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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões

Operação Macaréu à vista

Episódio XLI

UM MÊS NOS NHABIJÕES

Beja Santos

O BCaç 2852 parte, o BArt 2917 chega


A primeira semana de Junho é vivida na efervescência da sobreposição. Entre os dias 29 e 31 de Maio, presencio os preparativos e a organização azafamada de sacos, malas e pacotes de quem junta os trastes, os identifica com letra garrafais, vão todos seguir em embarcações que rumam do Xime para Bissau e daqui seguirão para o porto de Lisboa. São dias em que se misturam centenas e centenas de baús e outros haveres com os de quem acaba de chegar. Os novos militares vêm vestidos com fardamento a cheirar a goma, é o aprumo de quem chega ao teatro da guerra e não aceita displicências, a roupa vem vincada. Os que chegam vêm sorridentes mas retraídos, os que querem partir estão exuberantes, falam ainda mais alto, querem entregar tudo, ter os documentos da transição assinados, era o que faltava partir hoje e num amanhã não longínquo ser molestado porque se extraviou uma tesoura corta-arame, um capacete ou um lençol, nos intermináveis materiais à carga. É um período com muito pouca guerra, houve umas minas detectadas e que felizmente não fizeram vítimas, até as tabancas em auto-defesa foram poupadas. A CCaç 12 e o Pel Caç Nat 52 estão informados de que se conta com eles para a iniciação do novo batalhão: emboscadas, patrulhas, segurança ao transporte de vacas, colunas de reabastecimento ao Xitole e Saltinho, são estas as forças de intervenção que irão trabalhar conjuntamente com as forças do BArt 2917, reconhecendo as imediações dos três importantes aquartelamentos do Xime, Mansambo e Xitole. Com esta cooperação, novas amizades.

Prestes a findar a sua presença em Bambadinca, sou chamado ao comando e recebo instruções do major Herberto Sampaio: "Pá, temos informações feias sobre os Nhabijões, Mero e Santa Helena e até sobre Fá. A malta de Madina e do Buruntoni vai querer intimidar, aliás como já se viu com raptos e canhoadas sobre os Nhabijões, vão querer atacar Fá e os Comandos africanos. O reordenamento dos Nhabijões depende do comando-chefe que pressiona para tudo estar pronto o mais breve possível. Temos lá a engenharia, o trabalho não pode parar e não pode haver medo, temos que impedir as intimidações. Parta para lá imediatamente, vai em piquete durante todo o mês, vigia os movimentos de quem chega, patrulha as zonas de cambança, com as milícias de Amedalai percorre todos os dias a antiga tabanca de Samba Silate. Estes piquetes não podem prejudicar a segurança na ponte de Udunduma nem as emboscadas na missão do sono no Bambadincazinho nem as tarefas de apoio às populações em Badora e Cossé. É um tempo de desenrascanço, felizmente que o IN está pouco activo. Aguente-se, são mais dois ou três meses de trabalho que você tem pela frente".

E, nessa tarde, os Unimog seguiram com colchões, mantas, caixas de munições, tudo para um acampamento improvisado no reordenamento dos Nhabijões. À semelhança do que se passava na ponte de Udunduma, um burrinho trazia os tachos de comida da gente arranchada e os potes com a bianda dos caçadores nativos, um deles vinha diariamente tratar da mafé. Foi mais um tempo de nomadização, uma secção ia de manhã ao correio ou buscar os frescos ao Dakota, em Bafatá, outra secção vigiava o trabalho da equipa de engenharia e dos civis, a outra secção ia buscar doentes a Sansacuta, Candamã ou Afiá. E, quando necessário, seguíamos para o Xitole, para as acções conjuntas com as novas companhias, picava-se até Amedalai. Era a continuação da rotina da guerra, dava-se confiança aos periquitos, estava-se atento à hipótese de dias piores.

O reordenamento dos Nhabijões

Os Nhabijões eram um dos motivos de orgulho dos criadores da política "Por uma Guiné melhor". Samba Silate fora, até ao início da luta armada, uma das mais florescentes tabancas do Leste da Guiné. Com o aparecimento das guerrilhas, as populações dividiram-se, umas partiram para a luta, outras entraram em diáspora em Bambadinca e diferentes regulados. Os seis Nhabijões (Nhabijão Bulobate, Nhabijão Mancanha, Nhabijão Mandinga, Nhabijão Imbume, Nhabijão Bedinca e Nhabijão Cau) viviam o desarrazoado de todas as fugas e partidas para o exílio, era por aqui que as gentes de Madina e do Buruntoni vinham abastecer-se, intimidar ou conquistar adesões, obter informações, até descansar. O plano do reordenamento era juntar os diferentes Nhabijões, tornar mais difícil o aliciamento pelo PAIGC, oferecer às populações alguns equipamentos sociais, enfim, permitir o cultivo tranquilo da fecunda bolanha que circunda de Samba Silate até Bambadinca. Extintas as antigas tabancas, escolhera-se uma posição estratégica junto de Samba Silate, com uma impressionante panorâmica sobre o Geba.

Era um empreendimento de vulto, havia um plano com os desenhos das casas, arruamentos, mesquita, escola, fontanários, tudo estava a ser desmatado à volta, as casas familiares assentavam em quatro pilares de cibe, as paredes eram feitas com blocos de adobe, fazia-se uma trama com rachas de cibe mais finas para o telhado, onde se pregavam chapas de zinco. Tudo cheirava permanentemente a fresco: o fresco do adobe em blocos, as reluzentes chapas, os pregos, até as caixas em madeira em que se preparavam os blocos. A todo o momento chegavam os camiões dos fornecedores, ouvia-se o ruído ensurdecedor dos caterpillar D7 e de algumas máquinas de rodas. A engenharia esteva sempre presente, respondia por todo o traçado da obra, eram eles quem marcavam os eixos do ordenamento, a qualquer momento chegava um dos majores responsáveis (creio que eram os majores Matos Guerra e Carlos Azeredo) que supervisavam, intimidavam, davam sinais de satisfação. Nós cirandávamos, mas, para dizer a verdade, totalmente incapazes de reconhecer forasteiros ao reordenamento. Estávamos há dois dias neste piquete quando num patrulhamento junto à bolanha de Samba Silate, em frente a São Belchior, encontrámos três canoas novinhas em folha enterradas nas lamas do tarrafe.

Sem lembrança do sucedido, pedi a Cherno Suane que me avivasse a memória. Marcou-me encontro na Pérola de São Paulo, no coração do Cais do Sodré.

Os acasos da fortuna na Pérola de São Paulo

Ainda há pessoas a almoçar no espaço das refeições ligeiras, quando me sento a uma mesa a beber uma bica, na companhia de Cherno. Primeira surpresa: Cherno extrai de um bolso do casaco uma folha larga onde arrumou os nomes de todos os militares do Pel Caç Nat 52 de acordo com o seu "chão" de origem. Leio: formação em Bolama, oito meses, chegou o Henrique Matos Francisco, o primeiro alferes, tudo em 1966. Seguem para Porto Gole, está-se no aceso da guerra em frente ao Morés, há emboscadas, flagelações, destruições, a estrada de Porto Gole para o Jugudul fica praticamente interdita. De Porto Gole vai-se para o Enxalé, colabora-se com uma companhia madeirense, Cherno escreveu: "Zagalo era o nosso herói". Missirá é praticamente riscada do mapa, o Pel Caç Nat 52 substitui o Pel Caç Nat 54, a estrada entre Enxalé e Missirá aos poucos vai abandonada. A folha de Cherno traz nomes de furriéis, cabos, soldados, nome de mortos e feridos, e até evacuados. Comove-me este cuidado do Cherno ao estabelecer os dados da sua memória. Lá o consegui apanhar em falta com dois ou três nomes omitidos, ele respondeu-me com o seu sorriso doce: "desculpa".

Quando o Cherno regressou da Guiné, há escassos meses, depois de cerca de 2 anos de ausência, pedi-lhe ajuda por razões fundamentadas. Ele acompanhou-me de perto durante toda a comissão, assumiu ser guarda-costas a tempo inteiro, ouviu conversas, viu a guerra ao meu lado, comunicava-me quem queria falar comigo, era a minha agenda ambulante. Quando me entregou esta folha no café «A Pérola de S.Paulo», no centro da má fama do Cais do Sodré, senti uma irrepremível onda de ternura pelo mais indefectível dos amigos: sabe-se lá com sacrifício ele garatujou as suas recordações, alinhou a tropa por «chão» de nascimento, procurou não se esquecer de ninguém, balbuciou quando lhe disse que o morto era Sadjo Baldé e não Sadjo Seidi, este um rabujento que uma vez até quis andar à porrada comigo... Era inevitável que eu passasse esta prova de muita estima para todos os camaradas da Guiné. Tive a felicidade de fazer amizades inquebrantáveis, assim dá gosto viver. (BS)

Falávamos em voz alta dos Nhabijões, de Chicri, de Mato de Cão, de Malandim e até de Finete. Estou a tomar nota das recordações daquele patrulhamento em que detectámos e destruímos três canoas das cambanças de Madina, quando fomos interpelados.

- Desculpem, estão a falar de Enxalé, Nhabijões e Mato de Cão. Não é possível haver mais coincidência, são nomes de locais da Guiné onde combati entre 1971 e 1973. Vocês estiveram lá nessa altura? É que não me lembro de vos ter visto.

É um homem magro, de estatura média, cabelo esbranquiçado, olhos atentos, perscrutadores. Tem modos calmos mas revela assombro pelo que ouviu, curiosidade sincera pelo que quer saber. Apresento-nos, conto-lhe o que estamos a fazer, ele entusiasma-se e fala da sua comissão.

- Fui alferes da CCaç 12, comandei o 4º pelotão, substitui o Rodrigues que já faleceu. Quando vos comecei a ouvir a curiosidade dominou-me, era coincidência a mais, vocês falavam como veteranos da guerra. Fomos nós que fizemos o destacamento de Mato de Cão, íamos ao Enxalé, fizemos todas essas colunas e patrulhamentos que referiram. Só não fui a Missirá.

À nossa volta pararam as conversas, é inusitado uma conversa destas, gente que combateu há cerca de quarenta anos, juntos por feliz acaso. A conversa prossegue, calorosa, e recebo um cartão-de-visita no termo destas recordações, ele tem de partir e eu estou impaciente por registar as recordações de Cherno. Ele chama-se Jaime Pereira, é engenheiro e trabalha numa empresa de nome histórico, ali na Av. 24 de Julho.

Aquelas três canoas, lembrava-se Cherno, não enganavam ninguém, a época das chuvas não podia encobrir os sinais de passagem de quem atravessava a extensa bolanha por carreiros que discretamente se elevavam naqueles antigos arrozais férteis, era madeira nova, notava-se ainda o talhe das ferramentas. Foram destruídas à bala, mas antes pediu-se a presença de dois chefes de tabanca, que garantiram peremptoriamente nada saber, muito provavelmente, justificaram, era gente que vinha de Madina e ia em direcção da foz do Corubal… Nessa altura, eu ainda engolia estas explicações e não havia reacção possível. Era a força do sangue dos povos divididos que eu desconhecia.

Partem amigos muito queridos, tenho leituras anglo-saxónicas

Transportamos em coluna o primeiro contingente do BCaç 2852 até ao Xime. Vão ali o tenente Pinheiro, o alferes Reis, uma parte importante dos pelotões de morteiros, sapadores, básicos, cozinheiros. O Vacas de Carvalho segue à frente com uma Daimler, grita para o primeiro Unimog onde vai o tenente Pinheiro, assusta-o com os locais de possíveis emboscadas. Na véspera, agradeci-lhes todas as ajudas recebidas, o Reis ainda tentou uma questiúncula, não lhe dei troco. Dentro de dias, haverá coluna semelhante para o resto do batalhão.

Escrevi um poema falhado, "25º Aniversário". Citei Apollinaire, o poeta combatente das trincheiras, autor de «Caligramas»: "L'amour a remué ma vie comme on remue la terre / dans la zone des armées. / J'atteignais l'âge mûr quand la guerre arriva / Les mois ne sont pas longs ni le jours ni les nuits / C'est la guerre qui est longue / Je salue la chemise rouge".

Falo na "abicagem da galáxia numa cabana", em "palmeira ao desbarato" e também em "ano versado, na parede brota o palavrão: guerra. / amor mudado, altar, elegia. / uma mulher chegou, reconheceu". Definitivamente, poesia mais frustre não há. Condicionado pelo tempo (tenho que devolver o livro com urgência a D. Violete), leio e tiro notas do assombroso relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet Magalhães. A ver se para a semana tenho o trabalho completo, depois dou-vos conta do entusiasmo que ele imprime às descrições, os registos ingénuos sobre os povos que habitam o Geba, as lutas, a religião, a língua e a cultura. O que pasma é a autenticidade e a informalidade, ele é cáustico com a corrupção e com a exploração dos indígenas, com a impreparação dos funcionários. Nunca li nada até agora tão verosímil, com tanta vontade de informar mesmo com míngua de informações, ingenuidade e omissões culturais.

Li "O Homem que era Quinta-Feira", de Chesterton, de quem só conhecia os ensaios de carácter religioso. É apresentado como uma obra de humor, mas a classificação parece-me errada. É um mundo às avessas, um grupo de anarquistas que afinal não o são, a bondade subitamente transforma-se em maldade, o que parece ser caos logo é apresentado como harmonia, os anarquistas são polícias e até filósofos, o temível chefe dos anarquistas, Domingo, tido como um tipo feroz, um carniceiro, afinal vive obcecado com o sofrimento dos outros. É uma paródia moralista em que o leitor é convidado a reflectir sobre a transitoriedade dos conceitos e os juízos apressados que fazemos dos outros.

Tradução de Domingos Arouca, capa de Tóssan, Portugal Editora, 1960, Biblioteca dos Humuristas. Chesterton adorava o mundo às avessas, cheio de desconcertos, de verdades que se tornavam imediatamente mentira, de saltos bruscos que alteravam profundamente a estabilidade do leitor e sua confiança no escritor. Lucian Gregory apresenta-se como revolucionário e anarquista. Aliás para ele um anarquista é um artista. O seu amigo Syme mostra-se profundamente céptico mas acaba por entrar na direcção do temível grupo anarquista, como Quinta-Feira em que o chefe é Domingo. Os criminosos são polícias, os anarquistas são bondosos, o mundo está longe de ser mau, entre no plano de Deus. Esta obra-prima de Chesterton não é uma paródia, é uma fábula, a vida é tensão, é este axaltante concílio dos dias, é esta constante descida aos infernos, onde somos livres da redenção ou da ignomínia. (BS)

Também não foi fácil nem muito estimulante a leitura de "O Insuspeito" de Charlotte Armstrong, uma conceituada escritora policial norte-americana. Ela parte de uma ideia poderosa, um caçador de fortunas, homem de prestígio cultural, acima de qualquer suspeita, educa meninas casadoiras que fazem testamento a seu favor. Há estranhas mortes, o noivo de uma das vítimas investiga e descobre o plano maquiavélico. Aí a obra perde o nervo, o suspense anda à deriva, o desfecho é fantasioso, a arquitectura da obra desigual. Paciência, não se pode acertar sempre, há decepções em todos os géneros literários.

N.º 66 da Colecção Vampiro, tradução de Elisa Lopes Ribeiro e capa de Cândido Costa Pinto. Charlotte Armstrong parte de uma ideia brilhante mas deu-lhe um desenvolvimento tosco. Um caçador de fortunas, disfarçado de mestre e pai espiritual de ricas casadouras, desfaz-se das suas vítimas depois destas terem feito testamento a seu favor. O noivo de uma das vítimas introduz-se neste círculo restrito e descobre as maningâncias do insuspeito. Quando tudo parece perdido para a denúncia do miserável, o insuspeito consegue o seu sequestro. É uma das futuras vítimas que encontra o local do sequestro e o monstro acaba por morrer. Bem escrito mas com pouco nervo, com muitos altos e baixos no suspense. (BS)

Mesmo no Pel Caç Nat 52 partem e chegam soldados. Gosto da personalidade do novo comandante, Domingues Magalhães Filipe. A rotina prossegue, passei a dar aulas, fazemos colunas ao Xitole, Mamadu Soncó, um dos filhos de Quebá, pede-me para vir comigo para Lisboa, irrompeu brutalmente a época das chuvas. Tenho consciência que é um tempo de transição, faço de estafeta, de polícia, inclusive andámos a varrer à vassoura a missão do sono no Bambadincazinho. É um tempo bom para leituras, vou escrever à família e aos amigos, agarro-me à ideia de recomeçar os meus estudos muito em breve. Discretamente, o meu espírito começa a partir para Lisboa.´

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Texto do
Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 2 de Maio de 2008
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Nota de CV

(1) - Vd. poste de 24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...

"O relatório de Vasco Calvet de Magalhães, administrador da Circuncrição de Geba, datado de 1914, é, a diferentes títulos, um documento excepcional: afoita-se por domínios até então inexplorados ou mal ventilados; propõe estradas e fala do respectivo traçado; queixa-se e denuncia funcionários corruptos;abalança-se a falar da origem dos fulas,apresenta soluções para o assoreamento do Geba,é uma incursão com pretensões literárias e algumas ambições políticas.Foi neste documento que encontrei esta preciosidade,um porto de Bambadinca que nenhum de nós conheceu..." (BS)




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 24 de Abril de 2008:





Operação macaréu à vista > Episódio XL > OPERAÇÃO BERINGELA DOCE
por Beja Santos (2)



(i) O Ring, de Wagner, em Bafatá e uma nova conversa com D. Violete


Caminhamos para o fim de Maio [de 1970], sinto-me mais velho pois vou fazer em breve vinte e cinco anos, o major Herberto Sampaio já me avisou que amanhã tenho de apresentar o projecto do patrulhamento ofensivo em que vamos bater a região entre Amedalai, Demba Taco, Moricanhe, depois subimos pela antiga tabanca de Chicamiel, passamos pela palmar de Gundaguê Futa-Fula, contornamos o Baio e o rio Buruntoni, montamos uma emboscada entre Gundaguê Beafada e Ponta Varela, iremos percorrer Ponta Varela até à região onde habitualmente as forças do Buruntoni atacam as embarcações que entram no Geba estreito, atravessamos Madina Colhido e finalizamos no Xime. Qualquer coisa como trinta quilómetros, se não mais, tudo a pé entre Amedalai e Xime. É-me sugerido que leve todas as milícias da região, precisam de ser moralizadas depois das flagelações que todas estas tabancas sofreram, em Março e Abril, ficarão lá pelotões da Companhia do Xime, posso levar carregadores e devo organizar um plano de ajuda com os artilheiros do Xime.

Fica igualmente combinado que haverá um dia de descanso na véspera, é uma caminhada enorme, o calor não abranda, há muitos riscos à nossa espera, é indispensável boas transmissões, telas, discutir um plano de retirada no caso de sermos surpreendidos a partir de Moricanhe, o que não é improvável.

A história do BCaç 2852 não nos concede qualquer referência, embora fale nas operações Gato Irritado, Arroz Cozido e a Rã Teimosa, nesta última andaram dois grupos de combate da CArt 2520 entre Ponta Varela e Baio, dias antes, não houve quaisquer contactos e vestígios.

O BArt 2917 chegou a Bambadinca entre 29 e 31 de Maio [de 1970], iniciou-se a sobreposição com o BCaç 2852, que partiu na segunda semana de Junho. A Beringela Doce ocorreu na data da sobreposição, uns estão a chegar e outros na euforia de partir, não houve tempo que passássemos a constar na história de ninguém. O que é estranho, pelo que adiante se vai descrever.

Continua a ser uma das gravações de referência do Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Tinha extractos do Crepúsculo dos Deuses, que arderam em Missirá.Em finais de Maio de 1970,recebo uma mensagem da Casa Teixeira, de Bafatá: tem aqui uma preciosidade à sua espera.

Aparvalhado com a surpresa, abri um estojo com ,talvez, uma dúzia de discos com toda a tetralogia.Naquela idade, tinha só visto A Valquíria, de pé 5 horas mas feliz por ver umas das mais belas óperas de Wagner.Ouvi alguns trechos na companhia do Cherno Suane, o Valente das transmissões, na Casa Teixeira. Mas não tinha dinheiro para adquirir a preciosidade. Para me compensar, comprei há alguns anos estas grandes cenas onde posso recordar algumas das vozes sublimes daquele tempo, como Birgit Nilsson, Régine Crespin, Wolfgang Windgassen, Hans Hotter,entre outros. E a recordação daquela audição em Bafatá é inesquecível. O maestro Sir Georg Solti acabou o projecto do Ring do princípio ao fim, com a Filarmónica de Viena.

Entretanto, chega uma mensagem da Casa Teixeira, de Bafatá, o meu prestimoso fornecedor local de discos e livros. Que me apresente rapidamente, há uma grande surpresa à minha espera. E lá vou, numa daquelas manhãs de estafeta e recovagem com viagens por Madina Bonco e Samba Juli, ir buscar correio a Bafatá e passar por Bantajã Assá e trazer doentes. Foi mesmo uma grande surpresa. Era um estojo enorme com as quatro óperas do Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, ao todo quinze horas de música repartidas por O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses. Tinha desta última um disco com excertos, que desapareceu na voragem de 19 de Março, em Missirá. Era uma versão fabulosa do Ring, um projecto de anos que envolveu para além de Sir George Solti e a Filarmónica de Viena algumas das grandes sumidades wagnerianas do tempo como Birgit Nilsson, Régine Crespin, Hans Hotter, Wolfgang Windgassen, James King, entre outros.

Pelintra, não me dei por achado, pedi para ouvir ali alguns trechos, caso do prelúdio do Ouro do Reno, a entrada dos deuses no Walhala, da mesma obra, e a área final de Brünnhilda, no Crepúsculo dos Deuses. O gira-discos da Casa Teixeira era muitíssimo bom, não me fiz esquisito com o volume, a clientela estava espavorida com aqueles gritos bárbaros, aquelas cadências marciais, o tom apoteótico e dilacerante da filha de Wotan, o grande deus, que se precipita no Walhala, pondo fim ao Ring, depois da imolação de Siegfried. Agradeci muito, não tinha dinheiro para aquela empreitada, nem mesmo a prestações suaves. Cherno e o Valente das transmissões aguentaram estoicamente toda aquela ira dos deuses germânicos, suspiraram de alívio quando me despedi sem nada comprar. É que corriam o risco de ver o silêncio perturbado naqueles dias passados na ponte de Udunduma, como já não bastasse os mosquitos sanguinolentos...

No regresso, D. Violete vê-me da escola e acena-me com entusiasmo. Lá fui, mordido de curiosidade:
- Fui cumprimentar a minha amiga ao Sonaco, a neta de régulo Mamadu Sissé, e trago mais livros, não imagina as raridades que lhe vou emprestar. Olhe, tem aqui um relatório de um administrador de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, com quem Mamadu Sissé combateu, refere-se a 1914. O meu pai nunca falou dele, li o documento, ó, senhor alferes, que franqueza, que verdades duras como punhos! Creio que vai gostar muito, há mesmo aqui coisas que eu nem sabia, e traz fotografias muito interessantes.



Folheio no meu quarto este precioso documento, é desassombrado e cru, quase literário, sente-se um profundo entusiasmo pela descrição dos usos e costumes, com os seus recursos limitados traça um vigoroso registo de culturas para conhecimento dos brancos, que tudo ignoram desse Geba longínquo, uma área onde cabem o Oio, o Cuor, o Corubal, Badora, Cossé, Forreá. Fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chama Abdul Jujaz. Vou procurar tomar nota de tudo, depois conto-vos.

(ii) Os preparativos da “Beringela Doce”: o que sabe recear sabe os riscos a evitar



À sorrelfa, falo com o Augusto e com o Calado. Preciso de concentrar em Amedalai parte dos pelotões de milícias 241, 242 e 243, ter depois viaturas no Xime para regressar a Amedalai e daqui fazer seguir para Taibatá e Demba Taco as forças da operação e recolher mais tarde os contingentes da CArt 2520. Com o Calado discuto os rádios e as telas. Com a CCS, falámos depois das nossas necessidades em munições e equipamento, o morteiro 81 e dois morteiros 60 são indispensáveis.



Preciso igualmente de verbas para pagar a dez carregadores e dois guias. A pretexto de um patrulhamento entre os Nhabijões e Samba Silate, fui a Amedalai e informei o comandante do pelotão, Cherno Baldé, que falasse com os seus camaradas de Taibatá e Demba Taco para estarem nos seus respectivos quartéis à nossa espera, ao nível de duas secções, incluindo metralhadoras ligeiras e dilagramas. Desapareceu o relatório da operação, conversei recentemente com Queta Baldé e Cherno Suane acerca do que aconteceu. Ambos confirmaram que as forças de operação eram predominantemente tropa africana.

O picador do Xime Seco Indjai foi o nosso guia, ambos consideraram que tivemos muita sorte com esta escolha, Seco conhecia bem todo o terreno entre Moricanhe e as imediações do Baio, sabia perfeitamente que podíamos encontrar armadilhas tanto nos caminhos para Ponta Varela como na estrada Xime-Ponta do Inglês, e mais ou menos onde.

Na tarde de 27, converso com o major Herberto Sampaio, ele aceita o plano e os preparativos, promete acompanhar-me no ar na manhã de 29. Desloco-me ao Xime, aproveitando uma coluna de reabastecimento da CArt 2520, discuto com os artilheiros o plano de fogo à semelhança do que fizéramos nas operações Rinoceronte Temível e Jaqueta Lisa. Hesitei muito, era a primeira vez que percorria o mato entre Moricanhe-Chicamiel-Gundaguê Futa-Fula, as distâncias para mim eram pouco compreensíveis e por isso acertámos o mínimo de referências para fogo das peças do Xime, no caso de sermos emboscados.


No regresso, convoquei Nhaga Macque e Benjamim Lopes da Costa, informei que o Pel Caç Nat 52 iria sair ao fim da tarde, queria que todos viessem com cartucheiras e dois cantis, com alimentos para dois dias, quero chegar a Amedalai antes do lusco-fusco, iremos dormir aqui, nessa altura já lá estarão dois pelotões do Xime. Falei depois com o Cascalheira e o Ocante, repartimos tarefas e o posicionamento dentro da coluna, a partir de Demba Taco. A operação estava em movimento.

(iii) As reviravoltas da Beringela Doce

Ao amanhecer, já com as estradas picadas entre Amedalai, Taibatá e Demba Taco, fomos largando e recolhendo tropas nestas três importantes tabancas em autodefesa, onde se concentrava a maior parte da população do regulado do Xime. Clareava quando a coluna a pé partiu de Demba Taco flanqueando a velha picada abandonada até Moricanhe.



Queta Baldé sempre me disse que fora um erro não ter dado meios militares a Moricanhe, pela sua importância entre Mansambo e Xime, o seu abandono deu muito mais força ao PAIGC, tornou tudo mais fácil na fixação das suas populações entre Fiofioli, Mina, Gã Júlio, Galo Corubal e Biro, deu-lhes a possibilidade de pressionarem o regulado de Badora, pensarem mesmo em destruir a linha defensiva entre Samba Juli, Sinchã Mamajã, Sansacuta e Sare Adé. Moricanhe custara sangue, suor e lágrimas, mas a população não aguentou a persistência das terríveis flagelações com canhões sem recuo, abandonou as ricas culturas da região, refugiou-se em Amedalai e em Bambadinca.

Verificámos que a velha tabanca estava abandonada, a Natureza progredia a olhos vistos, tomava conta do terreno da velha tabanca e dos seus acessos. Nem vestígios de trilhos novos, não havia sinais de presença alguma. Progredimos para o palmar de Sinchã Seluel e depois Madina, uma lala riquíssima, nada, não havia indícios de presença humana. Seguimos para Chicamiel, e contornámos os frondosos palmares até Gidemo.



Aqui fizemos um auto e acordou-se com Seco Indjai e o seu companheiro (penso que se chamava Samba) que fôssemos a corta-mato até junto de Gundaguê Futa-Fula. É neste caminho que ouvimos disparos oriundos do Baio-Buruntoni, rebentamentos lá mais longe, talvez mesmo na foz do Corubal. Mas sentíamos que era praticamente impossível estarmos referenciados, marchávamos sempre no interior da mata. Porém, antes de Gundaguê Futa-Fula encontrámos um trilho bem simulado em direcção à velha tabanca do Buruntoni, as forças do PAIGC já não estavam longe. Pela rádio, informámos a nossa posição tanto para o Xime como para Bambadinca.

Contornando os palmares de Gundaguê Futa-Fula, avançámos para perto de Gundaguê Beafada, encontrámos uma antiga barraca do PAIGC abandonada, a preocupação era de fugir de trilhos armadilhados, o sol caminhava para a fornalha, fez-se um novo alto para comer e repousar uma hora, dentro da floresta fechada.



Conversando com os sargentos e os comandantes das milícias, estes consideraram importante aproveitar toda a luz para referenciar Gundaguê Beafada e depois cruzar a estrada Xime-Ponta do Inglês para a zona de Ponta Varela, ver se havia indícios da presença das populações que cultivam o Poindom e, a seguir, pernoitar entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido. Pois bem, detectámos dois trilhos pronunciados, um que saía da região de Gundaguê Beafada em direcção ao Baio e outro, bem dissimulado, em direcção a Ponta Varela.



De Gundaguê Beafada seguimos cautelosamente em corta-mato em direcção a Ponta Varela e não havia dúvidas que esta região, a cerca de quatro quilómetros do Xime, estava cultivada e tinha a presença assídua das forças do PAIGC: caminhos em todas as direcções, tudo lavrado, corredores em direcção ao rio, certamente frequentados pelas forças que procuravam atacar as embarcações. O sol enfraqueceu, lá longe ouviam-se disparos, talvez de caçadores, bem seguros da sua impunidade.



Sempre com todas as cautelas, passámos para Madina Colhido e aqui se montou uma emboscada com vários sentinelas atentas às direcções do Buruntoni e Ponta Varela. Para nossa surpresa, a noite decorreu silenciosamente, sem fogo de artilharia do Xime, sem tiros isolados ou morteiradas dos territórios inegavelmente controlados pelo PAIGC. Nem o barulho das embarcações se ouviu, só o piar das árvores e a passagem dos animais.

É quando começa a alvorocer que os acontecimentos se precipitam: estamos dormentes pela noite insone, ninguém é capaz de dormitar num sítio tão arriscado como Madina Colhido, de repente, a voz de Mamadu Camará lança um brado, quebra o silêncio, seguem-se tiros e uma correnteza de rajadas curtas. É tudo inesperado, ninguém sabe o que é que se está a passar. Precipito-me com o sargento Cascalheira para o local do burburinho, há soldados em perseguição não se sabe do quê, uma mulher jaz caída golfando sangue do peito, o solo está juncado de sacos, peças de roupa, folhas de tabaco, material de cozinha, passeio-me atónito, tudo isto me parece inacreditável. Afinal, a coluna vinha do Xime, era um grupo de populares com abastecimento!

Peço para falar com Seco Indjai no meio deste arranzel. Seco dá várias explicações, nenhuma passa pela cumplicidade das populações do Xime, é efectivamente uma coluna de abastecimento, gente que terá pernoitado em Samba Silate, vindo por Taliuará, surpreendemo-los totalmente. Muitos dos meus soldados e milícias discutem vivamente com Seco, não acreditam nesta versão, para eles o centro de apoio está na tabanca do Xime.

Faz-se uma padiola, pela rádio pedimos uma evacuação Y a partir do Xime, embora não houvesse dúvidas que só um milagre salvaria aquela pobre mulher. E rapidamente chegámos ao Xime onde pouco depois um helicóptero a levou para Bissau. É nessa altura que o PCV começa a sobrevoar Madina Colhido e Ponta Varela, informo os resultados, é impossível continuar, as forças do Poindom e em Ponta Varela estão alertadas, vão emboscar, perdeu-se o factor surpresa.

É incompreensível a degradação a que chegou a nossa presença nesta região, é um inimigo forte, motivado e profundamente conhecedor das nossas fraquezas que se assenhoreou de tudo à volta do Xime. O que se vive aqui não é diferente do que presenciei no Cuor.

As viaturas põem-se em andamento, trouxemos todas as mercadorias apanhadas para serem analisadas, os Unimog com uma equipa de picadores à frente avançam para Amedalai, daqui para as outras tabancas em autodefesa para se fazerem as trocas de efectivos.

A Beringela Doce terminara com resultados minguados, o comando de Bambadinca extraia agora os respectivos ensinamentos. Encontro Bambadinca em alvoroço, a chegada dos periquitos que vêm render o BCaç 2852 vai começar esta tarde. Com o corpo moído mas desperto, acompanho a arrumação das munições, vou conhecer as tarefas dos próximos dias, é agora que me vai cair em cima o acompanhamento dos trabalhos dos Nhabijões.



Aproveito as últimas energias para começar a fazer o relatório, entretanto passei pelo gabinete de Jovelino Corte Real e contei-lhe aquilo que ele não quer ouvir: o Xime está cercado, as colunas de reabastecimento para o Buruntoni passam ali perto, impõe-se rever toda a estratégia, talvez melhorar os efectivos nas tabancas em autodefesa, afinal pode-se ir ao Buruntoni mais facilmente a partir de Moricanhe. Mas Jovelino Corte Real já não me ouve, o que lhe estou a dizer só terá sentido para o seu substituto.

Maio está a chegar ao fim. Sei muito bem que começa um período de adaptação para o novo batalhão e nós iremos colaborar. Vou fazer vinte e cinco anos, tenho pelo menos mais dois, três meses de guerra. Da cabeça não me sai aquela mulher morta. Sempre ouvi falar em soldados desconhecidos, não conheço uma só referência a monumentos dedicados a mulheres mortas durante as guerras.

Nº51 da Colecção Vampiro, tradução de Álvaro Cardoso, capa de Cândido da Costa Pinto.


É uma estória contada em bom ritmo, envolvendo uma das duplas mais pândegas da literatura policial: Johnny Fletcher e Sam Cragg,uma associação sem rival de cérebro e músculos .Esta dupla de vendedores de livros em que se ensina a ter um físico de Sansão está nas lonas, são expulsos do hotel mas no seu quarto está um homem esquartejado com uma moeda valiosíssima numa das mãos. Começa uma estória bem imaginada com um desfecho surpreendente. Era uma literatura típica dos tempos da recessão em que se exaltava o desenrascanço e o pícaro.




(iv) Viva Hemingway!

Li Paris é uma festa, um livro póstumo de Hemingway, de quem já lera Por quem os sinos dobram, Adeus às armas e O Velho e o Mar. A obra situa-se em Paris e abrange os anos de 1921 a 1926. O jovem Hemingway é já um jornalista com cotação internacional, tem novelas publicadas, aspira a escrever romances.

É um livro de memórias onde ele nos fala do entusiasmo que lhe provoca Paris, os cafés onde escreve, a livraria de Sylvia Beach, os seus encontros com Gertrude Stein, Scott Fitzgerald, Ernest Walsh ou Ezra Pound, nem todos felizes. Estas memórias são um fascínio de um paraíso perdido, de alguém que teve a dita de conhecer Picasso e Miró, saborear a boa comida francesa, de percorrer as ruas e os locais onde estiveram Braque e Verlaine.

É em Paris que decorre a primeira parte da vida profissional de Ernst Hemingway que se despede das suas recordações dessa cidade amorável escrevendo: “Paris é imortal e as recordações das pessoas que lá vivem diferem de umas para as outras. Acabamos sempre por voltar, sejamos nós quem formos, ou mude Paris no que mudar, ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades que, ao regressarmos, se nos deparem. Paris era assim nos velhos tempos em que nós éramos muito pobres e muito felizes”.


É o primeiro livro póstumo de Hemingway. Foi editado entre nós por Livros do Brasil,tradução de Virgínia Motta, capa de Infante do Carmo, anos 60.

Este livro de memórias tem Paris como cenário e abrange os anos de 1921 e 1926. O jovem Hemingway fala deslumbrado ou desiludido de personalidades como Gertrude Stein, Scott Fitzgerald, Ford Madox Ford ou James Joyce. São os sonhos de um jornalista já com alguma reputação internacional que aspira vir a ser um grande escritor.Anos depois,surgem as obras que o tornaram famoso em todo o mundo:Por quem os sinos dobram,O velho e o mar, Adeus às armas,por exemplo.Mas como ele escreveu,«Paris é imortal e as recordações das pessoas que lá vivem diferem de umas para as outras.Acabamos sempre por voltar,sejamos nós quem formos,ou mude Paris no que mudar,ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades que, ao regressarmos, se nos deparem .»



O Enigma do quarto fechado, de Frank Gruber, fez-me companhia antes e após a Beringela Doce. Johnny Fletcher e Sam Cragg são a dupla mais hilariante de toda a literatura policial . Personagens típicas da Grande Depressão, vivem permanentemente na pelintrice e têm momentos, bem raros, de alguma fartura. Vendem livros na rua, atraindo pessoas que querem ter um físico do tipo Sansão. Desta vez, andam sem um cêntimo e foram corridos do hotel da rua 45, em Nova Iorque. Montaram um esquema para dormir às escondidas no quarto desse hotel onde descobrem que está um morto com as goelas cortadas. Inicia-se aqui um enredo que passa por minas de ouro, moedas da melhor numismática, Johnny vai desvendar uma história sombria de cupidez e corrupção, tudo num camarim de teatro da Broadway.

É divertido, tem uma estrutura escorreita e imaginativa, percebe-se qual foi a chave do sucesso de Gruber, como ele insistiu, tantas vezes com bons resultados, nesta dupla de cérebro e músculos.

Agora vou ler o relatório de Vasco Calvet de Magalhães, que é um baú de surpresas. Ora oiçam.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

(2) Por razões que se prendem com o período de férias dos editores (pelo mneos, dos privilegiados que ainda têm direito a férias pagas...), esta série poderá não sair com a regularidade semanal a que habituámos o autor e os seus leitores. Em geral, sai à sexta-feira.
Em contrapartida, temos uma dupla boa notícia a dar à gente da nossa blogosfera, pela boca do nosso tertuliano Beja Santos (com quem almocei ontem, no Institut Franco-Portugais): (i) o primeiro livro, o Diário da Guiné, 1968/69- Na Terra dos Soncó, está praticamente esgotado; (ii) O 2º (e último) livro da série, que se irá chamar O Tigre Vadio, está terminado e já está no prelo...
Aqui fica, para a petite histoire da nossa Tabanca Grande, o mail que ele mandou em 18 de Julho último, juntando em anexo o episódio nº 50, o último, da Operação Macaréu à Vista - II parte (que, curiosamente mas certamente por lapso, ainda não recebi...):
Luís, neste preciso instante lembro-me de uma conversa que tivemos em Junho de 2006, aí na Escola Nacional de Saúde Pública. Assumi contigo e com o blogue o compromisso de contar os dois anos da minha comissão. Este episódio que te envio é o último e assim termina tanto a Operação Macaréu à vista como o livro “O Tigre Vadio”, que será lançado em 11 de Novembro, no Museu da Farmácia, na ocasião da apresentação pública de três núcleos referentes à guerra que travámos em África: os medicamentos do Laboratório Militar, o equipamento das enfermeiras pára-quedistas e os primeiros socorros da Força Aérea.
Foi uma alegria imensa ter podido cumprir o compromisso assumido nesse dia de Junho de 2006, contei com todo o teu apoio e de muitíssima malta do blogue. Estou a sofrer as consequências, todas elas benignas, vou na rua e alguém que nunca vi agradece eu ter escrito o que escrevi sobre a minha comissão.
Agradeço igualmente aos co-editores e a todos aqueles que me estimularam. Em breve, vamos falar de um novo projecto. Para já, vou concluir um livro sobre cosméticos e preparar outro sobre medicamentos. Está descansado, não me vou encostar às boxes, vais continuar a ter notícias minhas. Estou muito emocionado neste momento pela dedicação que tributámos uns aos outros. Recebe um abraço de gratidão, Mário.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Esquartejamento de uma peça de caça grossa, abatida caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, e tranferido para Bambadinca). Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Alves Correia, referido no texto a seguir e, por detrás dele, o Queba Soncó, picador das NT. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. (LG).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

"A Cristina e eu visitámos no bairro da Ajuda Nhima, a mulher de Quebá, gravemente sinistrada numa flagelação ,em Julho de 1969, em Missirá. Quebá pede para eu falar com o novo batalhão( será o Bart 2917)acerca da sua posição de picador.Fiquei-lhe a dever inúmeras atenções, foi um colaborador exemplar, nada afoito mas cumpridor" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 16 e 17 de Abril de 2008:

Luís, o resto das ilustrações seguirá amanhã. Nunca supus que este combate corpo a corpo que é o final da minha comissão me estivesse a abalar tanto. Foi uma época morna em Bambadinca, era um compasso de espera, era o cansaço de quem partia, a CCaç 12 e nós aguardávamos novo dono. Não foi um tempo feliz ou construtivo. E logo a seguir apanhei os Nhabijões e as obras na estrada Xime-Bambadinca, de manhã à noite. Coisas insípidas, onde o factor humano, felizmente, ganhou realce. Recebe um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista > Episódio XXXIX > ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO!
por Beja Santos (1)


(i) Com lágrimas nos olhos, deitamos contas à vida

Insidiosamente, os temas militares, até aí praticamente adormecidos na lua-de-mel, começam a vir à tona da água, a entrar na nossa vida comum. Tentações não faltaram, dia após dia. Ainda em casa da Elzira e do Emílio Rosa, os soldados em férias vinham até cá partir mantenha, julgavam-se na obrigação de informar que se desmatava à volta da ponte de Udunduma, que Taibatá fora flagelada, tal como o Xime e o Enxalé, que finalmente se encontrara uma solução para cambar o gerador eléctrico destinado a Missirá.

Nessas idas e vindas o régulo Malã manda caju e um bordado para a senhora de alfero, Quebá Soncó, o meu devotado e sempre temeroso picador, mal soube que tínhamos visitado a sua mulher no bairro da Ajuda, mandou carta que não resisti a ler à Cristina. Dizia, no essencial, o seguinte:

“Cá vou indo bem na graça de Deus. Mando dizer que é para me desculpar que não apareci no casamento, é que tinha a roupa toda suja, o alferes me faz este grande favor de me desculpar, fiquei muito contente com a prenda que a sua mulher deu à minha mulher, sempre faço orações que meu alferes consiga o seu futuro e a sua mulher. Estou aqui só tenho a confiança em ti, e o meu alferes vê nessa companhia nova que vem para Bambadinca se me pode ajudar, estou na sua espera. O alferes em Missirá chama-se Mário Beja Soncó, toda a malta conta consigo como irmão e parente unidos, e assim queremos unir a nossa Fé com a sua mulher como unimos com alferes. Nhima Soncó vive no bairro da Ajuda, pode ir até lá visitar-lhe, chega ao pé da Mesquita e pergunta pela mulher que veio de Missirá”.

A Cristina fez perguntas sobre Quebá Soncó, Nhima, a que nova companhia que ia para Bambadinca ele se referia. Reencetei a minha narrativa com um tom acalorado à volta de Missirá, falei das flagelações e da sua reconstrução, a certa altura chegou o momento de descrever uma flagelação em que a pobre Nhima perdeu um braço que o Quebá enterrara, eu sabia ter escrito sobre estes acontecimentos em aerogramas de Julho passado.

A nova companhia, expliquei, tinha a ver com a partida do BCaç 2852, previa-se que no fim deste mês [de Maio de 1970], Quebá Soncó queria continuar a ser tratado como picador, a ser economicamente apoiado, contava com a minha intercessão. Sinto perfeitamente que esta conversa é um corpo estranho, angustiante, impróprio para uma vida de recém-casados, a despeito de todos os dias, ou quase, ter escrito de Missirá para Lisboa falando da guerra e dos seres humanos à minha guarda.

É então que a Cristina percebe, penso eu, que chegámos ao limite, as nossas existências estão profundamente divididas, ou cerceadas, há um calendário que não pode ser iludido, tenho ainda pelo menos três meses de guerra à minha espera, o internamento psiquiátrico foi o remendo possível, não só o David Payne não pode fazer mais milagres como não devemos estar dispostos a passar da amabilidade para a indignidade. Aliás, a Cristina tem exames à porta, acertamos igualmente nos projectos mais imperativos que são, o aluguer de uma casa com três divisões, de preferência perto de casa dos seus pais, faço planos para mudar de trabalho, gostaria de acabar o curso em dois, dois anos e meio. A Cristina fala em dar aulas, precisamos de dois pequenos salários para começar.

É a acalentar estes sonhos que vamos à TAP tratar da passagem e, nesse mesmo dia, com a guia de alta dada pelo David Payne vou ao QG tratar da minha viagem para Bambadinca. Toda a ternura a que nos oferecemos não esconde os amargores da separação, afinal ainda há uma guerra para concluir. A esconder o sofrimento a custo, a Cristina parte de Bissalanca quase um mês depois de ter chegado, era o princípio da tarde de uma dia sem nuvens, a pista suava com o calor tórrido, olhámos um para o outro sem mais palavras, siderados pelo livro aberto que nos espera. Prometo escrever a toda a hora, poupar-me, pensar mais em Lisboa, fazer entrar a Guiné num limbo. Eu sei que é tudo mentira, a Cristina também. No mesmo voo vai o príncipe Xisto Bourbon-Parma, que já visitara Bambadinca, acabámos por almoçar juntos no Grande Hotel, não sei qual o seu grau de importância, é muito gentil e apurámos que ele tem consciência do que é que se está a passar na Guiné.

(ii) A penúltima visita ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa

Na véspera de partir, a Cristina e eu fomos em romagem até ao museu. A Cristina já folheou o meu caderno com apontamentos, acredita a sério que um dia irei escrever sobre este mundo que mudou a minha existência. Enquanto ela folheia revistas científicas recentemente chegadas, tiro notas de uma conferência de Marques Mano efectuada na Sociedade de Geografia de Lisboa, em Maio de 1946, na sessão solene comemorativa do V Centenário do Descobrimento da Guiné. Marques Mano encanta-me pela embriaguez das suas sonoridades, pela riqueza do léxico, pela apoteose da descrição dos fenómenos tropicais quase romanceados. Veja-se o macaréu:

“Para ir tão longe, a maré não encontra à sua frente leitos abertos e vazios; encontra, nos dois rios doces que convergem na testa do estuário central, leitos onde, de margem a margem, corre uma toalha de água doce que desce com rapidez. Deste modo é obrigada a subir em macaréu. A maré cheia, empurrada do largo estuário para o rio estreito, encontra-se com aquela corrente contrária que lhe trava os filetes de água inferiores e os que, correndo livremente sobre esses, vão cair sobre ela. Deste modo a maré é continuamente represada ao longo do percurso do rio, a água que chega galga a represa, para ser também travada, e a altura da enchente sobre a vazante aumenta deste modo incessantemente, até que a enchente se enrola numa vaga grossa e poderosa que corre sobre e contra a vazante... O trovejar da enorme vaga ouve-se a alguns quilómetros de distância ainda lá no fundo da floresta. Calam-se os homens e os animais bravios para escutar o monstro que sobe o rio correndo. Quando chega, as cordas de água precipitam-se em vertiginosa desordem contra a vazante, contra as margens, contra as árvores ribeirinhas, espadanando, enrolando-se em remoinhos, arrastando à sua frente quanto se lhe oponha. Passa, e o corpo líquido, sinuoso e rápido do monstro, enche o leito do rio e continua correndo e rugindo”.

E não resisti também a registar o que Marques Mano diz sobre os tornados:

“Desde os meados de Abril que o imenso forno azul que é o céu do território vem aquecendo até sufocar. Altos e esguios funis de pó, cujo vértice, se as toca, remove as telhas, correndo em redemoinho, levam aqui e além o primeiro anúncio das chuvas, depois confirmado por algumas reacções ciclónicas ainda secas. Por estes dias, o ar imobiliza-se, o estuário é um espelho sem fim, o calor no ar imóvel causa uma angústia que não se poderia prolongar. Sobre o mar, mas mais longe do que o horizonte, firma-se uma longa banda preta, por debaixo da qual faíscam relâmpagos, e é formada pela tempestade que espera ao largo da costa. A volta da maré desencadeia o ciclone. A banda preta sobe vigorosamente no céu, arrastando consigo um amplo manto negro em que fulge e rola uma trovoada contínua... Então, o ar vivo, fresco, fortemente ozonizado que chega a atingir a velocidade do tufão, cai sobre a terra como a pancada de um martelo. A violência da rajada estende nas estradas lençóis de pó que correm velozmente e não deixa erguer, despoja as copas de folhas, esgalha ramos, derruba fragorosamente as árvores, lança as folhas de zinco a voar como folhas de papel, e até, a algum pequeno barracão de construção menos previdente, levanta e transporta o telhado inteiro. A longa pancada do vento é seguida por uma poderosa muralha de chuva que avança mais vagarosamente contra a terra. É tão espessa que absorve na sua espessura as coisas que vai alcançado; absorve ilhas, embarcações, casas... A massa de água passa demoradamente, inunda a vila, continua a marcha para o interior. Uma hora depois, talvez menos, o calor ardente, o céu limpo, o ar imóvel, preparam o tornado da maré seguinte”.

Rendo-me à musicalidade, mas não deixo de me interrogar se tais descrições não têm por detrás um escritor que falhou na ficção e toma aqui a desforra. Gostei muito do que li e da sinceridade deslumbrada de quem descreveu o macaréu e os tornados. Fecho o meu caderno a meditar sobre o que pensarão as próximas gerações desta prosa grandiloquente.

1ª Edição em português, capa de Bernardo Marques, Edição »Livros do Brasil», sem data, desapareceu a 1ª página, não se pode mencionar o tradutor.

É um livro indispensável para falar das utopias do século XX,das preocupações com o geneticismo, o condicionamento das massas,os tranquilizantes,por exemplo. Nunca ninguém o considerou uma grande obra literária, as personagens são, por regra, estereotipadas.

É uma paródia subtil e cultíssima do optimismo no progresso científico.Aliás, parte da ideia que a revolução científica pode moldar as sociedades. Huxley relecte admiravelmente no prefácio de 1946 sobre as servidões instaladas, sob o disfarce do progresso científico.


(iii) O BCaç 2852 de abalada, há muitas mexidas no Pel Caç Nat 52


Encontro as tropas em Bambadinca numa grande expectativa. O BCaç 2852 aguarda a chegada de novo batalhão [, o BART 2917], a actividade operacional está muito reduzida, são as colunas ao Xitole, as emboscadas nas imediações, escoltas, patrulhas nocturnas, idas às tabancas na periferia, as obras intensas nos Nhabijões, o suplício na ponte de Udunduma. O PAIGC também parece estar mais calmo: flagelações rápidas, algumas minas, ataques mitigados em tabancas em autodefesa, pouco mais. Na CCS fazem-se inventários, na messe suspira-se pelo regresso e pela passagem à disponibilidade, a bem dizer já poucos têm ânimo sereno para continuar a viver a missão que aqui começou em Setembro de 1968.

Nº162 da Colecção Vampiro, tradução de Lima da Costa, capa de Lima de Freitas. Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Vou ter mais esta separação, mas, falando dos meus soldados, partiram ou estão para partir o Teixeira das transmissões, o Domingos Silva, há evacuados, há trocas, leio atónito que Jolá Indjai já regressou da metrópole, curado da sua tuberculose, ainda está em Bissau. Envolvo-me nas patrulhas, acompanho a picagem da estrada até Amedalai, de Demba Taco seguimos até Taibatá, percorremos a corta-mato até Moricanhe, de onde gente do Buruntoni tem flagelado as tabancas em autodefesa do regulado do Xime. Converso com o Pires sobre a Gato Irritado, operação sem contactos e sem vestígios, mas os de Missirá detectaram um grupo de Madina perto de Mato de Cão, era uma coluna de reabastecimento, abandonaram as esteiras e os panos para fugir mais lestos. Parece que está tudo na mesma, com a agravante de estar diluído o nosso pendor ofensivo, é o compasso de espera que me vai levar a propor aulas aos soldados, o Benjamim Costa aceitou colaborar, vejo o espanto em muitos rostos quando proponho ginástica, lembro a todos que nos tempos de Mato de Cão fazíamos vinte e cinco quilómetros diários, pelo menos, havia as obras, os patrulhamentos, as actividades de manutenção. Eles concordam, amanhã de manhã iremos surpreender quem vem de Sare Ade, Ieró Nhapa e Queroane quando passarmos em marcha acelerada e em tronco nu, lustrosos graças ao primeiro calor do dia.

N.º 178 da Colecção Vampiro. Tradução de Mascarenhas Barreto e capa de Lima de Freitas. Só um inglês podia ter escrito este livro, é pícaro como um filme de Alfred Hitchcock. Como um baile de máscaras, o dono da casa quer divertir os seus amigos e monta uma tripula forca onde balouçam três figuras. Roger Sheringham, um detective muito querido a Anthony Berkeley, comparece e é confrontado por alguma bizarria da cunhada do anfitrião. Esta estranha senhora desafia um médico, e coloca-se em posição de ser enforcada, tudo aos olhos do leitor, mais evidência não pode existir. Começa o inquérito, é um suceder de suspeitos e só no final é que aparece uma confissão informal sobre o verdadeiro desenrolar dos acontecimentos, que o leitor recebe com uma gargalhada. Simplesmente notável.

(iv) Leituras admiráveis e leituras divertidas

Chegou o momento de ler Admirável Novo Mundo, de Aldous Huxley. Já ouvira falar desta utopia e das advertências formuladas por Huxley no início dos 30. Existe um Estado Mundial pautado pelos princípios de Comunidade, Identidade e Estabilidade. O livro começa quando o Director da Incubação e do Condicionamento visita a Sala da Fecundação. Ele fala para um auditório de estudantes junto das incubadoras, fala das vantagens da conservação do ovário, dos Alfas e dos Betas. É um mundo novo onde se formam seres melhorados aptos para a estabilidade social. Segue-se uma visita ao infantário mas antes passam pela Sala de Decantação. As crianças estão fortemente condicionadas, nunca mais vão precisar da literatura ou da botânica. Foi decidido abolir o amor à natureza, fala-se de Ford, de Marx e até de Lenine, por entreposta pessoa, até mesmo do Dr. Wells (uma clara alusão a H. G. Wells, o autor de O Homem Invisível e A Guerra dos Mundos).

O livro é uma paródia sobre o progresso, tal como ele era possível nesses anos 30, com a ficção científica que era disponível à luz dos conhecimentos da época: selecção da espécie, precauções anticoncepcionais, medicamentos anestesiantes e euforizantes, há seres superiores e há selvagens, a ciência está a procurar soluções para o sofrimento, para a dor dos moribundos, o progresso é uma coisa deliciosa. Não é uma grande obra literária, mas percebe-se agora por que é que esta ideia do optimismo progressista fez escola num momento em que a revolução científica trouxe melhoramentos consideráveis e o nazismo inventou a manipulação das massas ao mais alto grau e a selecção racial levou ao Holocausto. É uma paródia sobre uma sociedade feliz que aceita o condicionamento colectivo. Esses anos 30 são os tempos das massas humanas subjugadas por ideais comunitários, pela genética, pelo espectáculo, pela busca de sentido. Daí perceber-se como esta sociedade do admirável novo mundo está estratificada e os selvagens são colocados em campos fortificados. A morte deixou de ser traumática e é vantajoso que as massas falem com um reduzido número de palavras. A servidão totalitária era a preocupação de Huxley, ele quer denunciar a tirania-providência da utopia. Felizmente que esta tirania foi derrotada nos campos de batalha.

A Festa da Enforcada, de Anthony Berkeley, é um policial magnífico, ajuda-me a sair das previsões terríficas de Huxley. Podia ter dado um filme de Alfred Hitchcock. Há um baile e os anfitriões resolvem pôr na sala uma forca onde estão pendurados bonecos. É o mórbido dos enforcados por cima de gente mascarada, de gente que se embebeda e que guerreia verbalmente e onde uma cunhada dos anfitriões está a provocar uma mal estar terrível. Ela vai aparecer enforcada e a investigação aponta em direcções contraditórias, suspeitos são todos os que estiveram no baile. Em directo, às escâncaras, Berkeley descreve ao leitor o que se passou, como ocorreu o homicídio. Mas o que se passou efectivamente fica para descobrir no fim depois de uma investigação descrita de forma sufocante e literariamente empolgante. O desconcertante fica mesmo para o fim, é uma investigação que parece passar pelas câmaras do cinema ou da televisão, parece estar tudo a descoberto, a literatura também se faz de ilusões ou omissões, Berkeley é um mestre em criar uma atmosfera social deixando para o fim a mais imprevisível das confissões, entre o horror a anedota.

Para a semana volto para a guerra a sério, entregam-me a concepção e a execução de um patrulhamento ofensivo, regresso à região do Xime. Haverá tiros, uma emboscada com resultados e um desfecho inacreditável, pois a coluna que iremos surpreender é de reabastecimento e vem do Xime.

Eu sei que vou demorar quarenta anos a convencer-me que afinal eram muito mais íntimas as relações entre as populações no mato e as sob o nosso controlo que eu supusera, tudo um somatório de equívocos, semiverdades, produto da força do sangue estar muito acima das contigências dos partidos tomados por Portugal ou pela independência ou pela libertação da Guiné. Será em Madina Colhido, naquele final de Maio, que irei pela primeira vez hesitar sobre os campos demarcados, amigos e inimigos. Afinal, não estavam nem podiam estar demarcados. Só que eu não sabia. Eu e as tropas que chegavam e partiam dois anos depois.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último poste da série > 11 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241. Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau, confirmo por estas fotografias, tinha um cosmopolitismo de guerra, era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


Guiné > Bissau > Maio de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril [de 1970] e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas.

"À volta do mercado velho havia uma excitação entusiasmante, era o colorido, os pregões, os encontros imprevistos, a discussão dos preços, os odores de África. Depois da lua de mel no Grande Hotel (nome sofisticado para uma pensão onde se comia razoavelmente) fomos viver em casa do Emílio Rosa e começaram aqui as idas à praça. Recordo a fruta, o peixe e alguns legumes. Fugi sempre da carne na Guiné e nunca esqueci os meus 19 dias a pé de porco com feijão verde enlatado, tudo acompanhado com leite achocolatado holandês" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 11 de Abril de 2008:


Meu caro Luís, Segunda-feira mandar-te-ei imagens dos livros aqui referidos. Não te esqueças que tens fotografias da Cristina em Bissau e há igualmente imagens do HM 241. Vê se nos podemos encontrar sexta-feira , 21, para mim era o ideal. Gostava que a nossa reunião de Monte Real aprovasse novos projectos e eu estou disponível para continuar a contribuir com a minha dedicação ao blogue.

Um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVIII > NOS LABIRINTOS DA FEBRE CEREBRAL (*)
por Beja Santos



(i) Os duelos entre o capitão Oliveira e o furriel Alves


O capitão Oliveira, para quem o ouve, repete a todo o instante que quer ver clarificada a razão do seu internamento compulsivo, pretexta em tom muito alto que as evacuações Y eram um dever para quem tem uma mãe tão frágil e só como a sua.

O furriel Alves, que não pára de mexer as mãos, e que também fala em tom muito alto, continua incrédulo por não ter perdido uma grama do seu corpo nas minas que pisou, por não ter uma só fractura, um simples hematoma, lança-lhe um riso escarninho, chama-lhe tarado, um capitão que pede por duas vezes uma evacuação Y para mandar aerogramas à mãe e não percebe a gravidade do seu gesto, insiste ele com o dedo em riste, ou perdeu o siso ou então (aí a sua voz ganha uma cor escura, e vai silabando e escorrendo a insinuação em tom lento) não passa de uma comédia ardilosamente montada para regressar à metrópole. E resmoneia entre dentes:
- Apanhado pelo clima, o tanas!”.

Estes duelos tinham a particularidade de se tornarem mais dramáticos num momento crucial para o meu sono. Passo a explicar. Com o toque de alvorada, o primeiro cabo Morais entrava na enfermaria e ferrava as injecções em três rabos, pondo em cima da mesa da cabeceira os respectivos comprimidos multicolores. Dóceis, seguíamos para o refeitório onde nos aguardava uma cafeteira de alumínio, havia pão e marmelada à disposição. No regresso à enfermaria, o 1º cabo Morais apontava para os comprimidos e seguia a trajectória dos mesmos até às nossas bocas. Dóceis, ingurgitávamos as cápsulas, mecanicamente.

Quando era esperável que serenassem os ânimos e fizéssemos o primeiro sono do dia, o Alves subvertia os efeitos da química, excitava o Oliveira. Em quinze minutos estava armada a cena, eu deitado na cama do meio com vontade de dormir, sujeitava-me à gritaria infrene e quando tenho o corpo já mole e o cérebro noutro sítio, voavam cadeiras, caiam as mesas, soltavam-se os impropérios mais soezes.

No terceiro dia, ainda a tentar adaptar-me a este espectáculo ensurdecedor, vejo os dois em cima das respectivas camas, pegam nas facas da marmelada e ameaçam-se. À cautela, gritei por socorro, já com a voz empastada, foi bom assim, descobri que a loucura é democrática, da enfermaria das praças acorreram dois calmeirões de olhar embrandecido pelos comprimidos, Oliveira e Alves foram separados e levados não sei para onde, respirei de alívio, adormeci até à hora do banho.


(ii) A visita das ilustríssimas senhoras


Enquanto almoçamos comida intragável com o corpo a cheirar a sabonete, o nosso zelador informa:
- Agora vão descansar, atrevam-se a desobedecer-me e verão. Pelas 15h30, vem a esposa do nosso brigadeiro e as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Como é a primeira visita que vão ter, digam às senhoras do que é que precisam, elas são prestáveis e trazem umas revistas até em línguas estrangeiras. Vão estar deitados, ai de quem usar de maus modos com as senhoras, carrego-vos na dose dos comprimidos, vocês quando saírem daqui nunca mais serão gente!.

Lá fomos para a deita, tomámos nova porção de comprimidos multicolores, o 1º cabo Morais, à hora aprazada, depois de confirmar a decência da nossa postura, deu passagem a um conjunto de senhoras capitaneadas pela mulher do comandante militar da Guiné, trazia uma bata com as insígnias do Movimento e uma braçada de revistas encostadas ao peito. Sorriu, vinha muito bem penteada e falou suavemente:
- Boas tardes aos três. É muito triste estar doente, viemos para vos fazer companhia, tomar nota se precisam dos nossos préstimos, trazemos aqui algumas revistas para vos aliviar o sofrimento. As vossas mães, as vossas irmãs e namoradas estão certamente intranquilas. Peçam, nós contactamo-las. Façam o possível por ler. Ler promove o espírito.

Eram de facto revistas estrangeiras, Paris Match, Jours de France, havia até uma revista que falava de casamentos e baptizados da realeza europeia. A visita foi confrangedora para quem trazia tanta cordialidade, tiveram que enfrentar o nosso silêncio glacial, nada havia a pedir às senhoras, o 1º cabo Morais recolhia as revistas e agradecia por nós aquela prova de tanta bondade. As senhoras saíram, o 1º cabo Morais felicitou o nosso comportamento.

Uma hora mais tarde, de novo com as mãos fora do lençol, devidamente esticadas, foi a vez de recebermos a mulher do comandante-chefe das forças armadas e a sua comitiva, todas com a indumentária da Cruz Vermelha Portuguesa. Igualmente bem penteada e portadora de um sorriso doce, D. Maria Helena Spínola revelou-se solícita, perguntou se queríamos escrever para a família e foi aí que o capitão Oliveira estragou tudo, contou a história da mãe com a tensão alta e diabética, a simplicidade tocante do seu gesto em querer mandar-lhe um aerograma, a brutalidade das leis militares, ele sabia muito bem que uma evacuação Y não era para uso comum, desviar uma avioneta ou um helicóptero pode ceifar vidas, mas ele era filho único, aquele grupo de seis senhoras avançava para a cama dele, ouviam-no atentamente, o olhar era de puro pesar, alegaram nada poder fazer mas se o senhor capitão entendesse que deviam contactar a mãe, elas fariam isso prontamente.

Com o tronco soerguido na cama, agitando as mãos, o capitão Oliveira, de olhar súplice, lançou um apelo dramático:
- Minhas senhoras, perdi a reputação, sou um homem desonrado, imagino o que me vão dizer quando regressar ao meu quartel, vêem-me aqui rodeado destes dois doentes mentais, o da ponta se as senhoras lhe derem trela não engana ninguém, tem o juízo despachado, pisou umas minas e não pára de falar, este aqui ao meu lado tem a calma fria dos assassinos, até me arrepio quando penso que ele andou a fazer atrocidades lá no mato, quem vê caras não vê corações. Por favor, tirem-me daqui, eu não quero ficar doente, eu sou um bom filho.

Foi aqui que o furriel Alves começou a disparatar, a chamar tratante ao capitão Oliveira, os ânimos aqueceram, as senhoras recuaram com olhar atónito, o 1º cabo Morais atropelou uma explicação dizendo às senhoras que o senhor capitão sofria de um forte distúrbio, pediu-lhes para abandonar imediatamente a enfermaria, à saída de um grupo atarantado e compungido apanhámos com o olhar furibundo do nosso zelador. O 1º cabo Morais regressou momentos depois e deu-nos notícia do castigo: estavam proibidas as visitas às enfermarias, hoje e amanhã. Olhou-me depois da sua sentença e disse-me:
- Um dos médicos psiquiatras, o nosso alferes Payne, quer vê-lo daqui a um bocado. Arranje-se e venha comigo.

(iii) A minha confissão a David Payne


Depois de inúmeras lavagens em autoclave, visto um pijama descolorido, entre o azul desmaiado e o cinzento cor de rato, uso sandálias de plástico e inexplicavelmente apresento-me na consulta com dois livros, na presunção de que vou ter muito tempo para ler. O David Payne gaba-me o ar repousado, o ar bem dormido, os movimentos sem nenhuma tensão. Refere que já falou com o psiquiatra de serviço, saio feita uma semana de enfermaria, fico ainda uma outra semana em consulta externa. Ainda hoje não sei o que se passou, mas senti que me estava a confessar a este grande amigo:
- David, nunca te poderei agradecer esta possibilidade que me deste de estar com a Cristina, o que era impossível aconteceu, senti-me muito feliz por ela ter vindo. Não medi as consequências de um casamento com internamento psiquiátrico forjado, tens que me ajudar a esclarecer esta terrível sensação de estar feliz por ter a Cristina em Bissau e ao mesmo tempo sentir que isto é um estado que me divide e dificulta a exteriorização de sentimentos. Não paro de pensar que tenho que regressar mais uns meses a Bambadinca, ainda ontem aqui esteve o Teixeira das transmissões a despedir-se, regressa dentro de dias à metrópole, falei com o Teixeira como se estivéssemos operacionais activos, houve um momento em que lhe estendi a mão como se fosse receber uma mensagem para ir a Mato de Cão. Não devo ser caso único, mas sinto que este estado não me faz bem nem à Cristina. Vou propor-lhe que cada um regresse ao seu ponto de partida, aceito esta tua ideia de ficarmos mais uns dias juntos, vê lá o que é que me aconselhas como boa comunicação para a nossa despedida temporária.

O David olhava-me com o seu olhar penetrante, fazendo circular a língua nos seus lábios finos, de próximo e centrado na minha cara passou a divagar pelos móveis e paredes da sala, voltou a olhar-me e serenou-me sobre tudo quanto se estava a passar, concordou que o prolongamento da situação poderia ser danoso para os dois, ele próprio iria falar com a Cristina, hoje ou amanhã. E recomendou-me que tirasse partido destas férias à força, não valorizando as tensões que eu presenciava na enfermaria. Mais me informou que a redução dos medicamentos iria permitir-me regressar a Bambadinca numa quase perfeita desabituação terapêutica.


(iv) Um telefonema para Cherno Suane


É quando arrumo o correio enviado à Cristina a partir de Bambadinca, a partir de fins de Maio de 1970, que me assaltam dúvidas e sou instado a telefonar ao Cherno: ele acompanhara a Cristina em Bissau enquanto eu estava hospitalizado, que visitaram, por onde passearam?

Estava eu ainda em Bissau quando a 7 de Maio ocorreu um patrulhamento ofensivo em Sinchã Corubal, a operação “Gato Irritado”, em que participara o Pel Caç Nat 52, e um grupo de combate da CCaç 12, o que é que acontecera? Numa carta datada do início de Junho, referia uma operação que começara por um patrulhamento entre Amedalai e Moricanhe e numa emboscada em Madina Colhido houvera um contacto com uma coluna do PAIGC em que Mamadu Camará alvejara uma mulher, o que é que realmente se passara?

Ele que me desculpasse o inusitado das perguntas, tinha ainda uma outra dúvida sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, sucessora da antiga Companhia de Fomento Nacional, fundada em 1921, ele que tinha trabalhado na Socotran, ali para os lados de Biassa, a partir de 1978, lembrava-se de ter visto alguma vez vestígios dessa empresa no regulado do Cuor?

Do outro lado do telefone, Cherno não se fez rogado: como se estivesse a gargalhar, referiu que ia buscar a “senhora” ao Grande Hotel, primeiro, e, depois, à pensão da D. Berta, junto da igreja dos cristãos. Que iam aos mercados e passeavam pelo cais e depois sentavam-se no café da Associação Comercial; completamente a despropósito, lembrou-me que passámos a levar o morteiro 81 para Mato de Cão a partir de Junho e até Novembro de 1969, e precisou:
- Era Jam Djaló, milícia de Missirá, quem fazia questão de levar o tubo do morteiro em cima do ombro, o Queirós levava um colar de granadas.

Mais informou que um dia saímos numa coluna com um Unimog 404, ia no seu interior sentada Cadi Soncó, mulher de Mussá Mané, chefe de tabanca de Missirá, com um bebé ao colo, ficou aterrorizada quando o Unimog virou em Canturé a caminho de Gambana, ninguém a avisara que íamos primeiro a Mato de Cão e só depois a Bambadinca, sarilhos destes com população civil tinham sido muitos; que o patrulhamento ofensivo de Sinchã Corubal fora uma grande canseira, sim, continuava a haver indícios de presença da gente de Madina no velho trilho, que fora usado diariamente antes da guerra mas não se encontraram canoas; que nos iríamos reunir em breve para se falar da emboscada de Madina Colhido onde se ficara a saber que os do Buruntoni vinham nas calmas abastecer-se na tabanca do Xime, o que não era novidade para ninguém, era pena não se falar com os soldados africanos sobre aquela situação em que os do mato falavam regularmente com as populações que viviam junto dos nosso quartéis; e surpreendeu-me lembrando que eu nunca lhe fazia perguntas sobre as aulas que dava na escola de Bambadinca e as aulas de ginástica nas imediações do quartel, quando eu regressara de Bissau. Agradeci tudo e finalmente fazia-se luz quanto às referências insistentes que eu encontrara no correio dos últimos três meses acerca das actividades escolares e de um estranhíssimo programa de ginástica que metia manutenção e marcha, tudo em calção, para gáudio do BCaç 2852, que partiu no início de Junho, e do BArt 2917, que o viera render.


Nº3 da Colecção Contemporânea, Portugália Editora,1966.Tradução de Marília Guerra de Vasconcelos, capa de João da Cãmara Leme.É, acima de tudo, um romance inesquecível,perdura na lembrança pela originalidade da trama, mensagem, arquitectura da escrita.1943, Londres, bombardeamentos,uma atmosfera de intimidação e resistência.Um homem naufragado,Arthur Rowe,é apanhado numa estranha conspiração,tudo começa na banalidade de ter ganho um bolo posto a prémio numa quermesse.Segue-se uma perseguição, um encarceramento e depois uma redenção ao serviço da pátria.Mais que a intiga atabafante num enredo kafkiano,é o cheiro de um medo sem direcção que perpassa toda a obra e vai ficar quando tudo ,parece, teve um desfecho favorável à salvação do Reino Unido.Só há redenção depois de se sofrer muito com e pelos vivos...


(v) Uma semana de suculentas leituras britânicas

Os livros que sobraçava quando fui à consulta do David Payne proporcionaram-me momentos de grande satisfação. Começando por “O Ministério do Medo”, de Graham Greene, fui reconduzido ao universo kafkiano, uma mistura de espionagem e intriga, havendo a redenção do herói depois do seu profundo abatimento e desorientação.

É uma história estranha. Estamos em plena guerra, em Londres. Arthur Rowe, que se supõe estar a viver um drama por uma acusação de ter assassinado a mulher, vai a uma quermesse, entra numa barraca de uma quiromante, segredam-lhe o peso exacto de um bolo posto a prémio, e é graças a este bolo que começa uma aventura do medo, feito de sucessivos equívocos. A quermesse tinha a ver com as mães livres (isto é, as mães de todas as nações livres), uma estranha associação de que Rowe nunca tinha ouvido falar. Rowe regressa a casa com o bolo, aparece um desconhecido que adopta um comportamento também bastante bizarro, eis quando um bombardeamento alemão destrói a casa. Rowe procura um detective privado com o objectivo de apurar o que está por detrás da ansiedade daquela associação em reaver o bolo que ele, tudo indica, tinha ganho legitimamente. Recebido na associação das mães livres, descobre que um grupo no seu interior persegue outro, também da associação, pretende-se enviar para fora de Inglaterra um segredo importantíssimo. Está estabelecida a atmosfera de intriga, o irracional ganhou plausibilidade, Rowe vive em fuga, um vendedor de alfarrábios vai conduzi-lo a uma clínica que é um universo concentracionário, sob o pretexto de que é necessário reganhar a memória de tudo quanto Rowe esquecera no passado.

A charada não se consegue esclarecer completamente, quem é inimigo de quem, qual a natureza daquele segredo que pode abalar a Grã-Bretanha pelos alicerces. O medo viera para ficar, mesmo na relação amorosa que une o herói e a sua amada: “Durante largo tempo ficaram sentados, imóveis e silenciosos; acabavam de alcançar a orla da sua provação, semelhante a dois exploradores, que do cume da montanha, contemplam a vasta e perigosa planície. Durante uma vida inteira teriam de caminhar cautelosamente, pensar duas vezes antes de falar; e porque se amavam tanto, teriam de espiar-se mutuamente, como dois adversários. Nunca saberiam o que era viver sem o temor de serem descobertos”.

Romance notável, que comprova o elevado talento de Greene, quando falada da traição e da iniquidade, e como a partir do grotesco e do sórdido se alcança a face de Deus.

Nº162 da Colecção Vampiro,tradução de Lima da Costa,capa de Lima de Freitas.Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Não menos valiosa foi a leitura de “A Fera Tem de Morrer”, de Nicholas Blake. A trama é original. A primeira parte gira à volta de um diário em que um conceituado escritor de obras policiais pretende vingar-se de um motorista desconhecido que lhe matou o filho, Martie, à porta de casa. Diário intimista de Frank Cairnes, aliás Felix Lane ou vice-versa. Por sua iniciativa, acaba por descobrir quem ia na viatura que dera morte imediata a Martie, o filho que era a sua razão de viver. É ele, e não a polícia, quem descobre a jovem que acompanhava George, o motorista imprevidente que fugira cobardemente. Insinua-se perante a jovem e entra assim na vida de George. Escreve metodicamente no diário os preparativos do assassínio de George.
Na segunda parte do livro, dá-se o frente a frente de Felix Lane com George Rattery, ambos estão informados da morte de Martie, ocorre uma discussão brutal, Felix não tem condições para executar a sua vingança. Na terceira parte, entra em cena um detective que é contactado por Felix depois de George ter aparecido morto por ingestão de estricnina. Julga-se ter sido o filho de George a procurar assassinar o pai, o detective, que entretanto teve acesso ao diário de Felix, vai desvendar a maquinação espantosa de um diário concebido para provocar uma grande ilusão. A despeito de uma vivência na enfermaria psiquiátrica, li assim do bom e do melhor.

Em breve, serei restituído a Bissau. Estou emocionalmente dividido e sem escolhas possíveis. A Cristina regressa a Lisboa e eu parto para Bambadinca. Apanho nova transição de batalhões, o pesadelo da ponte de Udunduma, as últimas operações, acompanharei o dia a dia do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Mais tarde, para o fim de Julho, converso com o deputado José Pedro Pinto Leite, da ala liberal, em Bambadinca, pouco antes de ele morrer num acidente no rio Mansoa. E, de repente, chega o meu substituto, fonte de grandes preocupações. Tudo isto será aqui contado.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

domingo, 6 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

"Encontrei esta fotografia num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de 1972. Lembrei-me logo dos meninos de Missirá educados por Lânsana Soncó,lembrei-me das tábuas com os versículos do Corão que se podiam comprar ao pé de Fá Mandinga.Em Missirá e Finete tínhamos acordado que estas aulas eram complementares às do professor da primária,foi assim que os meninos tinham uma boa parte do dia preenchido"(BS).


"Os caramôs eram muito influentes no chão fula havia escolas onde se reuniam e preparavam,caso da região de Contuboel e Sonaco.Gosto muito de fotografias em estúdio, libertam a majestade do visado,a objectiva não esconde a artificialidade da atmosfera dos cenários,faz avultar o personagem, dá-lhe o corpo inteiro.Continuo a não encontrar relatos sobre as relações entre o PAIGC e as autoridades religiosas durante a guerra.Ora, eram os caramôs quem mais viajava entre a Guiné e as escolas do Senegal e Conakry...à atenção dos histotiadores" (BS).



"O que mais surpreende quando vejo bailado moderno é a herança das encenações africanas e asíáticas.No caso dos mandingas, tudo começa com uma relativa lentidão, como que para aclimatar o espectador, que participa directamente, aplaudindo e intervindo no coro.Depois,a roupagem enche o olho,toma conta dos sentidos,quando a batucada entra no frenesim, dá-se a fusão como no espectáculo total" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 26 de Março de 2008 (Texto revisto):


Luís, Espero que tenhas vindo retemperado das férias pascalianas. Vou descansar entre sábado e 10 de Abril, antes porém pretendo fazer o segundo e último episódio na neuropsiquitria em Bissau. Depois vou distanciar-me, os últimos meses em Bambadinca não foram fáceis, sou um militar dividido, irremediavelmente dividido pelos sonhos em retomar uma nova convivência familiar e os estudos, e o sentido do dever em prol dos meus soldados, que eu tanto apreciava. Um desconforto que virá comigo até Lisboa. Já aí tens algumas imagens do HM 241, vou enviar os livros do Baptista-Bastos e do Raymond Chandler. Recebe o abraço do Mário.



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVII > NA NEUROPSIQUIATRIA DO HM 241
por Beja Santos (1)



(i) Arrumações no caderninho viajante, alguma correspondência


Enquanto a Cristina estuda e lê nos lugares mais frescos nas horas acaloradas, procuro pôr alguma ordem nas notas amontoadas, quer pelas leituras dos livros emprestados por D. Violete quer pelas citações retiradas das leituras feitas no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

O caderninho viajante vai engordando, já penso em comprar outro, este está como se fosse uma lista telefónica das mais repolhudas, escrevo a definição de caramô, mais adiante refiro a obra “Contos do caramô, lendas e fábulas mandingas da Guiné Portuguesa”, de Viriato Augusto Tadeu, Agência Geral das Colónias, de 1945.

Tomo igualmente nota do seguinte: “Os caramôs, os agentes religiosos, vinham da Gâmbia e do Casamansa. Os do Futa Jalon só intervieram com maior constância depois da conquista do Gabu, em 1874. Os caramôs instalaram-se em Jabicunda (regulado de Gussará) e em Bijine (regulado de Badora)”. Numa nota ao lado, escrevo: perguntar o que é Chapa Bissau, quais os bairros do Cupelom, o que é o Bandim Alto.

Depois continuo, registando alguns apontamentos extraídos de um texto assinado por Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, facultativo do ultramar, publicado em 1885 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, assim: “São majestosos os temporais na Guiné. São medonhas aquelas convulsões da natureza, que, ali, grande em tudo, até nos horrores da tempestade, patenteia o seu imenso vigor e se expande em toda a sua altiva e orgulhosa beleza… Nuvens de densa negrura, ou de cor acobreada, reverberando baços e fulvos clarões, vão-se acastelando entre N e SE, correndo em direcção contínua ao vento que sibila o horrísono. Súbito, medonho ribombo anuncia que o trovão rompe a batalha. É o clarim da tempestade. Para logo os relâmpagos sulcarem ininterruptos a tenebrosa densidade do caos, e o eco medonho dos trovões, percutindo o espaço um após outro, abala a natureza inteira em tremenda convulsão”.
Guardei estas notas pela sua pujança romântica e pelo cromatismo sonoro da descrição. E o Dr. Sócrates da Costa surpreendeu-me também nas suas conclusões do que viu e viveu na Guiné: “Bem aproveitada, a Guiné pode tornar-se para nós um segundo Brasil: porque em nenhuma parte temos tanta facilidade de nos estendermos em território e domínio como ali. A Guiné é a chave de oiro que nos abre as portas do continente africano”.

O Dr. Sócrates da Costa, convém reconhecer, não tinha ilusões sobre o clima brutal da região e apelava para que o estabelecimento de colónias penitenciárias fosse transferido para a África Oriental, já que Cabo Verde e Guiné eram reconhecidamente insalubres para acolherem degradados, uma grande parte da sua população.

Do Dr. Sócrates da Costa passei para o registo de korá, que ouvira em Bambadinca, lembrava-me uma harpa eólica pela melodia obtida, e então escrevi o que retirara de uma monografia de António Carreira: “Instrumento com caixa de ressonância constituída por metade de um cabaço grande, coberto de pele de cabra, bem seca e esticada. Uma haste encaixada no cabaço, serve de braço. Ao longo dele estendem-se cordas de nylon que são alteadas por um cavalete de madeira, colocado na caixa de ressonância. Com korás, os jograis mandingas executam números de música de alto valor compositivo - música melodiosa, bonita e habilmente tocada”. Acrescento uma outra nota ao lado da página : “Perguntar ao comandante Teixeira da Mota onde ficava a Sociedade Agrícola do Gambiel. Apurar se o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa possui os Anais do Club Militar Naval referentes a 1909”.

Leio e respondo depois ao Pires, enviara-me um aerograma com data de 23 de Abril. A notícia mais importante era de que a partir do passado dia 15 fora suspensa toda actividade operacional de natureza ofensiva na Guiné, o comando em Bambadinca, em alternativa, ordenara patrulhas de contacto junto das tabancas do sector, o Pel Caç Nat 52, bem como a CCaç 12, desdobrava-se pelas tabancas em autodefesa, sobretudo em Badora, Joladu e Xime.

O Pires não sabia o que é que se estava a passar com o termo dos patrulhamentos ofensivos, falava-me de dias passados em Demba Taco, Amedalai, Sansacuta ou Bricama. A seguir, e sem nenhuma explicação por parte dos nossos comandos, a guerra recomeçara e intensificara-se não com grandes flagelações ou emboscadas mortíferas, mas com minas e roubos junto das populações.

A outra notícia prendia-se com a previsível partida de alguns dos nossos soldados e a chegada de outros. Era assim a rotina: umas vezes havia emboscada na missão do sono do Bambadincazinho, outras vezes eram as patrulhas nos Nhabijões ou em Samba Silate. O Pires referia ser igualmente previsível a partida das companhias sediadas no sector L1, havia a informação da chegada de um novo batalhão lá para finais de Maio.

Na resposta, informei-o que dentro de dias iria para o hospital, coisa de pouca monta, esperava regressar a Bambadinca em meados de Maio, tinha assumido o compromisso de dar aulas aos soldados básicos da CCS, interrogava-me agora se teria sentido tal tarefa com a tropa em vias de partir. Falei-lhe das cerimónias do meu casamento e do batuque organizado por Cherno.

Noutra correspondência, informei o comandante Teixeira da Mota de que se falava de um revés político muito grande com o massacre de vários oficiais na região de Canchungo. Dava-lhe igualmente a informação do que se estava a passar no sector de Bambadinca, encontrara oficiais de Bafatá e Nova Lamego que referiam o recrudescimento da guerra em todo o Leste, o PAIGC estava dotado de moderno equipamento, controlava cada vez mais território, nós víamos em Bambadinca que o PAIGC não se atemorizava com os patrulhamentos que fazíamos no Geba. Aliás, estavam intensificados os ataques às embarcações em Ponta Varela, procurava-se minar o moral dos transportadores que se afoitavam no Geba estreito. Escrevi igualmente à minha Mãe e a Ruy Cinatti, mas a ambos omiti que iria ser internado na neuropsiquiatria, muito em breve.

(ii) A consulta e o internamento


Era um médico afável, tinha uma voz tranquila e um olhar meigo. Leu atentamente o diagnóstico do David Payne, para o fim tinha o sobrolho carregado, explicou-me que com base naquela informação eu dava sinais de um grande desgaste, que o quadro de insónias podia descambar numa desordem grave, à cautela seria internado durante uns tempos, com os tranquilizantes ou ansiolíticos em breve poderia voltar retemperado para a guerra. “Não se apoquente, é compreensível que com a enorme pressão com que tem vivido dê sinais de depressão e nervosismo. Vai repousar muito, procure não dar atenção às doenças dos outros. Entra amanhã de manhã na enfermaria, dentro de três, quatro dias voltaremos a conversar”.

Mesmo ciente da situação, a Cristina não escondeu que se sentia penalizada, achava um preço demasiado alto para este casamento. Prometeu ir visitar-me regularmente, confiava que o prazo de uma semana iria ser cumprido. E começou a falar no seu regresso, nos exames, na procura de casa, na nova vida que nos aguardava. Estava triste mas confiante.

Apresentei-me no HM 241, deram-me um pijama e alguém conduziu-me até ao primeiro cabo Morais, certamente o zelador daquele serviço. Dias mais tarde, dir-me-á à queima-roupa: “Sou maqueiro por acidente, do que gosto de fazer é proteger algumas meninas coristas do Parque Mayer”. Logo me apercebi que tinha mudado de universo, ali a hierarquia tinha outro significado, o primeiro cabo Morais cuidava de gente muito frágil, falava sem hesitações, com voz sacudida, para que percebêssemos onde estava o poder, ali quem obedecia eram os doentes, gente com horas para levantar e deitar, tomar a pica no rabo, engolir comprimidos, deambular nas proximidades, tomar banho, almoçar, voltar aos comprimidos, ter uma hora para visitar os outros doentes, receber visitas, deitar ou escrever, jantar, ingurgitar mais comprimidos, a noite e o sono anunciam-se por uma luz de azul fosco.

Entrámos numa enfermaria de três camas, foi colocado na do meio e apresentado aos meus dois colegas, o capitão Oliveira, oficial de informações, e o furriel Alves, com a especialidade de sapador. Vale talvez a pena introduzir a atmosfera em que os três perturbados iriam viver.

O capitão Oliveira era licenciado em Filologia Germânica, professor algures no Norte, entre o Porto e o Minho, homem de gestos calmos, voz igualmente branda, com grande sentido da resignação, manifestamente culto. Feitas as apresentações, equacionámos os nossos padecimentos. O que levara o capitão Oliveira até ali? Vou tentar reconstituir a sua argumentação: “Oiça, eu creio que há aqui uma tramóia muito grande. Nada justifica este internamento, tal como foi feito até é vexatório, parece que eu sou maluco, não sei lá muito bem como é que vou ser olhado quando regressar à minha unidade, onde toda a gente me respeita. Um dia pedi uma evacuação Y, veio um helicóptero, asseguro-lhe que usei dos bons modos, atravessei a pista, vinha a guiar um jeep, entreguei um aerograma para pôr no correio em Bissau, sou filho único, às vezes esqueço-me de escrever ao fim do dia, a minha mãe é diabética e tem tensão elevada, não lhe quero provocar mais sofrimento. Você não pode imaginar o charivari que esta minha atitude provocou. O tenente aviador parecia possesso, exigiu falar ao comandante, chamou-me doido, nunca tinha visto uma coisa assim, como se um filho único não tivesse direito a uma fraqueza e quisesse que a sua santa mãe recebesse notícias a tempo e horas. O comandante parecia uma besta, gritava comigo e exigiu que eu fosse ao médico.

Disseram-me dias depois que desta vez o escândalo seria abafado, o médico, um gajo simpático, pediu-me mais autocontrolo, respondi-lhe que me sentia bem, em consciência voltaria a fazer o que tinha feito, como acabei por fazer. Para você ver o que é que a puta da guerra faz às pessoas, talvez uns quinze dias depois esqueci-me de novo de escrever à minha santa mãe, repeti a evacuação Y e expliquei que para além do aerograma eu precisava de mudar de ares, trabalhava a um ritmo vertiginoso, toda a gente me pedia papéis, eram relatórios de situação, eram documentos sobre a evolução da guerrilha, a preparação de operações, tudo caía sobre mim. Ainda hoje estou para entender a desumanidade deste internamento, só porque pedi duas evacuações Y porque tenho dificuldades emocionais e sou filho de uma mulher completamente só”.

Eu não sabia o que é que havia de responder ao capitão Oliveira, sentia agora que tinha entrado numa esfera mental diferente, não me passava pela cabeça que fosse possível pedir uma evacuação Y para mandar um aerograma, ainda por cima a história era repetida, dava largas à imaginação sobre o tipo de distúrbio que sofria o capitão Oliveira. E depois daquelas duas evacuações Y entendi que não devia agravar o irracional que submergia naquela enfermaria falando no expediente a que recorreram um médico e um comandante de batalhão para eu poder ter vindo a Bissau casar-me.

Voltando-me para o furriel Alves à espera de uma narrativa menos acabrunhante, fiquei a saber que há explosões que não deformam o corpo mas corroem o espírito. Lá para os lados de Farim, o furriel Alves recebeu a incumbência de desactivar umas granadas de morteiro, falou-me também de um fornilho, desceu da viatura e na picada accionou um sistema de várias minas anti-pessoais. Sentiu que tinha subido às nuvens, aterrou chamuscado, apalpou-se e o milagre estava à vista: nem um dedo ficara fracturado, é verdade que a partir daí entrara numa agitação, nada o repousava, a ânsia de falar era enorme.

Estava ele a contar-me todas estas manifestações quando o capitão Oliveira interrompeu à bruta: “Porra, oh Alves! Cale-se uns momentos, você fala pelos cotovelos, essas minas que você pisou entraram-lhe em qualquer ponto da cabeça, você fala sem descanso, está insuportável, não percebo que medicamentos é que lhe dão, cada dia está mais agitado, você é chato, endoideceu e quer endoidecer os outros”. Pareceu-me que o capitão tinha alguma razão. Eu já tinha vestido o pijama, o Alves falava-me com a cara em cima da minha, deu-me um encontrão no ombro, penso que ele queria fazer-me entrar na sua realidade para que eu compreendesse o seu corpo em turbilhão: “Olhe, alferes, a todo o momento seguro os meus dedos, procuro um espelho para ver se está tudo no sítio, obedeço ao médico, tomo os medicamentos todos, não percebo para quê, não paro de falar, não consigo dormir, o dia é todo igual, estou sempre desperto, não me sai da cabeça aquela explosão, já não sei se desmaiei ou se vivi um sonho, estou muito contente de não ter perdido nada, mas o que estou a viver agora lembra-me o que ouvia dizer as velhas lá da minha aldeia, parece que tenho o diabo no corpo, quero constantemente falar, quero companhia, tenho raiva a quem fecha os olhos depois de tomar os comprimidos. E quando esse cabo convencido que é um doutor, que não passa de um sacanão, entra aqui aos berros para dar a injecção no rabo só me apetece estrangulá-lo”.

Pela primeira vez na vida arrependi-me de ter vindo casar a Bissau sem ter previsto que me ia meter num internamento tão estranho, sabia o que era a insónia, a ansiedade, o abatimento, sentira os efeitos do Vesperax quando viera em Janeiro tratar-me em Bissau, tivera a alegria de um dia, em casa dos Payne, ter acordado com a sensação de que houvera uma grande vitória. Agora sentia-me afundado, incapaz de cooperar com dois seres mergulhados num pesadelo, com a mente obscura, e, como iria ver mais adiante, os dois em conflito e prontos para se atacarem. Não está longe o dia em que o Alves agrida o Oliveira com uma cadeira de plástico e o Oliveira ameace o Alves com uma faca romba.

Entrou o 1º cabo Morais e restabeleceu a ordem, tonitruante. Tomei a primeira injecção, mais comprimidos de Tryptizol 25, afundei-me na almofada, ainda vi chegar uma lavadeira que trazia roupa do capitão Oliveira, este sorriu-lhe e pediu com voz ciciante que tirasse a blusa pois queria massajar-lhe os seios. Adormeci com o Alves a imprecar, chamando-lhe obsceno e falso doente.

Vou acordar trôpego e vagante, demorei tempo a perceber onde estou mas bastou nova gritaria entre o Oliveira e o Alves para tudo ficar esclarecido. O pior veio depois, quando fomos para um pequeno refeitório onde comi o primeiro frango cozido, intragável, com couves e batatas, também intragáveis. Para minha surpresa, os meus colegas de quarto acalmaram-se e consegui ler. O primeiro cabo Morais entrou a meio da tarde para informar: “Amanhã vêm primeiro as senhoras do Movimento Nacional Feminino, uma hora depois as senhoras da Cruz Vermelha. Os três vão estar deitados, com o lençol para cima, as mãos fora da cama, bem esticadas. Livrem-se de atacar as senhoras!”.

O primeiro dia na neuropsiquitria do HM 241 prosseguiu com a hora da visita aos doentes, noutras enfermarias, noutros andares. Aprendi que os doentes se comparam, se perderam uma perna deploram aqueles que perderam duas, o mesmo se dirá de uma mão ou um olho. Durante uma hora os doentes que podem cirandar vêem chegar os helicópteros com os feridos, lançam interjeições, chegam a lacrimejar quando chegam feridos chamuscados, estropiados. O que estou a aprender é que se comparam perdas e danos, ver os outros a sofrer traz lenitivo para o próprio sofrimento. Outra coisa que aprendo é andarmos à procura de patrícios, gente da proximidade: “Olha, chegou gente que caiu numa emboscada em Binar, Pirada, Buruntuma... Está lá em cima um sargento de Catió que se queimou todo quando fazia fogo com o canhão sem recuo... Vamos ver aqueles dois soldados que vieram do bloco operatório, ficaram estilhaçados, da cabeça aos pés, numa emboscada de rockets, junto do rio, perto de Gadamael...”. Procuro abstrair-me, os comprimidos fazem o seu efeito, durmo profundamente. Vai ser assim durante oito dias completos.


(iii) De Baptista-Bastos a Raymond Chandler


No meio destas andanças, li o primeiro romance de Baptista-Bastos, “O Secreto Adeus”, da colecção Novos Romancistas, da Portugália Editora. Fui aterrar na redacção do conceituado jornal “Notícias da Manhã”, Álvaro Moreira fazia crítica cinematográfica, de onde é afastado por emitir opiniões que desagradam ao proprietário do cinema. É a redacção na sua plenitude, com as pequenas notícias, a necrologia, o desporto, o noticiário internacional, as querelas entre jornalistas conservadores e vanguardistas, a alteração dos costumes que se anuncia no dealbar dos anos 60.

"Eu lia o romance de estreia de Baptista-Bastos e questionava se o livro não tinha sido apreendido à saída da tipografia: uma redacção de jornal onde disputam nacionalistas, liberais, socialistas e comunistas; gente que lê obras impossíveis de encontrar nas livrarias,obras muito «avançadas«;descrição de relações de engate óbvio e fácil; uma redacção onde se entrecruzam todas as dificuldades do regime e da sua censura; obra incómoda e de desencanto,onde desponta,do imobilismo, uma burguesia que se vai revelar determinante na década seguinte, para os destinos de Portugal..Capa de João da Câmara Leme,Colecção Novos Romancistas, Portugália Editora,1963" (BS).


É provável que este romance seja autobiográfico, sabia que Baptista-Bastos era cinéfilo, já tinha lido os seus ensaios sobre cinema, ele é igualmente jornalista, trata-se necessariamente de uma obra arrojada, todos os seus colegas vão sentir-se aqui revistos nos personagens criados para esta redacção de “O Secreto Adeus”. Álvaro Moreira é um jovem que está a perder as ilusões nos ideais, na genuinidade na vida de relação, no que pode dar às mulheres, na mentira política, no jogo do rato e do gato com a censura. É esta a sua força, denunciar e escapar à repressão da censura, é este o secreto adeus ao desencanto de um tempo em que tudo parece imóvel e vamos crescendo.

"Nº135 da Colecção Vampiro,tradução de Ruth Belger, uma capa assombrosa de Lima de Freitas.Finalmente, leio de fio a pavio uma aventura de Philip Marlowe,é mentira que este detective da Califórnia seja brutal,ignaro,pistoleiro da série negra, pelo contrário investiga com elevado sentido prático,sabe ouvir,nunca desvaloriza a real complexidade dos casos,é directo na análise dedutiva.Aqui, trata-se de um desaparecimento que Marlowe descobrirá encobrir um crime que leva a outro.Chandler é um grande mestre,nunca mais irei largar a sua preciosa companhia" (BS).


É a primeira que leio uma obra integral de Raymond Chandler, um escritor do romance policial por acidente, um intelectual que recorreu ao detective Philip Marlowe para descobrir uma receita imaginativa de decifrar o mistério e o crime sem precisão de criar regras complexas para a resolução dos problemas. Escreve bem com regras simples, é uma narrativa na primeira pessoa cheia de economia, com elevado sentido da justiça, sem subserviências.

Desta feita, no romance A Dama do Lago, Marlowe é contratado por Derace Kingsley para desencantar a sua desaparecida esposa, a infiel e imprevisível Crystal, há um mês sem paradeiro. Marlowe contacta um antigo namorado de Crystal, é envolvido fortuitamente noutra história com um vizinho desse namorado, segue para o lago Puma onde vivera o casal Kingsley. Aqui conhece Bill Chess, também ele abandonado pela sua mulher, Muriel. O corpo de Muriel vai aparecer no lago, na autópsia descobre-se que fora assassinada. Contrariando as evidências, Marlowe segue a pista do antigo namorado de Crystal, este também vai aparecer assassinado.

No desfecho final, este detective pragmático e polido revela um criminoso enraivecido que se aproveitara de outro crime, com outros objectivos. “A Dama do Lago” tem muito pouco a ver com o romance policial problema de solução mirabolante, mas, manipula com mestria as grandes linhas de análise detectivesca. Percebo o sucesso de Marlowe e o prestígio de Chandler que escapa aos enredos rebuscados de Ellery Queen ou S.S. Van Dine.

E assim vou passar uma semana na neuropsiquitria do HM 241, aqui recebo as visitas da Cristina, assisto à crescente tensão entre o capitão Oliveira e o furriel Alves. O psiquiatra, sabe-se lá se astuciosamente, dar-me-á alta dizendo que estou recuperado, dos meus desgastes, o perigos tinha passado. O tragicómico de tudo isto é que me sinto mesmo retemperado, sou forçado a interrogar-me sobre as doenças da mente, como o estado de guerra as pode precipitar, como podemos superar a dor mental, enterrar o sofrimento, regressar àquilo a que chamamos normalidade. Um dia, sem nenhuma resposta quanto ao que fui fazer na neuropsiquiatria do HM 241, levo a minha mulher ao aeroporto e parto para a última etapa da guerra.
Última, dolorosa, inesquecível.

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Nota de L.G.


(1) Vd. poste de 27 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina