Mostrar mensagens com a etiqueta Op Lança Afiada. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Op Lança Afiada. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16420: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VIII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (IV): "Os guineenses são muito resistentes...Numa ocasião, uma bomba caiu perto de uma mulher e feriu-a no abdómen... Eu devia abrir-lhe o abdómen pois tinha peritonite. Coloquei-lhe anestesia local e, quando lhe ia dar a geral, um avião largou outra bomba que caiu perto. A mulher levantou-se, com a ferida meio aberta, e fugiu. Não a vi mais. Depois disseram-me que a tinham localizado, já morta, a cerca de quatro quilómetros dali."




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca – Eis, projectada no mapa, a principal actividade operacional das NT e a do PAIGC durante um pouco mais de três meses (entre 8 março e 18 junho de 1969), aonde Alfonso Delgado acabaria por intervir, certamente com muito trabalho e enormes dificuldades, prestando apoio médico aos guerrilheiros feridos em combate, algumas cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite à luz de archotes de palha ardendo.

Na mata do Fiofioli, as principais operações das NT realizaram-se em março e abril de 1969, reagindo os guerrilheiros do PAIGC com ataques a aquartelamentos, destacamentos e emboscadas em abril, maio e junho, nomeadamente a Sul da linha de circulação entre Xime-Bambadinca-Mansambo-Xitole, a saber: Xime, Ponta Coli, Amedalai, Ponte do Rio Udunduma, Bambadinca, Taibatá, Demba Taco, Moricanhe, Mansambo, Ponte dos Fulas e Xitole (estrelas cor magenta)


Infogravura: Jorge Araújo (2016)


Oitava parte, enviada em 25 do corrente, das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato, a especificidade e as limitações do blogue.


Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].



1. INTRODUÇÃO

Caros Camaradas Tertulianos; aproveito para reforçar os meus agradecimentos pelos vossos comentários aos textos anteriores, considerando-os relevantes neste contexto de partilha de memórias, a partir dos quais desejo organizar uma outra narrativa, concluído este trabalho que continuo a dar a melhor atenção.

Dito isto, seguimos hoje com a oitava parte deste meu projecto relacionado com a divulgação de algumas das principais experiências transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969, como foi o caso do clínico Amado Alfonso Delgado.

Relembro que esta espontânea iniciativa surge na sequência de ter tido acesso ao livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch, uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus dezasseis entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação.

Relembro, ainda, que por tratar-se de uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço sócio-histórico ao que foi transmitido, ajudando-nos, por um lado, a melhor compreender o outro lado do conflito e, por outro, na busca de fechar o puzzle dos diferentes episódios em que ambos estivemos envolvidos.

De acordo com esta metodologia e objectivos serão bem-vindas todas as achegas factuais ao agora divulgado, pois consideramos que a história, enquanto ciência do Homem, necessita do seu aprofundamento, daí o título com que baptizei este trabalho: “d(o) outro lado do combate - memórias de médicos cubanos”.

2. O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [III]

Esta oitava parte do projecto “memórias de médicos cubanos” corresponde ao quarto de cinco fragmentos em que foi dividida a entrevista ao doutor Amado Alfonso Delgado, médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia.(*)

Nos três fragmentos anteriores [P16357; P16380 e P16396], referentes às primeiras quinze questões formuladas, encontramos os antecedentes que influenciaram a sua decisão de cumprir uma missão internacionalista, tendo-lhe surgido a hipótese de o fazer na Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau), que aceitou.

Esta inicia-se na véspera de Natal de 1967, tinha então vinte e sete anos de idade, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri. É na Guiné-Conacri que tem a sua primeira experiência profissional africana, prestando serviço médico no Hospital de Boké, uma unidade de saúde de rectaguarda do PAIGC, juntando-se a mais quatro clínicos cubanos aí colocados anteriormente.

Em abril de 1968 tem início a sua integração na guerrilha ao ser destacado para a frente Leste para substituir o seu companheiro Daniel Salgado, médico-cirurgião militar que entretanto adoecera com o paludismo.

A sua entrada em território da Guiné-Bissau verificou-se pela fronteira Sul com a sua primeira caminhada a terminar na base de Kanchafra, aonde se encontravam vinte combatentes cubanos. Seguiram-se outras etapas ao longo de oito dias, com caminhadas cada vez mais duras, pois não estava preparado para esse desempenho. Nesse espaço de tempo passou por diversas aldeias onde se alimentava com farinha e carne, afirmando ter passado fome, habituando-se, desde então, a comer pouco.

Ao quarto dia disseram-lhe que tinha chegado à Mata do Unal, na região do Cumbijã. Continuada a “viagem” a pé, chegou à foz do Rio Corubal / Rio Geba (Xime) onde lhe foi transmitido que naquele lugar havia um problema mais perigoso que a tropa portuguesa, chamado “macaréu”. Quando chegou à outra margem [, presume-se que fosse a margem direita], encontrou um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. Este olhou-o com alguma indiferença, tendo-lhe perguntado: “tu pensas aguentar esta ratoeira? “Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “tu verás como isto é”.

Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os primeiros nove meses de 1969, durante os quais teve muito trabalho, com enormes sobressaltos, muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga (com diarreias), que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a destruição das suas enfermarias [, na mata do Fiofioli], por quatro vezes [, uma das quais no decurso da grande Op Lança Afiada, 8 a 19 de março de 1969].

Esteve cercado por várias vezes. Viu aviões bombardeiros, helicanhões, barcos da marinha e militares [, tropas paraquedistas do BCP 12, ] descerem de helicóptero. Para além dos constantes ataques a que esteve sujeito, foi também atacado por mosquitos que lhe perfuraram a roupa que tinha no corpo e por centenas de abelhas que lhe “ofereceram” os seus ferrões.

Por tudo isto passou vários meses sem ter contacto com o mundo. Devido a todas estas ocorrências e das tensões a elas associadas, por efeito da intervenção dos militares portugueses em diferentes acções naquela região, acreditou não ser possível sobreviver, pensando muito nos filhos, que iriam ficar sem pai… coitados.

Eis mais algumas memórias reveladas pelo médico Amado Alfonso Delgado. (**)


Entrevista com 25 questões [Parte IV, da 16.ª à 21.ª]
“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)


(xvi) Neste contexto complexo 
realizou operações cirúrgicas?

A maioria das vezes que operei foi em sítios calmos, aonde se situavam os 'hospitalitos' [enfermarias de colmo, a que dificilmente se poderia chamar hospitais de campanha], e onde também nos chegavam pessoas que pisavam minas ou tinham sido feridas em emboscadas.

Quase sempre os feridos chegavam de noite e tinha que os operar com archotes de palha. Fiz cerca de cinquenta operações. Amputações fiz muitas devido às minas [anti]pessoais. Também operei tórax e braços.


(xvii) Como faziam 
os archotes?

Apanhávamos maços de erva seca [capim], cortávamos, dobrávamos e amarrávamos com a mesma palha e pegávamos-lhes fogo. Às vezes não via o que estava a operar apesar de colocar à minha volta oito a dez archotes.

Os guineenses tinham muita resistência e com qualquer coisa ficava resolvido. Para minorar uma fractura óssea, fixava-lhes um tronquito da floresta e quinze dias depois estava bom. Se era uma pneumonia, com três injecções de penicilina curavam-se. Muito poucas vezes as feridas se infectaram após as operações que realizei. Eles sangravam pouco.

No primeiro hospital onde estive [Boké] fazíamos-lhes análises de hemoglobina e era muito raro que algum tivesse mais de 5 g/dl. Em Cuba temos 13, 14 g/dl. Mas apesar desta situação, caminham mais e são mais fortes que nós.


(xviii) Conte algumas das suas experiências 
com a população

A maioria da população não sabia a sua idade, era o mesmo dizer cinquenta como trinta anos, devido ao contexto onde viviam. Eram muito afectuosos e protegiam-nos muito, às vezes às custas das suas próprias vidas.

Eu senti-me muito bem na Guiné e creio que foi uma das melhores épocas de trabalho da minha vida. Às vezes chegava a uma tabanca, e era para eles como um filme ao verem um branco. De repente ficava cercado por quarente/cinquenta crianças e logo me começavam a tocar nos pelos, na cara, nos braços. Era algo raro que nunca antes tinha visto.

Numa outra ocasião, uma bomba caiu perto de uma mulher e feriu-a no abdómen. Eu levava um manual de como aplicar a anestesia, porque naquele momento não me encontrava com o assistente. Devia abrir o seu abdómen pois tinha peritonite. Coloquei-lhe anestesia local, e quando lhe ia dar a geral, um avião largou outra bomba que caiu perto. A mulher levantou-se, com a ferida meio aberta, e fugiu. Não a vi mais. Despois disseram-me que a tinham localizado, já morta, a cerca de quatro quilómetros dali. Eram coisas que se passavam.

Outras vezes tive que ser dentista. Tinha equipamento para extrair dentes e por sorte eles têm poucas cáries. Aprendi e extrai, naquele tempo, perto de cinquenta.

Como já referi, os guineenses são pessoas muito resistentes. Um dia chegou-me um homem que tinha sido atingido por uma bala, há três meses atrás. Ela entrou-lhe pelo abdómen e saiu-lhe pelas costas, e estava como se nada tivesse acontecido. Se fosse em Cuba, morria-se três vezes. Tive que o enviar para Conacri [Boké], pois era uma operação complicada.

Noutra ocasião levaram-me uma criança que não obrava pelo ânus, mas por orifício perto do recto na ponta da nalga. Não sabia o que era, apalpei-o e encontrei uma coisa dura dentro. Enviei-o para Boké aonde lhe fizeram uma radiografia e viram que era um pau que a tinha atravessado desde a nalga até ao diafragma. Atravessou seis alças intestinais. O pau tinha apodrecido e as fezes saíam por esse sítio. O médico Almenares operou-o e teve de lhe cortar seis pedaços de intestino.

Estando na Mata do Fiofioli, trouxeram-me um comandante [?] com uma ferida no abdómen. Deitava pouco sangue, pus-lhe um penso e enviei-o para o hospital de Boké para o operarem. Para o transportar até esse lugar, designaram entre catorze a dezasseis homens. Dois o colocaram numa padiola em cima dos seus ombros e seguiram. Foram-se revezando pelo caminho ao longo de duzentos quilómetros [?]. Ao fim de um mês, este comandante apareceu para me cumprimentar e agradecer-me pois já estava bom.

Também atendi em duas ocasiões feridos com mordeduras, na cara, provocadas por leopardos [, ou mais provavelmente onças] feridos por caçadores, pois normalmente estes animais não atacam os seres humanos. Atendi, ainda, vários elementos da população com mordidelas de serpentes, pois existem milhares delas na Guiné.

(xix) Encontrou doenças 
que não existem em Cuba?


Sim, várias doenças raras. Por exemplo, aldeias inteiras com tracoma, que é uma infecção nos olhos e nas pálpebras que deixa cegas as pessoas. Visitei aldeias aonde muitos estavam cegos. Pessoas com lepra avançada, a que, lhes faltavam dedos, e por isso nos davam as mãos pois gostavam muito de nos cumprimentar.

Havia uma doença, a míasis, produzida pela picada de uma mosca, que provoca um abcesso e daí saiam vermes (bichos). Outra que produzia umas bolhas no corpo, denominada oncocercose, que é um tipo de filária. Uma vez lembrei-me de lancetar uma dessas bolhas a um doente e não fechava. Essa doença tem tratamento especial. Existe um verme que se mete por debaixo da pele e os guineenses apanham um palito, o amarram com um fio de palma, o introduzem no furúnculo e o vão rolando todos os dias até que tiram o enorme bicho a que chamam «verme (bicho) da Guiné».

Existem muitos parasitas e insectos perigosos como a nígua, que se introduz na pele das pessoas em época seca e forma como um furúnculo. Tem-se que o extrair o qual tem a forma de carraça.


(xx) Anormalidades da sua vida 
nas matas de Guiné-Bissau?

Eis algumas! Tomávamos banho no rio. Não tínhamos nem toalhas nem sabão, nem tampouco papel para escrever alguma mensagem. Durante oito meses tive um par de ténis que era o melhor para fazer caminhadas e, por último, já os amarrava com folhas largas pois não havia corda [atacadores].

Quando nos lembramos disso, damo-nos conta de que nessas ocasiões havia coisas que não eram muito normais. Por exemplo, numa ocasião quando me encontrava numa zona perto de um rio, despi-me e lancei duas granadas à água. Imediatamente me atirei ao chão e depois das explosões mergulhei e apanhei perto de vinte peixes mortos. Nesse dia comi com abundância. Penso que todos estávamos um pouco loucos, pois a guerra é a mãe [da loucura e e a rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros em homens; de alguns faz escravos, de outros homens livres, (cit. Heraclito; 535 a.C.-475 a.C.: filósofo pré-socrático considerado o “pai da dialética”].

Colocaram-me à disposição um sangrador de palmeiras (para fazer escorrer o vinho, tipo corta-gotas utilizados nas garrafas). Como não tinhamos desinfectante para colocar na água contaminada, pedíamos a um homem que subisse ao cimo das palmeiras e aí extraía o líquido acumulado que era como se fosse vinho. Cada três/quatro dias me traziam cerca de quatro litros desse líquido. Havia dias em que bebia perto de dois litros de vinho.
Durante o tempo que estive na Guiné comi carne de búfalo, crocodilo, antílope, tartaruga, hipopótamo, javali, macaco, pássaros de várias espécies, apesar da comida principal ser arroz e óleo de dendém.

Em três ocasiões tive paludismo. Uma delas deu-me muito forte e quase que não me podia levantar. Eu próprio me tratava.


(xxi) Andava junto 

com os guerrilheiros?


Andei e fiquei em vários sítios, primeiro em Kandiafara, perto da fronteira Sul, depois na mata do Fiofioli [frente Leste], aonde estive em cinco lugares diferentes, pois é um território com uns trinta quilómetros quadrados [ao longo das margens do Rio Corubal] e mudávamo-nos cada vez que sentíamos algum movimento estranho.

Informavam-me qual o dia que atacariam algum ponto [aquartelamento; destacamento; coluna de abastecimento; tabanca, …] onde estavam os portugueses. Deixavam-me geralmente a um quilómetro desse lugar. Era sempre um ataque com canhões e morteiros. Na mata não é fácil e às vezes ficava um guerrilheiro em cima de uma árvore dando indicações aonde estavam a cair os projécteis para se poder corrigir o tiro. Os portugueses, enquanto elas [granadas] iam caindo, abrigavam-se, e depois contra-atacavam.

[À intensa actividade operacional das NT na
 região da mata do Fiofioli em 1969, como foram os exemplos referidos no P16396: (“Op. Lança Afiada”, entre 8 e 19 de março, movimentando cerca de 1300 efectivos; “Op. Baioneta Dourada” em 2 e 3 de abril, envolvendo um total de sete Gr Comb e “Op. Espada Grande”, em 4 e 5 de abril, com nove Gr Comb, reagiu o PAIGC, treze dias depois, com a primeira acção, realizando uma emboscada na Ponta Coli, no troço da estrada Xime-Bambadinca, em 18 de abril, esta liderada por Mário Mendes Cmdt do bigrupo que atacou os dois grupos de milícias aí instalados em missão de segurança à estrada anteriormente referida, ou seja, o Pel Mil 104 (sediado em Taibatá) e o Pel Mil 105 (destacado em Demba Taco), ambos com uma secção em Amedalai - P12154. Três anos depois, em 25 de maio de 1972, Mário Mendes viria a morrer em combate, na Ponta Varela, na acção “Gaspar 5”, envolvendo seis Gr Comb: três da CART 3494 e três da CCAÇ 12, tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnikov, bem como documentação relacionada com  as acções a desenvolver naquela zona - P13440].

[Quarenta dias depois desta emboscada, na noite de 28 de maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC atacaram pela primeira vez (e que viria a ser a única) o aquartelamento e posto administrativo de Bambadinca (Sector L1), aonde estava instalado, à data, o comando do BCAÇ 2852 (1968/70). Participaram no ataque, que durou cerca de quarenta minutos, dois bigrupos (mais de cem elementos), tendo utilizado três canhões s/r (cujos invólucros se apresentam na imagem à direita), morteiros, RPG, metralhadoras ligeiras e pesadas e armas automáticas de assalto, sem grandes consequências - P11575.

[Em simultâneo com este ataque, outros guerrilheiros procediam à sabotagem da ponte sobre o Rio Udunduma, ao tempo sem qualquer segurança, situada a quatro quilómetros, na estrada Bambadinca-Xime. Para o local seguiu o 3.º Pelotão da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), comandado por Carlos Marques Santos (ex-Fur Mil), reforçado pelo Pel Caç Nat 63, visando a ocupação e defesa do pontão, criando um posto avançado de protecção a Bambadinca.



Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) – Uma das primeiras imagens da Ponte do Rio Udunduma, objecto de sabotagem por parte do PAIGC, na noite de 28 de maio de 1969, aquando do ataque ao quartel de Bambadinca (P11162, com a devida vénia). Aqui passei o 2.º semestre de 1973 e mais algumas semanas de 1974.


[Em 2 de junho de 1969, com início às 20h30, ocorreram, com pequenos intervalos entre si, novos ataques a Amedalai, Demba Taco e Moricanhe, respectivamente. Esta última tabanca seria evacuada dois dias depois para reforço de Amedalai - P1019.

[Em 8 de junho, pelas 18h15, seria a vez do Xitole ser flagelado com mort 82, registando-se novos ataques três dias depois (11 de junho: às 05h05 e 22h50) com mort 82 e canhão s/r, todos eles sem consequências. Nesse mesmo dia (11), às 00h01, novo ataque, agora a Mansambo, com canhão s/r, mort 82, LGFog e armas automáticas, durante trinta minutos, sem consequências. Um novo ataque seria repetido dois dias depois (13), com início às 18h30, com a utilização do mesmo material bélico, sem consequências. No dia seguinte (14) seria flagelado o destacamento de Taibatá, defendido pelo Pel Mil 104. Finalmente em 18 de junho, pelas 17h30, foi flagelado, durante 25 minutos, o destacamento da Ponte dos Fulas, no subsector do Xitole, com mort 82, igualmente sem consequências (in: história do BCAÇ 2852 - Bambadinca, 1968/70, pp. 87/88).

[É de crer que este vasto programa de acções esteja relacionado com o documento assinado por Amílcar Cabral (1924-1973), em 4 de junho de 1969, dando instruções para a realização de ataques, no dia 10 de junho, a diversos quartéis e destacamentos da frente Leste (Bambadinca, Gabú, Cabuca, Xime, Mansambo, Canjadude e várias tabancas com milícias e tropas portuguesas), devendo nalguns casos ser repetido durante três dias - P12156].

Continua…

_________________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 17 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16396: Notas de leitura (871): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (III): Na mata do Fiofioli, pensei que ia morrer, pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos


(**) Último poste da série "Notas de leitura" > 22 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16412: Notas de leitura (873): "O que a Censura cortou": notícias da Guiné, por José Pedro Castanheira (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16396: Notas de leitura (871): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (III): Na mata do Fiofioli, pensei que ia morrer, pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > Gã Garnes [ou Ponta do Inglês] > Novembro de 2010 > Viagem de Mário Beja Santos (Op Tangomau). Foto retirada do blogue.do poste P13898, do camarada Beja Santos, com a devida vénia, onde se lê: “a vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros”.

Foto: © Beja Santos (2011). Todos os direitos reservados [Edição:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Sétima parte, enviada em 15 do corrente, das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato, a especificidade e as limitações do blogue.



Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].



1.  INTRODUÇÃO

Caros tertulianos; agradeço os vossos comentários aos textos anteriores. De seguida, apresento-vos a sétima parte deste meu projecto relacionado com a divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969, mantendo o mesmo propósito de que vos dei conta no poste P16224: o primeiro fragmento, publicado em 22 de junho último  (*).

Recordo que esta espontânea iniciativa surge na sequência de ter tido acesso ao livro escrito em  castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch [, foto atual à esquerda], uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação. disponível em http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf

Neste livro, para além dos depoimentos desses três clínicos que estiveram na Guiné-Bissau (Domingo Diaz Delgado, Amado Alfonso Delgado e Virgílio Camacho Duverger), podemos ainda conferir e/ou comparar outros relatos sobre experiências vividas na primeira pessoa por outros médicos cubanos presentes em diversas missões africanas como foram os casos da Argélia, do Congo Leopoldville, do Congo Brazzaville ou de Angola.

Recordo, igualmente, que por estar perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue, na justa medida em que cada facto relatado ocorreu num tempo e num espaço (que não é o meu!), logo único, vivido por cada um dos sujeitos.

Contudo, esta minha decisão não significa que não se possa realizar, em cada situação concreta, o competente contraditório (ou acrescentar algo mais), uma vez que neste conflito bélico existiram dois lados, daí o título com que baptizei este trabalho: “d(o) outro lado do combate - memórias de médicos cubanos”.

Cada um julgará o que é credível  ou é ficção…

 2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [III]

Esta sétima parte corresponde, com efeito, ao terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a entrevista ao dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, natural de Santa Clara, capital da província de Villa Clara, a cidade mais central de Cuba.

No que concerne aos dois postes anteriores [P16357 e P16380] (*) neles se dão conta dos antecedentes que influenciaram a sua decisão de cumprir uma "missão internacionalista", tendo por cenário desejado o Vietname, o que não se concretizou, acabando por surgir outro destino alternativo, neste caso a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).

A sua missão africana inicia-se na véspera de Natal de 1967, tinha então vinte e sete anos de idade, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal.

Os primeiros três meses passou-os na Guiné-Conacri, prestando serviço médico no Hospital de Boké na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

A integração na guerrilha ocorre, somente, em abril de 1968, quando segue para a frente Leste para substituir o seu companheiro Daniel Salgado, médico-cirurgião militar que entretanto adoecera com paludismo.

Vai entrar em território da Guiné-Bissau, pela fronteira sul, corredor de Guileje, vindo de Boké e Kandiafara: nesta base, encontravam-se na altura  vinte combatentes cubanos. Seguiram-se outras etapas ao longo de oito dias, com caminhadas cada vez mais duras, pois não estava preparado para esse desempenho. Nesse período de tempo passou por diversas aldeias onde se alimentava com farinha e carne que lhe ofereciam, afirmando ter passado fome, habituando-se, desde então, a comer pouco.

Ao quarto dia disseram-lhe que tinha chegado à Mata do Unal, na região do Cumbijã, um local onde “o tiro era abundante”. Continua a sua “viagem” a pé, chegando à foz do Rio Corubal / Rio Geba onde lhe foi transmitido que naquele lugar havia um problema mais perigoso que a tropa portuguesa, chamado “macaréu”. Quando chegou à outra margem [?], encontrou um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. “Olhou-me com alguma indiferença perguntando-me: tu pensas aguentar esta ratoeira? “Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “tu verás como isto é”.

Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os primeiros nove meses de 1969, que foram os últimos da sua missão, durante os quais viveu muitos sobressaltos, com muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga, que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a destruição das suas enfermarias, por quatro vezes.

Devido a todas estas ocorrências, por efeito da intervenção dos militares portugueses em diferentes acções naquela região, e das tensões a elas associadas, pensou não ser possível sobreviver. Mas, conseguiu concluir a sua missão, regressando a Cuba em outubro desse ano.

Eis a continuação de outros relatos revelados pelo médico  Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista que  tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às questões de 12 a 15 com a devida vénia ao autor, o conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).


Entrevista com 25 questões [Parte III, da 12.ª à 15.ª]

“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)



(xii) Viveu muitas tensões nesses ataques?

Durante o segundo ano que ali estive [, em 1969, no triângulo Bambadinca- Xime - Xitole, corresponte ao nosso Sector L1 - Bambadinca] realizam-se muitos desembarques de tropas portuguesas helitransportadas, por exemplo, o hospitalito [enfermaria de colmo] da Mata de Fiofioli o/a queimaram em quatro ocasiões. Cada vez que uma avioneta [DO-27] nos sobrevoava duas vezes, logo nos atacavam. Primeiro realizavam um bombardeamento, para depois desceram os militares.


Os últimos seis ou sete meses que ali estive [com início em janeiro de 1969] [os portugueses] efectuaram uma operação muito grande e demorada.




[O entrevistado faz referência à “Op Lança Afiada”, realizada pelas NT no setor L1, entre 8 e 19 de março de 1969, uma das maiores operações levadas a cabo no CTIG, movimentando cerca de 1300 efectivos, dos quais 36 eram oficiais, 71 sargentos, 699 praças, 106 milícias e 379 carregadores civis. Nesta operação, comandada pelo então coronel Hélio Esteves Felgas (1920-2008), participaram as seguintes onze Unidades Orgânicas: CART: 1743, 1746, 2338, 2339 e 2413; CCAÇ: 1791, 2403, 2405 e 2406; Pel Mil da CCAÇ 2314 e Pel Caç Nat 53 (vd. poste P11575)].

[Quinze dias após esta operação, mais duas foram realizadas no mesmo sector com o objectivo de “se completarem as destruições dos meios de vida naquela região”, cada uma delas com a duração de dois dias. A primeira, “Op  Baioneta Dourada”, decorreu em 2 e 3 de abril de 1969, envolvendo a CART 1746 e as CCAÇ 2314 e 2405, num total de sete Gr Comb; a segunda, em 4 e 5 de abril de 1969, na “Op Espada Grande”, estiveram envolvidas as CART 2339 e 2413 e a CCAÇ 2406, com nove Gr Comb: as bases do PAIGC percorridas foram as situadas na zona de Satecuta, Galo Corubal e Poindom (P9095) )***)].

[Três anos depois, também de dois dias, em 26 e 27 de fevereiro de 1972, foi realizada a “Op Trampolim Mágico” (infogravura abaixo), envolvendo o meu BART 3873, com as CART 3492, 3493 e a minha 3494, o BCAÇ 3872, com as CCAÇ 3489, 3490 e 3491, a CCAÇ 12, dois GEMIL, 309 e 310,  e a Companhia de Caçadores Paraquedistas, CCP 123 / BCP 12, num total de vinte e oito Gr Comb, equivalente a um efectivo de cerca de setecentos elementos, missão que contou com a presença no terreno do Comandante-chefe general António de Spínola (1910-1996).]

[Esta operação contou, ainda, com o apoio da FAP, com uma parelha de Fiat  G91, uma parelha de T-6, dois Hélis e um Heli-canhão, e da Marinha, através do desembarque anfíbio na margem direita do Rio Corubal, da CART 3492 (Xitole; 4GC), CART 3493 (Mansambo; 4GC), CCAÇ 3489 (Cancolim; 1GC), CCAÇ 3490 (Saltinho; 1GC) e CCAÇ 3491 (Dulombi; 2GC), respectivamente na Ponta Luís Dias e em Tabacuta, tendo estas forças realizado acções de ataque a aldeias controladas pelo PAIGC atravessando as matas do Fiofioli até Mansambo (vd. poste P13359) (***)].



Guiné > Setor L1 > Mapa do Fiofioli > 1972 > Zona de mato denso onde estavam diversas palhotas que serviam de refúgio a elementos do PAIGC e população que os apoiava e que foram destruídas pela nossa passagem.  (Foto de Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74,vd. poste P13359)

Foto (e legenda): © Luís Dias (2014). Todos os direitos reservados.


A intensa actividade operacional registada no início de 1969 ocorre pelo facto de se ter verificado uma mudança de governador em maio de 1968, com a chegada do general António de Spínola,  o qual disse que ia acabar com os revoltosos.

Por esse motivo passei um período de vários meses que não tive contacto com o comando, nem com o mundo, porque nos tinham cercado. Todos os dias éramos atingidos pela artilharia, pelo fogo de armas ligeiras e pelas bombas dos aviões, sobretudo de manhã quando cozinhávamos, devido ao fumo que saía e se via de muito longe. Havia que fazer a fogueira ao ar livre para dispersar o fumo e que não nos denunciasse.


Aquilo esteve muito tenso, porque durante algum tempo eles andaram atrás de nós até que nos cercaram. Pensámos que iam acabar connosco, pois estávamos entre dois rios, com aviões e barcos à volta, destruindo quase todas as canoas em que podíamos fugir. 

Na última semana deste cerco, os bombardeamentos eram constantes na mata e tínhamos de sair e pormo-nos mais perto de onde nos estavam a atacar com a artilharia para poder esquivar do ataque. Tínhamos vários feridos e não havia alternativa senão dar-lhes as armas, e escondermo-nos em abrigos com árvores e folhas e tentar romper com o cerco. Éramos cerca de quarenta elementos [bigrupo].

Na última noite, quando aguardávamos o dia seguinte ao ataque final, fomos para a mata muito devagar,  tomando todas as precauções. Vimos um grupo que vinha na direcção contrária e acreditámos que iriam abrir fogo sobre nós, mas o que aconteceu é que era um grupo de guerrilheiros de outra zona que surgiram em nossa protecção. No princípio fez-me confusão porque não sabia que eram nossos e, embora não tivessem feito disparos, durante o corre-corre chocamos com uma enorme colmeia, tendo sido picado por cerca de trezentas abelhas e estive mais de três dias a tirar os seus ferrões.

A experiência de médico ensinou-me de que,  se isso acontecesse hoje eu teria morrido, uma vez que uma dezena de picadas são perigosas, podendo provocar um choque na pessoa, mas quando se está perante uma tensão tão grande, produzem-se esteroides que é precisamente o tratamento que usamos contra a alergia. Nenhuma me infectou, o mesmo aconteceu com os outros seis que tiveram igual sorte.

Nesse dia, depois de termos escapado ao primeiro cerco, voltaram a cercar-nos e o comandante da guerrilha informou-me que iam levar-me. Disse-lhe que queria ficar por ali com os feridos, ao que me respondeu que depois de mim logo seguiriam os feridos. Assim sendo, numa pequena embarcação, levaram-nos, a mim e a outro cubano que andava comigo, que era sargento e que me dava apoio, através de um rio mais pequeno que o Corubal. Levava já mais de uma semana em constante tensão, e depois de sair do cerco, empapado, cheguei de noite a um acampamento na outra margem [?]. Pendurei a maca numa árvore, despi toda a roupa e fiquei nu. Pelas cinco da manhã, quando me estava a vestir, senti um som por cima de mim; era uma explosão. Aviões estavam-nos a atacar com napalm. Se não corro desenfreadamente tinham-me atingido, pois as bombas estavam a cair muito perto.



[Os resultados obtidos pelas NT nesta operação, Op Lança Afiada,  foram os seguintes: 5 mortos confirmados; capturados 17 nativos na sua maioria mulheres; 1 carabina “Mosin Nagant”, 7,62, modelo de 1944; 1 espingarda “Mauser”, 7,92, modelo K98K; 1 espingarda “Mauser”, 7,9, modelo 904; 1 espingarda semiautomática “Simonov”, 7,62; 2 metralhadoras pesadas “Goryonov”, 7,62; 2 pistolas-metralhadoras “Shpagin”, 7,62; 1 granada para LG P-27 “Pancerovka”; 12 granadas para LG, RPG-7; 85 granadas para LG, RPG-2; 1 granada de morteiro 60; 19 granadas de morteiro 82; 1 mina A/P de salto e fragmentação (bailarina); 1 mina A/P de fragmentação PPMI; 1 mina TMB; 2 petardos de trotil de 1,2 kg.; 24 cargas suplementares para morteiro (caixas); 42 espoletas de granada de morteiro 82; 3 bolsas para carregadores PPZSH; 1 bolsa para carregadores “degtyarev” e cerca de 10 mil cartuchos 7,62 e 7,9 (60% dos quais impróprios). Vd. poste P11740

Estranha-se a não referência, neste inventário, a material de enfermagem e a medicamentos, na justa medida em que a enfermaria (o tal "hospitalito" do dr. Delgado) foi destruída por quatro vezes, segundo o insuspeito testemunmho do médico cubano.]

(xiii) Andava sempre com apoio?

Durante esse período tive três ajudantes cubanos, o primeiro era técnico de raios X, adoeceu e foi transferido, o segundo trabalhava como técnico de gastroenterologia do Hospital Naval em Havana e que substituíram por este companheiro que era um sargento, de sobrenome Arrebato, e que falava muito pouco.


(xiv) Teve algum problema com ele, 
o srgt Arrebato?



Com este sargento passei todo o tempo do cerco fugindo. Parece que tinha uma personalidade alterada e isso acabou por o descompensar. 

Depois do bombardeamento com napalm, apareceu o chefe da zona, que era um comandante guineense, jovem, forte e muito bem-disposto. Como estavam a cair bombas por todo o lado, chamou um guerrilheiro a quem faltava um braço e pediu-lhe para nos levar dali, a mim e ao sargento através da margem do rio, que era uma zona lodosa [tarrafo] cheia de raízes aéreas. 

Para chegar ao rio era preciso passar por zonas de terreno abertas,  sem vegetação, e no meio existiam três palmeiras. Chegados às palmeiras parámos para descansar. nesse momento ouvimos o barulho dos hélis e ficámos parados. De imediato, começaram a baixar quinze [?]  hélis donde saíram militares portugueses com armas modernas e de impecáveis uniformes, que passaram a poucos metros das palmeiras onde estávamos.

Apercebi-me que um dos hélis estava a cerca de quinze metros e sinceramente pensei que ali mesmo iria morrer
.

(xv) O que aconteceu depois?

Não nos detectaram. Passaram muito perto de nós mais de sessenta militares. Estávamos vestidos de verde e encostados em redor das três palmeiras. 

Nesse momento pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos. Mas, não. Alguns ramos das palmeiras caíram-nos em cima, por efeito dos hélis estarem a participar no ataque, e os militares portugueses passavam por outro lado em direcção ao local onde haviam caído as napalm. Depois os hélis começaram a retirar.

Entre o ruído dos aparelhos e das bombas, fiquei com muita vontade de urinar, para não dizer outra coisa. Os três nos levantámos, vimos que continuávamos vivos e corremos até à margem do rio. Creio que nos viram quando chegámos ao rio, pelo que nos procuraram atingir com os morteiros. Mas quanto mais granadas nos atiravam mais nós corríamos por cima do lodo.

O sargento Arrebato, porque corria muito rápido, ia à frente. De imediato acabaram-se as raízes aéreas mas a vinte metros existiam outras. Arrebato continuou a correr e quando passava entre as duas caiu a um pântano e começou a afundar-se. Com o impulso que levava foi parar tão longe que nem com a arma o podíamos alcançar. Os troncos das matas eram muito pequenos e, entretanto, uma avioneta sobrevoava-nos. Pensámos que ele iria morrer diante de nós, pois já estava muito enterrado e gritava «tirem-me daqui». O guineense, que tinha um só braço e que estava connosco, não podia fazer uma corrente. Entretanto chegam dois guerrilheiros, embora as morteiradas continuassem a cair perto. Estes elementos foram buscar vários troncos e os atiraram para ele caminhar por cima do lodo, até que finalmente ficou a salvo.


Quando o ataque começou eram sete da manhã e estivemos correndo até às cinco da tarde. Eu não podia nem respirar da secura da garganta, pois não tínhamos água. Chegámos a uma aldeia desolada e no centro havia uma espécie de nascente com lodo e muitos bichos, e assim mesmo a bebemos. Eu levava uma lata de leite condensado, e essa foi a comida: água com lodo e leite condensado para poder seguir.

Cerca de vinte guerrilheiros juntaram-se, depois, a nós e disseram que já podíamos regressar, uma vez que já não se ouviam os rebentamentos. Quando chegámos a um arrozal larguíssimo, a que chamavam lala, sentimos o ruído dos hélis. Tiraram-nos o sono, e os aparelhos passaram-nos por cima. Não sei como não nos viram, pois o terreno era verde e a fila de homens, deitados por terra, usavam uniformes amarelos que receberam de oferta. 


Esta foi outra das coisas inconcebíveis que me sucederam. Os hélis recolheram os militares portugueses e retiraram-se. (**)

Continua…

_______________


14 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (857): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

sábado, 30 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190): o ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)



Portugal, distrito de Viseu, Tarouca, Dalvares > O Manuel da Costa, autor de Nova Barbearia Costa, a sua  página na Net que tem  cerca de 5400 acessos ou visualizações. Os nossos parabéns!


 Fotos: © Manuel da Costa (2015). Todos os direitos reservados. (Edição: LG.)


1. Da página do Facebook do Manuel da Costa, amigo da nossa página no Facebook, Tabanca Grande Luís Graça, ex-sold maqueiro da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), tomamos a liberdade de publicar a seguinte mensagem,  evocativa da data de 28/5/1969, quando Bambadinca foi atacada, em força, dois  meses e meio depois da grande operação de limpeza no setor L1, conhecida pelo nome de código Lança Afiada. (*)

O Manuel da Costa é uma figura muito popular na sua terra, Dalvares, Tarouca, distrito de Viseu. É barbeiro, nas horas vagas, profissão que já exercia em Bambadinca onde pertencia à equipa de saúde, chefiada pelo saudoso alf mil médico David Payne.  


O TEMPO PASSOU MAS AS MEMÓRIAS FICARAM…
por Manuel da Costa

Fiz parte da Companhia Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 2852. estava ligado à enfermagem como maqueiro,  mas dado a minha profissão de barbeiro que tinha na vida civil desde 1964,  comecei a desempenhar essa arte na barbearia do comando,  alternando sempre que era preciso vir à enfermaria e aos domingos sempre que o ilustre e saudoso médico Dr. Payne, já falecido,  precisava,  lá ia eu fazer psíco às Tabancas só para rapar os cabelos das feridas crónicas dos civis.

Bambadinca era uma pequena vila sossegada no leste da Guiné até ao dia 28 de maio de 1969.




Guiné > Zona leste > Setopr L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 1  > C. 29 de maio de 1969 > Invólucros de canhão s/r. O PAIGC terá usado 3 canhões s/r contra o aquartekamento e posto administrativo de Bambadinca, sem grandes consequências---




Faz precisamente 45 anos no dia 28/5/2014 às 0h25 que o Quartel de Bambadinca foi severamente atacado pela primeira vez na história da guerra da Guiné. 

A 1ª  foto com as caixas das granadas dos canhões sem recuo e os morteiros (82) foram lançadas sobre o aquartelamento e 90% caíram na bolanha ao qual nós não respondemos porque vivíamos em tranquilidade. 




Guiné  > Zona leste > Setopr L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 2 > Vésperas de Natal de 1968 ou 1969 > O sold maqueiro Manuel da Costa, de bata branca, finge que faz a "vistoria sanitária" aos leitões que irão à mesa natalícia...


Fotos: © Manuel da Costa (2015). Todos os direitos reservados. (Edição: LG.)


A 2ª foto foi tirada nas vésperas do Natal de 1968 onde estou numa brincadeira fazendo crer que estava a examinar os leitões. Chamaram-me na barbearia que era junto à cozinha e refeitório geral para os praças e cabos. O que está em troco nu é o cabo cozinheiro Carneiro e o do camuflado era o cozinheiro Teixeira,  já falecido o único que ficou ligeiramente ferido. 

Deste ataque resultou a mudança de todo o comando e a penalização injusta nas suas carreiras assim como a do alferes dos morteiros uma vez que era frágil autodefesa que tinham recebido do comando anterior. 


Bambadinca vista de cima... A foto (originalmente a cores) é do nosso camarada  Humberto Reis (2006), publicada no nosso blogue, embora o Manuel da Costa não cite a fonte. 


A 3ª foto mostra o aquartelamento tal qual foi recebido do anterior comando. Nesse dia 28 (ou no dia
29 ?) foram todos convocados para ouvir (pensavam eles) os Senhores da Guerra. O coronel do setor de Bafatá, Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento 2957,]   ao qual nós pertencíamos,  e o general Spínola com uma conversa acutilante,  como se tratasse de um rebanho de ovelhas domesticadas,  direcionada para o comando do batalhão,  mais propriamente para o sr. Major das operações Pires da Silva,  homem de estatura média mas de qualidades altas. Se ele fizesse o que os Senhores da Guerra diziam certamente muitos de nós teriam sucumbido às balas de Nino Vieira que comandou o ataque. 

O major Pires da Silva deu uma resposta inteligente: 
- .Meu comandante, prefiro soldados vivos do que heróis mortos. 

Depois chega o 2º comando sendo um deles o capitão Manuel Maria Pontes Figueira homem disciplinado e disciplinador, amigo dos seus subordinados.

O primeiro Comando [do BCAÇ 2852] era assim constituído:
Tenente coronel Pimentel Bastos
Major Bispo
Major Pires da Silva
Capitão Eugénio Batista Neves

O segundo Comando era formado pelos:
Tenente Coronel Corte Real
Major Ribeiro
Major Sampaio
Capitão Manuel Maria Pontes Figueira

Tanto o 1º Comando como o 2º Comando eram pessoas educadas e de respeito para os seus subordinados e para os civis fossem eles brancos ou de cor, e eu sou testemunha porque de 15 em 15 dias eu cortava-lhes o cabelo.

Falando agora do meu percurso da vida civil...
Fui motorista internacional de Turismo durante 39 anos da EAVT – Empresa Automobilística de Viação e Turismo e depois JOALTO desde 2009. Voltei às origens, cortando o cabelo a amigos e clientes, vivendo em paz e tranquilidade, não tendo muitos clientes mas todos de boa qualidade.

Um abraço amigo aos meus companheiros de tropa desde o comando de oficiais aos praças (68/70).

Barbearia Costa
Dalvares - Tarouca

2. Comentário de L.G.;

Manuel da Costa, essa do Nino Vieira comandar o ataque a Bambadinca, em 28/5/1969 (**), é novidade para mim. Mas tudo é possível..  Diz-me onde "sacaste" essa informação... Eu, e o resto da malta da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, estávamos a chegar à Guiné, a desembarcar do T/T Niassa, e passámos por aí em 2/6/1969... Vindos de LDG, de Bissau até ao Xime, seguimos depois em coluna auto para Contuboel, com paragem em Bambadinca. Deu para perceber o vosso estado de espírito...Diz-me se te lembras do nosso fur mil enf, o João Carreiro Martins (CCAÇ 12, Bambadinca, julho de 1969(março de 1971)..

O cor Hélio Felgas esteve em Bambadinca nesse mesmo dia, 28/5/1969... Não sei se o Spínola também. A história da tua unidade é omissa nesse ponto. A verdade é que o comando do teu batalhão do "decapitado"...

Vai daqui um abraço para ti,  camarada de Bambadinca, do meu tempo.  E aceita o meu convite para formalizar a tua entrada no nosso blogue, onde há vários camaradas da tua CCS.  Recordo  que o pessoal de Bambadinca de 1968/71 tem amanhã o seu encontro anual, na Trofa.  Presumo que vás... Infelizmente eu não poderei lá estar. Vai daqui também uma alfabravo para todos os meus camaradas dessse tempo, a começar pela malta da minha CCÇ 2590/CCAÇ 12.

sábado, 29 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13958:(Ex)citações (254): quando Spínola viajou, com mais 300 homens, na BOR, em 17/3/1969, no decurso da Op Lança Afiada, em pleno Rio Corubal, da Ponta Luís Dias à Ponta do Inglês

  
Guiné > Rio Geba > Barco BOR > 2/5/1967 > " (...) No dia dois de maio [de 1967], a seguir ao almoço formar e seguir para as viaturas, carregar as lembranças nas respectivas viaturas destinadas a cada Pelotão e seguir para Bambadinca onde nos esperava o barco, a BOR,  que nos transportava no rio Geba até Bissau onde nos esperava o barco Uíge" (...).

[Cortesia de Fernando Chapouto, ex-fur mil op esp, CCAÇ 1426, Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, 1965/67 >  Cantinho do Fernando > As minhas mnemnórias da Guiné 65/67]

Foto: © Fernando Chapouto  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. A propósito da BOR, a embarcação civil que era utilizada em 1968/69 no transporte de tropas, com ums pequena escolta de fuzileiros (*):


Excerto do relatório da Op Lança Afiada (**):


Dia D + 9 (17 de Março de 1969)

O PCV com o comandante do Agrupamento Táctico Norte sobrevoou os Dest A, B e C cerca das 07H00, verificando que estavam no local que a carta indica como sendo o “Porto” de Ponta Luís Dias. Não conseguiu entrar em contacto rádio com a FN [ Força Naval] , apesar desta força ter indicativo e frequência marcados no Anexo de Transmissões da OOP.

O PCV regressou depois a Bambadinca para se reabastecer. Cerca das 09H20 chegou a Bambadinca o heli de Sua Excia o Comandante-Chefe que deixara Sua Excia junto dos Dest A, B e C.

Aparentemente o embarque não podia ser feito onde as NT se encontravam pois via-se uma grande língua de areia. O heli levantou para escolher um local onde a língua de areia fosse mais estreita, o que ocorreu cerca de 1,5 quilómetros a Norte.

Quando a maré subiu, verificou-se que a água cobria toda a língua de areia e que as LDM [lanças de desembarque médias ] e a BOR [, embarcação civil,] podiam ter abicado no local onde as NT se encontravam inicialmente. O esforço que a estas foi exigido de caminhar quilómetro e meio pelo lodo podia ter sido poupado se a bordo do PCV tivesse ido um oficial de marinha.

Foi nessa altura que Sua Excia o Comandante-Chefe informou que, por uma questão de marés, as NT não seriam transportadas ao Xime como ficara combinado na véspera mas sim apenas a Ponta do Inglês  [, na Foz do Corubal, margem direita]. A CART 1743, no entanto, seguiria para Bissau. Os Dest A e B, desembarcados em Ponta do Inglês, seguiriam depois a pé para o Xime, o que aconteceu.

A avaria de uma das LDM obrigou a outra a ficar-lhe ao pé e levou a BOR a transportar 300, isto é, mais do que a sua lotação permite. Como o heli do COMCHEFE não chegou a tempo, Sua Excia tomou também lugar na BOR, com o Comandante da Operação e com o Delegado do QG [ Quartel General ] que viera coordenar o embarque.

Cerca do meio dia as LDM e a BOR abicaram a Ponta do Inglês.

 Sua Excia tomou o seu heli para Bissau e o Comandante da Operação [, cor inf Hélio Felgas,] tomou o das evacuações que entretanto mandar vir para fazer duas evacuações para Bambadinca.

Os Dest A e B chegaram ao Xime cerca das 15h30 depois de terem sofrido novo ataque de abelhas que, tal como em Ponta Luís Dias, de manhã, ocasionou desorganização e levou os carregadores a abandonarem material, recuperado mais tarde.

Ao compreender-se que apenas era deixado o heli de evacuações, deu-se ordem aos Dest E, F, G, H e I para se aproximarem dos respectivos aquartelamentos [ Mansambo e Xitole]. Não se podiam abandonar sem alimentação nem água garantidos.

Aliás aqueles Dest haviam saído às 03H30 da tabanca do Fiofioli onde se haviam reunido e, uns por Cancodea Balanta e por outros por Cancodea Beafada, completaram a destruição de todos os meios de vida IN da região. Encontraram vacas que mataram, levando outras consigo. Em Cancodea Beafada capturaram 2 homens, 3 mulheres e 3 crianças.

Estes Dest passaram depois por Mina e por Gã Júlio, utilizando sempre trilhos diferentes dos de ida. Quando, ao fim da tarde, foram sobrevoados pelo PCV, encontravam-se próximos da foz do Rio Bissari, tendo já percorrido nesse dia uns 30 quilómetros. Foram-lhes recomendadas todas as cautelas e autorização para prosseguirem quando quisessem pois não se poderiam reabastecer.

Mal o PCV saiu da área, o IN flagelou o Dest com 2 morteiradas e rajadas, de longe, procedimento este que afinal utilizou durante toda a operação e que revelou impotência [no original, importância] e falta de agressividade. (...)

_______________

Notas do editor:

(*) Vd, postes de:

29 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13956: (Ex)citações (253): de facto sou eu, estou a preparar o embarque de um jipe Willys com destino a Bissau (devidamente canibalizado)...E aproveito para recordar a BOR, embarcação civil que fazia transporte de tropas com uma pequena escolta de fuzileiros (Ismael Augusto, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

(...) Relativamente ao cais, em 1968, a CCS do BCAÇ 2852 chegou a Bambadinca num barco civil que fazia o transporte de tropas. Era um barco (lancha ou navio, para não ofender os nossos amigos da marinha, que fazem muita questão na destrinça entre estas designações dadas pelos menos conhecedores, o que é o caso).

Chamava-se BOR e dispunha de apoio de uma pequeno grupo de fuzileiros, que nos acompanhou a bordo durante todo o percurso. Obrigado a eles. Foi por eles que fiquei a saber da existência do macaréu que, com outra designação [, pororoca ]. tem a sua réplica no rio Amazonas, pelo menos nesse. (...) 


Ainda sobre a BOR, vd. os postes:

12 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

(...) Um dia, as más notícias correm céleres, soube-se: vítima de mina antipessoal,  faleceu o Alferes Carvalho. Na malfadada estrada para Madina do Boé ficava o amigo. Menos de três meses após a chegada àquela terra. Soube agora no Blogue a data esquecida, 17 de Abril [ de 1968] e o local onde hoje repousa (...).

Mais um nome, a juntar a tantos vitimados naquela estrada. Toda a Companhia sentiu aquela morte. A primeira sofrida pelas duas Companhias gémeas.

Voltaram-se a encontrar-se, como e porquê? Por acaso ou porque se deviam despedir ainda. Tinha que ir a Bissau, ao Hospital Militar. A curiosidade e não só levou-o a fazer a viagem na BOR – um barco com pás na proa, verde-claro, e que se habituara a ver passar nas seguranças a Mato Cão. (...)


28 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5555: A navegação no Rio Geba e as embarcações do meu tempo: Corubal, Formosa, BOR... (Manuel Amante da Rosa)

(...) Quanto ao BOR, como os outros, também era do Comando da Defesa Marítima. Era o que se chamava um ferryboat, para transporte de viaturas, cargas a granel, passageiros, gado e tudo o mais que houvesse, incluindo a guarnição de várias unidades militares a nível de companhias e seus apetrechos e viaturas. Tinha dois potentes e ruidosos motores, um a bombordo e outro a estibordo, que lhe permitia grande capacidade de manobra e calava pouco. Mas era lento de exasperar e desconfortável. O sol era abrasador para quem não estivesse abrigado. Levava facilmente mais de 400 passageiros e cargas.Era seguro e muito utilizado para o transporte das guarnições militares. (...) 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13204: Efemérides (159): Foi há 45 anos, o ataque a Bambadinca, dois meses depois da Op Lança Afiada... Parágrafo lacónico na história do BCAÇ 2852: "Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr IN de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros"


Guiné > Zona leste > Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil > 1955 > Pormenor: posição relativa de Bambadinca. Na altura não existia nem o reordenamento de Nhabijões (que é de 1970/71) nem o de Bambadincazinho (que é de 1968/69).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Vista aérea do aquartelamento, situado num promontório, tendo da sul uma grande bolanha, a leste o Rio Geba (Xaianga) e  a oeste a pista de aviação, que junto ao arame farpado... Ao fundo da pista o cruzamento da estrada para Nhabijões, a oeste (ainda não havia o reordenamento na altuira do ataque de 28/3/1969) e para o Xime, a sudoeste. A quatro ou cinco quilómetros, ficava a ponte do Rio Undundum,a, construida em 1952, e que foiu dinamitada nessa noite.
Recorde-se que na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, secas, em estilo
telegráfico:

"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr IN de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros"

As tropas atacantes posicionaram-se a oeste e a sudoeste de Bambadinca, ao longo da pista de aviação. Já havia o reordenamento de Bambadincazinho.

Foto © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: L.G.]

I. Dois textos para relembrar esta efeméride (*), que resultou claramente de uma retaliação, por parte do PAIGC, à Op Lança Afiada (8-18 de março de 1969):


(i)  Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):

[Foto à esquerda: Carlos Marques dos Santos, I Encontro Nacional da Tabanca Grande, 2006, Ameira, Montemor o Novo; vive em Coimbra; é professor de educação física, reformado]

O ataque a Bambadinca....

Dia 28 de Maio de 1969 ... Por volta das 00.30h ouvimos rebentamentos para os lados da Moricanhe. Mansambo ficava a sul de Bambadinca. Afinal era Bambadinca. Era a primeira vez que tal sucedia.

As minhas notas dizem que a 29 de Maio de 1969 fui informado às 05.30h que o meu Pelotão, o 3º da CART 2339, iria reforçar a sede de Batalhão por 15 dias.

Reforçar a sede do Batalhão? Coisa grossa, pensámos. Seguimos e aí tomámos conhecimento da destruição parcial do pontão do Rio Udunduma [, afluente do Geba, na estrada Xime-Bambadinca].

Chegados à sede de Batalhão, iniciámos às 16h, com o Pel Caç Nat 63, a ocupação do pontão para sua defesa e de Bambadinca. No dia 30, fomos rendidos por 2 pelotões. Dia 31, pelas 14.00h fomos novamente para a ponte.

Dia 2 de Junho de 1969, pelas 20.30h, rebentamentos. Era Amedalai. 15 minutos depois Demba Taco e imediatamente Moricanhe. Dia 4 Moricanhe era evacuada para reforço de Amedalai. Dia 11, Mansambo era atacada e logo depois o Xime.

Regressámos a Mansambo.

A futura CCAÇ 12 passou aqui nestes dias conturbados para iniciar a sua comissão.(*)

(ii) Luís Graça (ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

[foto à esquerda, o 'periquito' Luís Graça, Bambadinca, 1969]


Ainda cheirava a pólvora...


(...) O ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969, assume alguns aspetos hilariantes (sem ofensa para ninguém...), dois meses depois da Op Lança Afiada (8-19 de março) em que todo o dispositivo político, administrativo e militar do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole- margem direita do Rio Corubal, terá sido desarticulado... 

Sorrateiramente, audaciosamente, dois bigrupos (c. de 100 homens), aproximam-se da sede do batalhão, importante posto administrativo e estratégico porto fluvial, e conseguem tirar o sono aos nossos camaradas da CCS/BCAÇ 2852 e subunidades adidas...

Felizmente que não houve baixas de monta... A sorte (ou a nabice dos artilheiros do PAIGC) protegeu o pessoal de Bambadinca: segundo os diversos depoimentos coincidentes que fui ouvindo (, incluindo o do José Carlos Lopes, que podia ter morrido na cama com uma morteirada!), os canhões s/r enterraram-se no solo e a canhoada foi cair na bolanha... Estávamos já no princípio da época das chuvas.

Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uns dias depois, em 2 de junho de 1969, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de 18 meses de inferno... quando fomos justamente colocados na sede do Setor L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda falavam do evento com alvoroço e emoção...
- Podíamos ter morrido todos! - dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã, e meu amigo de infância...

Fomos depois nós, para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, na margem direita do Rio Corubal, que eles consideravam "libertada"... (**)

___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13179: Efemérides (158):Inauguração de um Monumento aos Combatentes do Ultramar do Concelho de Portimão, levado a efeito no passado dia 9 de Abril de 2014 (Arménio Estorninho)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12590: Blogoterapia (246): A Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita (Torcato Mendonça, ex-al mil art, CART 2339, Mansambo, 1968/69)



Foto Falanet III > Nº 55



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O "repouso do guerreiro"... O alf mil Torcato Mendonça numa pausa de uma operação no mato, "matabichando"... Ou mais provavelmente, à espera do IN, numa das emboscadas montadas, algugures, nas encruzilhadas da morte (Foto nº 55, acima). Na foto a seguir (nº 58), percebe-se que está "bem acompanhado": (i) foto de mulher, de uma capa de revista; e (ii) a metralhadora ligeira HK 21... Fotos nº 55 e 58 da série Fotos Falantes III.

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: L.G.]


1. Texto, com data de 14 do corrnte,  do nosso camarada (e colaborador permanente daTabanca Grande) Torcato Mendonça, ex-alf mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69: 


[Foto à esquerda:  Fundão, 27/1/2007. Foto de L.G. ]

O TM é um autor, fecundo, com cerca de 220 referências no nosso blogue, com  diversas séries como: (i) Estórias de Mansambo, (ii) Estórias de Mansambo II, (iii) Pensar em Voz Alta, (iv) Nós da Memória, (v) Fotos Falantes... Disponibilizou-nos também o seu riquíssimo álbum fotográfico. Material mais do que suficiente para publicar vários livros... Um alfabravo caloroso para ele, para estes frios do Fundão... (LG)

Assunto: Tarde Fria

Meus caros,

Aí vai o resultado de uma tarde fria. Finalmente a montanha pariu um rato e o resultado é essa droga. É o que entendi escrever sobre a Lança Afiada. Não me merece mais que isso. Foi mau demais e já muito sobre essa Operação foi escrito. [Temos, no blogue, cerca de 3 dezenas de referências sobre a Op Lança Afiada]

Eventualmente e se um dia me der na bolha poderei escrever alguns "casos" passados naqueles dias.

Com o meu abraço, T.



2. Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita

por Torcato Mendonça


Em meados de Fevereiro de sessenta e nove, o Boeing aterrou na curta pista de Bissalanca.  Com lentidão, sem pressa alguma, desapertei o cinto a preparar a saída…

…o calor e a humidade bateram-me forte no curto percurso até á gare. Aí estava eu de novo na Guiné, terra "vermelha e ardente", para mais um período de cerca de um ano de comissão…

…em Santa Luzia, após o almoço, recebi novas da guerra: a saída de Madina do Boé e o desastre do Cheche, uma ou duas semanas antes, outros acontecimentos mais e uma informação que parecia dizer-me diretamente respeito:
- Na tua zona vão fazer, parece que brevemente, uma operação em grande. 

Pouco mais me disseram e nem era necessário.

Quando fiquei só, perante a facilidade e a ligeireza como proferiram estas informações fui levado a pensar que o IN (Inimigo – PAIGC) sabia, e certamente com pormenores, desta Operação. Tinha boa rede de informadores e descuidos como este pareciam ser frequentes. Guerra de merda,  com estas informações tão permissíveis.

… não compreendia a saída de Madina, depois da saída de Béli. Sabia como era a estrada para Madina e os ataques que este aquartelamento sofria. Só que aquela saída de Madina era o abandono do Boé e a deslocação da fronteira para a margem esquerda do Corubal – praticamente desde a entrada do rio no Território (Marco 49 – zona de Cabuca –ver Carta 1500.000 da Guiné) até, sem precisão, a zona de Contabane (Marcos 20/21).

O IN aproveitaria certamente essa tomada de posição e mais facilmente entraria no território. Preocupante.

Mas quem era eu, um simples Alferes de empréstimo àquela guerra, para me preocupar com o que Oficiais Superiores tinham discutido no conforto de seus gabinetes? Ninguém!

Dias depois, já em Mansambo, vim a saber mais pormenores sobre essa Operação:  o nome de código "Lança Afiada".

Eu, integrado no meu Grupo de Combate e na minha Companhia, participei nela.

Já muito foi escrito, aqui neste Blogue, sobre essa Operação. Pessoalmente creio já ter escrito o suficiente. Tentei, agora, escrever mais e acabei por ficar com dezenas de páginas. Preferi destruir a maioria e outras foram para o arquivo morto. 

Encerro o "Capitulo de A Guerra".

Aquela Operação acabou por me mostrar que assim devia proceder. Falar dela, da maior Operação em que participei, podia ser, em algumas partes, uma crítica injusta e ter, hoje, passados tantos anos uma visão completamente errada do que por lá, naqueles longos dias, se passou.

Um exemplo:  o não terem sido montadas emboscadas na margem direita do Corubal por tropas helitransportadas. Muito mais exemplos podiam ser aqui apresentados.

Quando a Operação terminou, tínhamos a consciência de que toda aquela zona do Leste (Xime ao Xitole pela margem esquerda do Corubal) foi completamente destruída e arrasada e todos os objetivos, previamente planeados, foram conseguidos. Cumpriu-se assim a missão. Mas para quê e com que resultado para as NT? Dizer que o IN não foi aniquilado e devia ter sido, hoje, parece violento. Teria outrora o mesmo significado?

O IN, não digo Turras porque não gosto de certas palavras –Tugas, tropa macaca, Pimbas, Caco e e vocábulos semelhantes.

Com estas limitações, há, isso sim, uma impotência da escrita. Questão subjetiva e passível de todo o contraditório ou mesmo colocar em causa alguns escritos meus. Não ponho um ponto final na escrita ou, melhor, nos escritos sobre a Comissão na Guiné. Se isso acontecer, fá-lo-ei como até aqui, em relato simples de certos acontecimentos. Nunca digas nunca,  mas parar um pouco é o melhor. Já estou nesse "estado" há muito tempo.

Para mim, bem para mim…

…a guerra não se descreve ou não tenho palavras para o fazer. A guerra são sons, gemidos, urros e gritos, cheiros, ódios, sofrimento, dor e a sua descrição se torna uma impossibilidade descritiva. Fica ainda para o fim a amizade, a camaradagem entre os militares e isso como se descreve? Difícil, eu sei.

Aquilo – o combate, o embate entre os contendores – acontece, acontece bruscamente ou com lentidão, num sim ou não que, em comum, tem sempre a brutalidade. Vai subindo de violência, envolvendo tudo e todos com os sons das granadas e tiros, de gritos e gemidos numa envolvência onde os automatismos, o treino, a brutalidade a tudo e a todos se sobrepõem. Vai lentamente parando, aquietando-se e fica o cheiro adocicado da morte, das ervas devastadas, do enxofre das granadas e os sons mudam agora e temos a libertação dos ódios, da constatação da morte e a tristeza aparece. Caso os sons sejam de risos, sim de risos, então tudo, naquele lado, está bem. Mas tudo isto não se descreve, tudo isto se sente, se entranha nos ossos, dentro dos ossos e lá fica. Quando chegam encostam-se ás anteriores memórias e aconchegam-se para darem lugar ás que aparecerão no futuro, ou não. Se não, se não houver memórias a guardar aparece certamente o riso tolo e sarcástico da morte. Essa está sempre presente na contenda e saltita, ri e chama. A morte, essa puta, se vence o momento leva a presa e ri saltitando em busca de algo mais.

Como descrever a morte ou o que há tanto tempo está tão profundamente guardado? Não, não é possível e existe sempre uma lógica retração. Descrever a morte de camaradas? Não.

Para quê então falar disso? Para quê então falar do cheiro da morte, dos sons, dos gritos, dos ódios se eles nos aparecem, felizmente hoje com menor intensidade. Vêm no sonho, num ruído estranho, no cheiro ligado á recordação de outrora. Vêm raramente mas vêm. Não as provoquemos. Que fiquem guardados, aquietados,  pois foram para isso tratados durante anos e anos. Um dia, anos atrás e de repente abriu-se o portão da memória e um novelo prenhe de nós correu veloz a desatar-se, a tentar libertar-se de algo.

Pará-lo é preciso e ele ficará aquietado.

Talvez também por respeito. Sim,  por respeito pelo portador do novelo das recordações já deturpadas, dos camaradas que já partiram, de muitos que hoje pretendem o silêncio. Mas nunca esqueças os teus camaradas, os teus companheiros ou os teus amigos africanos. Muitos andaram contigo no mato e te ajudaram e não eram "tropa macaca" e não te chamavam de "tuga". Mas ouviste chamarem-te assim,  no Galoiel ou no Poindom…apelos ou vómitos nervosos do IN…

Não vais desatar os nós, vais aquietar-te e, de quando em vez, podes, se for caso disso, desatar uma ou outra recordação alegre ou mesmo lamento ou protesto para com algum teu camarada ou o bom Povo das Tabancas…

Sobre a Lança Afiada é tudo. Há ou sinto uma libertação de nela falar (escrever). Foi violenta demais. Um dia, se houver esse dia, recordarei casos que não sejam tormentos aquietados.

Torcato Mendonça

______________

sábado, 12 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12141: (Ex)citações (227): Nas duas Açções Garlopa em que participei, com a CART 3494 e a CCAÇ 12, não tenho ideia de termos capturado elementos pop mas destruímos dois acampamentos e outros meios de vida (António J. Pereira da Costa, ex-cap art, CART 3494, jun/nov 1972)

1. Mensagem de António J. Pereira da Costa, cor art ref, com data de ontem:

Assunto - Operação Garlopa 2
Olá Camaradas

Reporto-me ao Poste P12135.

É pena que se tenham "perdido" a História e restante documentação das unidades.

No caso da CArt 3494 posso garantir que participei em duas acções de nome Garlopa enquanto estive no Xime e sempre com CCaç 12 a proteger o flanco esquerdo da CArt que progredia em direcção ao Poindom,  deixando o Geba no seu flanco direito.

Em nenhuma das duas [acções] foram capturados elementos da população, mas apenas destruídos dois acampamentos e restantes meios de vida.

Na primeira,  não houve contacto e o mato era muito denso, de tal modo que o DO-27 teve dificuldade em nos localizar e só quanto o acampamento começou a arder é que nos viu.

Na segunda, continuámos a destruição, mas com dificuldade. Tinha chovido e não nos forneceram granadas de mão incendiárias. Destruímos a pontapé  alguns Irãs que existiam a descoberto.
Demorámo-nos e, no momento em que as duas companhias, se reuniam, sofremos uma curta emboscada, sem consequências.

Em nenhuma das acções pedi fogo de artilharia e não fomos à Ponta do Inglês [, na foz do Rio Corubal].

A CArt 3494, no meu tempo, recolheu um Companhia de Paraquedistas que fora colocada (?) na Ponta do Inglês, mas não actuámos juntos.

Os dez elementos da população [, referidos no poste,] foram recolhidos no Geba, depois da LDG lhes ter afundado a canoa.

A História da Unidade contem inúmeras inexactidões,  a começar na minha apresentação, que foi a 22 de junho de 1972, e não em Agosto de 1972.

Um Ab.
António J. P. Costa

2. Comentário de L.G. [, foto à esquerda, em Bambadinca, 1969]


Tó Zé, tome-se boa nota das tuas observações e apontamentos... Infelizmente, eu só tenho a história dos dois batalhões anteriores, o BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72), além da história da CCAÇ 12 (de maio de 1969 a março de 1971), que eu próprio escrevi. Pode ser que apareça mais algum camarada com elementos novos, de memória ou documentais.  Pelos vistos, o Sousa de Castro possui uma cópia da história do BART 3873.

A esta distância, de mais de quatro décadas, a memória atraiçoa-nos. Valha-nos ao menos a existência dos preciosos mapas que o Humberto Reis em boa hora comprou, digitalizou e ofereceu à Tabanca Grande! (Ainda tenho alguns mais, "guardados", que só disponibilizo a pedido, nomeadamente os dos arquipélagos dos Bijagós)...

Já agora, fiquei a saber o que era uma... garlopasubstantivo feminino. Instrumento de carpinteiro, semelhante à plaina, mas maior do que esta. "garlopa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/garlopa [consultado em 11-10-2013].

Mas vamos ao que interessa, e corroborando o que tu escreves: se consultares as cartas do Xime e de Fulacunda, e refrescares a memória, vais ver que era difícil chegar à Ponta do Inglês, a penantes... Concordo contigo. Por isso é que se usava a "helicolocação"... Sei não estiveste lá muito tempo, por aquelas bandas: de qualquer modo foram quase seis meses, o tempo de um gajo deixar de ser periquito...

Aliás, nem a nossa artilharia (o obus 10.5) lá chegava... Eu, que levei bastante porrada, ao longo da antiga estrada (ou picada) Xime-Ponta do Inglês,  nunca tive o privilégio de lá chegar, mesmo à ponta... da Ponta do Inglês. Nunca vi o famoso Corubal, nem os seus hipopótamos nem os seus crocodilos... Hoje, julgo que desapareceram, pelo menos os hipopótamos... Devem-nos ter caçado e comido durante a "guerra de libertação".  O mesmo aconteceu ao pobre do macaco-cão, que era abundante nas florestas do Corubal...

De resto, era quase impossível chegar, por terra, à Ponta do Inglês sem ser detectado pelos gajos de Baio ou da Ponta Varela e, depois, mais à frente, do Poindom... Aquilo era um ratoeira... Entrava-se naquela pensínsula, para levar porrada, se levássemos intenções (agressivas) de chegar ao Poindom... onde havia núcleos populacionais que o PAIGC procurava defender com unhas e dentes...

A última vez que as NT chegaram mesmo à Ponta do Inglês deve ter sido na Op Lança Afiada (março de 1969), a tal megaoperação que envolveu 1300 militares e carregadores civis...e em que 15% do pessoal foi helievacuada (por insolação, esgotamento, ataque de abelhas, etc.).

Quanto às "inexactidões" das histórias das nossas unidades...  bom, temos que saber viver com elas, despistá-las, remediá-las, remendá-las... Sempre é melhor do que não ter documentação nenhuma, por escrito... Temos que  ver também o que os outros, do outro lado, diziam de (ou escreviam sobre) nós... O que infelizmente também foi pouco.

Em todo o caso,  há alguns documentos interessantes no Arquivo Amílcar Cabral (disponível na Casa Comum, a tal comunidade de arquivos de língua portuguesa que a Fundação Mário Soares tem vindo a desenvolver, com diversas parcerias). Há documentos dos "outros" que vale a pena cotejar com os "nossos"... Só com o contraditório e a triangulação das fontes podemos avançar no conhecimento histórico. Vou fazer isso,  um dia destes, a propósito das duas minas A/C que accionámos em Nhabijões, em 13/1/1971... Numa nova série que terá como título qualquer coisa como "Taco a taco... A guerra vista do outro lado"... Para já tenho curiosidade em saber quem foram os filhos da mãe que puseram as duas minas, uma das quais matou o nosso (da CCAÇ 12) Manuel  da Costa Soares, aos 20 meses de comissão (. Infelizmente não chegou a conhecer a filha que nasceu e cresceu na metrópole. Era natural de Oliveira de Azeméis).

Boa noite, Tó Zé,  um abraço. E que os fantasmas da antiga picada do Xime-Ponta do Inglês  não te assombrem.  LG

PS - Junto se anexa a pag 75 da Hustória do BART 3873 (Bambadinca, 1971/74), onde se faz referência à Acção Garlopa, de 19/7/1972, e na qual participaram, além da CART 3494 e da CCAÇ 12, dois gr comb da CCP 121/BCP 12, que foram largados de helicóptero no objetivo.




Cópia da pág. 75 da História da Unidade, BART 3873 (Bambadinca, 1971/74), gentilmente cedida pelo Sousa de Castro.
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12116: (Ex)citações (226): Não me lembro do Oh! Alexandre... mas é muito natural que ele se lembre de mim: afinal, em dois terços do tempo de comissão, fui eu que comandei a CCAÇ 798... Também se deve lembrar do alf mil Pinheiro, que comandava o destacamento de Ganturé e que foi evacuado com 14 perfurações no corpo, na sequência de uma emboscada na estrada para Gandembel (Manuel Vaz, Gadamael, 1965/67)