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quarta-feira, 14 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22101: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Capítulo extra: uma operação helitransportada

Foto nº 1 > Um helicóptero Puma, SA-330, de fabrico francês


Foto nº 2 > Um jato F-84 Thunderjet, de fabrico norte-americano, sendo abastecido de combustível na Base Aérea 9, em Luanda.  Esta aeronave, em concreto, pode ter atuado na operação ao Quiuanda.

 


Foto nº 3 > Um avião Dornier DO-27, de fabrico alemão 



Foto nº 4 > Um helicanhão idêntico ao utilizado no ataque ao Quiuanda 




1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [,ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);  membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780; tem  cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue: é engenheiro electrotécnico reformado; vive no Porto; é autor do livro, inédito, em formato digital "Dignidade e Ignomínia: Episódios do Meu Serviço Militar", de que se publicaram seis partes ou postes  no nosso blogue]

 

Data - 28/03/2021, 02:44
Assunto - Capítulo extra do meu livro

Caro Luis,

Quando há três meses vi pela primeira vez o filme que está ao cimo do blog da CCav 2692, do BCav  2909 (http://ccav2692susaeles.blogspot.com/), senti um arrepio na coluna, como se esta fosse percorrida por uma corrente elétrica. «Eu estou ali!», pensei, espantado. Não estava, mas vivi uma situação que foi em tudo igual à que está documentada naquele filme, tal e qual.

O filme não tem nada de especial, de modo nenhum, apenas mostra uns helicópteros em Zemba e alguns militares a embarcarem num deles, enquanto outros militares observam, cheios de curiosidade. Se algum interesse o filme possui, é o próprio facto de existir, dado que há pouquíssimos filmes sobre a guerra colonial. Mas este filme não mostra tropas em ação nem nada, não tem interesse absolutamente nenhum. Pessoalmente, sim, o filme interessa-me imenso, pois dois anos mais tarde eu fui protagonista de uma cena parecidíssima com a documentada no filme.

Eu tinha começado um esboço de capítulo para o meu livro virtual, sobre uma operação helitransportada que comandei em Zemba, mas não consegui conclui-lo, Não consegui concluir o capítulo, mas deixei ficar o seu rascunho no computador. Após visualizar o filme, decidi escrever o resto que faltava ao capítulo, completando-o e complementando-o. Acho que agora posso dar o capítulo por concluido, finalmente, e remeter-to. Faz dele o que quiseres.

Um abraço e votos de feliz Páscoa (se o coronavírus deixar)

Fernando de Sousa Ribeiro

 

AS LÁGRIMAS DE UM SOLDADO

por Fernando de Sousa Ribeiro

Quando me comunicaram que eu iria comandar uma operação militar helitransportada, não entrei em pânico, mas pouco faltou. «Como é que se comanda uma operação helitransportada?», pensei eu, sobressaltado. «Nunca me ensinaram!» 

Passei mentalmente em revista o Curso de Oficiais Milicianos que frequentei em Mafra e concluí que ninguém, em momento algum, me ensinou fosse o que fosse que estivesse relacionado com operações deste tipo. «Porque não entregam o comando da operação a alguém que tenha um mínimo de conhecimentos sobre o assunto?», interroguei-me ainda, mas logo me apercebi de que em todo o batalhão não havia um só capitão ou alferes nessa situação. Todos eles pareciam saber tanto como eu, ou seja, nada. Quis o acaso que fosse a mim, e não a outro, que calhasse a responsabilidade do comando daquela operação. 

Pouco a pouco, fui-me tranquilizando a mim mesmo, concluindo que tudo iria correr bem, pois a sorte que sempre me acompanhara na guerra, o instinto de sobrevivência e a intuição me iriam valer nessa operação, como já me tinham valido em operações anteriores. Quaisquer que fossem as dificuldades que me viessem a surgir, eu iria conseguir resolvê-las e tudo iria correr da melhor maneira possível. Sempre assim tinha sido e com certeza assim voltaria a ser mais uma vez. Quando embarquei no helicóptero que me iria largar nas proximidades do objetivo, já eu me sentia relativamente confiante e decidido a enfrentar as dificuldades que me viessem a aparecer. 

A operação foi muito mais fácil do que eu tinha imaginado. Foi, incomparavelmente, a menos cansativa de todas as operações militares que fiz, e também foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das menos arriscadas. Esta operação teve como objetivo uma base da FNLA chamada Quiuanda, situada muitos quilómetros a norte de Cambamba, e nela participaram dois grupos de combate da minha companhia: o 2.º grupo, que era o meu próprio, e o 4.º grupo, que era comandado pelo alferes miliciano Peixoto. 

A operação decorreu entre 20 de abril (Sexta-Feira Santa) e 22 de abril (Domingo de Páscoa) de 1973. A partida para a operação foi em tudo idêntica à que está documentada no vídeo existente no endereço de internet que a seguir se indica e que recomendo seja visto em ecrã inteiro, dada a pequenez da imagem publicada. Este vídeo foi feito precisamente em Zemba, mas no ano 1971, e mostra a partida para uma operação helitransportada feita por militares pertencentes ao batalhão que nessa ocasião se encontrava sediado lá, o Batalhão de Cavalaria 2909. 

As cenas que nós protagonizamos em 1973 foram iguaizinhas às filmadas em 1971, tal e qual: o mesmo quartel do mato, o mesmo alvoroço dos militares do batalhão perante a presença inusitada de helicópteros na pista, as mesmas serras envolventes, as mesmas florestas, as mesmas nuvens baixas no início da manhã, a mesma dissipação da névoa com o avançar do dia, o mesmo embarque de tropas, os mesmos volteios dos helicópteros no ar, enfim, tudo se passou de forma rigorosamente igual ao que se vê no filme. Só os protagonistas foram diferentes. De facto, foram muito diferentes; no filme só se veem europeus, enquanto o meu batalhão era multirracial. O filme está no endereço seguinte:


 [Vídeo, 2' 25'': vd. em ecrã grande]

Fomos levados "ao colo" por helicópteros Puma [, Foto nº 1,] até às proximidades do objetivo. Estes helicópteros eram grandes e muito fechados. Embarquei no primeiro que levantou de Zemba e à chegada fui um dos primeiros militares a saltar do aparelho que ficou a pairar a cerca de metro e meio de altura do chão, com a intenção de dirigir a colocação no terreno dos meus homens. 

À medida que eles iam saltando, eu encaminhava-os de maneira a formarem uma ampla circunferência em volta do local do desembarque, deitados no solo e com as armas apontadas para fora. Ainda hoje não sei se era assim que eu devia proceder; fiz o que me ocorreu naquele momento. Ao mesmo tempo que saltávamos dos helicópteros, diversas aeronaves da Força Aérea faziam fogo à nossa volta, provocando uma barulheira infernal. 

Fui tomado de uma enorme euforia, que só com muito custo consegui refrear, porque me senti invencível, rodeado que estava por um tão grande poder de fogo. Eu estava no meio de um inferno, mas o inferno era "bom", porque me protegia. Confesso que tive muita dificuldade em conseguir dominar-me e tomar consciência da real situação em que estava. 

As aeronaves que evolucionavam à nossa volta eram jatos F-84 [, Foto nº 2], um avião a hélice DO-27 [Foto nº 3] e um helicanhão, o qual consistia num helicóptero Alouette III possuindo um pequeno canhão MG-151 montado a bordo [Foto nº 4].

Os rebentamentos dos rockets lançados pelos aviões e as rajadas do helicanhão faziam um barulho ensurdecedor. Este barulho durou até ao momento em que o último dos meus homens saltou para o chão. Então, todas as aeronaves se calaram e partiram de regresso a Luanda, deixando-nos sozinhos no terreno. Ordenei logo ao meu pessoal que se levantasse e se preparasse para partir. Dirigimo-nos imediatamente para a base que deveríamos destruir. 

Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base de Quiuanda era pequena e não justificava um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea. Os poucos guerrilheiros que deviam guarnecer a base puseram-se em fuga antes de entrarmos nela. Encontramos a base vazia de gente. 

Os guerrilheiros deviam ter sido apanhados de surpresa pelo ataque, pois deixaram pequenas fogueiras acesas com latas cheias de água em cima, em jeito de cafeteiras, provavelmente para prepararem o pequeno-almoço, em Angola chamado mata-bicho. Os guerrilheiros e a população que os apoiava costumavam reaproveitar as latas vazias e as colheres de plástico das rações de combate que a tropa portuguesa abandonava na mata durante as operações. 

Foto nº 5 
No centro da base estava hasteada uma bandeira da FNLA, que um militar que não consegui identificar,  retirou. Julguei que ele mais tarde me iria entregar a bandeira, para juntar ao restante espólio da operação, mas tal não aconteceu. O militar ficou com ela. [Foto nº 5 > Bandeira da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA)] 

Depois de termos destruído a base, saímos dela por um trilho, a fim de explorarmos a região envolvente. Mais adiante, na beira do caminho, encontramos uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão. As balas disparadas pela arma montada a bordo desta aeronave costumavam ser de ponta explosiva. Uma bala deve ter atingido a mulher na cara, abrindo-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue. 

O soldado Domingos Cangúia, que era natural do Cuanza Norte e era íntegro e puro como poucos, chorou convulsivamente a morte gratuita daquela desgraçada mulher, a quem até a vida foi tirada. Dizia o generoso soldado, entre soluços: 

— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos? 

E chorava inconsolavelmente. Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas. 

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 019 > Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos

sábado, 21 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18546: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 41 e 42: "“Olha lá ó 118! Tens-te portado bem, se quiseres ir de férias à Metrópole eu assino a autorização”, disse-me o capitão no dia do Festival da Canção da RTP; em 26 de fevereiro de 1973


 Uma das duas AK 47 (Kalashnikov) apanhadas ao PAIGC,  na operação de 24 de fevereiro de 1973, na tabanca de Farnan


Eu com o miúdo que nos lavava a louça.




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 >  

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalahou e viveu em Amaranete, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; oi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, s pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo...

(xviii) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste);

(xix) como responsável pelos reebastecimentos, a sua preocupção é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xx) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacaunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xxi) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e umas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 41 e 42

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
 41º Capítulo > 16 HORAS NO MATO

Entre o amor, um copo, uma piada e a guerra, aquilo de que gosto menos de escrever é sobre a guerra. Neste projecto a que me propus, tenho de o fazer e basta-me copiar:

“Não é costume escrever-te de manhã mas hoje tenho uma série de coisas para te contar e decidi fazê-lo.

Quero que saibas que ontem os meus camaradas saíram para o mato, apanharam três “turras” e duas metralhadoras, agora eles estão aqui no quartel presos até vir uma avioneta busca-los para Bissau.


Eles foram capturados numa aldeia chamada Farnan que fica a mais de 35 km daqui. Os meus colegas saíram às duas horas da manhã e chegaram aqui às seis da tarde, por isso já podes ver que andaram durante 16 horas. Atravessaram rios, bolanhas, pântanos, matas etc. Quando chegaram aqui confesso que até chorei com pena deles.

Os meus camaradas eram 76, nós aqui no quartel só ficamos 65 para defender Fulacunda. Ao chegarem vinham completamente exaustos, até o capitão que também foi não podia dar mais um passo. Uns vinham descalços com os pés ensanguentados, outros com a farda rasgada inclusive o capitão. Acredita meu bem ser soldado numa guerra é a pior coisa que pode acontecer a um homem, ainda bem que houve uma coisa que lhes deu coragem que foi terem trazido esses três “turras” e as armas pois assim sabem que o esforço não foi em vão.

É assim meu bem eu tive imensa sorte, por aquilo que te digo e não é tudo já vês o que os meus camaradas passam, e vês também que esta guerra não é uma guerra de brincar como no cinema.
Não sei se ouves na rádio, ou se lês no jornal, os boletins das forças armadas da Guiné, se ouvisses ou lesses, saberias que aqui todos os dias há lutas entre as nossas tropas e o inimigo e ocorrem em toda a província e também sabias que por cada morto nosso morrem dez deles, de maneira que a Guiné não interessa a ninguém. Pelo menos para aqueles que como nós estão destacados no mato.”

As armas capturadas foram duas AK 47 (Kalashnikov)

No dia seguinte, foi domingo. Pedi para a metrópole que me mandassem umas garrafas de vinho e enviei o postal da Praça do Império, em Bissau.

Continuando os meus relatos estupidamente descritos nestas páginas, quero que libertem a vossa mente, porque dois dias após o que acabei de vos dizer, esteve alegremente e comigo quase toda a companhia, a ouvir o festival da canção.

No dia 26 de Fevereiro de 1973, quando eu completei oito meses de Guiné, ouvi, num pequeno rádio a 4000 km de distância, uma das melhores canções de sempre num festival da canção. Fernando Tordo ganhou com a canção “Tourada”; letra de José Carlos Ary dos Santos. Talvez o melhor poema sarcástico interpretado até hoje num festival para a Eurovisão.

Nesse dia, o capitão disse-me:

“Olha lá ó 118! Tens-te portado bem, se quiseres ir de férias à Metrópole eu assino a autorização”

Três dias depois já escrevia:

“Talvez me safe, ando doente do estômago se for de férias dou baixa ao hospital militar”



42º Capítulo > SOLIDARIEDADE

Uma das mais fascinantes memórias que guardo está descrita no aerograma do dia 7 de Março de 1973. O carnaval tinha sido no dia anterior, festejado a preceito. O Zé Leal recebeu uma encomenda com os artigos que tinha pedido aos pais. Não foi uma encomenda normal.



“Queridinha, ontem veio na avioneta uma encomenda que o Leal mandou vir que continha roupas para o rapazito que nos lava a loiça, não imaginas a esfusiante alegria que o moço sentiu. Conto-te isto porque fiquei deveras sentido com a reacção do moço quando ele viu a roupa, até chorou de alegria. Menciono isto para mais tarde poder recordar que um pouco de roupa deu uma alegria das Maiores que assisti até hoje”.


Em todas as gerações, há sempre quem se destaque em momentos de enorme altruísmo e partilha, sem olhar a quem, e sem disso fazer alarde. Devem ser muito poucos os soldados que tiveram a atitude do Zé Leal. Lembro-me que aquele gesto me influenciou a proceder de igual modo. Honestamente, não sei se o concretizei. Se na restante correspondência encontrar algo que o prove, di-lo-ei. Com o gesto do meu amigo, até a guerra parou e houve uma festa. Afinal, era dia de carnaval.

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Nota do editor:

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16790: Inquérito 'on line' (90): A "batota" que fazíamos (ou não....) quando em operações, no mato: a votação termina no domingo, dia 4, às 18h42... Só tínhamos, até hoje de manhã, 37 respostas, o que é pouco, o habitual é 100... Por lapso, não se incluiu a hipótese de resposta 19: "Não, não se fazia batota"...



Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Op Tridente (14 de janeiro a 24 de março de 1964) > LDG, desembarcando tropas

Foto: © Mário Dias (2005), Todo os direitos reservados




I. INQUÉRITO 'ON LINE': 



"A BATOTA QUE FAZÍAMOS NA GUERRA"... 
ASSINALAR UMA OU MAIS FORMAS



Resultados preliminares (n=37 respostas, até hoje de manhã)


As formas mais frequentes de 'batota'...


2. Emboscar-se perto do quartel > 15 (40%)

17. Começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista > 15 (40%)

1.“Acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo > 9 (32%)

10. Falsas justificações para perda de material > 9 (24%)

3. “Andar às voltas” para fazer tempo > 9 (24%)

16. Falsificar o relatório da ação > 8 (21%)

4. Evitar o contacto com o IN (não abrindo fogo) > 7 (18%)

14. Simular problemas de saúde > 7 (18%)

18. Outras formas > 7 (17%) 

11. Reportar “enganos” do guia nos trilhos > 6 (16%)


As formas menos frequentes de 'batota'...


6. Alegar dificuldades de ligação com o PCV > 5 (13%)

9. Sobrevalorizar o nº de baixas causadas ao IN > 5 (13%)

15. Regresso antecipado ao quartel p/ alegados problemas de saúde> 5 (13%)

7. Enganar o PCV sobre a posição das NT > 4 (10%)

8. Outros problemas de transmissões > 3 (8%)

5. Provocar o silêncio-rádio > 2 (5%)


As formas de 'batota' ainda não referidas...


12. Deixar fugir o guia-prisioneiro > 0 (0%)

13. Liquidar o guia-prisioneiro > 0 (0%)



II  Comentário do editor (*):


Repare.se que falamos de "batota" grupal ou coletiva, ou seja a nível de seção, pelotão ou companhia. Não falamos de "batota" individual, "fazer ronha", "desenfiar-se", etc,,, Falamos de batota operacional, não falamos da batota que os nossos generais e políticos faziam... Falamos da "pequena" batota... E muito menos ainda de "resistência" (política) à guerra... São coisas diferentes...

É evidente que ninguém tem que "enfiar a carapuça", tanto os superiores como os subordinados,,. É um assunto para se falar entre camaradas, incluindo os nossos copmandantes operacionais.

Nem é desonra nenhuma admitir-se. como mera hipótese teórica, "a batota que se fazia no mato"...

Os camaradas, que foram operacionais, sabem do que se trata... A generalidade admite  que sim, que havia várias formas possíveis de "gerir o esforço de guerra", podendo isso implicar  não cumprir, no todo ou em parte, as missões que nos eram confiadas... 

 Claro que o questionário não se aplica a nenhuma companhia  nem a ninguém, em particular. Não é isso que está em causa. Como diz o José Martins, fizeram-se dezenas, centenas de milhares de operações, em todo o período da guerra que vai de 1961 até 1974... 

Era bom ouvir (e saber ouvir)  testemunhos tanto dos velhinhos de 63/64 , como  também dos periquitos de 73/74 que fecharam a guerra

Passámos estes anos todos, "podemos abrir o livro", e falar "olhos nos olhos" uns com os outros, e escrever as nossas histórias, sobretudo as que ficaram por contar... Se calhar, ainda há muita história por contar... É isso que justifica a existência (e a longevidade) do nosso blogue (que é único no seu género).

Esste tema da "batota no mato" não é de fácil abordagem,,, Partimos do pressuposto que havia batota, que nós (ou os nossos "vizinhos do lado"... ) fazíamos algum tipo de batota...sem com isso comprometer deliberadamente a nossa segurança e a dos nossos camaradas.  

Até à data, e a dois dias de se encerrar a viotação (, no domingo, dia 4, às 18h42), este inquérito não teve grande adesão... Estamos longe das habituais 100 respostas... É preciso saber porquê... Há camaradas que disseram que este questionário não se aplicava à sua companhia... E, portanto, que a resposta só podia ser NÃO...

No questionário devia estar prevista essa hipótese: 19. Não, não se fazia batota no mato

As sondagens de opinião são frequentemente acusadas de utilizarem a técnica dos pressuspostos implícitos, de modo a manipular, voluntária ou involuntariamente, as respostas. Não foi essa a nossa intenção... Esquecemo-nos mesmo da hipótese 19. Não, não se fazia batota no mato...

Este procedimento do "pressuposto implícito" é utilizado conscientemente noutros contextos,. como por exemplo, o da entrevista piscoterapêutica, para fazer admitir, à pessoa que procura ajuda, aspectos delicados, do foro íntimo, que dificilmente ela  confessarioa. Por exemplo, o psiquiatra,  ao longo de uma anamnese,  não costuma pôr a questão ‘vocês masturbou-se?", antes pergunta directamente 'com que idade começou a masturbar-se?’. Há aqui um pressuposto implícito o de que a masturbação é um comportamento humano normal e universal, nomeadamenmte na adolescência e juventude.

Aqui também há um pressuposto implícito. Na guerra, há sempre algum tipo de batota ou forma de fazer batota.  Quantoaio resto, todos fonos heróis, ou como a gente diz aqui na Tabanca Grande, "mais do que homens, menos que deuses"...Bom fim de semana. E não se esqueçam, os retardatários, de responder ao inquérito "on line", diretamente no blogue, ao canto superior esquerdo,

________________


Nota do editor


(*) Último poste da série > 2 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16789: Inquérito 'on line' (89): Batota havia, ponto assente: Dancei conforme a música e, quando fui maestro, assumi... Dou três exemplos: a CCAÇ 12, no tempo do cap mil inf José Antóno de Campos Simão; o CIM de Bolama; e a CCAV 3404, em Cabuca (João Candeias, ex-fru mil, CCav 3404, CINM e CCAÇ 12, 1971/73)


Vd. postes anteriores:

1 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16783: Inquérito 'on line' (88): A malta fazia alguma batota a nível de pelotão, sobretudo no que dizia respeito aos locais de emboscada... [Mário Pinto, ex-fur mil at art, CART 2519 (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71); e José Manuel Cancela (ex-sold apont metralhadora, CCAÇ 2382, (Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70)]

30 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16780: Inquérito 'on line' (87): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: a votação termina no domingo, dia 4, às 18h42... E já temos 28 respostas: "emboscar-se perto do quartel" (50%) é a forma mais referida, seguida de "começar a 'cortar-se', com o fim da comissão à vista" (46%)...Comentários: José Martins, César Dias, Rogério Cardoso


29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16775: Inquérito 'on line' (86): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: depois do 25 de abril de 1974, continuávamos a fazer patrulhamentos ofensivos, encontrávamos gente do PAIGC que vinha "visitar família no Bissorã", "partíamos mantenhas" e depois lá seguíamos à procura... do "turra"!... Além de cansados, sentíamo-nos "ridicularizados"... (Henrique Cerqueira, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74)


28 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16769: Inquérito 'on line' (85): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: quais as formas mais usadas ? Responder até domingo, dia 4 de dezembro, às 18h42

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16769: Inquérito 'on line' (85): A "batota" que fazíamos quando em operações, no mato: quais as formas mais usadas ? Responder até domingo, dia 4 de dezembro, às 18h42


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > s/d > s/l > Patrulhamento ofensivo no subsetor de Bambadinca, talvez nas imediações de uma tabanca, do regulado de Badora.  Foto do álbum do fur mil op esp Pel Rec Info, Benjamim Durães.

Foto: © Benjamim Durães (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné]


I. INQUÉRITO 'ON LINE': 

"A BATOTA QUE FAZÍAMOS NA GUERRA"... ASSINALAR UMA OU MAIS FORMAS

O prazo termina a 4/12/2016, domingo, às 18h42. 

A pergunta admite mais do que uma resposta. 

Votar diretamente "on line" no canto superior esquerdo do nosso blogue. 

Aqui vai a lista de possíveis respostas (formas conhecidas, no TO da Guiné, de "fazer batota" por parte dos operacionais no mato):

1. “Acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo

2. Emboscar-se perto do quartel

3. “Andar às voltas” para fazer tempo
 
4. Evitar o contacto com o IN (não abrindo fogo)
 
5. Provocar o silêncio-rádio

6. Alegar dificuldades de ligação com o PCV [ponto de comando volante, geralmente em DO 27]

7. Enganar o PCV sobre a posição das NT

8. Outros problemas de transmissões

9. Sobrevalorizar o nº de baixas causadas ao IN

10. Falsas justificações para perda de material

11. Reportar “enganos” do guia nos trilhos

12. Deixar fugir o guia-prisioneiro
 
13. Liquidar o guia-prisioneiro

14. Simular problemas de saúde

15. Regresso antecipado ao quartel por alegados problemas de saúde
 
16. Falsificar o relatório da ação

17. Começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista

18. Outras formas



II. Este tema acaba por ser sugerido pelo nosso camarada António Duarte, num recente comentário que fez ao poste P16762 (*):




António [João Fernandes] Duarte, ex- fur mil at art,  CART 3493 / BART 3873, e  CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xime, 1971/74; economista, bancário reformado, formador  com larga experiência em Portugal e Angola na área das operações bancárias. Esteve na CCAÇ 12,  de novembro de 1972 a março de 1974, em  rendição individual.

Impressionante a dor que se percebe no texto da mensagem enviada. Aquela referência de que teria "acampado" antes do objetivo, se não estivesse presente outra unidade, menciona uma prática corrente, (pelo menos no meu tempo dez 71 a jan 74).

Curiosamente não me recordo do assunto tratado no nosso blogue.(**)

Já agora recordo uma emboscada que a CCaç 12 teve perto de Madina Colhido, em 1973, onde apanhámos, com surpresa, para as duas partes, um grupo do PAIGC, que supostamente iria atacar o Xime.  

Parámos praticamente, logo que o último homem da coluna deixou de avistar o quartel. Iam dois pelotões. A operação era para ser feita através de "rádio". Explicando melhor, à medida que o tempo ia passando,  informava-se o aquartelamento da nossa falsa posição, "percorrendo-se" todo o itinerário. 

Riscos deste procedimento, era os obuses fazerem fogo para locais onde estava a nossa tropa. 

Suponho que até ao nível de capitão todos percebíamos o tema, pelo que nada de grave aconteceu... que seja do meu conhecimento.

Abraços a todos e renovando a memória dos camaradas que tombaram nesse malfadado dia [26/11/1970].

António Duarte
CArt 3493 e CCaç 12
(Mansambo, Bambadinca e Xime, 1971/74)
_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16762: Efemérides (240): a Op Abencerragem Candente, 6 mortos, 9 feridos graves... Faz hoje 46 anos... Msn do antigo cmdt da CART 2715, Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014), em 2/3/2012, dois anos antes de morrer, dizendo: "Ando a viver o inferno do Xime"...

(...) [Você] sabe tudo [o] que fiz para evitar a tal op[eração]…
Sem a CCAÇ 12 talvez tivesse “acampado” [sic]
em Gundague Beafada.
Não existia estrada [Xime-Ponta do Inglês]….
Era tudo mata densa…
Qual dispositivo [?!].
Aceito que o estado maior do CACO [sic]
tenha feito relatório
[, incriminando-me,]
porque não denunciei [a] discussão c[om] Anjos [sic]
[, 2º cmdt do BART 2917]. (...)


terça-feira, 9 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14717: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXXI: um data para recordar, o dia 1 de abril de 1970, dia das mentiras... (Armando Costa Tavares, fur mil at inf, 3º pelotão)


Continuação da publicação das "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Gostamos de recordar (e agradecer o envio de) esta brochura, com cerca de 6 dezenas de curtas histórias, de uma a duas páginas, e profusamente ilustrada (cerca de meia centena de fotos). Chegou às mãos dos nossos editores, em suporte digital, através do Luís Nascimento, que vive em Viseu, e que também nos facultou um exemplar em papel. para consulta.

Hoje reproduz-se um texto da autoria do ex-fur mil at inf, Armando Costa Tavares, do 3º pelotão : uma data para recordar, o dia 1 de abril de 1970, dia das mentiras (pp.99/100).  Recorde-se, para melhor seentender a história,  que o comandnate da CCAÇ 2533, era o cap inf Sidónio Martins Ribeiro da Silva (hoje cor inf ref).



Guiné > Região do Oio > Canjambari > CCAÇ 2533 (1969/71) > Uma saída para o mato, em operações... O melhor era o regresso, "sãos e salvos", se possível já não a pé, mas à boleia, no transporte da "carreira Lar, doce lar",,, (Foto inserida no livro, s/a, s/d).







In Histórias da CCAÇ 2533. Edição de Joaquim Lessa, tipografia Lessa, Maia, s/d, pp. 99/100.

_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 18 DE MAIO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14631: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXX: (i) 'fogo amigo' em dia de sexta-feira treze; e (ii) perdido na selva...por uma hora! (Timóteo Rosa, alf mil, 4º Gr Comb)

sábado, 21 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (10) - Reportagens da Época (1967): Operação Cernelha

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Braga, 15/03/2015Prezado Luís Graça:
Envio mais alguns dados, de vivências da Guiné, após sobre os mesmos terem passado 47 anos.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

10 - Operação Cernelha

Binta, 17/03/1967

São 15 horas. O Sol queima. A estrada até Guidage vai desfazer-se em pó.
Sinto medo.
A operação é arriscada.
Mesmo assim vou.
Todos vamos.

Em mim o temor e a esperança quase se confundem. Mas vou. Melhor, vamos.

Pouco depois das quatro horas da tarde a coluna partiu rumo a Guidage. O destino final chama-se Sambuiá.
 
Às dezoito horas chegou-se ao destacamento de Guidage.

Às 24, iniciou-se a marcha para o objectivo, seguindo pela estrada que vai por Facã, rumo à base turra de Sambuiá.
 
É a operação “Cernelha” que está em marcha.

Isto, de facto, não passa de uma tourada. De uma tourada que se repete muitas vezes, mas onde não se percebe muito bem quem são os touros, e quem são os toureiros. É que, às vezes, fica-me a sensação de que desempenhamos aqui um duplo papel: conforme as circunstâncias, tanto toureamos, como até somos toureados.


Dia 18

Pelas três da madrugada, entre Facã e a estrada de Bigene, fizemos uma pequena paragem para descansar.

A essa hora a artilharia de Bigene começou de novo a bombardear a zona onde ao amanhecer deveríamos actuar.

Mete impressão, durante o silêncio da madrugada, só quebrado pela voz da fauna selvagem, o ruído causado pelo detonar das granadas, que deixa, por breves momentos, um silêncio soturno e breve instalar-se em todo este mundo naturalmente belo, e bom.

Até os habitantes da selva sofrem com a guerra, que não respeita os seus habitats naturais, e o sossego de que deveriam beneficiar.

Após o rebentamento de cada granada, que as peças de artilharia disparam, cai sobre a selva um silêncio soturno, enorme, como que de protesto contra esta agressão, de que a própria natureza é vítima.

Pelas três e meia prosseguimos a marcha. Pelas quatro, atravessámos a estrada de Bigene.
Pelas cinco horas passou-se a ocidente da antiga tabanca de Sambuiá. Às seis horas atacou-se o objectivo.

Posições relativas de Binta / Guidage / Sambuiá

O fogo foi intenso, e prolongado. Durante cerca de meia hora as nossas armas, e as deles, dispararam um pouco ao acaso, orientadas mais pelo ruído dos tiros do adversário, do que pela localização de um objectivo concreto. Foi uma tempestade de tiros de armas ligeiras, de granadas de morteiro, de bazookadas e roketadas.

E não se conseguiu entrar na base do inimigo. Os gajos têm, ao que parece, abrigos subterrâneos, o que lhes permite uma boa defesa. Para além disso, ninguém conhece muito bem a localização da base.
Por certo que o local onde nos barraram a passagem com fogo bem conduzido e certeiro, está ainda a uma considerável distância do local onde pretendíamos chegar.

Só uma coluna de blindados teria condições para avançar no terreno, e conseguir alguns resultados, sem ficar sujeita a sofrer muitas baixas humanas. Porém, aqui, os únicos blindados que temos são feitos de carne e osso. Um material tão precioso quanto vulnerável.

As nossas forças sofreram dois mortos, pertencentes à milícia de Binta, e vários feridos, um dos quais com bastante gravidade. Os feridos pertenciam aos “roncos” de Farim.

Durante a retirada, quando fazíamos com paus, e folhas de palmeira, macas para melhor transportar os feridos e os mortos, detectámos uma emboscada dos gajos. Conseguimos abrir fogo primeiro do que eles, e não tivemos qualquer azar.

Pouco depois das nove horas fomos sobrevoados por uma avioneta. Era o comandante que, como de costume nestas ocasiões, vinha dirigir lá de cima os acontecimentos. Pelas dez horas apareceram os bombardeiros, a escoltar os helicópteros que vinham evacuar os feridos e os mortos.

Chegaram depois de estarmos à volta de quatro horas à espera deles. Se por acaso tivéssemos necessitado de apoio aéreo para sair do local onde se iniciou o ataque, bem tramados estávamos. O apoio aéreo é eficaz e moralizador para as tropas terrestres. Porém, raras vezes aparece a tempo e horas, nos locais onde faz falta.

O regresso a Binta fez-se pela estrada que segue de Bigene para Farim. Atravessou-se, a pé, o rio Sambuiá, dado que a ponte que era de madeira foi queimada, já lá vai muito tempo.
Junto à ponte de Boborim estavam as viaturas à nossa espera.

Esta operação, em que participaram as companhias 1546, 1547, 1585 e os “Roncos” de Farim, apenas deu porrada para a nossa Companhia, e para os “Roncos” que seguiam integrados na nossa unidade.

Logo que cheguei a Binta, apesar de fatigado, ainda fui sobrevoar Sambuiá, de avioneta, em missão de reconhecimento.

Mais uma vez fui e regressei.

Enquanto isto acontecer, todos os sacrifícios, e todos os riscos, serão sempre pequenos.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (9): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

terça-feira, 10 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14341: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (1): Os Cabos também faziam Planos de Operações

1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento(*), ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71, com data de 10 de Fevereiro de 2015:

Caro amigo Luís Graça,
Vou contar a minha primeira história sobre a Guiné, no entanto ela passou-se aqui na Metrópole, mais propriamente em Portimão.


Recordações da CART 2520

1 - Os Cabos também faziam Planos de Operações

Já não me lembro exactamente da data, mas talvez já tivesse decorrido um ano após o meu regresso, portanto por volta de 1972, quando fui ao casamento de um amigo, que também tinha estado na Guiné.
A certa altura e enquanto decorria o chamado copo de água, ele chamou e apresentou-me um dos convidados dizendo:
- Este rapaz também esteve na Guiné.
- Eu estive no Xime e tu onde estiveste? Perguntei.
- Olha, eu estive em Bambadinca, era Cabo e estive no Gabinete de Operações e também planeei algumas operações para o Xime.
- Planeaste operações para o Xime? - Perguntei estupefacto.
- Sim, estava no Gabinete de Operações, muitas vezes chegava o oficial ao gabinete (não cito o nome por uma questão de ética) e dizia-me para fazer um plano para uma operação a realizar no Xime, Mansambo ou Xitole, por exemplo. Então eu pegava num bocado de papel vegetal, colocava sobre a carta militar da zona, traçava um percurso, definia o objectivo, indicava número de efectivos, etc., dava para ele assinar e depois enviava para a respectiva Companhia.

Ao ouvir isto foi como se o mundo desabasse sobre mim e o meu cérebro foi percorrido por um turbilhão de ideias, levei alguns segundos a reagir. Lembrei-me dos camaradas que morreram, dos ferimentos graves que o furriel Pestana sofreu numa emboscada e dos riscos e perigos por que passámos em operações mal planeadas, mal preparadas e muitas vezes desnecessárias.

Isto que estou aqui a descrever não é invenção minha, foi real e as palavras poderão não ser exactamente as mesmas que foram proferidas.

Com um abraço do amigo,
José Nascimento
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14260: Tabanca Grande (455): José Júlio Dores Nascimento, ex-Fur Mil Art da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo, Quinhamel, 1969/71)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13776: (Ex)citações (242): Água da bolanha... quem a não bebeu ?!... Abastecimento na poça da Tabanca de Padada, dia 15JUN69 (Fernando Gouveia)

1. Mensagem do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70) com data de 17 de Outubro de 2014:

Carlos
Sobre a qualidade da água à nossa disposição durante a guerra na Guiné(*), mando esta fotografia da poça de água onde nos abastecemos, na antiga tabanca de Padada, numa operação em que participei no dia 15JUN69 (dia em que a Académica eliminou o Sporting na Taça de Portugal, perdendo depois com o Benfica).

Esta foto já foi publicada numa das minhas estórias sobre Madina Xaquili, tornando agora a ter actualidade.
Recordo-me muito bem que depois do cantil cheio lhe juntei um comprimido para matar a bicharada, julgando que seria de cloro.
Também descrevi que na ida para Madina nos abastecemos de água em Umaro Cossê onde referi que essa água parecia leite ou cal de pintar paredes. Terei também de referir que chegados a Madina Xaquili viemos a ter à disposição uma água óptima, de nascente, a correr de alto.

Em Bafata, como muitas vezes teria dito, a água em toda a cidade e nos quartéis era da Companhia, neste caso da Administração, e também da melhor qualidade.

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Nota do editor

(*) Vd. poste de 20 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13766: (Ex)citações (240): Água da bolanha... quem a não bebeu ?!... Recordando aqui o pesadelo que foi a Op Jaguar Vermelho, no Morés, em 9 de junho de 1970... (Carlos Fortunato. ex-fur mil trms. CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, e presidente da direção da ONDG Ajuda Amiga)

Último poste da série de 20 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13772: (Ex)citações (241): Carta Aberta ao camarada Mário Vitorino Gaspar sobre o livro "Guiné, a cobardia ali não tinha lugar" (José da Câmara)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13739: Efemérides (176): A primeira Operação da CART 494 foi em 11 de Outubto de 1963 (Coutinho e Lima)

1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), com data de 9 de Outubro de 2014:

Caro Amigo
Junto envio, em anexo, um pequeno artigo sobre o assunto em epígrafe.

Um abraço amigo
Coutinho e Lima


Primeira Operação da CART 494 – 11OUT63 

A primeira Operação da CART 494, em Ganjola (Norte de Catió, que tinha sido ocupada em 17SET63), a que foi dado o nome de “ ALVORADA”, realizou-se no dia 11 OUT 63.

Na véspera foi presa uma mulher de etnia balanta, que vagueava nas imediações do aquartelamento, com evidentes sinais de desequilíbrio mental. Interrogada, declarou que o IN se encontrava instalado na tabanca Ganjola Dabenche (mais conhecida por Ganjola Velha), a mais próxima do quartel.

Imediatamente foi planeada uma operação, cuja missão era desalojar o IN e incendiar a tabanca.
Às primeiras horas da manhã de 11OUT, iniciámos a aproximação ao objectivo, verificando-se que o IN se furtou ao contacto e, juntamente com a população, internou-se no mato.
Foram incendiadas cerca de 100 moranças e recolhidos vários documentos.

 Ganjola. Vd. Carta de Catió 1/50.000

Ao regressar ao quartel, fomos surpreendidos com um numeroso número de vacas (em número de 52), que levámos à nossa frente, o que foi particularmente difícil, porque houve necessidade de fazer passar as vacas, uma a uma, por uma pequena ponte sobre um braço de rio, enquanto que a bolanha à volta, estava totalmente alagada, por virtude da chuva. O que nos deu mais trabalho foi um grande touro reprodutor, que, seguramente, pesava mais de 500 quilos.

O esforço dispendido por todo o pessoal foi muito grande, não só com a recolha das vacas, mas porque as bolanhas que tivemos que atravessar, além de ser novidade, estavam completamente alagadas, sendo frequente verificar elementos enterrados até à cintura, tendo que ser ajudados para sair dessa situação.

Um ensinamento tirado foi a utilização das botas de borracha por alguns militares na operação, o que se verificou totalmente inadequado nas bolanhas.

Chegados ao quartel, improvisamos uma cerca de arame farpado, para evitar que as vacas fugissem. Com o imprevisto e agradável reabastecimento, passámos a abater uma rês por semana, o que melhorou de maneira muito significativa a nossa dieta alimentar: bifes com batata frita, carne assada no forno construído por nós, jardineira e cozido à portuguesa, quando recebíamos frescos de Catió.

O magarefe da Companhia, Soldado Atirador Armando Macedo Marques (o Sintra, por ser natural desta localidade), passou a trabalhar mais, para o bem comum.
Esta Operação, se tivesse recebido o nome, após a sua realização poderia ser denominada “Recolha imprevista de vacas”.

Possuidores desta manada, não mais tivemos problemas com a alimentação, permitindo-nos até dispensar algumas reses a Catió. A nossa grande desilusão foi termos que deixar o magnífico touro, que estava reservado para o Natal, que já foi passado em Gadamael.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
Coronel de Artª. Ref.
Ex-Comandante da CART 494 (63/65)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13701: Efemérides (175): O Curso Caldas Xavier da Academia Militar iniciou-se há 50 anos (António Martins de Matos)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11621: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): II Parte: Desenrolar da ação: o planeado e o realizado. As primeiras dificuldades da ação: dias D, D+1, D+2, D+3



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do 1º cabo bate chapas Otacílio Luz Henriques, do Pelotãod e  Manutenção (, que era comandado pelo alf mil Ismael Augusto, membro da nossa Tabanca Grande)  >  Foto nº 185 > O dono das fotos...


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do 1º cabo bate chapas Otacílio Luz Henriques, do Pel Manut > Foto nº 197 > O espaldão do morteiro 81...



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do 1º cabo bate chapas Otacílio Luz Henriques, do Pel Manut  > Foto nº 266 > O morteiro 81... Estva então em Bambadinca o Pel Mort 2106, comandando pelo fur mil ap armas pes Lopes, com secções ou esquadras espalhadas por Xime, Mansambo e Xitole, Saltinho (abril de 1969). [O que será feito de ti, camarada e amigo Lopes, três meses mais velho do que a malta da CCAÇ 12 ?].



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do 1º cabo bate chapas Otacílio Luz Henriques, do Pel Manut > Foto nº 196 > Uma Daimler destruída... (possivelmente por mina; deveria pertencer ao Pel Rec Daimler 2046, que era comandando pelo Jaime Machado, nosso tabanqueiro).



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do 1º cabo bate chapas Otacílio Luz Henriques, do Pel Manut > Foto nº 260 > A autometralhadora Daimler, vista de outro ângulo...

Fotos: © Otacílio Luz Henriques (2013). Todos os direitos reservados. (Editadas e legendadas por L.G.)


A. A Op Lança Afiada foi talvez uma das maiores e mais dramáticas operações terrestres que se realizou na Guiné, ou pelo menos na Zona Leste, quer pelo número de efectivos envolvidos (cerca de 1300 homens, sendo cerca de 800 militares mais 380 carregadores, enquadrados por 100 milícias), quer pelo número elevado de heli-evacuações (cerca de 120), devido não tanto a baixas provocadas pelo IN como sobretudo a casos de fadiga extrema, insolação, doença e ataque de abelhas.

Esta operação, em que as NT varreram toda a região da margem direita do Rio Corubal, entre este rio e a linha Xime-Xitole, durante 11 dias (de 8 a 19 de Março de 1969), teve um impacto mais psicológico do que militar, apesar da destruição de importantes meios de vida e infraestruturas, necessários à guerrilha e às populações sob o seu controlo (animais domésticos, arroz, casas, escolas, instalações sanitárias...).

Esta operação pôs à prova (e revelou) os limites de resistência, física e psicológica, dos militares portugueses, num terreno e num clima duríssimos. Basta citar uma das conclusões do relatório, que temos vindo a publicar:

"A Op Lança Afiada decorreu durante 11 dias. As temperaturas verificadas neste período foram as seguintes: Máxima à sombra – Entre 39 e 43,6 graus centígrados; Máxima ao sol – Entre 70 e 74,5 graus centígrados. Estes números são elucidativos. Por um lado justificam que um homem necessite muita água (entre 8 a 10 litros por dia). Por outro lado aconselham as NT a deslocarem-se e a actuarem ou de noite ou ao amanhecer. Entre as 11 e as 16h, o melhor é parar, se possível à sombra".

O próprio autor do relatório não se coíbe de comentar:

"(...) processava-se a selecção natural: os mais fracos não resistiam à fadiga, ao calor e à deficientíssima alimentação proporcionada pelas rações de combate tipo normal. Por outro lado a falta de água era um tormento que só quem já sofreu pode avaliar".

Damos continuação à publicação do respetivo relatório. (*)

Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) - II parte

(...) Áreas principais de concentração IN:

1 – Poindon;
2 - Baio-Buruntoni;
3 - Gã Garnes (Ponta do Inglês);
4 - Ponta Luís Dias (Calága) – Gã João;
5 - Mangai -Tubacuta;
6 - Madina Tenhegi;
7 - Fiofioli;
8 - Cancodeas;
9 – Mina – Gã Júlio;
10 – Galo Corubal – Satecuta;
11- Galoiel.


Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).


4. Desenrolar da Acção [, segundo o planeamento]










5. Desenrolar da acção [, o occorrido]:

A acção desenrolou-se durante cerca de 11 dias, mais ou menos como fora planeada. Para o final houve algumas alterações determinadas superiormente.

Dia D (8 de Março de 1968)

Neste dia e no seguinte actuaram apenas os Dest do Agrupamento Tático Norte. Fizeram-no de acordo com as Directivas do Anexo H da OOP.

Os Destacamentos [abrevidadamente, Dest] A e B atacaram a área 1 (Poindon) e os seus acampamentos. Um dos destacamentos ficou emboscado enquanto o outro procurava acampamentos. Havia vestígios de a área ter sido bombardeada pela aviação várias semanas antes.

Cerca das 7h30 o Dest B foi emboscado por grupo IN, de 15 a 20 elementos. Da reacção resultaram baixas para o IN [inimigo]que perdeu também diverso material. As NT [nossas tropas] capturaram ainda três nativos que depois foram indicar vários acampamentos onde foi apreendido mais material e muito arroz. A área foi depois batida pelos dois Dest das 8h00 às 12h00, tendo o IN realizado duas flagelações às 10h00 e às 10h30.

Os Dest C e D, partindo também do Xime, passaram o Rio Buruntoni mas, em vez de baterem a área 2 (Baio-Buruntoni), desorientaram-se por ela e indo bater a área 3 (Gã Garnes). Com o PCV [posto de comando móvel] foram orientados para a área 2 quando se encontravam no extremo Oeste da área 3 e quando o Dest C já desembarcara em Ponta do Inglês (às 1h20).

Ao fim da tarde pernoitaram próximos uns dos outros, no extremo Oeste da área 2. Os Dest C e D tiveram diversos contactos ligeiros, em especial na área de Buruntoni e um na orla Oeste da área 3, tendo destruído acampamentos IN e completada a destruição de alguns anteriormente atingidos pela FA [Força Aérea].

Dia D + 1 (9 de Março de 1969)


Os Dest A e B deslocaram-se de manhã da área 1 para a 2 sendo protegidos durante a travessia da larga bolanha do Rio Buruntoni pelos Dest C, D e E instalados na orla da mata oposta (área 2).

A primeira alteração consistiu em reforçar os Dest A e B com o Dest E. Assim, a área 2 passou a ser batida simultaneamente por 3 Dest em vez de 2. A área 3 (que os Dest C e D haviam achado com pouco interesse) voltou a ser batida por aqueles Dest.

As batidas foram iniciadas ainda esta tarde. Às 16h00 os Dest E e B foram à procura do acampamento de Baio (que se julgava próximo), detectando e destruindo um, com 13 casas, recentemente abandonado. Regressaram depois ao local de reabastecimento (junto à bolanha do Rio Buruntoni), onde ficara o Dest A. Às 17h30, o Dest B saiu novamente e detectou mais dois acampamentos, um deles com escola.

O IN continuou a aparecer disseminado em pequenos grupos, um dos quais às 07h00 flagelou os Dest C, D e E com LGRFog e Mort 82, de longe e sem consequências.


Dia D + 2 (10 de Março de 1969)


Os Dest A, B e E bateram minuciosamente a área 2 enquanto os C e D batiam a área 3. Ao fim da tarde o Dest E largou os A e B, guiado pelo PCV, voltou a juntar-se aos C e D conforme fora previsto inicialmente.

A batida da área 2 pareceu bastante eficiente tendo todos os Dest destruído diversos acampamentos e uma grande escola, denominada "escola do Baio". Os B e E capturaram também material de guerra IN.

Começou nesse dia a actuação dos Dest F e G (saídos de Mansambo) e H e I (saídos do Xitole), todos pertencentes ao Agrupamento Táctico Sul.  Esta actuação foi feita de acordo com a Directiva do Anexo H da OOP.

Os Dest F e G bateram a área 11 (Galoiel-Bissari), descendo pela margem direita do Rio Samba Uriel sem nada detectarem. Dirigiram-se para junto da foz do Rio Bissari tendo o Dest F ficado emboscado enquanto o G passava à área 10 (Galo Corubal – Satecuta) em reforço dos Dest H e I que batiam a zona de Galo-Corubal.

A missão do Dest F era, por um lado, impedir qualquer reforço do IN vindo de Mina e Gã Júlio e, por outro, impedir a fuga do IN ou de população da área 10 para a área 9 (Mina-Gã Júlio).

Neste dia o IN fez uma pequena flagelação ao Dest F, cerca das 20H00, em (XIME 5D1) (margem do Rio Samba Uriel).

Dia D+3 (11 de Março de 1969)

Partidos da área 2, os Dest A e B chegaram a Madina Tenhegi (área 6) às 13h00, sem novidade e sem nada terem encontrado.

Os Dest C, D e E, partidos da área 3, chegaram à área 4 (Ponta Luís Dias), à mesma hora. O Dest D teve dois contactos ligeiros com pequenos grupos IN, fazendo 1 prisioneiro. Juntamente com o C, destruíram um acampamento IN em (Xime 3B6) com cerca de 100 casas, além de muito arroz.

Outros dois acampamentos forma destruídos em (Fulacunda 8I5) e (Fulacunda 8I6), um deles dotado de abrigos acimentados recém-iniciados. O Dest D capturou material de guerra IN.

Às 9h00, o Dest F foi emboscado junto à foz do Rio Bissari, sofrendo seis feridos mas fazendo baixas confirmadas ao IN. Durante a evacuação dos feridos, pelas 11H25, o IN fez uma morteirada sem consequências.

Os Dest G, H e I continuaram a batida à área 10. O Dest H que seguia junto ao tarrafo do Corubal capturou uns 1500 sacos com material de guerra que o IN se preparava para passar para a outra margem durante a noite (ou lá deixara na noite anterior). Este Dest e o I foram flagelados às 16h30 próximo de Dando sofrendo um ferido grave (milícia).

Tornou-se evidente neste dia que, tal como se previra, o IN estava aproveitando as noites para passar o [Rio] Corubal com armas, bagagens e população válida.

A inexistência de tropas nossas montando emboscadas na outra margem facilitava esta manobra do IN, manobra que foi objecto de um comentário especial no RELIM deste dia.

Também neste dia o número de evacuações das NT atingia o auge pois só o Agrupamento Sul evacuou 24 homens, na maior parte insolados e doentes. Por um lado, processava-se a selecção natural: os mais fracos não resistiam à fadiga, ao calor e à deficientíssima alimentação proporcionada pelas rações de combate tipo normal. Por outro lado, a falta de água era um tormento que só quem já sofreu pode avaliar.

Verificava-se também um deficiente apoio aéreo pois os reabastecimentos não se faziam e obrigavam as FT [Forças Terrestres] a aguardar horas seguidas. Além disso os meios aéreos existentes não davam vazão aos recomplementos, tornados frequentes dado o grande número de evacuados. Notava-se também falta de "rodagem" e coordenação, como depois se verificou. Estas demoras fizeram com que se previsse que a Operação tivesse que demorar mais um dia do que o planeado.

(Continua)

Fonte: Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 55-61. Classificação: Reservado [Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste valioso documento em papel e em formato.pdf].

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11575: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): I Parte: Cerca de 1300 efetivos: 36 oficiais, 71 sargentos, 699 praças, 106 milícias e 379 carregadores