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quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23703: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): A Sebastiana Valadas (1º episódio da série da SIC, "Despojos de Guerra") e os "cantineiros do mato" em Angola


Angola > Grupos étnicos > Distribuição geográfica (1970). Actualizados os nomes das cidades.Todos estes povos são bantos, com exceção dos Khoisan (Boximanes e Hotentotes)

Fonte: Angola_Ethnic_map_1970-de.svg / Wikimedia Commons (adaptado, com a devida vénia).


1. Mensagem de António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62, topógrafo na vida civil, retornado, tendo mais tarde vivido e trabalhado na Guiné-Bissau, na TECNIL, no período de 1987/93; tem mais de 130 referências no blogue, é autor da série "Caderno de Notas de Um Mais Velho":

Data - 12 out 2022 15:19 
Assunto - Sebastiana Valadas (SIC) e um pouco da guerra no Leste de Angola.

Sebastiana Valadas contou um episódio da sua vida em Angola, na SIC (*), empolado, ou não, mas esta mulher sabe mais mas muitíssimo mais sobre o assunto e sobre aquilo que passou, mas quem quis como estas pessoas retornadas, que ficaram" para ver o fundo ao tacho", com certeza que terão dificuldades para abordar muitos pormenores que inevitavelmente viveram.

Conclusão, Sebastiana não disse "nem da missa metade"..

Pelo que se depreende daquele pedaço de entrevista fica a ideia que a vida dela teria sido sempre comerciante naquele fim de mundo.

Ora se assim foi, aquela mulher fala no mínimo uma língua indígena, e ali talvez falasse duas, pois aquela estação está situada numa região onde predominavam ganguelas  (**) e quiocos ou chócues. 

Atenção, para quem não é nem foi comerciante, "quem não é competente, não se estabelece", quero eu dizer que, aqui especialmente, se alguém quisesse ter sucesso, tinha que ter muitas competências, uma delas era ser poliglota.

Eu nunca consegui aprender nem crioulo, mas também problema do meu ouvido, ao contrário de colegas que tive que chegavam a falar 2 e 3 dialetos, a quem chegávamos a fazer exames, tínhamos muitos juris, os contratados, se era verdade ou falso.

Esses poliglotas não precisavam de intérpretes para nada, era uma vantagem enorme para poder entrar facilmente em ambientes tribais.

Como é que se fazia um "comerciante do mato"? Ou já herdava o negócio que pode ter sido aqui o caso, muita família em volta, ou praticando de jovem como empregado de uma casa deste género.

E, chegando a adulto, se sentisse as tais competências necessárias, era fácil estabelecer-se, mesmo sem capital, entrava em contacto com um grande armazenista/fornecedor... um historial que só conheço de ouvir, enfim, vi fazerem-se grandes endinheirados, e outros dar com os burrinhos na água.

Quando num jornal em anúncio se pedia empregado de balcão, para Luanda, se fosse para trabalhar no muceque, até sotaque de Luanda tinha que demonstrar para se considerar apto.

Voltando a Cassai-Gare, Cassai é um lindo rio, de águas límpidas e com diamantes, e que será o rio que dá o nome àquele lugar.

Andei na tropa em 1962, naquela zona numa companhia indígena, ainda aparece o nome no Google Earth a aldeola onde ficava a Companhia, era Nova Chaves, bem perto de Cassai-Gare, mas há ainda a sanzala Cassai onde tivemos um pelotão, de vez em quando vou ao Google, está ainda tudo no mesmo lugar.

Vim de Luanda para este fim de mundo, voluntário, para escapar a um capitão que me garantiu que ainda me havia de arranjar 9 dias de prisão, já me tinha dado 3 dias de detenção.

Já outra vez me tinha oferecido em 1961 para o Norte, como voluntário para fugir a outro capitão, que levou uma rabecada do Comandante do RIL, de Luanda, por minha culpa porque como sargento de dia não obriguei os faxinas a fazer a higiene da companhia, exemplarmente, numa revista semanal de sábado.

Talvez passasse o meu tempo de guerra todo em Luanda na santa paz das praias de Luanda, pois não me convocavam porque não havia arma para mim, armas pesadas de infantaria.

Mas voltando a estes comerciantes, em geral começavam como jovens, solteiros, e origem de quase todos eles, com raríssimas excepções vinham por esta ordem, Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e um ou outro beirão, poucos, e mais antigos também havia açorianos e madeirenses.

Para mim, aquilo em Angola, se não fossem estes comerciantes, e se em 1961 Salazar tivesse "dialogado" com Agostinho ou Holden Roberto, milhões de angolanos tinham ficado sem brancos, sem saberem o que foi haver branco em Angola, nem Angola dizia qualquer coisa àquela gente.

No caso daquele fim de mundo onde já havia uma linha de caminho de ferro com estação e tudo, vem tudo na Internet, sabemos que foi iniciativa do tal inglês que Norton de Matos queria copiar, Cecil Rodes, e que era para transportar os minérios ingleses e belgas, para o porto do Lobito.

E tinha estação naquele fim de mundo para quê? Aqui entram também os tais comerciantes como Sebastiana.

Sabemos que o negócio era de permuta, e ali era uma região de muita mandioca, muitíssima cera, peles de caça, muitas onças em armadilhas, e toda essa mercadoria ia para os fornecedores (em conta corrente), que ou eram de Nova Lisboa ou Lobito.

Pormenores que muita gente mesmo em Angola nem sabia para que era esta linha, mas no tempo da safra da mandioca, o caminho de ferro deixava em cada estação entre Silva Porto e Teixeira de Souza, um vagão de mercadorias, onde os comerciantes depositavam a mandioca da permuta, e no dia combinado vinha uma locomotiva e rebocava todos os vagons para o porto do Lobito, era uma composição enorme digna de se ver, como eu cheguei a ver, ao longe, com a mandioca branca devido a um tratamento próprio que se chamava crueira,

Mas havia,  além dos comerciantes, outras figuras que entravam nesta guerra do Leste (ZIL). Eram os madeireiros que se dizia que estariam feitos com o duvidoso Savimbi.

E naquelas regiões havia ainda outras figuras muito variadas, uns a fazer negócios de diamantes, outros a enfiar barretes com diamantes, aquilo era uma guerra muito interessante.

Mas uma coisa era que naqueles distritos os Governadores de distrito (militares) tinham um trabalho muito especial directamente com as populações e todas as autoridades, PIDE, Chefes de Posto, judiciária, milícias, e ligados sempre com a tropa.

Conheci em 1970, na Lunda o trabalho de Major Soares Carneiro, mais tarde candidato a Presidente da República..

E, no Cuando Cubango até 1974, conheci o Major Branco Ló, ali os movimentos "andavam na linha", mas não vamos trazer aquela guerra para aqui, pormenorizando, que traria muitas discussões. Mesmo lá em Angola, Cabinda era uma coisa, e o Norte era outra coisa e o Leste outra. Só não trabalhei nem lutei em Cabinda.

Eu defendo sempre os comerciantes do mato, porque sei que muitos militares que passaram os 24 meses em Angola, saíam com a convicção que eram uns "gatunos dos negros", que tratavam mal os negros, enganavam os negros, na balança, no livro, etc.

Tal como se dizia do merceeiro da aldeia e o rol do merceeiro.

Penso que é tudo o que me ocorre sobre sobre os comerciantes, colonialistas e imperialistas.

Um abraço, Antº Rosinha (***)

PS - O soldado nunca teve tempo de compreender que a guerra durava e o comerciante continuava no seu posto, no meio daquela gente, sempre com a mesma tranquilidade


"Despojos de guerra": é uma série de 4 episódios sobre a guerra colonail, que está a passar na SIC Notícias, durante o mês de outubro. No passado dia 6, 5ª feira, foi a estreia da série, com a exibição do 1.º episódio ("A informadora", 51' ). Próximos episódios: dias 13, 20 e 27.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

Vd. também postes de:

9 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

10 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23689: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte II - Luís Graça: Percebe-se agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave", a seguir ao 25 de Abril de 1974

(**) Vd, poste de 21 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12319: Manuscrito(s) (Luís Graça) (13): Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana... E onde se fala da atualidade dos Baratas, dos Cavetos e dos Heróis

(***) Último poste da série > 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17862: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (52): Das pequenas recordações dos vários quartéis a mais artística que ficou lá a "apodrecer", foi o memorial na ponte de Caium

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23689: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte II - Luís Graça: Percebe-se agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave", a seguir ao 25 de Abril de 1974


Carta de Angola (1968). Escala 1 / 2 milhões. Posição relativa de Luso, Luanda e Benguela. 

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo I; Angola; Livro 2; 1.ª Edição; Lisboa, 2006, pág. 8 (Com a devida vénia...)


1. Comentário de Luís Graça ao poste P23677 (*):

Vi na quinta feira (e revi depois, com mais atenção) este 1º episódio ("A informadora"). 

Não tinha expectativas muito altas, porquanto o jornalismo de investigação  em televisão é caro, muito caro. E depois gostava que a série documental, em 4 epísódios, fosse mais explícito sobre o sentido do título genérico "Despojos de guerra"...

Cortesia de Mosurlow / 

Mas, pensando bem, parece haver um fio condutor entre os vários episódios: 

(i) o trabalho (sujo e perigoso, em todas as guerras) do "colaboracionismo" (1º episódio);

(iii)  a "ingratidão" e a "injustiça" do colonizador que abandona os seus "harkis" (o termo, de origem árabe, tem um sentido depreciativo, na Argélia, e refere-se aos "auxiliares" norte-africanos que lutaram do lado dos franceses, durante a guerra da independência da Argélia, em 1954-62 (2º episódio); 

(iii) menos óbvia, é a inclusão do episódio do Miguel Pessoa e da sua futura companheira Giselda, nossos queridos amigos e camaradas, na sequência do abate, por um Strela, do primeiro Fiat G-91, em 25 de março de 1973, sob os céus de Guileje (3º episódio, "Corredor da Morte";

(iv)  e, no quarto episódio, esse mais óbvio, os "filhos do vento", os "restos de tuga": como em todas as guerras, esses, sim, são "despojos de guerra", já o Miguel e a Giselda não sei se não se vão ofender...

Quanto às fontes documentais, não me pareceu haver nada de novo (nomeadamemte filmes de arquivo inéditos, a não ser talvez imagens de tropas do MPLA e de um interrogatório, no mato, a prisioneiros portugueses) e com o reparo de não se identificar a sua origem, com exceção das imagens do Arquivo RTP...

Voltaram a usar-se, sem citar a fonte, imagens já estafadíssimas do documentário "Guerre en Guinée" [, "Guerra na Guiné", ORTF, Paris, 1969] , há muito disponível no portal do INA - Institut national de l'audiovisuel (13' 58'') e... no nosso blogue

O vídeo da ORTF, feito no decuros da Op Ostra Amarga,  tem sido utilizado "ad nauseram" pelas nossas televisões quando se fala da guerra colonial, à falta de "material nacional" (que era isso que competia fazer  à RTP de então e aos fotocines do exército).

A única novidade é o uso da técnica de "colorização" de filmes e imagens antigas, a preto e branco. É uma técnica há muito disponível no mercado mas pouco frequente em documentários da nossa televisão... Imagino que não seja uma técnica barata... Gostei de ver imagens de Luanda de 1961, cidade que só conheci a partir de 2003...

Quanto à Sebastiana Valadas..., bom, temos de reconhecer que é um achado. Como e onde é que a terão desencantado? Através, seguramente, dos arquivos da PIDE/DGS... Parece que vive no Alentejo, pelo que li no Expresso, de 18/2/2022. Teria ido  com os pais, com oito anos, para Angola, fugindo presumivelmente da miséria onde nasceu... E, como não terá conhecido outro paraíso, sentia-se angolana (mais do que portuguesa) de alma e coração...

A entrevista, semi-diretiva, feita pela Sofia Pinto Coelho, acho que é de "antologia"... A jornalista consegue obter informações que são dignas de nota: 

(i) Angola em 1961 não tinha "nada a ver com Portugal" (sic); 

(ii) Luanda "rivalizava" com Lisboa, no desenvolvimento, no  progresso, no chique, no "glamour"; 

(iii) "Gostava de viver a guerra" (sic), apesar de ter vivido com o credo na boca e ter estado entre fogos cruzados dos militares dos vários movimentos nacionalistas em confronto em Luanda; 

(iv) Admirava a Kalash, russa, que os guerrilherios do MPLA empunhavam  quando vinham à sua loja para se abastecerem de tabaco, sal, peixe seco, vinho  e outros produtos ("umas vezes pagavam, outras não"); 

(v) "eu e o meu marido demos cabo da 4ª Região Militar do MPLA" (uma fanfarronada...): 

(vi) e, afinal, fomos utilizados como "carne para canhão", lá no cu de Judas,  e aqui estou eu, expulsa de Angola, a morrer na miséria, sem direito sequer a uma pensão pelos meus serviços (e do meu marido) ao País... enquanto a PIDE/DGS estava, em 1972,  no "bem-bom" do Luso.

O casal (a Sebastiana e o marido, Avelino Durães, nome de guerra "Ferro",  apresentados como "agentes duplos") caiu na asneira de ficar em Angola, depois da independência, apesar dos avisos da própria polícia política de que ambos poderiam  correr sérios riscos de morte pelos resultados da Op Fina Flor, em 1972, em que foi preso entre outros o comandante João Arnaldo Saraiva de Carvalho, futuro general embaixador e chefe da polícia nacional de Angola... (Com ele terão sido captutados 6 elementos do MPLA e 3 terão sido mortos, não sabendo nós se esta Op Fina Flor foi exclusivamente pela PIDE/DGS ou pelo Exército.)

A expressão "agente dupla" é talvez abusiva: estes "cantineiros do mato", lá no "cu de Judas" (título de um conhecido romance do António Lobo Antunes), limitaram-se a "jogar com o pau de dois bicos", como aconteceu na Guiné com os comerciantes, poucos, que restaram no interior depois do início da guerra, em 1963.

A entrevista com o João Arnaldo Saraiva de Carvalho (nome de guerra, "Tetembwa", mestiço, que eu presumo ser  filho de pai português e de mãe angolana, que vem do interior para estudar em Luanda, tendo feito o 7º ano no Liceu Salvador Correia, onde teve como colega de turma o futuro presidente da república José Eduardo dos Santos, e que depois vai para Coimbra frequentar o curso de direito... e que entretanto é mobilizado para Guiné e decide desertar, fugindo com a esposa, também colega de curso, e seguindo o caminho que trilharam muitos outros africanos que estudavam nas universidades portuguesas (Lisboa, Coimbra e Porto): neste caso, a França, a Zâmbia, a URSS...)... Essa entrevista, dizíamos, não é feita pela equipa da SIC, portanto não é material de "primeira mão", remonta a 2015, é de fonte angolana, está disponível na Net:

https://www.tchiweka.org/pessoas/joao-saraiva-de-carvalho

Ficámos a saber que a Associação TCHIWEKA de Documentação (ATD) "é uma pessoa colectiva de carácter voluntário e sem fins lucrativos, com a missão fundamental de promover e divulgar actividades culturais, científicas e educativas que contribuam para preservar a memória e aprofundar o conhecimento da luta do Povo Angolano pela sua independência e soberania nacional"...

No sítio da ATD publica-se também a "Ordem de serviço do MPLA nº 28/71 (Lusaka), de Daniel Chipenda",  com a nomeação do Comando da 4ª Região: Mwandondji (comissário político com funções de comandante), Augusto Alfredo «Orlog» (operações), João Saraiva de Carvalho «Tetembwa» (adjunto do comando). 

Nunca tínhamos ouvido falar desta IV Região Militar do MPLA. Recorde-se que o Daniel Chipenda (1931-1996), antigo jogador de futebol  da Académica de Coimbra e do Benfica, saído clandestinamente de Portugal em 31 de agosto de 1962, foi o responsável pela abertura da Frente Ldo este do MPLA.  A primeira acção a primeira acção no Leste terá ocorrido em 16 de maio de 1966, na região de Lumbala,  e nela terão morrido sete soldados portugueses. Mas depois perdeu influência, em 1972, devida à contra-ofensiva das NT. (Vd. CECA, 2006, op cit, p. 152).

... Em 1972, o "Tetembwa" é preso por denúncia dos agentes duplos, a Sebastiana e o marido... Como recompensa, a PIDE, face ao grande "ronco" (como dizíamos na Guiné), aumenta a avença mensal do "Ferro"  para o dobro, oito contos  (antes recebia quatro contos pelos seus serviços, dele e da esposa), além de uma recompensa choruda de 30 contos (o equivalente, a preços de hoje, a 7.253,42 €)... (Tudo isto documentado em papel timbrado da PIDE.)

Depois da independência, o casal que decidira, levianamente (?),  continuar em Angola, é preso, certamente por denúncia ou buscas da polícia, o "Ferro" é torturado pelo próprio "Tetembwa" mas nunca terá confessado quem denunciou a presença deste comandante e do seu grupo na loja, em Cassai-Gare (estação do caminho de ferro da linha de Benguela, província de Moxico, cuja capital era o Luso, hoje Luena), no leste, na região dos diamantes... Ao fim de ano e meio de prisão, foi solto, sem julgamento, e expulso para Portugal onde entretanto viria a morrer...

Acho que o episódio vale sobretudo pelas "confidências" (cruas, despudoradas, mas sinceras e serenas, autênticas, com alguma basófia aqui ou acolá, quiçá demasiado ingénuas..., confundindo-se às vezes ingenuidade com desassombro) desta mulher, que é entrevistada na cozinha da sua casa (no Alentejo?) enquanto ela e outra matam e depenam um enorme galo (que seguramente não era o da UNITA)...

Claro que ela sabia que, na vida e na guerra, é difícil (e sobretudo perigoso) servir dois senhores, manter dois amores, defraldar duas bandeiras... (Sem querer, ela denuncia alguma atração por aqueles rapazes de vinte anos a que ela chama "turras", que até eram bem parecidos e educados...).

Malhas que o império teceu... e cujos "despojos" ainda chegam às "praias lusitanas" da nossa memória...

Por que é que eu gostei da entrevista? Porque a verdadeira "vedeta", a protagonista, é a Sebastiana, a entrevistada, não a entrevistadora... É importante que estas pequenas grandes histórias fiquem registadas, para a História, para a nossa memória e para memória futura, sem retoques, sem comentários, sem quaisquer preocupações com o "politicamente correto"... Ficamos também a saber o importante papel que a PIDE/DGS desempenhou na guerra, com a sua tentacular (e eficaz) rede de "informadores"...

E não brincavam em serviço: quando a Sebastiana e o marido são descobertos e denunciados pelos "negócios" com o MPLA (afinal, um bom "cliente", naquele cu de Judas...), o casal, que tinha filhos pequenos, terá ficado sem alternativa: ou colaboravam com a PIDE (correndo o risco de ficar sem  ou o então o  Durães "apanhava 20 anos no Tarrafal" (sic)... 

Percebe-se melhor então por que é que o rapaz era um grande consumidor de ansiolíticos... enquanto a mulher, com o seu ar "felino" (a avaliar pela foto de quando era nova) adorava a guerra e o cheiro da pólvora e devia ter fantasias com as  fardas e as armas ("lindas") dos "turras"...
 
...Percebe-se também agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave" a seguir ao golpe militar do 25 de Abril... Amor com amor se paga... E, como dizia o outro, não há almoços grátis... (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 6 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

(**) Último poste da série > 9 deoutubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23687: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte I - António Rosinha e Valdemar Queiroz: as diferenças entre a guerra de Angola e o "inferno da Guiné"

domingo, 9 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23687: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte I - António Rosinha e Valdemar Queiroz: as diferenças entre a guerra de Angola e o "inferno da Guiné"


Cortesia da SIC (2022)

1. "Despojos de guerra": série de 4 episódios, está a passar 
na SIC, durante o mês de outubro. No passado dia 6 
foi a estreia da série, com a exibição do 1º episódio ("A informadora", 51' ).  Publicam-se os primeiros comentários dos nossos leitores, António Rosinha e Valdemar Queiroz.




Sinopse: 

No auge da guerra colonial em Angola, uma comerciante e o marido avisavam a PIDE (polícia política) quando os guerrilheiros iam à sua loja abastecer-se de mantimentos. Sebastiana Valadas revela qual era o seu nome de código, quanto recebiam pelas informações e como prendiam os “turras”. Depois da descolonização, um deles ajustou contas e mandou prendê-la.
 
"Com recurso a imagens de arquivo extraordinárias e pela primeira vez submetidas a um processo de colorização inédito em Portugal", a série documental "Despojos de Guerra" é uma coprodução da Blablabla Media com a SIC, tendo o o apoio à inovação audiovisual do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual. A realização é da jornalista Sofia Pinto Coelho cuja equipa contactou o nosso blogue para cedência de algumas imagens e contactos.
 

Vd, também artigo no Expresso, de 18/2/2022.

Entretanto, apareceram  já, no nosso blogue, alguns comentários sobre a série e este primeiro episódio, que parilhamos com os nossos leitores, na montra grande (*).

(i) Antº Rosinha (**)

Antº Rosinha,
II Encontro Nacional
da Tabanca Grande,
Pombal, 2007.
Foto: LG


Valdemar, esta pequena reportagem sobre a senhora 
comerciante, que atraiçoou o comandante do MPLA  [João Sebastião Arnaldo de Carvalho, "Tetembwa", comandante adjunto da 4ª Região do MPLA] já bem nos finalmentes da nossa guerra [, em 1972] , dá um pouco para entender as enormes diferenças entre o que se passava em Angola durante 13 anos e o inferno da Guiné.

Embora a reportagem vá buscar as lembranças dos massacres 
do Norte com a UPA do 15 de Março de 1961, que foi mesmo e apenas na região dos Bacongos, mas que apesar de esse partido UPA/FNLA ainda hoje apenas continue nas eleições com 1%, continua sempre na nossa memória aqueles massacres, mas que não teve nunca a ver com esta região do Luso, que a senhora da galinha   [Sebastiana Valadas] que estava a mais de 1000 Km.

Também trabalhei nesta região pela Junta de Estradas. A povoação de Cassai Gare, que tem uma estação dos caminhos de ferro de Benguela, é uma região onde nunca houve guerra a sério, ou seja a UNITA andava por ali mas bem controlada pelos Flechas e PIDE, e já quase no fim uma franja do MPLA instalou-se na vizinha Zâmbia, dizia-se que seria a "facção Chipenda". Mas seria em número tão reduzido e com pouco armamento, que não se lhe conheceu qualquer actividade.

De notar que medido no Google Earth, de Cassai Gare até à fronteira mais próxima (Catanga) são 150 km, mas se for para a fronteira da Zâmbia que vai pelo Cazombo,  são mais de 300 Km.

Portanto, esse grupo atraiçoado pela senhora da galinha já demonstrou muita audácia onde dominava a UNITA e mesmo esta não andava muito à vontade porque os Ganguelas não gostavam deles.

Valdemar, vou dar uma informação sobre esses comerciantes que durante os treze anos de guerra em Angola, em todo centro, sul, litoral sudoeste e interior sudeste (Congo à parte) falavam em geral mais que um idioma, que era uma arma de defesa muito importante.

O angolano naquele tempo vivia em tribos muito fechadas umas das outras e falava apenas a sua língua e mal o português.

É o que me cumpre informar sobre o que vi na SIC e o que me lembro há mais de 45 anos, e o que vi no Google Earth, onde se reconhecem as casas dos comerciantes já meio em ruinas.

7 de outubro de 2022 às 00:16


(ii) Valdemar Queirox (foto à esquerda) 
(ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Antº. Rosinha, não dá para comparar a guerra na Guiné e o que se passava na extensa Angola.

A galinha pareceu-me um galo. A senhora tinha naquele lugar, junto da estação, quase a família toda, ficou sozinha mais outra e nunca lhes fizeram mal, nem com um dedo.

Estes comerciantes "colons" eram conhecidos por serem informadores dos dois lados, e tanto uns como outros sabiam disso.

O meu compadre, casado com a madrinha do meu filho, teve durante muitos anos um restaurante no norte de Angola, junto da fronteira com o Congo e zona de implantação da UPA/FNLA. Dizia que camionistas faziam milhares de quilómetros para ir lá comer bife à ...(não me lembro). Tínhamos grandes discussões por ele ser salazarista, mas tinha uma bandeira da FNLA.

A realização da reportagem arranjou a coisa de maneira a não ferir suscetibilidades.

7 de outubro de 2022 às 02:59


(iii) Antº Rosinha;

Valdemar, a Guiné não tinha nenhuma comparação com Angola, no entanto o grande sonho de Cuba e União Soviética era alcançar primeiro Angola e depois África do Sul.

E taticamente, usaram o ponto fraco e mais fácil e mais barato e com menos riscos, a Guiné-Bissau.

E mesmo depois da independência usavam a Guiné e Cabo Verde para apoio logístico para aquela guerra de 28 anos em Angola. Essa, sim, guerra africana a  sério.

Mas essa dos comerciantes, e toma atenção, os camionistas que faziam milhares de quilómetros por um bife. Camionista era uma profissão considerada como se fosse uma especialidade, em Angola, tinham a mesma fama de jogar com pau de dois bicos.

Em geral ser-se Camionista era ser dono do próprio camião e que no Congo da UPA deslocava-se em coluna militar mas no resto de Angola viajava por conta e risco e até contrabando fazia para os países vizinhos com mercadorias sem "guia", vez por outra apanhados pela polícia.

Essas duas actividades, comerciantes e camionistas, tipo caixeiros viajantes,  é que foram no meu entender os grandes colonialistas à portuguesa, contacto total com as etnias porque o resto não passávamos de uns funcionários à espera do tempo passar.

Mas não pensemos que esses comerciantes "do mato" e os camionistas, durante a guerra não estavam conectados com os Governadores de distrito e com a PIDE e com os Chefes de posto.

Essa gente comprovadamente eram aqueles que melhor sabiam utilizar a Psico, a maneira deles, e como sabiam utilizar os idiomas tribais, conseguiam pôr os clientes a fazer-lhe a protecção que precisavam.

E como em 1961 aconteceu com a UPA no Norte o tal terrorismo, que a mulher do galo fala nisso, serviu de lição e dali para a frente tudo ficou de pé a trás.

Eu e centenas de colegas das Estradas, outros de Geologia e Minas, e várias outras missões, também agrónomos, corríamos tudo, mas olho no burro olho no cigano, e onde houvesse comerciantes estacionavamos sempre, e até se pernoitava e pedíamos conselhos.

Essa insignificante reportagem da mulher com o galo, é muitíssimo elucidativa de um dos pormenores que se passavam em Angola.

Quase incompreensível para quem tenha vivido a guerra da Guiné, e até para muitos milhares de portugueses que apenas viveram nas cidades de Angola.

O povo não tinha a mínima fé nos 3 movimentos, 3 sem falar nas facções do MPLA que depois se viu a mortandade do 27 de maio de 1977 entre eles.

Era o povo que nos segurava, 13 anos fabulosos "escandalosamente" que eu vivi.

Evidentemente que enquanto houvesse uma mina na estrada estávamos em guerra.

Mas o mais perigoso para a tropa, onde ficou muita gente,  foi aquelas estradas para pequenas velocidades, mas que os unimog guiados por jovens motoristas largavam-se,  até eu andei aos trambolhões.

7 de outubro de 2022 às 12:09


(iv) Valdemar Queiroz:

Então, quer dizer que aqueles milhares de jovens que morreram na guerra da Guiné, em Angola e Moçambique foi para defesa dos interesses dos EUA, e não teve nada a ver com o barrete salazarado do Portugal de Rio de Onor a Timor ...e quem se lixou foram os mexilhões da costa vicentina?|

7 de outubro de 2022 às 13:44
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

(**) António Rosinha: 

(i) ) beirão, tem mais de 130 referência no nosso blogue;

(ii) é um dos nossos 'mais velhos' e continua ativo, com maior ou menor regularidade, a participar no nosso blogue, como autor e comentador;

(iii) andou por Angola, como topógrafo, nas décadas de 50/60/70, do século passado;

(iv) fez o serviço militar em Angola, sendo fur mil, em 1961/62;

(v) diz que foi 'colon' até 1974 e continua a considerar-se um impenitente 'reacionário' (sic);

(vi) 'retornado', andou por aí (com passagem pelo Brasil, já sem ouro, nem pedras preciosas...), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência';

(vii) o seu patrão, o dono da TECNIL, era o velho africanista Ramiro Sobral;

(viii) é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho'';

(ix) pelo seu bom senso, sabedoria, sensibilidade, perspicácia, cultura e memória africanistas, é merecedor do apreço e elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, fazendo gala de ser 'politicamente incorreto' e de 'chamar os bois pelos nomes';

(x) a ele poderá aplicar-se o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado debaixo da árvore a fumar o seu cachimbo". 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite



1. Press release da produtora Blablabla Media, com data de 3 do corrente:



Despojos de Guerra estreia esta quinta-feira 
no Jornal da Noite da SIC


É já esta quinta-feira, dia 6, que a SIC promete mostrar a guerra colonial portuguesa como nunca a viu: a cores. 

A estreia do primeiro dos quatro episódios da série documental DESPOJOS DE GUERRA terá lugar no Jornal da Noite. 

Assinada por Sofia Pinto Coelho, a mais recente coprodução documental da Blablabla Media revela histórias extraordinárias de espionagem, patriotismo, sobrevivência e romance, dando voz às encruzilhadas que inesperados protagonistas enfrentaram em tempos de guerra e de descolonização. 

Figuras como a de Sebastiana, a informadora — uma anónima comerciante portuguesa que, no auge do conflito em Angola, se viu tornar agente dupla e influenciar o curso da guerra naquele país. 

Disponível na Opto desde o dia 19 de fevereiro, DESPOJOS DE GUERRA destaca-se pelo recurso a imagens de arquivo inéditas e pela primeira vez sujeitas a um processo de colorização.



Cada semana, um novo capítulo (40' ):

A INFORMADORA (Ep. 1 - 6 out) |

 No auge da guerra colonial em Angola, uma comerciante e o marido avisavam a PIDE quando os guerrilheiros iam à sua loja abastecer-se de mantimentos. Sebastiana Valadas revela qual era o seu nome de código, quanto recebiam pelas informações e como prendiam os “turras”. Depois da descolonização, um deles ajustou contas e mandou prendê-la.

Disponível na Opto, em versão alargada

COMBATENTE AFRICANO (Ep. 2 - 13 out) | 

Milhares de africanos combateram ao lado dos portugueses na guerra colonial. Com a descolonização, foram deixados à sua sorte. Alguns foram fuzilados ou perseguidos pelos novos poderes e mesmo para receber tratamentos médicos é-lhes dificultada a vinda a Portugal. Como é possível que não se faça justiça perante estes homens que estiveram na dianteira da guerra, como é o caso do antigo Cabo Luís Silva?

Disponível na Opto, em versão alargada

CORREDOR DA MORTE (Ep. 3 - 20 out) | 

O que significará dar a vida pela pátria? Contrariados ou voluntariosos, foi o que fizeram 800.000 jovens a partir de 1961. A Guiné estava transformada no mais duro e mortífero campo de batalha e foi para lá que foram enviados o piloto-aviador Miguel Pessoa e a enfermeira paraquedista Giselda Antunes.

Disponível na Opto, em versão alargada

LAÇOS DE SANGUE (Ep. 4 - 27 out) | 

Chamam “filhos de tuga” aos mestiços nascidos das relações entre militares portugueses e mulheres africanas que foram deixados para trás. Entre a revolta e a esperança, ainda hoje tentam encontrar um nome de pai e descobrir a outra metade da sua identidade, como sucede aos irmãos Elva e José Maria Indequi.

Disponível na Opto, em versão alargada


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Nota do editor:

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Livro de referência, pela organização cuidada, pelo elevado acervo documental diplomático manuseado, releva aspetos essenciais do que se viveu na Guiné, de 1962 a 1974. Referi em texto anterior que o autor repete erros de apreciação quanto à governação de Schultz, não consultou fontes primordiais; é o primeiro investigador a ignorar o argumentário do PAIGC, muito apreciado na época de que Spínola e a PIDE estavam envolvidos no assassinato de Cabral, não havia coragem para denunciar o segredo de polichinelo de que os guineenses não tolelariam ser governados sob alçada cabo-verdiana, durante anos vendeu-se uma conspiração montada pela PIDE para infetar as consciências em Conacri e chegou-se ao desplante de pôr à frente da intentona Momo Touré, um guerrilheiro libertado em 1969 e que fora criado de mesa no restaurante Pelicano, isto sem questionar como é que este senhor iria mobilizar pelo menos largas dezenas de sediciosos, muitos deles altos quadros do PAIGC. Mas esta mitologia fez voga, era um excelente pretexto para esconder a realidade. Futscher Pereira foi bastante cuidadoso a tratar as relações diplomáticas com o Senegal e revela as diferentes tentativas de Marcello Caetano de chegar às negociações com o PAIGC, a partir de fevereiro de 1974. Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (2)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais. Adverte-se o leitor que quer neste texto como no anterior circunscrevemos a análise aos comentários do investigador exclusivamente no teatro da Guiné.

Estamos agora em 1971, as relações com o Senegal deterioram-se com as incursões de forças portuguesas em Casamansa, o PAIGC não abranda a onda de hostilidade. É neste contexto que Rui Patrício, o ministro dos Negócios Estrangeiros recebe uma carta de Spínola propondo um virar de página na politica portuguesa para a Guiné, escrevendo mesmo “a ninguém restam dúvidas de que o problema da Guiné não é passível de solução exclusivamente limitar” e que, “numa guerra deste tipo, as operações militares apenas se destinam a criar as condições à solução de fundo”, e “essas condições estão criadas, pelo que, do ponto de vista militar, se me afigura impossível ir mais além”. Spínola preconizava uma consulta ao povo da Guiné. “Spínola considerava que a sua ação apenas serviria para ganhar o tempo necessário para encontrar uma solução política e diplomática do conflito”. Irá expor essa tese a 7 de maio no Conselho Superior de Defesa Nacional, incomodará muita gente, o Governo não estava disposto a ir tão longe. Lúcido quanto à impossibilidade de uma vitória militar, Spínola empenha-se numa tentativa de negociação com o PAIGC, recorre a um colaborador de confiança, o chefe da PIDE em Bissau, Fragoso Alas, e a um intermediário como Mário Rodrigues Soares, considerado capaz de passar recados. É assim que é aprazado o encontro com Senghor, 18 de maio de 1972. Não há documentação que comprove que Amílcar Cabral desse o beneplácito a tais negociações. Depois das conversações com Senghor Spínola vem a Lisboa, Marcello Caetano contrariou todos os seus propósitos, alegando que a sociedade portuguesa não estava preparada para esse passo. É o início da rotura das relações entre os dois, Spínola irá escrever a Caetano dizendo que só existem duas alternativas, “ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada e inútil agonia”.

Spínola irá ainda encontrar um alto dirigente senegalês, escreverá no seu livro de memórias País Sem Rumo que em outubro de 1972 Amílcar Cabral sugeriu um encontro com ele em território português. E o autor refere que a ausência de documentos não permitem esclarecer a consistência desta proposta. É exemplar a correspondência trocada entre Spínola e Marcello Caetano, e ficará para a história o seguinte comentário de Caetano: “para a defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado pelos terroristas, abrindo o caminho a outras negociações”. Caetano supunha que iria haver uma derrota militar na Guiné que manteria intactas todas as possibilidades de defender o resto dos territórios. Falhadas as negociações, também Senghor tirou as suas ilações, passou a dar todo o apoio às atividades do PAIGC no Senegal. Importa referir que entre 2 e 8 de abril, três diplomatas ao serviço da ONU, acompanhados por dois funcionários do secretariado da mesma organização, percorreram a zona de Catió e Quitafine, confraternizado com as populações.

Estamos chegados ao assassinato de Amílcar Cabral e é bom que se diga que Bernardo Futscher Pereira é o primeiro investigador a justificar os acontecimentos fugindo à propaganda do PAIGC pôs a correr, estabelecendo ligações diretas com Spínola e a PIDE, e que teria havido até uma operação tenebrosa envolvendo a Marinha portuguesa. O autor faz avultar o ressentimento secular dos guinéus contra os cabo-verdianos, os cabo-verdianos eram oriundos da pequena burguesia ao passo que os guinéus eram essencialmente camponeses sem instrução. “O PAIGC contava com cerca de 6000 guerrilheiros, quase todos guineenses. Cabo-verdianos seriam talvez uma centena, quase todos dirigentes”. Fala nos indícios de comprometimentos de figuras como de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, é sabido que toda a documentação decorrente dos inquéritos desapareceu sem rasto. A liderança do PAIGC preparou a resposta, ela virá, com toda a sua brutalidade, graças ao míssil terra-ar Strella, o ataque a Guileje e a Guidaje. Costa Gomes visita a Guiné no rescaldo destes empates, apresenta como única alternativa “a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada, evitando-se, desse modo, a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira”. Como o autor observa, Spínola concordou com o diagnóstico, mas recusou pura e simplesmente aplicá-lo.

Há agora o esforço frenético para encontrar armas compatíveis com a escalada do armamento, pretende-se comprar uma bateria antiaérea para a eventualidade de haver ataques com MiG-17. Para agradecer a cedência das Lajes na guerra do Yom Kippur, Kissinguer, não podendo fornecer diretamente os mísseis Red Eye encontrou um intermediário israelita. “Portugal acabou por encomendar 500 mísseis a Israel que, no 25 de Abril, esteavam na Alemanha Ocidental à espera de serem expedidos para Lisboa. Costa Gomes e Spínola cancelaram a encomenda.”

Futscher Pereira desvela igualmente as negociações tentadas à última hora por Marcello Caetano: negociar com o PAIGC a independência da Guiné. Alude aos acontecimentos de janeiro de 1974, a ofensiva sobre Copá e Canquelifá, a ida do diplomata José Manuel Villas-Boas a Londres, foi o MI6 que serviu de intermediário, o chefe da delegação guineense era o ministro dos Negócios Estrangeiros Vítor Saúde Maria. “Os guineenses exigiam negociações Estado a Estado e o reconhecimento de Portugal do Governo do PAIGC no exílio. Villas-Boas não estava obviamente habilitado a responder. Ficou agendado novo encontro, mas não antes de maio. Marcello Caetano procurava também outros canais. A 5 de abril, Pedro Feytor Pinto foi enviado a Paris, onde se encontrou com Jacques Foccart, o todo-poderoso monsieur Afrique do Eliseu, a quem pediu ajuda para mobilizar Senghor e Houphouët-Boigny para esta tentativa de última hora de negociar com o PAIGC. Iniciaram-se também preparativos para um encontro entre Bethencourt Rodrigues e Senghor.”

Aqui findam todas as considerações sobre a Guiné, insiste-se que se trata de um documento altamente probatório, indiscutivelmente um olhar refrescado sobre o que foi a diplomacia portuguesa que demonstra inequivocamente que não estávamos “orgulhosamente sós”.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23380: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte X: A "guerra do cimento"


1. Mensagem do nosso camarada e amigo, João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971)

Data - terça, 10/05/2922, 18:41
Assunto -  A minha história no BENH 447
 
Boa tarde,

Caro Luís, espero que tudo bem contigo.
Com um final e principio de anos tristes, primeiro por falecimento de minha Mãe, depois de um seu irmão, meu tio aí da Lourinhã, e depois da avó da minha nora. E do covid que atacou o meu netinho. Felizmente ele recuperou.

No entanto todos os dias tenho lido o blog. Recordado bastante e, ficando mais informado e mais culto.

Hoje a "reboque" de um dos últimos posts do Ex-Capitão Magro  (*)  resolvi mandar um texto. Se achares algum interesse,  publica antes do almoço do BENG 447 de 24 de Junho (**) , senão tudo bem.

Um abraço
João Rodrigues Lobo




A minha história no BENG 447

por João Rodrigues Lobo


Na sequência do post do ex-capitão “Magro” (*), relembro que, como comandante do PTE do BENG 447 nos anos de 1969 e 1970, fui o responsável pelos transportes de e para o BENG.

De salientar que, durante estes dois anos, contei com todo o apoio do Comando do Batalhão, nomeadamente. Ten-Coronel Bernardino Pires Pombo, Major Diogo da Silva e Major/Ten-Coronel João António Lopes da Conceição (Foi por escolha de Spinola como Major e lá graduado em Ten-Coronel) e Major Santos Maia.

Fui em rendição individual em Dezembro de 1968 e saí em Janeiro de 1971, não tendo conhecido quer o meu antecessor quer o meu sucessor. Gostava de os conhecer e trocar impressões, embora não saiba sequer os seus nomes.

Encontrei no P.TE  uma “equipa” de dois Sargentos do quadro e quatro Furriéis milicianos. Bem como cerca de noventa condutores-auto, com cerca de metade guineenses e outra metade “continentais”. Todos aregaçavam as mangas e cumpriam as suas missões. Nunca deixarei de dar o mérito que merecem aos Condutores-Auto, nestes teatros de operações em que por vezes injustamente tendem a ser esquecidos.

Como já referi o P.TE recebia, conferia e transportava todo o material que se destinava ao BENG desembarcado dos navios mercantes, no cais novo, vindos do Continente, e conferia, transportava e expedia, no Pigiguiti, pelas LDM e LDG da Marinha, e por coluna auto, para a Guiné. De salientar a excelente cooperação com a Marinha.

Dito isto, cheguei, ao BENG,  aparecendo num jeep do QG que lá me levou, pois pedi boleia, casual,a um condutor que tinha ido a Bissalanca, e que me deixou á porta do QG com a mala, onde o oficial de dia após várias diligências lá descobriu o meu destino, pois quando aterrei em Bissalanca ninguém me esperava nem eu sabia qual a unidade do meu destino (nem o BENG de mim sabia). Aliás estive cerca de uma semana em Cabo Verde a aguardar avião militar, pois tinha ido para lá também de avião
militar de Angola.

Fui então recebido e colocado no PTE. Tendo então começado a aperceber-me e a tomar conta da situação, o que gradualmente, com o strees operacional de um periquito que era, fui organizando o modo de trabalhar, racionalizando o uso de recuros humanos e viaturas disponiveis para a exigência dos vários transportes a realizar, com a pressão acrescida da prioridade aos Reordenamentos dada pelo Comandante Chefe e necessidades das obras nas estradas e aquartelamentos.

Nos primeiros dias, e com os transportes em curso sem parar, solicitei a lista completa dos Homens adstritos ao Pelotão, mapeando a localização de todos os condutores-auto. (com um episódio caricato que já contei no blog). Solicitei a listagem completa de todas as viaturas existentes (de todos os tipos, desde Jeep, plataformas de Transporte de Máquinas Henschel, de carga Mercedes, autotanques, de transporte de pessoal, Unimogs,Volksvagen, Land Rover e outras, e até o monstro gigante de aço Continental que só o grande condutor Simão conduzia! 

Com a colaboração das Oficinas auto e Tenentes Geraldes e Garcia. (Com ele numa foto no blog). Conferi a distribuição das viaturas pelos condutores, que actualizei, quais as viaturas inoperacionais ou paradas por avaria, quais os condutores eventualmente sem viatura, ou no desempenho de outras funções. Isto foi feito em prazo “util”.

Depois a operacionalidade: Avaliação da distribuição das viaturas, sua redistribuição perante as necessidades, Tendo em atenção que poderiam ser insuficientes para o tranporte do cimento dos
navios, para o qual solicitávamos ao Quartel General o aluguer de viaturas civis para esse transporte sempre que se justificava. (frequentemente devido ás várias solicitações de transporte para as obras).

A redistribuição fez-se com sucesso, e a falta de viaturas passou a não se fazer muito notada. Para as obras e deslocações locais foram sempre encontradas soluções e para as descargas e transporte de cimento reduziu-se ao minimo estritamente necessário o uso de viaturas civis fornecidas pelo QG (que mesmo assim eram muitas). 

Felizmente o mais “complicado” foi a redistribuição dos Jeep, pois todos os ilustres capitães precisavam de transporte para acompanhamento de obras e deslocações várias. Mas com apenas alguns pequenos “atritos” lá se convenceram perder o Jeep exlusivo e a requisitar o Jeep quando fosse preciso. Só alguns não gostaram que um Alferes tivesse o “seu” Jeep sempre disponivel, dia e noite, mas, como era mesmo necessário que eu acompanhasse sempre os movimentos e operações nos cais e era eu que o conduzia, lá me foram aturando. Bem-hajam.

Aqui chegados, e começando pelos materiais a receber nos armazéns do porto, sabia que os volumes e caixotes de Engenharia vinham todos sinalizados com um circulo vermelho e preto, também me apercebi da falta de alguns que deveriam ter chegado e não os encontrávamos. E, de outros que esperavam por “papelada” para sair do porto e que demoravam dias parados nesses armazéns. Era impensável a falta e o atrazo.

Consegui que uma vez descarregados e estando no Armazém, com ou sem “papelada” fossem listados e imediatamente transportados para o BENG, eu próprio com os Furriéis milicianos nos encarregámos dessa tarefa. O que resultou e poucos mais se “perderam” nesse período. 

Depois o cimento ! Assitindo á primeiras descargas, (entre 60.000 e 100.000 sacos cada), fiquei estupefacto com o cimento de que perdia, pois ao ler os autos de recepção sancionados pelo QG e, os que eu tinha de conferir, davam uma quebra de cimento entre 5% e 10% conforme a descarga. (A quebra seria dos sacos que se romperiam durante a manipulação no navio, do navio para o cais, do cais para as viaturas e das viaturas para o depósito do BENG. )

10% ou mesmo 5% de quebra era uma montanha de cimento. Das duas três, ou ficava no porão do navio e voltava para o continente ou caía no cais, onde seria dificil circular,e iria parar á água e o navio encalhava.!!!

De notar que juntamente com o cimento “militar” também vinha cimento importado pelos grandes comerciantes civis, nos mesmos navios.

Com a minha cabeça a trabalhar, e andando permanentemente no meu Jeep durante as descargas, percorrendo Bissau e os trajetos para o Batalhão descobri “coisas” interessantes. Algumas vou contar: Razão das quebras reais; O manuseamento dos sacos de papel do cimento. No porão colocavam-se os sacos nas lingadas que eram descarregadas no cais, os sacos eram transportados para zona própria e aqui manuseadas para um empilhamento, sendo depois manuseados para carregar as viaturas.
Perdia-se mesmo muito cimento, mas 10% ???.

Primeira acção: Escala de serviço com a permanência nos cais, em todas as descargas e algumas cargas ,de um Furriel Miliciano e um condutor-auto com Jeep. Estes Furriéis Mil, por quase imposição minha, foram dispensados pelo Comandante de prestar serviços de sargento de dia e de prevenção do Batalhão enquanto as descargas ou cargas durassem. Como os movimentos eram práticamente continuos, alguns Furriéis Mil poucos serviços fizeram, o que deu algum “atrito” com os Sargentos do Quadro, mas sem hipóteses para estes, pois os resultados da acção começaram a ser evidentes.

As viaturas encostavam ao navio e as lingadas iam directamente para estas. Que grande diferença. E então o tempo poupado logo na carga das viaturas foi notório. Mesmo assim a quebra continuava grande e, a vinda do cimento ainda demorava, bom, como o calor era muito, nas minhas voltas encontrei viaturas civis, que trabalhavam á hora, encostadas a descansar á sombra em percursos alternativos. Também me chegou ás orelhas que algumas paravam para “conversar” nalgumas obras civis em curso. 

Como também havia descarga de cimento para firmas civis, por vezes simultaneamente, foi dificil perceber se essas viaturas eram dessas firmas ou nossas. (tendo acabado com uma dessas conversas, ainda um “sacana” da Pide que era empregado num restaurante local, me tentou demover com um falso facto por ele criado para me chantagear, mas teve azar e ficou bem caladinho depois). 

Acção: Mandei comprar cartolina amarela e recortámos castelos de Engenharia, com cerca de 40 cms de altura que colávamos no lado direito do parabrisas. Tiro certeiro, não mais as encontrei a descansar.

Acção: as viaturas eram registadas com a hora de saída do cais e registada a hora da sua entrada no Batalhão na porta de armas (o que nunca tinha sido feito antes).

Acção: Verifiquei também que era dificil ir acompanhando o volume da descarga, quanto tinha
sido desembarcado e quanto faltava, pois a quantidade de sacos variava por viatura,.

Acção: Cada viatura, independentemente da capacidade apenas transportava 100 sacos. (Aqui ainda me “chatearam” porque perdia capacidade de carga de algumas maiores).

Quando por necessidade e possibilidade utilizámos as plataformas estas só traziam 400 sacos. Assim o controle bastava ser por viatura e já não era preciso contar os sacos á chegada ao depósito.

Controlo total. Muitas horas de aluguer poupadas. Menos viaturas civis contratadas. As viaturas eram contratadas pelo QG mas havia uma muito interessante, que fazia sempre um bom serviço e era sempre contratada. ( De quem seria?, mas tudo legal, e não não era minha, um abraço para Tondela). Maior rapidez na descarga e recepção no depósito do Batalhão.

E, imprevisto: Os autos de recepção deixaram de mencionar quebras!

Mais ainda, O BENG 447 começou a ter mais cimento do que lhe era destinado ! Porquê?
Eis o segredo, com a devida vénia e, se algum dos intervenientes estiver a ver, as minhas desculpas.
Realmente ainda ficava bastante cimento no porão do navio dos sacos que se rompiam(e já não no cais devido á descarga direta).

Pedi, no que fui atendido, na carpintaria do Batalhão, que me fizessem umas caixas de madeira com 1 m3  de capacidade com 4 mosquetões na parte de cima aberta. E, no fim da descarga dos sacos, os “estivadores” enchiam, à pazada, as caixas que eram enviadas para o nosso depósito. Ora como as firmas civis que também importavam cimento não se podiam dar a esse luxo... Sem nossa intenção, o cimento dos sacos deles que se tinham rompido misturava-se com o nosso...

No fim de uma dessas maravilhosas descargas ainda tive a visita no Batalhão de um senhor importante do comércio local que me acusou de trazer cimento dele. Educadamente o acompanhei ao depósito onde lhe disse que todos os sacos com a sua marca que eventualmente encontrasse os poderia levar, assumindo eu a culpa de os ter indevidamnete trazido. É óbvio que não encontrou nenhum, o cimento a granel não tinha marca... E, já não muito educadamente, o acompanhei á saída do Batalhão.

Não posso esquecer como todos colocámos o grande espaço do PTE o seu parque de viaturas e suas instalações bem limpas e arranjadas, até com alguma sinalização!

Este poste já vai longo e, em breve, tentarei enviar outro a relatar mais episódios que agora relembrados possam ter algum interesse nostálgico após mais de 50 anos.

E, camaradas daqueles tempos no BENG 447, apareçam no próximo almoço, para trocarmos impressões sobre o que esrevi acima e mais que nos ainda lembramos. (***)
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Notas do editior:

(*) Vd. poste de 10 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23252: 18º aniversário do nosso blogue (14): até meados de 1971, o Serviço de Reordenamentos do BENG 447, com o apoio das unidades militares e as populações locais, construiram 8 mil casas cobertas a colmo e 3880 cobertas a zinco

(**) Vd. postes  de:

6 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23147: Convívios (922): XXXVII Encontro Nacional dos Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá/Bissau/Guiné, a ter lugar no dia 25 de Junho de 2022 na Tornada/Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil)

(***) Último poste da série > 8 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22790: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte IX: Qual a razão da minha ida da RMA para o CTIG ? Duas histórias... A autorização, anual, passada pela PIDE para poder entrar a bordo dos navios no porto de Bissau, e o "motorista" protegido do capitão da Polícia Militar......

segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23097: Notas de leitura (1430): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um conjunto de súmulas referentes às intervenções de Amílcar Cabral num seminário de quadros que foi um facto importante na história do PAIGC. A Direção do Partido entendera chegar a hora de convocar os quadros mais antigos e mais novos, fazer notificar a história da luta armada, fazer o seu balanço, proceder a críticas, rever processos organizacionais, discutir a ideologia, a democracia revolucionária, traçar as perspetivas para a luta que esperava o Partido tanto na Guiné como em Cabo Verde. É um documento único, várias centenas de páginas em que o líder de forma esquematizada fala com todos os seus quadros e responde às suas questões. Como nota curiosa, observe-se que os livros que hoje se podem comprar de Amílcar Cabral em alfarrabistas são coletâneas de discursos e documentos avulsos, neste livro está a prova comprovada da organização mental de Amílcar Cabral, da sua lucidez, o peso das suas convicções. Dou este livro como obra de leitura obrigatória para quem quer aprofundar o papel de Cabral na vida do PAIGC.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (5/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral manterá sempre uma narrativa ambígua sobre o que entende por socialismo, a luta anti-imperialista, o quadro fixo dos seus aliados. Reconheça-se no entanto que sempre exprimiu a vontade de que o partido-Estado contemplasse as suas obrigações de solidariedade com as outras colónias portuguesas e neste seminário, em que fala do futuro, lembra aos quadros do PAIGC que há que estreitar as alianças no continente africano. Falando das forças armadas, volta à tónica da crítica, aqui não há ambiguidades: 

“Não devemos esquecer que há erros, faltas e atrasos nas nossas Forças Armadas: muitas emboscadas mal feitas, muito atraso em chegar ao ponto onde se deve chegar, muita falta de vigilância nos rios, apesar de terem boas armas nas mãos para atirar contra os barcos, falta de coragem para atirar contra os aviões, apesar de sabermos que quantos mais tiros der contra os aviões mais medo têm os aviadores. Não temos feito reconhecimento como deve ser, antes dos ataques. O resultado é que muitas vezes vamos fazer ataques e caímos nas minas. Não temos sabido fazer planos corretos, na prática concreta de um ataque, porque o dirigente pode fazer um plano geral para um ataque, mas na situação real de colocar os homens no terreno, no momento do ataque, alguns comandantes não o têm sabido fazer. Devemos, por exemplo, reconhecer que, até hoje, só em dois ataques a quartéis inimigos é que prendemos tugas, em Catancunda e em Bissássema. Ora isso é muito pouco com tantos ataques a quartéis”

E desvia o raciocínio para as melhorias que são necessárias introduzir na logística, e volta a falar em erros: 

“Há pouco tempo, por causa de um erro do nosso camarada José da Silva, na frente norte, mas erro também de todos os camaradas que lá estavam, os tugas apanharam-nos uma quantidade importante de material. O José da Silva e outros cometeram erros tão grandes que os tugas vieram apanhar esse material e talvez tenha havido conluio entre eles. Não podemos permitir que, com tanta canseira para levar material de guerra da fronteira para o norte da nossa terra, venham os tugas apanhar material em Faquina, Biambi, Bula, no chão dos Manjacos, etc. Isso não pode ser”.

 As observações seguintes são sobre a disciplina, o trabalho político nos centros urbanos, insiste que as forças armadas devem dar golpes mais duros e decisivos aos colonialistas.

Agora a conversa muda de azimute, é preciso elevar a consciência política dos estudantes do Partido, levanta a questão delicada de relações familiares com elementos de outros países e não se escusa a afrontar a questão dos quadros técnicos ao nível da meritocracia: 

“Numa terra pobre como a Guiné e Cabo Verde, os quadros técnicos, científicos, etc., por mais que não queiramos, vão viver melhor que a maioria do povo em geral, porque não é possível que um doutor de leis faça devidamente o seu trabalho morando numa palhota cheia de mosquitos, com lama no chão, etc. Não faz sentido um arquiteto, um engenheiro, um médico, ou mesmo um especialista de mecânica ou eletricidade ter, de manhã, de encher a boca de água para borrifar o chão da sua palhota para este ficar duro, como faz normalmente o nosso povo. Queiramos ou não, no começo da nossa vida, os quadros que se estão a formar vão ter algumas vantagens em relação ao povo em geral”.

Finda esta sucessão de intervenções que se prolongaram de 19 a 24 de novembro, o último dia foi reservado a debate e a conclusões. Como seria de prever, Cabral respondeu a questões muito dispersas como a situação da luta na região de Nhacra e nos centros urbanos, focou a situação dos camponeses na Guiné e em Cabo Verde, procurou clarificar o que era uma direção coletiva e o centralismo democrático, como se estava a processar a justiça militar e como funciona a democracia revolucionária; puseram-se questões como o uso de algemas, o tratamento a dar aos ladrões de vacas, o abastecimento dos internatos, como agir se os colonialistas vierem a dar independência à Guiné sem Cabo Verde, como responderá o PAIGC. Aqui é categórico: 

“Não paramos enquanto não libertarmos os dois. Isto tem de ser, esse é o nosso caminho e o nosso juramento. Podemos usar todas as táticas que quisermos com o inimigo, mas não deixemos o inimigo desviar-nos para questões que nos lança apenas como diversão, para afastar a nossa atenção das coisas importantes. Importante é o seguinte: lutar cada dia com mais força na Guiné, com mais tiros contra a tropa tuga; em Cabo Verde, fazer o máximo para o mais depressa possível começarmos a dar tiros. Entretanto, faça-se barulho político por todo o lado, mesmo que vá muita gente para a prisão”.

Não se escusa de abordar questões delicadas como a posição do PAIGC face às declarações de Rafael Barbosa, desvia a conversa para a assistência sanitária à população e ao funcionamento dos tribunais populares, como receber as populações que vêm às áreas libertadas, como e porque se deve fazer a cobrança de impostos, o que constitui a crítica e a autocrítica e alertou os presentes para os falsos amigos e as infiltrações, exemplificando: 

“Há camaradas da segurança do Partido que passam a vida com um indivíduo de origem libanesa que reside em Zinguinchor. Os camaradas apresentaram-me esse libanês como sendo um grande amigo do Partido. Cheguei a realizar uma reunião em Zinguinchor com os camaradas e convidei-o a sentar-se ao meu lado, acreditando que era um amigo do Partido. Pois, certo dia, agentes nossos informaram-nos de que o tal libanês trabalhava para os portugueses e alertei o Luís Cabral. O Luís nunca o visitou, mas havia elementos da nossa segurança que passavam a vida em casa dele. Certo dia, fomos informados da chegada de uma pessoa com correspondência da PIDE para esse libanês. Como não o podíamos deter no Senegal, os nossos camaradas fizeram um bom trabalho, combinando com a polícia para parar e revistar o carro. Mandaram parar o automóvel, revistaram o passageiro e encontraram a correspondência destinada ao libanês, provando que ele é, efetivamente, um agente dos colonialistas”.

Nas conclusões, ele recorda: 

“Elogiei a nossa luta como jamais alguém poderá elogiá-la, mostrei as nossas vitórias com a maior clareza possível, as vantagens, a coragem da nossa gente. Mas também vos falei com toda a franqueza das nossas misérias, das muitas sujidades que ainda temos no nosso seio e temos de limpar depressa, se queremos de facto estar à altura do nosso valor”

E despede-se assim: 

“Durante seis dias, como vosso dirigente, trabalhei, cumpri o meu dever como tenho cumprido chefiando a luta no plano militar, no plano político e em todos os planos. Estas são as minhas palavras, com um grande agradecimento pelo triunfo que representou este nosso seminário. Tenho a certeza de que, se cada filho da nossa terra, homem ou mulher, mantiver esse interesse em saber sempre mais e em pôr em prática, concretamente, aquilo que sabe, nada nos pode parar no caminho certo da vitória na nossa luta, no caminho do progresso, da paz e da felicidade da nossa gente”.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)