliciar-se com tal petisco notam que na maioria das mesas se come pescada ou bacalhau. Acham muito estranho ir àquele local e não comer leitão. Seguem viagem. Chegados a casa dos familiares comentam o caso do restaurante. Resposta imediata:

- Então não sabeis que hoje é Sexta-feira Santa? Como o amor é cego…

Até acabarem as férias da Páscoa da agora esposa de Magalhães Faria, os dois aproveitam todas as horas vagas da mulher para conhecerem melhor o Minho, com o seu verde inconfundível.

Quando dá por ela, o nosso Alferes já está metido num avião a caminho da Guiné, mas pouco tempo está em Bafata e, na Guiné. Acaba a comissão e regressa à Metrópole, agora no navio “Carvalho de Araújo”, mais um cargueiro adaptado para o transporte de tropas.

Chegada do navio Carvalho Araújo ao Funchal.

Passa pela ilha da Madeira que não conhece e aproveita as seis horas disponíveis para, numa excursão encomendada ainda do barco em alto mar, visitar o que é considerada a paisagem mais espectacular da Madeira: A Eira do Serrado de onde se vê a povoação do Curral das Freiras, uns setecentos metros por baixo de uma escarpa quase na vertical.

Madeira. O Alferes Magalhães na Eira do
Serrado com o Curral das Freiras lá ao fundo.

Em Lisboa, o ainda Alferes Magalhães, desembarca por volta das nove da manhã e como era de rendição individual, toma um táxi, leva as malas à Estação de Santa Apolónia onde as deposita e sempre no mesmo táxi vai aos Adidos e à sua Unidade de Mobilização, o RAL 1, tratar da sua desmobilização. Chega novamente a Santa Apolónia, paga a corrida de toda a manhã com uma nota de cinquenta escudos e ainda tem tempo para almoçar um óptimo coelho de cebolada, num restaurante ao lado da estação.

Porque do barco, por questões de segurança, não se podiam mandar telegramas, apenas receber, o agora simplesmente Magalhães Faria não pode avisar ninguém da sua chegada, pelo que aparece no Porto de surpresa.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Março de 2011 Guiné 63/74 - P7905: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (77): Na Kontra Ka Kontra: 41.º episódio

segunda-feira, 7 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7905: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (77): Na Kontra Ka Kontra: 41.º episódio




1. Quadragésimo primeiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 6 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


41º EPISÓDIO

Os dias vão passando e em determinada altura o Ibraim confidencia ao amigo que pretende ir para a Metrópole trabalhar. O pai, Régulo de Canquelifá, estaria disposto a ajudá-lo com dinheiro. O Alferes, medindo bem as palavras, pois não quer criar outra situação de melindre, diz-lhe que na Metrópole a vida não está fácil, principalmente para um africano e que ficaria lá totalmente desinserido do resto da sociedade. Enriquecer só com o fruto do trabalho será uma ilusão.

Pareceu ao Alferes que o amigo não gostou das suas advertências dado que nos dias a seguir deixou de o ver pelo cinema. Passam duas semanas sem o Ibraim ser visto. Avoluma-se no Alferes a ideia de que o amigo estivesse novamente agastado com ele.

Numa ida ao cinema onde ia ver o “Marnie” do Hitchcock, novo “NA KONTRA” com o amigo que explicou o motivo da sua ausência, concluindo o Alferes que o Ibraim não tinha nada contra ele.

O Ibraim tinha sido chamado a Bissau para prestar provas, pois tempos atrás, tinha concorrido a um curso para Pára-quedistas.

Muito mais tarde soube que o Ibraim não tinha sido admitido no curso apesar de parecer física e intelectualmente muito apto. Consequências dos exames médicos? Se assim foi nada disse pois talvez quisesse ocultar que tinha qualquer problema se saúde.

Março de 1970. O Alferes Magalhães vai novamente de férias, desta vez para se casar. O Alferes tinha conhecido em Bafata um soldado africano, o Seidi, que ia ser julgado em tribunal militar em Bissau. Este pedira-lhe que o fosse ver à prisão quando passasse por Bissau, onde sabia que iria ficar preso.

Chegado à capital, de imediato vai a Santa Luzia onde sabe que fica a prisão. Quer resolver logo o prometido. Já perto da prisão ouve chamar. Era o Seidi, que depois de muitas queixas quanto ao tratamento dos presos, e uma vez que era muçulmano, lhe pede para interceder junto do Major responsável pela prisão, no sentido de não lhe darem vinho às refeições substituindo-o pelo correspondente “patacão” para poder comprar o que mais necessita.

Despedem-se e o Alferes vai fazer o pedido ao Major. Ainda não tinha acabado de explicar a situação e já o Major aos berros, perfeitamente possesso:

- Não conhece o RDM? Não sabe que não se podem visitar presos sem a minha autorização? O que é que o nosso Alferes faz aqui em Bissau?

- Vou de férias à Metrópole.

E aos berros continuou:

- Ia, ia.

Em circunstâncias normais o Alferes teria reagido mas, vendo a sua vida, e não só a sua, a andar para trás, comete o que ele considera a maior humilhação da sua vida.

- Mas, meu Major, não vou só de férias. Vou casar e está tudo marcado para o casamento.

O Major como que limpa a espuma, qual besta enraivecida e manda o Alferes embora. Da tropa também faz parte isto.

Não acontecem mais peripécias e o Alferes Magalhães embarca no Boing 727, rumo à Metrópole. Revê novamente com agrado a costa africana e após a prevista escala na Portela chega ao Porto.

Desta vez não tem dúvidas de quem estará à sua espera. Como sabe que depois das férias já vai estar pouco tempo na Guiné sente-se como se já estivesse em casa definitivamente.

Como o casamento está marcado para quinze dias depois, aproveita para, juntamente com a noiva, reverem a família no Nordeste Transmontano, de onde ambos são oriundos, cada um de sua aldeia: Uma quase debruçada sobre o fértil Vale da Vilariça, a outra nas encostas do “selvagem” rio Sabor. Quer um quer outro gostam muito das suas aldeias, principalmente pela alternância de montes e vales que caracterizam a região. Magalhães Faria, embora gostando muito da Guiné, só lhe põe um defeito: Não ter o relevo que há em Trás-os-Montes.

O vale da Vilariça envolto em nevoeiro.

Revistas as respectivas famílias, dão grandes passeios pelas encostas do rio Sabor. Visitam o castelo roqueiro da Marruça de onde se aprecia uma paisagem única em Portugal: O rio serpenteando ao fundo da ladeira e, de onde em onde, antigos moinhos. Nas imediações não há viv’alma e o local convida ao amor… Regressam já noite à povoação.

O rio Sabor visto do Castro da Marruça.

É preciso ultimar os preparativos do casamento e ambos voltam ao Porto.

Aproxima-se o dia da boda e são os próprios noivos que decoram a capela com uma única espécie de flores: Narcisos poetas.

O casamento do Alferes Magalhães na
capela da boa Nova.

O casamento é celebrado pelo pároco de Leça da Palmeira. São tiradas as fotografias da praxe e o almoço de casamento é servido no restaurante ali ao lado. Ao fim da tarde, o agora casal, segue para a viagem de núpcias. A intenção é irem ao longo da costa até ao Algarve. Porém no primeiro dia não passam de Coimbra…

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7896: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (76): Na Kontra Ka Kontra: 40.º episódio

sexta-feira, 4 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7896: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (76): Na Kontra Ka Kontra: 40.º episódio




1. Quadragésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 3 de Março de 2011:



NA KONTRA
KA KONTRA


40º EPISÓDIO

Chegado a Bambadinca, respirou fundo e foi logo saber da possibilidade de o levarem para Bafata. Foi-lhe dito que estava ali um civil, com uma carrinha de caixa aberta, que ia para Bafata e com certeza o levaria.

Enquanto esperava foi conversando com camaradas já seus conhecidos. Querendo saber pormenores da morte do seu amigo Dionildo é-lhe dada uma nova versão do que se passou no segundo ataque a Madina Xaquili, quando ele Alferes Magalhães já estava em Bafata. Foi-lhe dito que não havia a certeza do que aconteceu, em relação ao Dionildo naquela fatídica noite. Quando o ataque se deu havia, fora do “arame”, um grupo que incluía o Dionildo.

Continuando, foram dizendo que o corpo do Dionildo não chegou a ser encontrado. Que podia ter-se dado o caso de os guerrilheiros terem levado o corpo, ou até o Dionildo ter sido feito prisioneiro. O que é certo é que, possivelmente para evitar burocracias que na tropa são terríveis, o caso foi encerrado e o Dionildo foi dado como morto … e oficialmente enterrado. A tropa tem destas coisas…

Chegado a Bafata de boleia com o Senhor Dionísio Castro,  depressa retoma a sua vida de trabalho no quartel e passa a sair mais, dada a sua melhoria a nível psíquico. Torna a ir ao cinema e encontra o seu amigo Ibraim. Talvez por já terem passado mais de dois meses, desde o último encontro, desta vez o Ibraim parece ter esquecido tudo o que podia ter contra o Alferes e num “NA KONTRA” efusivo retomam a amizade, aparentemente perdida.

Nos dias seguintes dão longos passeios pelos arredores de Bafata tendo o Ibraim mostrado locais lindíssimos que sem um cicerone assim nunca um metropolitano lhe poria os olhos em cima. Num fim de tarde o Ibraim leva o amigo à tabanca do Nema para observarem uns enormes morcegos pretos, durante o dia pendurados numas árvores, que por essa razão poucas folhas têm. À hora a que chegam podem ver os morcegos a começar a abandonar os galhos onde se penduram aos cachos. Sobrevoam em voo rasante a superfície da água do rio Geba, que chegam a tocar uns cem metros mais à frente.

Tão depressa o Alferes pensa que eles vão beber água ao rio, depois de estarem durante todo o dia ao sol, como logo o Ibraim lhe explica que os morcegos ao tocarem a água não a bebem directamente mas se limitam a molhar os pelos do peito chupando depois essa água durante o voo.

Noutra ocasião, em passeio pela tabanca da Rocha onde Ibraim mora, este conta ao Alferes que tem uma nova namorada mas, tal como antes, não se abre muito sobre esse assunto. O Alferes não pode deixar de pensar que talvez o seu amigo o ache muito namoradeiro e portanto uma “ameaça”, dado que tempos antes o Alferes lhe tinha mostrado interesse em arranjar uma namorada africana. Chega-lhe a dizer que tem noiva na Metrópole e que até pensa casar em Março próximo. O amigo continua a remeter-se ao silêncio no que diz respeito à sua nova namorada.

Grande parte da tabanca da Rocha

Os dias vão passando e em determinada altura o Ibraim confidencia ao amigo que pretende ir para a Metrópole trabalhar. O pai, Régulo de Canquelifá, estaria disposto a ajudá-lo com dinheiro. O Alferes, medindo bem as palavras, pois não quer criar outra situação de melindre, diz-lhe que na Metrópole a vida não está fácil, principalmente para um africano e que ficaria lá totalmente desinserido do resto da sociedade. Enriquecer só com o fruto do trabalho será uma ilusão.

Pareceu ao Alferes que o amigo não gostou das suas advertências dado que nos dias a seguir deixou de o ver pelo cinema. Passam duas semanas sem o Ibraim ser visto. Avoluma-se no Alferes a ideia de que o amigo estivesse novamente agastado com ele.

Numa ida ao cinema onde ia ver o “Marnie” do Hitchcock, novo “NA KONTRA” com o amigo que explicou o motivo da sua ausência, concluindo o Alferes que o Ibraim não tinha nada contra ele.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7890: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (75): Na Kontra Ka Kontra: 39.º episódio

quinta-feira, 3 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7890: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (75): Na Kontra Ka Kontra: 39.º episódio




1. Trigésimo nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 2 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


39º EPISÓDIO

Atravessam Matosinhos. Chegam junto da zona portuária, sempre agradável de se observar pela azáfama de todo aquele pessoal na transferência de mercadorias de e para os navios. Atravessam a ponte móvel para Leça e dirigem-se para a praia, descansam um pouco e continuam até à Capela da Boa Nova, local ermo mas cheio de beleza. Além da capela, só por ali existe o Farol da Boa Nova e um restaurante, magnífica obra do jovem arquitecto Siza Vieira.

A capela da Boa Nova em Leça.

Sentados num muro, têm uma longa conversa sobre o que poderá ser o futuro de ambos.

- Lembras-te do tostão que aquele miúdo nos deu naquele dia no largo da Sé?

- Sim lembro, responde. E beijam-se.

- Então já nos podemos casar.

A conversa continuou e acabaram por chegar aos pormenores do casamento: Casariam na Capelinha da Boa Nova. Almoçariam com os poucos convidados, só a família directa, no restaurante ali ao lado, edifício projectado pelo que foi seu professor, Siza Vieira. Fariam a tradicional viagem no carro dos pais, percorrendo toda a costa de Portugal até ao Algarve. As férias do próximo ano, a que ele ainda tinha direito, seriam uma boa altura para o casamento.

O restaurante projectado pelo Arq. Sisa Vieira junto à
capela da Boa Nova.

Com a sua vida sentimental estabilizada, poucos dias depois o Alferes Magalhães regressa à Guiné.

Desta vez o trajecto é feito de noite. Se a viagem para a metrópole era duplamente agradável além do mais por se efectuar de dia, agora, por razões contrárias é duplamente desinteressante. Na ilha do Sal, onde o avião faz escala, o nosso Alferes ainda pôde ver, ao lusco-fusco, os contornos dos morros vulcânicos que caracterizam a ilha.

Chegado a Bissau resolve não se instalar no Quartel de Santa Luzia, no tal quarto de oito camas onde a qualquer hora da noite pode ser acordado pelos camaradas que chegam e partem para o mato. Tenta o “Grande Hotel”, perto do Hospital, que diga-se, em tempos já tivera ar condicionado. Está cheio. Só consegue um quarto no “Hotel Internacional”, não longe daquele. Uma autêntica espelunca. Fica porém com um quarto só para si onde pode descansar à vontade.

Logo que pode vai aos Adidos marcar a passagem no Dakota para Bafata e aí fica a saber que o avião já está lotado. Dão-lhe Guias de Marcha para seguir pelo Rio Geba até ao Xime numa lancha de desembarque, uma LDG, depois para Bambadinca numa coluna de viaturas e finalmente noutra coluna para Bafata, já à vontade, sem problemas de guerra.


O Alferes Magalhães a bordo da LDG com destino ao Xime.

Em princípio fica um pouco preocupado por não ir de avião, mas pensando melhor: Na LDG não havia grande perigo pois a maior parte do rio tinha quilómetros de largura não podendo haver qualquer ataque. No chamado Geba Estreito, ao chegar ao Xime, aí sim já se estava ao alcance de uma qualquer arma inimiga, mas ali contava com a grossa blindagem da embarcação, o seu poder de fogo que incluía dois canhões “Bosfors” de 40mm e mais que tudo sabia que era sempre feita a segurança na margem direita do rio, na zona de Mato de Cão, por um pelotão de tropas nativas comandadas pelo seu camarada Évora Santos. Sabia que em tempos costumavam implantar minas na picada do Xime até à Ponte do Rio Udunduma, mas já há alguns meses que isso não acontecia pelo que também não ficou preocupado, tanto mais que à frente da coluna seguiria um grupo de picadores.

A LDG, onde vai o Alferes Magalhães, a chegar ao Xime.

Chegado a Bambadinca, respirou fundo e foi logo saber da possibilidade de o levarem para Bafata. Foi-lhe dito que estava ali um civil, com uma carrinha de caixa aberta, que ia para Bafata e com certeza o levaria.

Enquanto esperava foi conversando com camaradas já seus conhecidos. Querendo saber pormenores da morte do seu amigo Dionildo é-lhe dada uma nova versão do que se passou no segundo ataque a Madina Xaquili, quando ele Alferes Magalhães já estava em Bafata. Foi-lhe dito que não havia a certeza do que aconteceu, em relação ao Dionildo naquela fatídica noite. Quando o ataque se deu havia, fora do “arame”, um grupo que incluía o Dionildo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7885: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (74): Na Kontra Ka Kontra: 38.º episódio

quarta-feira, 2 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7885: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (74): Na Kontra Ka Kontra: 38.º episódio




1. Trigésimo oitavo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 1 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


38º EPISÓDIO

Os passageiros saem do avião, são conduzidos num autocarro até à gare e pouco depois recolhem as malas que vinham despachadas no porão. O nosso Alferes com as malas num carrinho dirige-se para a saída, hesitando ao passar pela porta ostentando os dizeres “nada a declarar”. Neste momento a única coisa que o preocupa é saber se a namorada está ou não à sua espera. Será muito importante que esteja pois disso dependerá muita coisa do seu futuro e, de imediato, umas óptimas férias, longe da guerra.

Ao chegar à zona da saída, o Alferes Magalhães pára. Passa uma vista de olhos por todas as pessoas que estão encostadas à balaustrada de separação, à espera dos viajantes. Não vê a sua namorada. O seu coração como que pára. Será o desmoronar de muitos projectos. Continua a andar, decidido a sair do aeroporto, tomar um táxi e ir para casa dos pais, que por terem já alguma idade não foram esperá-lo.

Ao passar o fim do gradeamento de separação uma rapariga, para ele uma estranha, que aliás tinha visto encostada à balaustrada, agarra-se-lhe ao pescoço aos beijos. Ele afasta-a pegando-a pelos ombros para lhe ver melhor a cara e simultaneamente, ele reconhece-a e ela diz-lhe:

- Então só por ter cortado o cabelo assim curto já não me conheces?

De momento ele ficou como que mole, sem acção para nada. Ultimamente tinha-lhe acontecido muita coisa adversa. Nos últimos tempos, esta seria a primeira auspiciosa. Reagiu, como sempre, e enlaçaram-se agora por vontade mútua.

Sentam-se no bar do aeroporto, não a falar da Guiné, que de momento tinha ficado para trás, mas a combinar o que irão fazer nos próximos dias, além de namorar, como se algo mais houvesse para fazer…

Ela, professora do liceu, andava com muito trabalho pois andava a fazer o estágio pedagógico e o exame de Estado final aproximava-se. Assim, ele teve tempo para rever a família e os amigos. Com estes, sim, viria a conversar muito sobre a Guiné.

Todos os momentos em que ela estava livre eram aproveitados para os dois estarem juntos. Fazem passeios pelos locais mais bonitos da zona do Porto: Passeiam pela marginal do Douro. Sobem num dos elevadores da ponte da Arrábida e atravessam pela ponte para o lado de Gaia para daí desfrutarem a maravilhosa vista do Porto.

O Porto e o Barredo vistos de Gaia.

Passam pelo Barredo onde, em tempos, numa tasca tinham almoçado umas iscas de bacalhau feitas num fogareiro à porta do estabelecimento. Nessa altura ele, como estudante de Arquitectura, andava a realizar um trabalho sobre essa parte antiga da Ribeira do Porto. Sobem pela Rua Escura até à Sé. Deslumbram-se com a vista do Porto antigo, com a Torre dos Clérigos em destaque. Em determinada altura, no terreiro da Sé, um miúdo dirige-se a ela pede:

- Senhora, dê-me um tostãozinho.

- Olha, se eu tivesse um tostão casava-me.

Metendo a mão ao bolso o rapazito pega num tostão e dá-lho dizendo:

- Pegue, já se pode casar.

Claro que o miúdo teve a sua recompensa, continuando os dois namorados o passeio.

O terreiro da Sé, no Porto com a Torre dos Clérigos ao fundo.

Noutro dia, já perto do final das férias dele, vão de eléctrico pela Avenida da Boavista até ao Castelo do Queijo. Apesar de se estar em fins de Novembro a proximidade do mar ameniza muito a temperatura, convidando a uma caminhada ao longo da marginal até ao molhe sul do Porto de Leixões. Os titãs, modernas estruturas portuárias colocadas nos extremos dos paredões, fazem lembrar o lendário Colosso de Rodes.

Um dos “titãs”.

Atravessam Matosinhos. Chegam junto da zona portuária, sempre agradável de se observar pela azáfama de todo aquele pessoal na transferência de mercadorias de e para os navios. Atravessam a ponte móvel para Leça e dirigem-se para a praia, descansam um pouco e continuam até à Capela da Boa Nova, local ermo mas cheio de beleza. Além da capela, só por ali existe o Farol da Boa Nova e um restaurante, magnífica obra do jovem arquitecto Siza Vieira.

A capela da Boa Nova em Leça.

Sentados num muro, têm uma longa conversa sobre o que poderá ser o futuro de ambos.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (73): Na Kontra Ka Kontra: 37.º episódio

terça-feira, 1 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (73): Na Kontra Ka Kontra: 37.º episódio




1. Trigésimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


37º EPISÓDIO

Os aviões vêm de Lisboa durante a noite, passando pela ilha do Sal em Cabo Verde e regressam durante o dia à Metrópole. Não atravessam o continente africano. Os países a sobrevoar não o permitem por Portugal ser um país colonialista. De qualquer modo vai-se sempre a ver a costa de África. Sabendo disso o nosso Alferes, ao fazer o check-in, pede um lugar à janela e do lado direito da cabine.

Chamam para o embarque. O nosso Alferes tem que mostrar o cartão de embarque e um documento, o Passaporte Militar, trazido de Bafata. Depois de muito procurar, de esvaziar várias vezes os bolsos e um pequeno saco que levava com ele, o dito documento não aparece. Todos os passageiros já tinham embarcado. Sem Passaporte Militar o Alferes Magalhães ia ficar em terra.

Quando a Hospedeira que estava a controlar as entradas já não via solução para a situação do Alferes, pelo intercomunicador chama o comandante do avião. Chegado este, pede ao Alferes para tornar a procurar o passaporte. Os bolsos e a saqueta são novamente revirados do avesso, mas nada. Com voz sumida, o Alferes admite que o documento pode estar, por engano, na mala que tinha despachado para o porão do avião. É então que o Comandante, vendo quão importante era para um militar em guerra, ir à Metrópole de férias, dá a seguinte ordem:

- Tirem as malas todas do avião até aparecer a do Senhor Alferes.

A mala apareceu mas não o Passaporte Militar e o Alferes estava na mesma situação de não poder embarcar.

Nova revista nos bolsos e como por milagre num deles aparece agora o desejado papel. Mil desculpas ao Comandante e à Hospedeira, não demorando o avião a levantar, rumo a Lisboa.

Era a primeira vez que o nosso Alferes fazia este percurso. Tinha vindo para a Guiné num cargueiro transformado para levar tropas, o “Ana Mafalda”. De avião a diferença para melhor era abismal. Ao longo do percurso que, de avião dura cerca de quatro horas, vai-se sempre a ver a costa de África, quase toda deserto. O mar junto às dunas toma várias tonalidades, do verde ao azul escuro. Maravilhoso, não deixa de pensar o nosso passageiro de última hora. Já depois da refeição servida a bordo, um prato quente de lombinhos com cogumelos e sobremesa de papaia, o Alferes, com a ajuda de um mapa fornecido a bordo, consegue identificar, na borda do deserto, a povoação de Villa Cisneros, capital do Sara Espanhol.

Vila Cisneros na Prov. Espanhola do Sara

Mais ou menos a meio do território de Marrocos o avião começa a afastar-se da costa e não demora a que apareça na linha do horizonte a costa algarvia. Sensação agradável, estava-se a chegar a “casa”. Passa-se na vertical de Portimão e pouco depois aterra-se no Aeroporto da Portela em Lisboa.

De Lisboa ao Porto foi um instante tendo o Alferes apreciado pela primeira vez lindas vistas aéreas de Portugal, sobretudo ao sobrevoar o Douro, com a recente Ponte da Arrábida, o porto de Leixões, Leça e as demais praias bem suas conhecidas.

A partir do momento em que o avião toca na pista e se sente que a viagem terminou o nosso Alferes, nos largos minutos que antecedem a ordem para se sair da cabine, faz um balanço de todos os últimos acontecimentos vividos na Guiné: A namorada estará à sua espera e não deixa de pensar na Asmau; a morte do Samba, que veio complicar tudo ainda mais no que a ela diz respeito; o que se passará com o Ibraim? E o Dionildo a quem nunca mais ouvirá um F…? São pensamentos que de alguma forma muito o perturbam. Conta agora com trinta e cinco dias pela frente e com a namorada para lhe fazer esquecer tudo isso. Os amigos também ajudariam.

Os passageiros saem do avião, são conduzidos num autocarro até à gare e pouco depois recolhem as malas que vinham despachadas no porão. O nosso Alferes com as malas num carrinho dirige-se para a saída, hesitando ao passar pela porta ostentando os dizeres “nada a declarar”. Neste momento a única coisa que o preocupa é saber se a namorada está ou não à sua espera. Será muito importante que esteja pois disso dependerá muita coisa do seu futuro e, de imediato, umas óptimas férias, longe da guerra.

Ao chegar à zona da saída, o Alferes Magalhães pára. Passa uma vista de olhos por todas as pessoas que estão encostadas à balaustrada de separação, à espera dos viajantes. Não vê a sua namorada. O seu coração como que pára. Será o desmoronar de muitos projectos. Continua a andar, decidido a sair do aeroporto, tomar um táxi e ir para casa dos pais, que por terem já alguma idade não foram esperá-lo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 28 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7875: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (72): Na Kontra Ka Kontra: 36.º episódio

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7875: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (72): Na Kontra Ka Kontra: 36.º episódio




1. Trigésimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 27 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


36º EPISÓDIO

O Alferes ficou aparvalhado, sem saber o que dizer. Passava-se alguma coisa com o seu amigo. Antes de ir para Madina Xaquili davam-se como verdadeiros amigos e agora a reacção do Ibraim era perfeitamente incompreensível. Estendeu o dinheiro, recebeu o bilhete e entrou. Sentado à espera que o filme comece pensa em tudo o que podia ter provocado aquela reacção, não chegando a conclusão alguma. Decide que no fim do espectáculo irá tirar tudo a limpo, confrontando o amigo com a reacção que tinha tido.

Depois dos documentários, que desta vez foram sobre as Pousadas de Portugal, e começado o filme dessa noite é que o Alferes se apercebe que se trata do “Deserto Vermelho” de Antonioni. Óptimo filme, mas nestas circunstâncias talvez preferisse um tema menos pesado, quiçá uma “coboiada”.

O que é certo é que no intervalo metade da assistência já não voltou à sala. O filme era realmente difícil.

No fim o Alferes deixou sair todo o pessoal e só depois de dirigiu para a saída. O Ibraim não teria justificação para não falar com ele.

Ou porque já não havia necessidade de controlar as entradas, dado o género de filme, ou porque o Ibraim efectivamente não se queria encontrar com o amigo, o que é certo é que o Alferes não conseguiu descortiná-lo. Acabou por ir para o quartel convencido que o Ibraim tinha algo contra si. Por um lado quer resolver a situação, por outro tem receio de enfrentar a realidade que lhe pode ser adversa e decide estar algum tempo sem ir ao cinema para não ter um NA KONTRA que se poderia transformar num KA KONTRA, nada desejado.

Como depois do trabalho permanece mais tempo no quartel, dedica-se novamente ao jogo da “lerpa”, continuando a perder, como sempre acontecia.

Azar ao jogo, sorte no amor, eis que chega do Porto, a resposta da sua namorada. Dedica-se agora a escrever-lhe longas e apaixonadas missivas. Raramente joga às cartas.

Pelo motivo que é conhecido não vai ao cinema durante várias semanas. Algumas vezes joga às cartas e até ganha… o que o preocupa. Os dias vão passando.

O Alferes Magalhães sentado à porta do bar de oficiais do
Comando de Agrupamento.

Num fim duma manhã, estando a trabalhar no seu local de trabalho, na Sala de Operações, vêm chama-lo pois estava lá fora um militar nativo com galões de Alferes que lhe queria falar. Não era mais do que o João Sanhá de Madina Xaquili. Há um NA KONTRA efusivo. Ambos estão felizes por se reverem, no entanto o Alferes Magalhães nota que o semblante do João é mais carregado do que habitualmente. Não foi preciso esperar muito tempo para saber a razão. O João vai contando que agora lá na tabanca já não há moranças. Que as coberturas das palhotas que não arderam durante os ataques estavam agora sobre os abrigos para estes não se esboroarem. Quanto aos ataques, referiu que já tinha havido vários e no que houve na semana seguinte ao primeiro, quando o Alferes Magalhães já estava em Bafata, morreu o Dionildo. O João carregou ainda mais o semblante.

Consternação do Alferes. Terrível. O seu amigo Ibraim vira-lhe a cara e agora o seu amigo Dionildo morria.

Reage mais uma vez a uma má notícia e, como era seu costume, convida o João para almoçar. No Senhor Teófilo comem uma bela cachupa, que a esposa dele tinha cozinhado nesse dia.

De regresso ao quartel, depois de se despedir do João, não deixa de pensar e repensar: Morre o Samba, o Ibraim não lhe fala e o Dionildo, de quem se tinha tornado grande amigo morre agora também. Se antes repetia, porquê o Samba, agora repete sem cessar: Porquê o Dionildo?

Os dias continuam a passar. Com o reatar da correspondência com a namorada e “as coisas” a correr pelo melhor, o nosso Alferes resolve ir de férias à Metrópole. No princípio de Novembro de 1969 e no dia aprazado toma o avião, o Dakota, para Bissau. O avião sobrevoa a relativa baixa altitude regiões que ele sabe muito bem serem autênticos santuários do PAIGC, como o Oio. Chega a ver pessoas em tabancas controladas pelos guerrilheiros. A viagem é curta e depressa o avião se faz à pista do Aeroporto de Bissalanca.

O Dakota onde vai o Alferes Magalhães sobrevoando a
tabanca da Ponte Nova.

Passa dois dias em Bissau antes de embarcar para a metrópole. Encontra-se com amigos e com os Alferes do seu curso de Mafra que ficaram a trabalhar no Quartel General. São dois dias já de verdadeiras férias. Não deixa de ir à “Casa Gouveia” comprar algumas prendas para os familiares, mas sobretudo para a sua namorada.

Na manhã do embarque deixa o aposento, que ocupava com mais sete camaradas nas instalações do Quartel de Santa Luzia e, pedindo um táxi, dirige-se para Aeroporto.

O Alferes Magalhães na camarata do QG.

Os aviões vêm de Lisboa durante a noite, passando pela ilha do Sal em Cabo Verde e regressam durante o dia à Metrópole. Não atravessam o continente africano. Os países a sobrevoar não o permitem por Portugal ser um país colonialista. De qualquer modo vai-se sempre a ver a costa de África. Sabendo disso o nosso Alferes, ao fazer o check-in, pede um lugar à janela e do lado direito da cabine.

Chamam para o embarque. O nosso Alferes tem que mostrar o cartão de embarque e um documento, o Passaporte Militar, trazido de Bafata. Depois de muito procurar, de esvaziar várias vezes os bolsos e um pequeno saco que levava com ele, o dito documento não aparece. Todos os passageiros já tinham embarcado. Sem Passaporte Militar o Alferes Magalhães ia ficar em terra.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7861: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (71): Na Kontra Ka Kontra: 35.º episódio

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7861: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (71): Na Kontra Ka Kontra: 35.º episódio




1. Trigésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


35º EPISÓDIO

O calor aperta e resolve tornar ao quartel. Não vai pela avenida principal, que a essa hora e a subir é penoso percorrê-la. Vai antes por um caminho totalmente arborizado e plano que conduz à mãe d’água de Bafata, zona muito aprazível onde até há mesas e bancos para piqueniques, local que é conhecido por Sintra de Bafata. Pelo caminho cruza-se com bandos de macacos-cão que estão sempre por ali à espera que se lhe dê qualquer coisa para comer. Da mãe d’água, onde também há um grande chafariz, até ao quartel só tem que subir um pequeno desnível, passando ao lado da casa do Comandante do Esquadrão. Não é raro neste local verem-se uns enormes “lagartos” com mais de um metro de comprimento mas perfeitamente inofensivos.

O Alferes Magalhães no caminho de Sintra de Bafata.

Chegado ao quartel vai deitar-se. O Comandante tinha-lhe atribuído três dias de descanso e portanto aproveita.

O nosso Alferes passa os três dias concedidos quase exclusivamente a descansar. Come dorme e sobretudo vai pensando o que fazer da sua vida. O dia-a-dia do quartel não o ajuda muito a resolver a situação.

Começa a pensar no fim da comissão que se aproxima e também nos seus familiares da metrópole. Pensa na namorada que lá deixou e com quem, nos últimos tempos não tem mantido correspondência. Talvez ela já tivesse arranjado outro namorado, ou talvez não… Mesmo assim resolve escrever-lhe. Se ela ainda lhe responder terá aí um grande apoio para continuar a aguentar o passar dos dias, das horas, dos minutos…

Com tempo de sobra e contrariamente ao que era habitual, escreve-lhe uma grande carta ocupando quatro aerogramas. Diz-lhe uma “pequena mentirinha”: Que esteve dois meses isolado numa tabanca no mato. Relata-lhe os “perigos” por que passou, repete, como suas, as palavras do Furriel de Madina Xaquili que demonstrou a intenção de levar para lá a esposa e aí viverem felizes para sempre. Refere-lhe que agora cada dia que passa se sente mais só, que ainda gosta muito dela, o que desta vez não é mentira.

Quando vai entregar a carta no SPM ainda hesita enviá-la, mas por fim, sem nada a perder, deixa-a cair na caixa do correio. Se houver resposta irá demorar alguns dias.

No primeiro fim de semana em que há cinema, não perde a oportunidade, acima de tudo para rever o seu amigo Ibraim. Está um calor sufocante mas porque há a ameaça de um tornado tem que levar no braço um impermeável da tropa, que vestido lhe chega aos pés, protegendo-o totalmente.

A rua onde se situa o Cinema.

Vai directo ao recinto, ao ar livre, onde se projecta o filme. Lá chegado vê logo o Ibraim. Está a vender os bilhetes e a controlar as entradas. Nem sequer repara no cartaz que anuncia o filme dessa noite. Deixa entrar as pessoas que estavam à porta e sem mais ninguém para o porteiro atender, dirige-se ao seu amigo:

- Ibraim, há tanto tempo que não nos vemos. Tenho muitas coisas para lhe contar. Estive dois meses numa tabanca…

O porteiro, sentado a uma pequena mesa onde tinha os bilhetes e o dinheiro das entradas, sem sequer levantar os olhos para o amigo, mantendo-se a olhar para o maço de bilhetes como se estivesse muito atarefado, responde:

- Senhor Alferes, agora tenho muito que fazer e não podemos conversar.

O Alferes ficou aparvalhado, sem saber o que dizer. Passava-se alguma coisa com o seu amigo. Antes de ir para Madina Xaquili davam-se como verdadeiros amigos e agora a reacção do Ibraim era perfeitamente incompreensível. Estendeu o dinheiro, recebeu o bilhete e entrou. Sentado à espera que o filme comece pensa em tudo o que podia ter provocado aquela reacção, não chegando a conclusão alguma. Decide que no fim do espectáculo irá tirar tudo a limpo, confrontando o amigo com a reacção que tinha tido.

Depois dos documentários, que desta vez foram sobre as Pousadas de Portugal, e começado o filme dessa noite é que o Alferes se apercebe que se trata do “Deserto Vermelho” de Antonioni. Óptimo filme, mas nestas circunstâncias talvez preferisse um tema menos pesado, quiçá uma “coboiada”.

O que é certo é que no intervalo metade da assistência já não voltou à sala. O filme era realmente difícil.

No fim o Alferes deixou sair todo o pessoal e só depois de dirigiu para a saída. O Ibraim não teria justificação para não falar com ele.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7854: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (70): Na Kontra Ka Kontra: 34.º episódio

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7854: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (70): Na Kontra Ka Kontra: 34.º episódio




1. Trigésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 23 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


34º EPISÓDIO

Na reunião com o Furriel, para lhe entregar o comando, o Alferes chega a dizer-lhe que lhe tinha passado pela cabeça ignorar a ordem para ir embora e permanecer na tabanca. Além das boas recordações que tinha dos dois meses passados ali, estava sobretudo com muita pena de abandonar toda aquela gente africana que, independentemente da guerra, dentro de dias iria ficar isolada de Galomaro devido às chuvas. Para permanecer na tabanca, bastar-lhe-ia enviar uma mensagem para o Comando de Galomaro, com conhecimento ao Comando de Bafata a perguntar qual ordem cumpria, se a da coluna para o levar, se a que recebera do Coronel quando da sua visita à tabanca dizendo-lhe que o Alferes só sairia dali quando todos tivessem abrigos. Nesta altura dos acontecimentos os abrigos já não seriam suficientes e sobretudo seria necessário abrir valas entre abrigos.

Iria a mensagem, viria a resposta, entretanto a coluna tinha partido e o Alferes tinha ficado, sem contudo praticar qualquer desobediência. Na tropa as coisas podem assim acontecer.

O Alferes não tem coragem para tanto e resolve partir. Despede-se de todos os que ficam, especialmente do Dionildo com quem tinha estabelecido uma relação que ultrapassava o âmbito militar e se transformara numa verdadeira amizade pessoal.

O João Sanhá e alguns milícias prometem visitá-lo quando forem a Bafata.

O nosso Alferes sobe para uma viatura e a coluna põe-se em marcha. A consumação dum KA KONTRA. À frente, pela segunda vez nesta zona, segue uma equipa de picadores.

É então que o Furriel que ia ao lado do Alferes lhe pergunta se tinha gostado de estar na tabanca. O Alferes já possuído de uma profunda tristeza por ter deixado Madina Xaquili e o seu povo desata num choro convulso. Os seus olhos parecem dois chuveiros. O Furriel não compreendendo o porquê da situação fica mudo. Mais à frente o Alferes reage, limpa o rosto e reata a conversa com o furriel, mas não sobre Madina Xaquili.

Chegam a Galomaro e antes de ser levado a Bafata, o Alferes Magalhães ainda tem tempo de conversar com o Capitão, Comandante da Companhia, pondo-o a par dos acontecimentos da noite anterior.

Antes de subir para um Unimog para prosseguir viagem não deixa de perguntar, quer ao Capitão quer a elementos africanos, se não estariam aí a família do Chefe de Tabanca, fugida de Madina Xaquili, pois o Alferes sabia que a Asmau tinha aí um tio. A resposta foi negativa pelo que continuou viagem.

Chega a Bafata e ao Comando de Agrupamento. Põe a bagagem no seu antigo quarto e dá-se um grande NA KONTRA com todo o pessoal do quartel ávido de saber como as coisas tinham corrido lá na longínqua tabanca, incluindo o baptismo de fogo do Alferes. Faz a apresentação formal ao Comandante a quem relata os últimos acontecimentos em Madina Xaquili.

Já sozinho sente uma sensação muito estranha que nunca tinha tido: Esteve dois meses fora mas o que lhe parece é que já há anos não ia a Bafata. Só encontra uma explicação: A intensidade com que tinha vivido em Madina Xaquili. Horas, minutos, segundos tinham-se multiplicado por dias, meses, anos. Tinha visto a guerra de perto pela primeira vez. Tinha namorado. Tinha casado. Tinha-se divorciado. A morte do Samba não lhe saia da ideia. Tinha bem presente o convívio diário com aquela extraordinária gente, pura e sincera. Era pois uma sensação que nunca tinha sentido: Que o mundo tinha ficado para trás e que nada mais havia para fazer. Não via no trabalho insípido que novamente o esperava no quartel, algo que o fosse tirar da melancolia que agora o estava a possuir.

Como sempre acontecia em situações difíceis reage o melhor que pode. Fala com todos os camaradas contando a sua experiência na tabanca. Toma um banho de chuveiro que não deixou de achar estranho, pela “mordomia”. Vai almoçar, como anteriormente era habitual, com os Alferes do Esquadrão, ali ao lado, sentado numa cadeira, debaixo de um tecto e servido pelo inestimável Cabo Marques. Mais “mordomias”.

A seguir ao almoço, enquanto os outros Alferes vão dormir a sesta, o Alferes Magalhães vai rever Bafata. Passa a cumprimentar o Senhor Teófilo, dono do restaurante próximo e continua avenida abaixo, com o Sol a pique, mas não acusando o calor. Revê o café das libanesas e chega ao café-restaurante Transmontana onde toma um café, servido pelo Infali, homem triste mas sempre simpático, com quem o Alferes sempre conversa. Aliás numa das conversas referiu que, como “bom muçulmano” tinha quatro mulheres. O ar triste devia vir daí…

O Alferes Magalhães no café Transmontana, servido pelo Infali.

Tomado o café vai rever o Mercado. Ao lado na Piscina, debruçado na balaustrada sobre o rio Geba, revê os pescadores nas suas canoas.

Os pescadores do rio Geba.

O calor aperta e resolve tornar ao quartel. Não vai pela avenida principal, que a essa hora e a subir é penoso percorrê-la. Vai antes por um caminho totalmente arborizado e plano que conduz à mãe d’água de Bafata, zona muito aprazível onde até há mesas e bancos para piqueniques, local que é conhecido por Sintra de Bafata. Pelo caminho cruza-se com bandos de macacos-cão que estão sempre por ali à espera que se lhe dê qualquer coisa para comer. Da mãe d’água, onde também há um grande chafariz, até ao quartel só tem que subir um pequeno desnível, passando ao lado da casa do Comandante do Esquadrão. Não é raro neste local verem-se uns enormes “lagartos” com mais de um metro de comprimento mas perfeitamente inofensivos.

O Alferes Magalhães no caminho de Sintra de Bafata.

Chegado ao quartel vai deitar-se. O Comandante tinha-lhe atribuído três dias de descanso e portanto aproveita.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7847: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (69): Na Kontra Ka Kontra: 33.º episódio

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7847: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (69): Na Kontra Ka Kontra: 33.º episódio




1. Trigésimo terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


33º EPISÓDIO

Por fim, pela picada de Padada começam a chegar os elementos da operação. Rapidamente os dois Alferes metropolitanos, depois de se cumprimentarem, chegam à conclusão que não há condições para o pessoal de Galomaro ficar dentro da tabanca. Não havia alojamentos e era perigoso, pois em caso de ataque não havia abrigos para todos. Comeriam na tabanca o jantar que o “legionário” estava já a preparar e depois iriam instalar-se, emboscados, na orla da mata, para pernoitar.

É quase noite quando o contingente de quase sessenta homens, metade africanos, começou a sair da tabanca. Não iam em fila indiana mas sim em grupos. Quando os últimos elementos estavam a passar pelo “cavalo de frisa” da picada de Padada, os primeiros estavam já a entrar na mata. Neste momento aconteceu o que se acharia improvável, ou talvez não, como sempre tinha pensado o Alferes Magalhães.

Ouve-se um tiro seco, que não seria de G3, mas não deu tempo a conjecturas como acontecera quando um sentinela disparou sobre um porco do mato. Os sentinelas metidos na mata já tinham abandonado os seus postos. Quase em simultâneo começa um tiroteio infernal. Os guerrilheiros estariam a instalar-se para um ataque e tiveram que iniciar a contenda face ao aparecimento da tropa portuguesa. Esta reagiu de imediato pelo que foi uma autêntica batalha campal. Segundos depois começam a rebentar algumas granadas de morteiro 82 e de RPG 7 mas muito dispersas pois não houve tempo para regular o tiro e era a primeira vez que Madina Xaquili era atacada. Vir-se-ia a verificar que não produziram qualquer estrago material.

Não havendo a certeza, tudo leva a crer que os guerrilheiros vieram no encalço dos homens da operação. Embora com algumas consequências para a tropa que ia pernoitar fora do “arame”, este acto evitou um ataque bem organizado à tabanca, que provocaria com certeza muitas baixas, principalmente civis.

O nosso Alferes apenas se limitou a “acariciar” o seu cano de morteiro 60. A posição das duas facções era tal que não pôde efectuar qualquer disparo. Podia atingir as suas próprias tropas.

Tão depressa começou o recontro, como depressa acabou. Silenciadas as armas e com os guerrilheiros a efectuar a retirada fez-se a contabilidade dos estragos, lamentavelmente, só humanos: Vários feridos ligeiros provocados por estilhaços e um morto africano, que alguém viria a dizer que teria sido atingido pelo primeiro disparo que se ouviu, estando o atirador em cima de uma árvore. Disso, a certeza nunca se teve.

A meio da manhã do dia seguinte chega a coluna de Galomaro que inicialmente era só para levar o seu pessoal que tinha entrado na operação. Dado o ocorrido vinha também remuniciar a tabanca. Manhã cedo seguiu a mensagem do Alferes Magalhães a dar conta do acontecimento pois, como é sabido, de noite não se conseguia comunicar com a sede da Companhia. A coluna já tinha partido para Madina Xaquili. Mas porque em Galomaro se ouviu o ataque, o comandante determinou que se levassem as respectivas munições ainda antes de receber qualquer mensagem.

Também o Comando de Galomaro não esperou pela confirmação do ataque e informou, nesse sentido, o Comando de Bafata. Assim por troca de mensagens durante a noite entre os dois Comandos, a coluna também trazia uma ordem para levar embora, para Bafata, o Alferes Magalhães.

A situação na zona estava a degradar-se pelo que o Coronel de Bafata iria com certeza, a curto prazo, reforçar a guarnição aí sediada e o nosso Alferes não fazia parte de tal quadrícula.

Pouco tempo teve o Alferes para preparar a partida. Andando de um lado para o outro dá as últimas instruções e pôde ver de fugida que, além das munições, também tinham trazido para reforço do armamento, uma velha metralhadora Degtyarev de disco, apreendida ao inimigo.

São tiradas as últimas fotografias, sobretudo com o pessoal africano, com quem o nosso Alferes tinha criado grandes amizades.

O Alferes Magalhães, o João Sanhá e parte do Pelotão de Milícia.

Na reunião com o Furriel, para lhe entregar o comando, o Alferes chega a dizer-lhe que lhe tinha passado pela cabeça ignorar a ordem para ir embora e permanecer na tabanca. Além das boas recordações que tinha dos dois meses passados ali, estava sobretudo com muita pena de abandonar toda aquela gente africana que, independentemente da guerra, dentro de dias iria ficar isolada de Galomaro devido às chuvas. Para permanecer na tabanca, bastar-lhe-ia enviar uma mensagem para o Comando de Galomaro, com conhecimento ao Comando de Bafata a perguntar qual ordem cumpria, se a da coluna para o levar, se a que recebera do Coronel quando da sua visita à tabanca dizendo-lhe que o Alferes só sairia dali quando todos tivessem abrigos. Nesta altura dos acontecimentos os abrigos já não seriam suficientes e sobretudo seria necessário abrir valas entre abrigos.

Iria a mensagem, viria a resposta, entretanto a coluna tinha partido e o Alferes tinha ficado, sem contudo praticar qualquer desobediência. Na tropa as coisas podem assim acontecer.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7837: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (68): Na Kontra Ka Kontra: 32.º episódio

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7837: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (68): Na Kontra Ka Kontra: 32.º episódio




1. Trigésimo segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 21 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


32º EPISÓDIO

No dia seguinte ao incidente tudo já decorria como se nada tivesse acontecido, apenas se notava uma menor alegria nos semblantes dos africanos.

À hora do almoço, depois do patrulhamento habitual, já estavam os dezasseis metropolitanos sentados à mesa para almoçar quando chega o João e se dirige ao Alferes:

- Tenho uma coisa importante a dizer-lhe. Gostava que fosse a sós. O Alferes levantou-se, apreensivo, e afastou-se um pouco com o João. Este, em voz baixa, continuou:

- Toda a família do Chefe da Tabanca, Adramane, incluindo a Asmau foi embora durante a madrugada. Não me pergunte como saíram da tabanca nem para onde foram pois já interroguei os milícias que estavam de sentinela e nem eles nem mais ninguém me adiantou o que quer que fosse.

O Alferes esteve por momentos pensativo mas logo agradeceu ao João despedindo-se com um até logo. Rapidamente compreendeu que nenhum africano, milícia ou civil, lhe iria adiantar alguma coisa sobre a fuga. Tratava-se muito simplesmente da solidariedade africana. Aconteceu o que é normal entre a população fula desta zona. À mínima ameaça da guerrilha, abandonam as suas tabancas e aproximam-se de Bafata, ainda zona de paz. Aliás o Alferes Magalhães e a sua tropa estavam ali para isso mesmo; impedir por persuasão a fuga da população. Consumada a fuga não havia mais nada a fazer.

Com certeza para a partida do Adramane teria contribuído, mais que tudo, a morte do marido da sua filha Asmau. O Alferes não deixava de pensar nessa razão, o que o levava permanentemente a interrogar-se: Porquê o Samba? Parece-lhe um castigo divino. De qualquer forma a situação por muito tempo o iria atormentar.

Passados uns dias, com tudo a decorrer normalmente, é recebida uma nova mensagem para fazer uma outra operação à zona de Padada. O Comando de Galomaro entendeu que seria necessário passar à ofensiva e não ficar dentro do “arame” à espera que o inimigo lá fosse.

Desta vez o Alferes Magalhães não participa na operação. Por um lado está preocupado com a defesa da tabanca no caso de um ataque, por outro, o contingente com que se iam encontrar em Padada, reforçado com elementos africanos, idos directamente de Galomaro já era comandado por um Alferes. Os dois grupos reunidos perfaziam cerca de cem homens dispondo de algumas armas pesadas. O miserável cano velho de morteiro ficaria na tabanca para sua defesa. A operação era de dois dias e iriam dormir na zona de Padada fazendo, a partir da madrugada, uma emboscada em trilhos recentemente utilizados pelos guerrilheiros. No dia seguinte regressariam a Madina Xaquili e uma coluna de Galomaro viria buscar o seu pessoal.

Estava a chegar o fim do segundo dia e como não se ouviu qualquer rebentamento para a zona da operação, tudo levava a crer ter sido mais uma acção sem resultados.

Por fim, pela picada de Padada começam a chegar os elementos da operação. Rapidamente os dois Alferes metropolitanos, depois de se cumprimentarem, chegam à conclusão que não há condições para o pessoal de Galomaro ficar dentro da tabanca. Não havia alojamentos e era perigoso, pois em caso de ataque não havia abrigos para todos. Comeriam na tabanca o jantar que o “legionário” estava já a preparar e depois iriam instalar-se, emboscados, na orla da mata, para pernoitar.

É quase noite quando o contingente de quase sessenta homens, metade africanos, começou a sair da tabanca. Não iam em fila indiana mas sim em grupos. Quando os últimos elementos estavam a passar pelo “cavalo de frisa” da picada de Padada, os primeiros estavam já a entrar na mata. Neste momento aconteceu o que se acharia improvável, ou talvez não, como sempre tinha pensado o Alferes Magalhães.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7830: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (67): Na Kontra Ka Kontra: 31.º episódio

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7830: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (67): Na Kontra Ka Kontra: 31.º episódio




1. Trigésimo primeiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 20 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


31º EPISÓDIO

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

À pergunta do Alferes Magalhães: - Quem foi atingido? O João Sanhá logo respondeu:

- Foi o Samba. Está todo desfeito.

O Alferes pelo hábito de conviver com o Dionildo solta, mas só para si, um c… f…

- Logo ele.

Naquele momento o Alferes quereria que tivesse acontecido aquilo a qualquer outro milícia menos ao Samba. Pensou na Asmau que mesmo que não ficasse viúva iria com certeza ficar com um homem mutilado, dependente. Gostou muito da Asmau e ainda gosta e isso está a angustiá-lo muito. Um sentimento de culpa instala-se nele. Pensa, sem qualquer razão, que podia ter dispensado o Samba, naquele dia. Tinha subestimado o inimigo quando pensava que qualquer aproximação a Madina Xaquili se faria pelo lado de Padada e sentia-se culpado.

O Alferes Magalhães monta uma defesa com alguns elementos metidos na mata, pois nunca se sabia com o que se contava, e depois de concluir que aquela mina não passava de um acto isolado, manda de imediato quatro homens à tabanca para que o rádio-telegrafista faça um rápido pedido de evacuação.

O Samba acaba por morrer durante o transporte para a tabanca.

Cerca de uma hora depois chega um helicóptero que parte como veio. A guerra estava ali e as coisas iriam precipitar-se.

Embora o Samba não tivesse família na tabanca toda a população organiza e participa no “choro”. Para todos os metropolitanos mais parecia uma festa. Houve música e cantares, tendo o Adramane disponibilizado uns cabritos para todo o pessoal comer.

Dada a falta de condições para conservar minimamente o corpo, ao fim da tarde é enterrado no “cemitério”, local incaracterístico, situado na mata logo a seguir à zona desmatada. O Alferes acompanhou todos os rituais embora sempre acabrunhado. Da cabeça dele não saía a pergunta: - Porquê ele? Tentou ver a Asmau, para lhe dar uma palavra de conforto, mas não conseguiu descobri-la. Devia estar recolhida na morança dos pais.

Tinha mandado uma mensagem para o comando de Galomaro a contar o sucedido e aproveitou para pedir um reforço de material e munições, especialmente para o cano do morteiro 60. Pouco comeu ao jantar e logo se dirigiu para o “bentem” para conferenciar com o Chefe da Milícia. Se o Alferes Magalhães andava incomodado com a morte do Samba, o João estava apavorado com o agravar da situação. Não era para menos, tratava-se da primeira acção do PAIGC nas imediações da tabanca. Talvez já não fosse colher os próximos produtos das suas lavras…

Coube ao Alferes Magalhães, com a sua melhor preparação militar, acalmar o João e explicar-lhe que se tinha que reagir e sobretudo não demonstrar aos subordinados qualquer sentimento de insegurança. Acrescentou que, perante o acontecido, os comandos de Galomaro e de Bafata iriam com toda a certeza reforçar a guarnição da tabanca. Convencido ou não o João parece mais calmo.

Como o Braima estava presente com o seu kora, depois da sua participação no “choro”, o Alferes pede-lhe para tocar qualquer coisa, o que ajudou muito a desanuviar o pesado ambiente.

Todos estiveram no “bentem” até mais tarde nessa noite a ouvir os acordes do Braima. O Alferes achava por um lado que os guerrilheiros depois daquela acção não iriam aparecer de imediato pois achariam que a tropa Portuguesa estaria a postos, por outro lado a mina detonada não se dirigiria à sua tropa mas sim a uma futura coluna de reabastecimento de Galomaro. Pensou em todas as possibilidades. Tinha-se enganado sobre a direcção da primeira aproximação do PAIGC e não queria cometer mais erros. Não tornaria a deitar-se tão cedo como era costume para não dar vantagem ao inimigo, se num ataque o apanhassem a dormir, tanto mais que é ele que manobra o morteiro 60. Poupar as dezasseis granadas era também essencial e só confiava nele próprio para isso.

Antes de se deitarem foram os três graduados dar uma volta pelos postos de sentinela, que à noite eram todos dentro da tabanca, incutindo ânimo e sentido de responsabilidade de forma a não se deixarem dormir e estarem de ouvidos bem atentos. Como a escuridão era total a vista não ajudaria muito a detectar uma possível aproximação dos guerrilheiros.

No dia seguinte ao incidente tudo já decorria como se nada tivesse acontecido, apenas se notava uma menor alegria nos semblantes dos africanos.

À hora do almoço, depois do patrulhamento habitual, já estavam os dezasseis metropolitanos sentados à mesa para almoçar quando chega o João e se dirige ao Alferes:

- Tenho uma coisa importante a dizer-lhe. Gostava que fosse a sós. O Alferes levantou-se, apreensivo, e afastou-se um pouco com o João. Este, em voz baixa, continuou:

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7820: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (23): O "fefé" é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Cherno Baldé)

1. Comentário do nosso tertuliano Cherno Baldé*, a quem aproveitamos para saudar, pelo seu regresso, deixada no Poste Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio:

Caros amigos,
Quero felicitar o Fernando Gouveia por esta interessante novela em terras Guineenses que, quanto a mim, dava para um belo filme.

Senti muita inveja do Alfero Magalhães pela bonita residência que lhe coube em Madina Xaquili. Na nossa língua (fula) chamam estas casas de "Náatu ka sudu" ou seja "faça o favor de entrar", s´il vous plait.

Sobre o "fefé" quero acrescentar que é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Fula e mandinga).

E, ao falar do seu ar primitivo, opinião que eu também partilho, convém salientar outros aspectos não menos importantes:

Em primeiro lugar, trata-se de um instrumento resistente e leve, sendo fácil de manobrar para toda a gente e nas diferentes faixas etárias e, em segundo lugar, é facilmente adaptável aos diferentes tipos de solos. Os solos da região tropical são diferentes dos solos das regiões temperadas pois aqui a camada nutriente que alimenta as plantas não é muita profunda. Mas, sobretudo é um instrumento altamente social, pois ninguém o utilizava de forma isolada e já se falou aqui dos "Wampanhs" daquela época. Hoje em dia, praticamente não se usa, e também porque nessa era de telefones móveis acompanhada de crises móveis, já ninguém trabalha como outrora. E por falar de trabalho, entramos na análise de uma outra vertente mais cultural ou socio-antropológica aflorada por A. Branquinho e que diz respeito a gestão da vida familiar e/ou patrimonial em que os mais velhos controlam tudo e mais alguma coisa.

Nas nossas sociedades tradicionais, providas de meios de produção bastante precários, a gestão da força do trabalho era fundamental para garantir alguma sustentabilidade (dentro de um círculo de aparente miséria). A base fundamental para o equilíbrio de todo o sistema era o controlo do sexo e da sexualidade, isto é a gestão rigorosa e racional do mesmo de forma a garantir que só têm acesso a casa das mulheres (ao sexo) aqueles que já tinham cumprido as condições e regras tacitamente estabelecidas pela sociedade para esse efeito. Este esquema permitia a (re)produção social e económica das comunidades numa perfeita harmonia com o meio envolvente.

Este modelo sofreu uma gradual mas durável destruição, primeiro com as imposições da colonização e o advento do mundo novo (a globalização) mas acabou mesmo por sucumbir sobretudo com as nossas independências. Hoje, qualquer sapateiro da esquina tem direito... tudo está politizado, o sexo se liberalizou, tornando-se baratinho e fácil de obter, os mais novos já não querem vergar a espinha para nada deste mundo.

O nosso modelo social antigo perdeu-se antes de termos tempo de construir um outro que seja funcional e adaptado a nossa realidade e as nossas condições. As nossas cidades estão cheias de gente que ao acordar de manhã não sabe o que há-de fazer com a sua vida mas também não quer ser camponês, trabalhador do campo, está civilizado antes de garantir o seu sustento.

Um velho ditado fula diz: O lado para onde olha aquele que está perdido no mato, não há tabanca nenhuma.

Um grande abraço
Cherno Baldé
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Nota de CV:

(*) Vd. esta série de postes com as memórias de Cherno Baldé

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7810: Memórias do Chico, menino e moço (22): Quando choviam... frangos em Fajonquito!

27 de Novembro de 2010 >Guiné 63/74 - P7350: Memórias do Chico, menino e moço (21): Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação

18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7003: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (20 ): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (II Parte)

17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

17 de Agosto de 2010 >  Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974

14 de Julho de 2010 >Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar

30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

18 de Maio de 2010 >Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (13): Fajonquito, o blogue, o meu silêncio... e as fotos do José Cortes

12 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

10 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

27 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 >Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão