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quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)



Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Benito Neves, bancário, reformado, residente em Abrantes, ex-Fur Mil da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) (1)

Foto 27 > "Catió, 1967. Tenente João Bacar Jaló (ou Djaló), comandante da Companhia de Milícia 13, à porta da sua casa em Priame... Pela presença da viatura, provavelmente ia deslocar-se ao Comando do Batalhão para participar em mais um planeamento de uma operação, era normal pedirem a sua presença e atenderem as suas recomendações. Com o seu saber e a sua experiência no terreno, a ele se deveram por certo o êxito de muitas operações e o reduzido número de baixas sofridas. Nesta altura já lhe tinham sido atribuídas duas Cruzes de Guerra, um em 1964 e outra em 1965; em 1970, já ao serviço dos Comandos, é-lhe atribuída a Torre Espada". (BN) (2)

Foto e legenda: © Benito Neves (2007). Direitos reservados



Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72), a quem desejamos boa saúde e boa viagem até Santiago de Compostela (4). Lição nº 7: O que a Brinsam faz durante o dia... Parágrafo final: "A Brinsam é uma menina estudiosa e amiga da família. Quando ela for crescida, ela vai ser uma boa militante do nosso Partido".

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (5)
por Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112
Edição no blogue: Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.


Parte III - O amor em tempo de guerrilha e contra-guerrilha (pp. 29-35)

Resumo do episódio anterior (5):

De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) (3). Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.


(i) A deserção do filho de Luís Ramos, furriel miliciano do Exército Português, e a morte da mãe de Pami Na Dondo

Entretanto a guerrilha vai aumentando. Mas, do outro lado, as coisas também não estão paradas, antes pelo contrário. O Governo Português começa a enviar tropas em massa para a Guiné. Num desses contingentes o furriel miliciano Ramos, filho do empregado da Casa Brandoa, deserta, e ingressa na guerrilha. Numa passagem por Cadique Iála, para visitar sua mulher Sanhá já muito debilitada, Pan Na Ufna passa por Flaque Injã e, delirante, conta a sua filha todos os pormenores da deserção do filho de Luís Ramos.

Na zona, as coisas começam a complicar-se. A Catió chegam reforços significativos após a intervenção na ilha do Como. O Cantanhês, zona libertada, começa a assustar o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Fins de 1964, Sanhá dá o último suspiro na sua morança na povoação de Cadique Iála. Seguindo a tradição, Pan, acompanhado de sua filha, faz o choro de sua mulher para que o espírito desta se volatilize em paz, mandando matar o melhor boi e adquirindo uns bons litros de aguardente de cana.


(ii) Em Março de 1965, os Lassas [CCAÇ 763] (6) instalam-se em Cufar, numa antiga fábrica de descasque de arroz

A Quinta de Cufar com a sua bela pista de aterragem em terra batida - inaugurada pelo General Craveiro Lopes quando ainda presidente da República Portuguesa -, depois de fortemente bombardeada, é ocupada pelo exército português. A população de Cufar, Cufar Nalu e Cufar Novo é obrigada a fugir para norte. Algumas famílias instalam-se nas povoações a sul de Cufar.

Ao Cafal chegam informações de que o exército português se prepara para instalar um aquartelamento na antiga Quinta. São feitas várias tentativas de assalto à velha fábrica de descasque de arroz, mas os militares portugueses, embora sofrendo algumas baixas, resistem, acompanhados pelo antigo cipaio João Bacar Jaló - agora alferes de segunda linha -, comandando uma Companhia de milícia nativa que colabora com o inimigo português. Os comités das tabancas a sul de Cufar informam dos movimentos do exército português.

Princípios de 1965: é confirmada a intenção da instalação do aquartelamento de Cufar na antiga Quinta. Nino manda mais reforços para a mata de Cufar Nalu e pede atenção sobre a psicossocial das povoações a sul, que vão sofrer a pressão do inimigo. É reforçado o apoio e controlo das tabancas de Iusse, Impungueda, Mato Farroba e Cantone. Pan Na Ufna com o seu grupo, conhecedor perfeito da zona, entra nos reforços cedidos a Cufar Nalu.

Março de 1965: as informações são mais precisas. Chega a Cufar uma companhia do exército colonial, com os fins de combater a guerrilha e construir um aquartelamento. Segundo as informações, irão tentar fazer um tampão sobre a população a sul, e a respectiva acção psicossocial. Há que preparar a resposta, a qual como veremos, não será nada fácil.

(iii) Pami e Malan vivem a sua estória de amor, em plena guerra

Sempre que tem oportunidade, Malan Cassamá desce até Flaque Injã para passar alguns momentos com sua mulher. Quando não é possível, é a professora que se desloca até mais a Norte para se encontrar com o seu companheiro.

À sombra das mafumeiras, poilões enormes ou nos mangais junto ao rio, corpos unidos, suados pela força do desejo, dão largas ao seu amor. Compreendem que fazem parte da própria natureza que os envolve, o seu dualismo é um mundo só. São uma existência única. O exterior e interior é nuvem que os envolve, e se transmuta em tornado de prazer. Dois corpos, dois seres que se transformam, entrelaçando-se num só. São belos os momentos de Pami e Malan; mas... a realidade é bem diferente! A guerra tem de separá-los e ficam as promessas e os desejos de que seja muito próximo o novo encontro.

No intervalo das suas aulas em Flaque Injã, a professora vai conversando com os seus companheiros da guerrilha. Os sucessos e insucessos são comentados, e a moralização e fortificação do ideal independentista e anti-colonialista são temas imprescindíveis nessas mini-conferências.

(iv) Donde se fala do renegado cipaio João Bacar Jaló e da contra-ofensiva dos Lassas

As informações vindas do outro lado do Cumbijã não são muito agradáveis. Em Cufar estariam instalados aproximadamente duzentos homens, incluindo uns vinte a trinta traidores da milícia, do antigo cipaio João Bacar Jaló, que andariam a dar conhecimentos sobre o terreno e populações da zona, bem como a adaptação aos militares chegados que, embora não pertencendo a tropas especiais, estariam muito bem enquadrados, parecendo ser muito activos, e até um pouco sabedores da matéria, pois já teriam começado a acção psicossocial intensamente sobre as populações do lado sul de Cufar e, nos poucos contactos com a guerrilha, estacionada em Cufar Nalu, não se teriam intimidado, antes pelo contrário, reagindo com envolvimentos perigosos e rápidos.

Vamos ter problemas com esta gente, não lhe poderemos dar facilidades. A guerrilha tem de cair em cima deles e dar-lhe um ensinamento. Qualquer aproximação da mata de Cufar Nalu ou das populações tem de ser anulada, e fortemente castigada. São as orientações emanadas do Cafal. Mas, não será muito bem assim! As tropas instaladas em Cufar cheiram as coisas, e não têm medo. Com um comando experiente, bem estruturadas, a sorte a fortalecer-lhe a moral. Há que ter cuidado.

Verdade! A 15 de Maio de 1965, a casa de mato - acampamento - instalada na mata de Cufar Nalu é assaltada e destruída. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destruem várias tabancas na zona, e não se furtam ao contacto.

Em princípios de Junho [de 1965] o atrevimento é maior, o PAIGC vê o seu acampamento de Cabolol assaltado, e é obrigado a abandonar, no chão, vários guerrilheiros mortos e diverso equipamento. Estes colonialistas são mesmo como as abelhas Lassas. Dê-se-lhes daqui para a frente o nome de Lassas.

Os chefes do Cafal estão furiosos. Os Lassas começam a conquistar a população menos politizada. As milícias e guerrilha começam a ter dificuldades com estes militares que, para além de não darem descanso, conseguem construir um aquartelamento, ocupando agora toda a Quinta.


(v) Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã

Em Julho o descaramento é demasiado. Desembarcam debaixo de fogo, passam para o outro lado do Cumbijã e assaltam Flaque Injã e Caboxanque. O acampamento de Flaque Injã é destruído, e a sua escola, completamente arrasada. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

É o caos. Ao regressar da mata onde se tinha refugiado, Pami NJa Dondo não quer acreditar no que vê! Fica petrificada. Não!... Não pode ser!?... Um nó aperta-lhe a garganta... Os alvos dentes cravam-se-lhe nos lábios carnudos até doer e o sangue aparecer. Como um riacho de pedra em pedra, as lágrimas rolam-lhe pelo magro e esguio rosto. Não é dor!... É revolta!

Porquê? A sua escola!? O seu encanto!?... Ah guerra!... Horrível flagelo do relacionamento humano!

Pami olha para o coto do seu braço esquerdo e sente a antítese. Na guerra mata-se para não se morrer, destrói-se para se não ser destruído. Mas a professora, neste momento, sente que seria preferível sentir a sua própria destruição e morte, do que ver aquele dantesco espectáculo. Da garganta a sufocar - em perfeito português - sai-lhe um grito de dor e revolta:
- Monstros!...

Não vale a pena!... Senta-se no solo e encosta-se de encontro ao tronco seco de um velho poilão, inclina a cabeça sobre o peito. Escorrendo sobre a cara e queixo, as lágrimas correm-lhe por entre os pequenos e desnudados seios. Com a destra, e única mão que lhe resta, tenta limpar os lacrimejantes olhos que, embaciados, não deixam ver o céu que agora procura, e pergunta ao Deus do padre Francelino o porquê de tudo isto?

Parece ouvir num sussurro uma voz muito ao longe:
- Os homens!... Pami!... os homens! Também eu morri na cruz por eles! Para quê?!...

Em puro acto de regressão, sente a necessidade do leite quente materno, mas a realidade é o frio cortante, de uma noite sem estrelas. Levanta-se e tenta encontrar a foto do comandante Nino, tirada na China, que Malan lhe tinha oferecido. Em vão! O que não foi destruído, foi levado. O velho dicionário é monte de cinza negra no chão. Toca-lhe, e o adorado amigo transforma-se em nuvem de negras borboletas esvoaçando.

Dirige-se para o acampamento, e tenta ajudar no tratamento dos feridos e no enterramento dos mortos.

Uma semana depois, novamente a notícia: os Lassas voltaram a Cabolol, e fizeram grandes estragos!


(vi) Notícias moralizadoras para a guerrilha: uma delegação da OUA vista as regiões libertadas

Os chefes da guerrilha mandam os seus grupos fugir ao contacto, e entrar no desgaste do bate e foge. Há ordens para enfrentar os militares de Cufar, apenas quando se tiver a certeza de poderem ser emboscados, e cair com força em cima deles. Utilize-se a emboscada com abelhas.

Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Mais uma vez, Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento, que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê, terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Meados de Agosto, [Pami] desce com Malan até Cobumba. Malan e o seu grupo exectutam várias emboscadas e ataques ao pessoal do quartel de Bedanda, causando várias baixas ao exército português, entre as quais se conta a morte de um sargento. O grupo de guerrilha regressa à sua base em Cansalá, mas Malan consegue autorização para ficar dois dias com a sua mulher.

As notícias são mobilizadoras para o esforço da guerrilha. E a visita de uma delegação da Organização de Unidade Africana (OUA) a zonas libertadas, a convite do PAIGC, é bastante moralizadora para os combatentes pela Independência.

(Continua)
_____________

Notas de L. G.:


(1) Vd. posts de:

15 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2268: A falsificação da história da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67)(Benito Neves)

18 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1673: O blogue do nosso contentamento (Benito Neves, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

2 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1559: Ex-Alf Mil Avilez, da CCAV 1484, hoje professor de arte, foi o autor do mural de Catió (Benito Neves)

(2) Morreu em combate, com o posto de capitão graduado, comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos, sediada em Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), em 16 de Abril de 1971. Participou na Op Mar Verde (invasão de Conacri), em 22 de Novembro de 1970.

Vd. posts de:

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1769: Estórias do Gabu (4): O Capitão Comando João Bacar Jaló pondo em sentido um major de operações (Tino Neves)

(3) Vd. posts do Mário Dias:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(4) Vd. post de 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)

(5) Vd. posts anteriores desta série:

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

Resumo:

A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.


Vd. também postes de:

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

29 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2315: Catió: A morança que poderá ter sido a da nossa Pami Na Dondo, a Guerrilheira (Victor Condeço)

(6) Lassas era a alcunha por que eram conhecidos os militares da CCAÇ 763, de que fazia parte o Mário Vicente, Fur Mil Fitas. No seu primeiro livro (Putos, Gandulos e Guerra, edição de autor, Cucujães, 2000, p. 75), pode ler-se:

"Por informações recebidas, a C.C. será conhecida no PAIGC com a alcunha de Lassas. Pelo que se veio a saber, lassa era "uma espécie de abelha existente na Guiné que, não sendo molestada, não tem problemas, mas se for atacada é terrivelmente perigosa quando enraivecida. Esta alcunha resultaria, portanto, da actuação da C.C. pois, quando chegava a uma povoação em que a população estivesse e não fugisse, não haveria problemas, pois falava-se com essa população e tentava-se resolver os problemas que houvesse. Se, caso contrário, a população fugisse e abandonasse as suas moranças, as mesmas eram literalmente destruídas" (...) .

O termo crioulo que ouvi, muitas vezes, aos meus soldados, quando fugíamos das terríveis abelhas africanas era Bagera, bagera!!! (LG)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > Fevereirto de 1968 > Pista de Cufar, Allouette III, equipado com canhão de 20 m/m. (Operação Ciclone I)

Foto e legendas: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Zona de intervenção da CCAÇ 763 e localidades por onde efectuou operações.

Foto: © Mário Fitas (2007). Direitos reservados.


A CCAÇ 763, comandada pelo então capitão Costa Campos, foi mobilizada para o CTIG, tendo embarcado em Lisboa no N/M Timor em 11 de Fevereiro de 1965 e desembarcado em Bissau a 17 do mesmo mês. Ficou instalada no BCAÇ 600, em Santa Luzia, para os procedimentos administrativos e logísticos habituais. À medida que ia recebendo o material, os grupos de combate foram sendo deslocados para Cufar por lanchas de Fuzileiros Navais, rendendo a CCAV 703.

Em 17 de Março de 1965, estava colocada, em quadrícula, em Cufar, adida ao BCAÇ 619, onde permaneceu até 10 de Novembro de 1966, data em que foi transferida para Catió para aguardar o embarque de regresso a Lisboa no Niassa. À data da sua chegada a Cufar, era formada por 5 Oficiais, 17 Sargentos, 144 praças e... 8 cães de guerra, pastores alemães.

Da actividade operacional que desenvolveu no Sul da Guiné, é de destacar a construção do aquartelamento de Cufar e de todas as suas infra-estruturas. A CCAÇ 763 levou a cabo 34 operações com apoio aéreo e naval, 17 das quais com contacto com o PAIGC. Nas acções desenvolvidas contra o então IN, a CCAÇ 763 destruiu os acampamentos de Cufar Nalu, Cabolol (duas vezes), Flaque Injã (duas vezes) e Caboxanque.

Para além desta actividade, há ainda que referir a realização de 415 patrulhas apeadas, 136 patrulhas-auto, 24 escoltas, 53 emboscadas, 10 golpes de mão, 13 operações de cerco e limpeza, 28 batidas e 3 nomadizações.

De toda esta actividade, estima-se que a CCAÇ 763 tenha percorrido aproximadamente 16 mil quilómetros a pé, 6 mil de viatura e mil de LDM. Durante este período a companhia teve 10 baixas (mortais), sendo 7 em combate e 3 por doença. Sofreu 53 feridos. Fez 45 prisioneiros e terá causado 40 feridos e 107 mortos ao então IN.

No romance de Mário Vicente, os principais protagonistas são a guerrilheira e professora do PAIGC Pami Na Dondo e os militares da CCAÇ 763, os temíveis Lassas...

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)

por Mário Vicente

Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor:
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Edição no blogue: Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Resumo do episódio anterior (1):

A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)… No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa.

Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano. O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto).

Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa. É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.


Parte II - A formação político-militar (pp. 22-29)


(i) Uma das primeiras mulheres na guerrilha do PAIGC


De pé, na canoa que o transporta e à sua família, [Pan Na Ufna] relembra e medita as palavras de Luís Ramos: Para se ser livre batalha-se muito, e morre-se por vezes antes de a Liberdade chegar.

Pami Na Dondo com perfeito entendimento e, inteligentemente - apesar de ainda adolescente-, verifica que, embora o sortilégio dos encontros e desencontros da vida, o seu caminhar será trilhado de forma idêntica ao de seu pai.

Com catorze anos apenas mas já madura, Pami inscreve o seu nome, como das primeiras mulheres a tornar-se guerrilheira do PAIGC.

A menina que estaria predestinada para ser transmissora da palavra celeste, fonte da Natureza, encontra caminhos similares mas de linguagem diferente. Criança ainda, não entende a Teologia da Libertação. Mas, tendo bebido da Fonte de Jacob, compreende que a hora de mudança chegou.

É chegado o momento de dizer basta! É hora de encontrar a força e inteligência possíveis para esmagar a escravidão! Liberdade!...

Nesta palavra mágica, a criança encontra o conceito que vai revolucionar toda a sua condição humana e de mulher.

Com a plenitude do entendimento, da responsabilidade que lhe advém de se tornar numa defensora do seu Povo, emprega toda a sua capacidade para enriquecer e dar vida a este grande projecto revolucionário. Apesar da sua condição feminina, e fragilidade física, prepara-se psiquicamente para enfrentar os duros caminhos que terá pela frente. Desperta-lhe o desejo da Cultura e do Saber!

Aportam, no tarrafe junto do cais de Cadique (2), e retiram os parcos haveres das canoas. Pan Na Ufna e sua família estão em zona libertada. Aguardam o romper do dia para entrarem na tabanca. Aqui, são reconhecidos por muitos elementos do formigueiro. Como anteriormente delineado, dirigem-se para a casa do chefe da Tabanca. Esse, lhes transmitirá os passos seguintes.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério - que por aqui passou e montou a tenda, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973.

Foto: Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.



Refrescam-se com água de coco e comem um pouco de arroz. São informados que o seu destino será o Cafal, onde cada elemento da família será verificado e lhe será comunicado o local da residência na zona libertada. Aí lhes serão fornecidas também as respectivas guias de marcha, elemento utilizado para controlo dos elementos combatentes e da população.

No mesmo dia, picada fora, trouxas à cabeça, descem até Cafine e daqui para Cafal Balanta, onde são recebidos e atendidos pelo comité de Tabanca e, posteriormente, pelo Comité Político das Forças Armadas Revolucionárias Populares da Zona 11 (FARP).

Fica determinado que a família ficará sediada na Tabanca de Cadique Iála. Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Fica com pleno conhecimento de que a única riqueza que tem é a roupa que veste, e a arma que lhe é entregue. Da forma como souber utilizar estes bens, assim contribuirá ou não para a criação e progresso da sua desejada Pátria.


(ii) A formação político-militar de Pami, na base de Sambise, na República da Guiné-Conacri


Pami, integrada num grupo de jovens, rapazes e raparigas, tem de partir para a República da Guiné onde irá receber instrução específica sobre a guerrilha.

Voluntariosa como sempre, mostra grande interesse e tem uma entrega total ao trabalho. Em pouco tempo estará integrada na orgânica do Partido e da Guerrilha: sabe que é o Comité Revolucionário, chefiado por Amílcar Cabral que, do exterior (República da Guiné), dirige a subversão; que esta já atingiu a 4ª fase (criação de Bases e de Forças Regulares); toma conhecimentos das redes e mecanismos da Guerrilha; fica também a saber que, através da República da Guiné, é feito todo o reabastecimento para as regiões e zonas do Centro e Sul, sendo o seu responsável militar o camarada João Bernardo Vieira Nino, o qual frequentou escolas de vários países onde aprendeu a doutrina da subversão, havendo a salientar a frequência do Instituto Popular de Política Estrangeira na República Popular da China, local em que estudou e aprendeu as teorias de Mao Zedong sobre técnicas da guerra subversiva (3).

Aprendeu também que o elemento de defesa local e vigilância das populações são as milícias; que as FARP, são formadas pelo Exército Popular (EP), força militar regular, pela Guerrilha Popular (GP), e pelas Milícias Populares (MP), onde foi integrado seu pai. Nas zonas libertadas, cada povoação tem o seu Comité de Tabanca, que é constituído por dois homens e duas mulheres. Nas bases é feita a doutrinação dos jovens e uma intensa alfabetização de massas. A guerrilha é a fonte de recrutamento para o EP, bem como para a MP, actuando a nível regional como o seu apoio.

Aprende a estrutura de uma Secção do EP, formada pela sua divisão em duas subsecções, as quais têm como efectivos noventa e cinco homens cada. Estas são por sua vez constituídas por cinco grupos, sendo um deles dotado de um morteiro, uma lança granadas-foguete (RPG), uma metralhadora pesada (MP), e quatro metralhadoras ligeiras (ML). Os restantes quatro grupos são dotados de seis pistolas-metralhadoras e doze espingardas automáticas, semi-automáticas ou de repetição cada.

Os combatentes, consoante a sua colocação, têm a designação de Militantes, Guerrilheiros ou Milicianos, em consonância com a estrutura em que se encontram: EP, GP ou MP, respectivamente. As principais bases existentes na zona Sul são: Antuane, Cansalá, Curcó, Cacaque e Cafal cujos responsáveis são, respectivamente, os camaradas Sambiche Na Ledé, Joãozinho Guade, Sadjá Bamba e o próprio responsável da zona, Nino. Todo o abastecimento desta zona é feito pelo corredor de Guileje e pelo rio Cacine. Tanto material, como pessoal, fazem também a sua transição por Salancaur, Antuane, Jemberem ou Ponta Canabem.

Na base em Sambise, algures na República da Guiné, Pami não aprende só a orgânica do Partido e o seu funcionamento: aprende o francês; inicia-se na tarefa reflexiva da razão, iniciação à filosofia. Consegue ter acesso a escritos, em que lhe são inoculadas as noções primárias da aptidão e competência particular para a compreensão dos seus problemas e dos outros, o conhecimento dos fenómenos sociais e explicação dos mesmos. Simples introdução básica à psicologia e sociologia. Aos poucos torna-se adulta.

A par de tudo isto, é conjugada a instrução de guerrilha: técnicas e tácticas são-lhe ministradas, e começa a ter contacto com o armamento e a forma como utilizá-lo. Assim, intensivamente, aprende a manobrar granadas de mão; montar, desmontar, e a utilizar pistolas CESCA 7,65 mm, pistolas-metralhadoras PPSH 7,62 mm, até aos lança granadas-foguetes RPG2 e RPG7, passando pelas metralhadoras ligeiras DEGTYAREV 7,62 mm e pesadas DEGTYAREV-SHPAGIM 12,7 mm (4).

Assim se vai transformando em guerrilheira a menina de Pan Na Ufna, enquanto ele passa para a GP, tornando-se nómada por força das circunstâncias ao subir na hierarquia da Guerrilha.


(iii) Pai e filha reencontram-se; a mãe Sanhá Na Cunhema está muito doente

Numa noite de luar, na picada Salancaur/Mejo, pai e filha reencontram-se. Ele fazendo parte da força de segurança, e ela da coluna de reabastecimento. Momentos altos para o homem forte e duro em que se tornou Pan. A sua sensibilidade leva-o a afagar novamente a cabeça de sua filha, como nos velhos tempos, transforma-a criança, não se apercebendo, da mulher - força vontade - em que a sua pequena Pami se transformou.

Enquanto fazem um momento de repouso, introduzem-se na mata, e falam sobre tudo o que os envolve. Bastante preocupado, Pan informa a filha sobre o estado de saúde em que se encontra a sua mãe Sanhá Na Cunhema. Não come praticamente nada, tossindo muito, com hemoptises por vezes. Informa a filha de que na próxima oportunidade levá-la-á ao enfermeiro do seu grupo, ou arranjará maneira de, clandestinamente, ter uma consulta em Catió, o que se tornaria um pouco mais perigoso. Mas é extremamente urgente. Pami fala na hipótese de a mãe ser vista na República da Guiné, mas a coluna tem de retomar o seu caminho, e nada fica delineado. Pami regressa à sua base de treino, preocupada com a situação de doença de sua mãe, mas, ao mesmo tempo, sonhando com o dia em que se tornará companheira de seu pai.


(iii) Pami perde a mão esquerda num acidente com arma de fogo e conhece o guerrilheiro Malan Cassamá no hospital


Mas o destino não o permite. A existência, indefinido caminho em que o homem não determina o princípio nem o fim, é muitas vezes transmutada, indiferentemente ao nosso desejo.

Um estúpido acidente transforma a vida e destino da guerrilheira. Durante a instrução de tiro, o cano da velha arma com que Pami treina a pontaria ao alvo rebenta e a rapariga que sonhava ser guerrilheira, vai para o hospital, com o antebraço esfacelado, e a mão esquerda decepada.

Momentos duros para Pami que, estoicamente, aguenta o sofrimento da dor. Mas a recuperação psíquica será dolorosa. O enfermeiro Go Na Iála torna-se um amigo extraordinário e ajuda-a a levantar a moral.

Entretanto, encontra um jovem companheiro de seu pai, que também recupera de um estilhaço de morteiro na perna direita, sofrido na operação desencadeada pelas forças portuguesas contra a Região do Como, em Janeiro de 1964 (5). Malan Cassamá narra a Pami as aventuras, a coragem e bravura com que seu pai se bateu em combate, enfrentando as forças inimigas em situação tão desesperada, pela libertação da sua terra, nas ilhas de Caim e Como, durante mais de dois meses. Pami sente-se orgulhosa.

A guerrilheira abolida é chamada ao comando de instrução. É uma conversa dura para Pami, mas esta não irá mais ser combatente. É-lhe destinada outra função dentro da Organização. A jovem passará a fazer parte dos quadros de alfabetização do Partido. Resultante da sua cultura, tem de se preparar, para seguir para o Cantanhês e começar a dar aulas ao pessoal do EP e MP.


(iv) Pami e Malan apaixonam-se; Pami é colocada como professora em Flaque Injã


Debaixo da enorme mafumeira do Centro de Instrução da Guerrilha em Sambise, na festa de fim de curso do contingente que regressará à sua terra para fazer a guerrilha, assiste com o enfermeiro, e o recuperado Malan, ao desfile dos seus companheiros. Emocionada, quando os jovens desfilam cantando o hino do Partido, os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, mas entoa também: Esta é a Nossa Pátria Amada, Hino do PAIGC, Hino do Povo (6). Voz embargada, mas bem timbrada, entoa:


Sol, suor, o verde e o mar,
Séculos de dor e esperança!
Esta é a terra dos nossos Avós!
Fruto das nossas mãos
Da flor do nosso sangue:
Esta é a Nossa Pátria Amada!

[Refrão]


Viva a Pátria Gloriosa!
Floriu nos céus a Bandeira da Luta!
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir na Pátria Imortal
A Paz e o progresso
Nós vamos construir na Pátria Imortal
A Paz e o Progresso.

Ramos do mesmo tronco
Olhos na mesma luz:
Esta é a força da nossa união!
Cantem mar e a terra
A madrugada e o sol
Que a nossa luta fecundou!

[Refrão]

Viva a Pátria Gloriosa! (...)


Orvalho salgado, escorrendo pelo fino rosto, Pami olha para Malan e os olhares fixam-se profundamente. Num momento ficam encabulados ao repararem que estão de mãos dadas. É o princípio de algo lindo que nasce fora dos usos e costumes da sua Raça.

Pami é colocada como professora em Flaque Injã. Uma experiência riquíssima para a jovem. Desde meninos, blufos, até homens grandes, serão seus alunos, mas a grande prioridade é, de facto, ensinar as milícias e o pessoal do EP.

Malan Cassamá, no regresso à guerrilha, ainda em recuperação, instala-se em Caboxanque. Todos os dias visita a professora de Flaque Injã. Passam largos momentos junto ao rio, ouvindo o murmúrio cantar das águas, nesse louco esvair para jusante ou montante, do mar ou para este nessa dualidade encantadora destes rios de maré, enchendo em tempos de preia-mar ou vazando em horas de baixa-mar. Os ruídos da selva são sons maravilhosos de sussurrantes instrumentos musicais. O arrulhar dos pombos verdes nos altos poilões são melodias de embalar. Sem o saberem, eles estão vivendo um momento belo da transformação da sua própria sociedade e cultura. Na procura do amor, na voluptuosidade dos seus beijos, na doce embriaguez, subindo do coração aos lábios, enleiam-se na máxima plenitude recíproca; a sua dualidade transforma-se num só querer, que se completa na concretização da mútua posse. Embora essa posse seja já de facto uma realidade, planeiam a sua união, aceitando ambos seguir as tradições da sua etnia. Assim, fica determinado que Malan falará com Pan Na Ufna.

Malan, de regresso a Cansalá, acerta todos os pormenores com Pan Na Ufna, que aceita, e a jovem professora de Flaque Injã e o guerrilheiro Malan, passam a ser marido e mulher.

(Continua)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

(2) Vd. posts de:

11 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2257: Convívios (34): CCAÇ 763 (Cufar 1965/67) (Mário Fitas)

27 de Junho de 2007 >Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1891: O Cantanhez (Cadique, Caboxanque, Cafine...) e os paraquedistas do BCP 12 (1972/74) (Victor Tavares, CCP 121)

25 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1876: Restos de aquartelamentos (1): Cadique, na margem esquerda do Rio Cumbijã (CCAÇ 4540, 1972/73) (Pepito)

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

(3) Vd. posts de:

22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)

(4) Vd. post de post de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1890: PAIGC: Gíria revolucionária... ou como os guerrilheiros designavam o seu armamento (A. Marques Lopes)

(5) Operação Tridente: vd. os textos que publicámos em primeira mão do nosso camarada Mário Dias, sargento comando, que esteve na batalha do Como, do primeiro ao último dia:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(6) É o hino da República da Guiné-Bissau. Letra e música de Amílcar Cabral. Pode ser ouvido aqui.



sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Vila > 1968> Foto 26: A praça do mercado, vista de quem vinha da pista [tirada à porta da casa do sr. Barros Correias]. À direita o Mercado, ao fundo à esquerda a casa do Sr. Brandão e à direita debaixo da mangueira o Bar Catió e bem ao fundo o quartel.



Foto 4: Igreja Paroquial de N. Sª. de Catió

Foto 24: Interior da Igreja de Catió, altar-mor de Nossa Senhora.


Foto 25 : Interior da Igreja de Catió, altar lateral direito do Sagrado Coração.

Foto 31: Habitantes e militares convivem na rua fronteira ao Bar Catió.

Fotos e legendas: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados


1. Ficha Técnica

Título: Pami na Dondo – A Guerrilheira (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos (Coronel)
Capa: Filipa Barradas
Coordenação gráfica: Cercica
Edição: Do autor patrocinada pela junta de Freguesia do Estoril
Distribuição: Junta de Freguesia do Estoril
Execução gráfica: Cercica – Cooperativa para Educação e Reabilitação de Cidadãos de Cascais, CRL
Rua Principal, 320 – 320 A – Livramento
2765-383 Estoril
Depósito legal nº: 228120/05
1ª Edição: Julho 2005


A meu neto: Guilherme Figueiredo
A todos os Veteranos de Guerra
A todas as mulheres: Mães, companheiras, amantes e amigas que tiveram a angústia da partida, e sofreram a dor de não os ver chegar

À memória dos meus amigos e companheiros António Pedro Lema, Gonçalves Vaz, Vieira Barcelos e Jorge Martinho

O meu reconhecido agradecimento pela colaboração prestada:
Sra. Dra. Amélia Casaleiro
Sra. Dra. Maria da Graça Fernandes
Sra. Dra. Sofia Fitas
Sra. Dra. Manuela Gil, Vereadora da Cultura
Sr. Coronel Carlos da Costa Campos
Sr. Luciano Mourão

PREFÁCIO, por Carlos da Costa Campos, Coronel (2)

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PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA
por Mário Vicente

Revisão do texto e subtítulos: Luís Graça.


Parte I - O balanta Pan Na Ufna e a sua filha Pami Na Dondo


Pan Na Ufna já tinha perdido a conta aos balaios de arroz que colocara na basculante, carregados pelo humano formigueiro. Não tinha interesse: bastava gritar o nome da entregadora ou entregador e o peso acusado na balança. Atento, Sr. Luís Ramos apontaria no papel borrão. Posteriormente, por permuta com outros bens ou por dinheiro verdadeiro, limpinho ali na mão - notas sujas amarfanhadas -, fazer o encontro e quitação de contas.

Esperto, o senhor Luís pagava mais um peso (escudo) por cada dez quilos de arroz que a concorrência. Certo era que o formigueiro não findava: longos e sinuosos seus caminhos, desconhecidos os princípios e fins dos seus carreiros. Desde manhã - sol a despontar por sobre o ilhéu de Cantone até cair sobre a foz do Tombali - ao escurecer. Das mais longínquas Tabancas, balaio à cabeça ou de canoa pelos rios, aproveitando as marés. Assim, no fim das colheitas, era passado o dia e parte da noite a caminho dos armazéns do Sr. Ramos, representante da Casa Brandoa, pertença da União Fabricante.

Trabalho de alto risco. Havia por vezes vingança da concorrência sobre a pobre formiga, desfazendo com pata de elefante - bota cardada - o seu carreiro. Chegou haver mesmo situações de confiscação e cremação dos pequenos e parcos celeiros, por tão alvitrante atrevimento.

Mas, naquele dia, Pan Na Ufna não comentava nem queria saber dessas situações; desinteressado mesmo, a sua cabeça mantinha longe o carreiro.

Que quereria o padre Francelino, para o chamar à igreja? Fervilhante, a sua mente ia formulando todas as especulações plausíveis e impossíveis. A sua massa cinzenta já tinha trabalhado mais naquele dia que num mês de grande movimento:

Não!... Não podia!... Ou seria? as conversas com o Sr. Ramos sobre ter uma Pátria... Seria?... Ter uma Pátria só Nossa? Bonito! Mas todos juntos também não era mal. Só que todos deviam ter Lei igual! Não! Não!... não seria essa a razão da chamada! Que é que padre tem com isso? Espera?! Seria por ter batido na mulher mais nova? - conjecturava.

Ele não queria!... Verdade!, mas... quando bebia mais um golo de aguardente de cana, ou vinho de palma, lembrava sempre aquela malvada que não lhe dava filho fêmea, só filho macho, meio tonto como a mãe. Sanhá sim, que tinha dado filho menina. Esperta a aprender e na escola, - graças a Sr. Luís Ramos e padre Francelino - ser sempre a primeira.

O musculado corpo, a escorrer suor gorduroso do esforço baixa-levanta balaio, estava insensível. A cabeça de Pan continuava sem descobrir a indecifrável chamada do padre Francelino.

O melhor seria beber um golo de cana, para esquecer a cabeça!? Não!... Isso também não! Se o padre lhe cheirasse à cana tinha logo conversa dura de certeza. Não aguentava mais! Fez uma pausa e foi falar com o senhor Ramos.

O responsável da Casa Brandoa ouviu o seu auxiliar com atenção e, sorrindo, respondeu-lhe brincalhão:
- Não tenhas problema! Vais ver que o padre quer que tu abandones o teu IRÃ, e que vás adorar o CRISTO dele.
- Um milagre!... Converter um Balanta!

Assim brincando mandou Ramos sossegar o aflito ajudante. Mas as horas não passavam e os minutos eram eternidade. Luís Ramos, atendo à desorientação em que se encontrava o seu empregado, mandou-o ir embora falar com o Padre, meia-hora antes do encerramento do estabelecimento.


O missionário italiano Francelino e o patrão Luís Ramos


Subindo a desnivelada rua de terra vermelha batida que dava acesso à Igreja de Catió - caminho fustigado por enxurradas de tornados em época de chuvas, ressequido e escaldante em tempos de seca -, Pan Na Ufna, na sua suada caminhada, regrediu nos tempos, e a sua mente tresmalhou-se no passado: relembrou seus falecidos progenitores quando ainda menino e depois blufo, lá para os lados do Xuguê; seu pai fora Homem Grande e chefe de Tabanca de muito saber, de idade e vida feito.

Pan sentiu saudades... teve vontade de ser menino. E sentiu a atracção da terra mãe, embrenhando-se por matas e capinzais, nas suas brincadeiras de criança e caçadas de adolescente. O seu coração transmitiu aos olhos o humedecimento da saudade.

Chegou à Igreja e entrou sem efectuar qualquer preceito, pois até a sua convicção animista, atribuindo às coisas alma análoga à pessoa humana, consubstanciada na crença politeísta, pouco ou quase nada lhe dizia. É assim a evolução do homem, o contacto com a cultura é irreversível.

Não encontrou ninguém. Saiu e, contornando o Cristão edifício, aproximou-se da casa de habitação do padre Francelino, Italiano de nascença, - alto, esguio, barbas e cabelos brancos-, há longos anos missionário por terras de África.

Abeirou-se do muro do jardim e também não vislumbrou ninguém. Hesitante, bateu as palmas e gritou:
- Padre Francelino!?...

De imediato, numa pronúncia italo-portuguesa, ouviu-se a voz do padre.
- Per Cristo!... Aqui estou!

Lançando o olhar no sentido auditivo da voz, Pan teve uma aparição Bíblico-Guerreira: sotaina branca, cofió preto enterrado na alva cabeça, na mão direita empunhando ao alto uma velha catana, apareceu-lhe o padre que lhe gritou:
- Olha, fratelo Pan! Corpo de bó está bom? Como vais tu, irmão em Cristo? Biene!... E Sr. Ramos, saúde boa? Desculpa, amigo mio... estava capinando no outro lado! Entra!... temos muito conversa.

Pousando a catana sobre uma velha e já meio desfeita mesa de madeira, abriu o ferrugento portal do pseudo-jardim, para acesso do requisitado visitante. Descobriu a branca cabeleira, retirando o enterrado cofió. Do bolso direito da sotaina, retirou um amarfanhado lenço - cujo branco tinha virado cinzento-, com o qual foi limpando as gotas de suor da testa e rosto, e continuou a falar:
- Amigo meu! Sou muito contente, teu filha Pami é uma inteligência. Temos de falar muito. Muito mismo!

A forma como o padre Francelino falava com Pan, transmitiu-lhe um certo alívio, deixando-o mais calmo. A tempestade gerada em sua cabeça foi-se aos poucos esfumando, até terminar quando uma hora mais tarde saiu da casa do padre.

Já na rua, agora completamente descomprimido, pensou que valia a pena uma pinga de cana, para festejar o alívio da cabeça e não só, mas também as palavras bonitas e os louvores que ouvira, referentes a sua menina Pami Na Dondo. Pelo que, em vez de rumar a casa, se dirigiu ao Zé Libanês, onde bebeu um copo de cana de festejo, outro de alegria e outro mais por lhe saber bem.

Saiu, e na rua sentiu já um pouco o efeito do álcool. Rumando a Catió Balanta, tomou o caminho de casa, completamente absorto na conversa que tinha tido com o padre. Consigo mesmo ia falando quando em voz alta lhe saiu:
- Um Pátria Nosso!

Passou pelo cipaio Jaló e ficou temeroso, não tivesse aquele ouvido a escapadela. Mas esqueceu! Estava contente. Padre Francelino sabia tanto ou mais que sr. Ramos e ambos estavam do mesmo lado.


Pami Na Dondo não será freira


Em casa a bianda estava pronta, arroz e galinha pilada com mancarra. Comeu. Pensamento vagueante, três vezes passou com carinho a mão sobre a cabeça de sua filha Pami. O álcool ajudou e os olhos tiveram pérolas. Dormiu com Sanhá, e com ela fez conversa giro.

Manhã cedo, compareceu nos Armazéns Brandoa muito antes da sua abertura.
- Então, que queria Dom Francelino? - perguntou Luís Ramos em tom jocoso, estranhando o madrugar do seu auxiliar.
- Assunto importante! Coisa mesmo séria, sr. Ramos!...

E Pan relatou ao seu patrão toda a conversa que tivera com o padre: o pedido que aquele lhe fizera para pôr nome Cristão, e baptizar segundo as leis da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana sua filha Pami, autorizando a sua saída para um colégio de freiras em Itália; a entrada em outros temas, após a conversa sobre a sua filha, descrevendo como o padre enveredara por caminhos da política, e, dissertara sobre o problema da revolta dos Papéis; a criação da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné, e finalmente, a história da recente matança de Pidjiguiti, quando os estivadores reivindicavam melhores salários; terminando na análise em que o Povo da Guiné se encontrava.

E, como o padre lhe dissera a ele, reproduziu para Luís Ramos:
- Não tem demora! Revolução está aí!

O patrão ouviu tudo em silêncio e no final sorriu. Colocando o braço sobre o forte tronco do seu funcionário, deu-lhe duas palmadas de amizade e segredou-lhe:
- Estás a ver! Não conseguiu pôr o pai no altar, mas quer pôr lá a filha!

Luís Ramos sorriu. No entanto, a sua cara foi-se transformando, até ficar com ar completamente sério e apreensivo. Com a mão direita pegou no braço esquerdo de Pan, e fez pressão, até ficarem os dois frente a frente. Olhando olhos nos olhos o auxiliar, disse-lhe em tom sério:
- Pan! Numa revolução é sempre natural a morte. Seja de que lado se estiver!
- Queres aderir ao PAIGC? Queres fazer a guerrilha? Queres ter uma Pátria Nossa?

Os homens firmaram bem o olhar um no outro. Pan, emocionado com as palavras de Luís Ramos, olhos humedecidos, retorquiu com firmeza:
- Quero,sim!... Quero uma Pátria Nossa!

Patrão e empregado ficaram cúmplices a partir daquele momento. A meio da manhã, o cipaio Jaló apareceu nos armazéns. Pan estremeceu e sentiu medo, mas o cipaio apenas falou com o patrão. Nada de anormal, coisa de rotina. Queria informações sobre o pessoal que se abastecia nos armazéns. O contacto já tinha começado.

As conversas entre Luís Ramos e Pan Na Ufna começam a girar sempre em torno do mesmo tema. Os contactos e interpelações junto do formigueiro começam a dar os seus frutos, e novos carreiros são abertos.

Composta de mudança a vida, umas vezes andando em frente, outras retrocedendo, vai-se mutando. Por razões desconhecidas, mas perceptíveis e entendíveis, o padre Francelino é transferido, e abandona a Província Portuguesa da Guiné. Este involuntário abandono vai ter reflexos na família de Pan Na Ufna.

Pami na Dondo não será freira. Consegue a quarta classe de alfabetização e salva-se da excisão do clitóris (fanado). No entanto fica com algo precioso. Precisamente o saber ler, escrever e interpretar, no que se tornará útil para a família, principalmente para seu pai. Lê todo o pedaço de papel que encontra. O velho dicionário que lhe é deixado pelo padre Francelino na sua partida, transforma-se na Bíblia e enciclopédia da menina Balanta.

Aprende o feminino: adjectivo próprio da fêmea, seres não masculinos em género gramatical. Assim, percorreu desde a fêmea ao feminismo, a mística palavra mulher. O sofrimento o desconforto do Ser considerado menor, inferior. O segredo oculto, em patriarcal e feiticista sociedade que a rodeia, não a deixando evoluir na igualdade. A certeza apenas de ser fêmea reprodutora, e escrava da bolanha.

Compreende que Bajuda, em português, é o estádio da jovem que ainda mantém o hímen, portanto ainda não foi desflorada. Estado virgem, em que não houve a ligação, penetração com o parceiro macho. Mas consegue desmistificar a ligação amor da subordinação ao macho.

Muitos conhecimentos apreendeu sobre o seu próprio corpo. Pesquisando, ficou a saber que no dia que sentisse e ocorresse um corrimento sanguinolento entre as pernas, oriundo da vagina, seria menarca. Obra do desprendimento de óvulo não fertilizado. Pelo que estaria a partir dessa altura apta para ser fecundada. Disponível fruto maduro, para a apetência objecto - usufruto - do macho. Ignora ainda, a sublimação e o sentir da palavra mãe, companheira, amante e amiga. Não só o nome e funcionamento dos seus órgãos genitais aprendeu, mas do homem também.

Só... nos tórridos e húmidos dias do equador à sombra da mangueira, Pami vai percorrendo o seu mundo maravilhoso, através do velho dicionário. Nele, não foi só sobre o seu corpo que a menina aprendeu coisas maravilhosas. Em cada palavra aparecia um mistério, em cada mistério um mundo extraordinário de saber e alegria, através da leitura das velhas folhas fazia descobertas encantadoras.

Amor: Os nossos sentimentos e a sua força, que nos induzem e incitam para os objectos dos nossos desejos, afeição ou paixão!? Afectação, monopolizadora de algo para nós, possessivamente. O inverso! Doação total e incondicional. Aquilo que somos e valemos nós próprios. Palavra simples e pequena, mas que resume toda a grandiosidade do que deveria ser a relação humana.

Horizonte: Todo aquele vastíssimo espaço da superfície terrestre abrangido pela nossa vista. Linha de contacto aparente entre o céu e a terra. Natureza, pura imagem dos sonhos que criamos, realidade do que de bom ou mau nos rodeia. O infinito indefinido, que existe para além.

Instrução: Acto ou efeito de dar conhecimentos ou recebê-los. A experiência tornada em saber. Erudição, adestração, esclarecimento constante, do aprender até morrer. Preparação para a Cultura, o saber que nos sobra depois de tudo desaprendermos.

Lágrima: Líquido produzido pelas glândulas lacrimais, que em gota qual pérola, rola muitas vezes pela face, que consoante os sentimentos - efeitos de causa -, se tornam em sangue e dor de sabor a fel, ou de alegria e amor com sabor a mel.

Beijo: Acto de união da boca (lábios) com qualquer parte do corpo em toque sublime que define os sentimentos do momento. Junção íntima de acto de amor, ou veneração respeito de alguém. Asqueroso toque traidor de amigos, imitadores de Judas Escariotes.

Medo: Essa coisa invisível, mas intensamente sentida pela ideia inquietante perante o perigo real ou aparente. Apreensão, pavor, em que a mente se destrama na maior facilidade, trespassada pela lança da incerteza.

Sublimação: A transmutação de instintos e tendências egoístas e não espirituais, para o altruísmo, doação total.

Raça: O conjunto comum de caracteres hereditários que formam um agrupamento natural de homens, independentemente da cultura, costumes ou língua.

Etnia: Conjunto de indivíduos que podendo ser de países e ou raças diferentes, estão unificados por uma língua ou civilização comum.

Circuncisão: Ablação da membrana do perpúcio nos homens, pondo a glande a descoberto; corte nos lábios da vulva e clitóris - castração - na mulher.

Assim se encanta, deliciando-se com estas leituras. Assim vai a miúda balanta, enriquecendo o seu saber - conhecimento de toda a Natureza -, e a sua cultura, com o seu maravilhoso livrinho, grande legado do padre Italiano.

Entretanto, o cabo-verdiano Ramos recebe a notícia que seu filho, a estudar em Lisboa, vai ser incorporado num Centro de Instrução de Sargentos Milicianos do Exército Português. Luís Ramos, um pouco desorientado, abandona a Casa Brandoa, regressando a Bissau.

Pan Na Ufna vê-se a braços com grandes responsabilidades e toma a grande decisão de entrar na clandestinidade. Finalmente, chegou a hora! Prepara a fuga com sua família para o Cantanhês e ingressa na guerrilha. Pela calada da noite, a família ruma ao ilhéu de Infanda, onde as canoas esperam, para os transportar para lá do Cumbijã.

Uma nova vida começa!

Continua
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Notas de L.G.:

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

1. Conheci o Mário Vicente, ou melhor, Mário Fitas (1), na estreia do filme de Diana Andringa e Flora Gomes (2). Ele teve a gentileza de me oferecer um exemplar de cada um dos seus dois livros, autografados.

Li-os, com prazer e entusiasmo, e passado algum tempo pedi-lhe para publicar, por partes, o seu romance Pami Na Dondo, a Guerrilheira. Embora alguns dos nossos amigos e camaradas já tenha tido o privilégio de ler a obra, a maior do pessoal da nossa Tabanca Grande e os demais internautas desconheçam-na por completa.

É uma edição de autor, com uma tiragem limitada (500 exemplares), e que não tem propósitos comerciais. O Mário não teve dúvidas em, de imediato, satisfazer o nosso pedido. Vamos começar a publicar a estória da nossa guerrilheira, a Pami Na Dondo, balanta, que um dia vai cair nas mãos dos Lassas, os tugas de Cufar...

Antes do 1º epísódio, vamos levantar um pouco o véu sobre o autor, a sua obra e os bastidores... através da troca de e-mails entre ele e o editor do blogue.


2. Mensagens de Luís Graça e de Mário Fitas:


21 de Outubro de 2007

Caro Luís,

Foi um prazer estar pessoalmente e falar contigo, principalmente pela coincidência de ser na estreia de As duas faces da Guerra. Filme que desde já te informo, gostei de ver, mas que terei de ver mais vezes (2).

Agradeço as tuas palavras sobre a minha pessoa, e pena é não haver mais tempo para podermos falar dos problemas dessa Guiné maravilhosa.

Já enviei uma mensagem sobre o filme, mas como referi, quero-o dissecar melhor.

Quanto à publicação, no Blogue, de Pami na Dondo, a Guerrilheira, não vejo inconviniente absolutamente nenhum, acho que a Guerrilheira já faz parte da Tabanca Grande. Aliás agora tenho a convicção que valeu a pena todo o esforço feito, pois estou a sentir o pulsar de quem continua a amar Àfrica e a gostar - apesar de todas as vicissitudes - daquela linda Guiné.

Só que há uns problemas: É que eu não sou grande coisa em termos de informática, e também estou limitado em termos de software e hardware. Se houver na Tertúlia algum expert em informática que se voluntarie para pôr o livro no Blogue, tudo bem, não há problemas nenhuns, o Chefe da Tabanca manda.

Luís, o livro foi escrito precisamente para divulgar a estupidez daquela e de todas as Guerras. Se achas que de facto a introdução do livro no Blogue tem interesse, vamos embora, liberdade total. Quem fica a ganhar com isso somos todos nós que fazemos parte dos Povos de Portugal e da Guiné-Bissau.

Sempre ao dispor!

Um Abraço

24 de Outubro de 2007

Caro Luis,

Quanto ao livro, acho que encontrei qualquer coisa nos meus documentos, só que faltam as fotos, que vou tentar resolver, e até a hipótese de incluir outras também sugestivas.

Quanto ao Brandão, era conhecido em Catió, só que no livro é apenas mencionada a casa Brandoa e a União Fabricante, para defesa do escritor... Sabes que é muito complicado incluir nomes verdadeiros que por vezes nos trazem problemas.

Já escrevi no Blogue sobre o conhecimento de um rapaz de nome Brandão em Cufar. À Gilda Brás (3), enviei o meu livro a seu pedido, mas até hoje não recebi qualquer informação.

Quanto à nossa Pami, há de facto Balantas que faziam a excisão ou clitoridectomia. Os Balantas têm ou tinham vários grupos e até por vezes falando o seu dialecto distinto, e até os que sofreram a infuência islâmica, designados por Balantas Manés. Quase todas as raças na Guiné a praticava, assim como a circuncisão [masculina].

Um Abraço


27 de Outubro de 2007:
Caro Luís,

Tenho tido o meu computador sem Internet, e com problemas pelo que só hoje posso entrar em contacto eficiente (julgo eu) à Tabanca Grande. Tinha no Word uma versão de Pami que julgo ser a última versão que foi para a tipografia. Não enviei as fotos dos aviões e do Niassa, porque queria a tua opinião, sobre se se poderão incluir mais fotos, que poderão enriquecer o livro. Pelo que aguardo uma opinião sobre o assunto.

Um abraço do tamanho do Cumbijã!

27 de Outubro de 2007:

Caros amigos envio A GUERRILHEIRA.

Um forte abraço.

Mário Fitas


27 de Outubro de 2007:

Mário:

Não queres dar uma pequena explicação aos nossos camaradas sobre o livro ? Como te surgiu a ideia ? Onde foste buscar a Pami ? ... A tua estória, que eu estou ainda a ler, levanta algumas questões interessantes mas também perturbantes, como os interrogatórios aos prisioneiros, feitos por milicianos...

Talvez valha a pena contextualizar a estória: já havia psico, nesse tempo ? Em 1965 ? Por outro lado, ainda não respondestes à questão que te levantei há dias: entre os balantas havia a festa do fanado, mas eles não praticavam (nem praticam) a circuncisão feminina (ou MGF - Mutilação Genital Feminina)... Mas eu só conheci os balantas da região de Bambadinca... Posso estar equivocado...

Luís

28 de Outubro de 2007:

Caro Luís,

Nada me impede, de dar todas as explicações sobre Pami na Dondo, a Guerrilheira. Só que por motivos vários não gostaria que determinados pormenores passassem dos editores do Blogue, pois para além de existirem ainda muitos intervenientes vivos, existe uma memória colectiva, com respeito pelos que já partiram.

Estou a tentar contactos directos com (personagens e familiares) e verificar até onde posso chegar. Para mim não há problemas, pois tenho a consciência que fiz uma guerra, independentemente do nome que se lhe queira dar. Para mim foi guerra! Não
tomo partido por nenhuma definição além desta. Tendo-a feito estudado e analisado, assumo as minhas responsabilidades, pelo que resolvi mostrar aquilo que vivi, senti e vi.

É nesse contexto que nasce a Guerrilheira, uma autenticidade ficcionada. Senti que deveria falar e contar a guerra, não como narração de actos e feitos, mas através de um romance, narrar a realidade da guerra.

Plenamente confiante em ti, e sem problemas para mim, ponho esta questão: Estivemos ou não estivemos em guerra? Ela é na realidade uma estupidez! Mas que pode fazer um (puto) de vinte e um anos, perante este drama, tendo sido preparado e estruturado para essa própria Guerra? Foi muito complexo! Só acordei, quando me encontrei chafurdando nas bolanhas, respirando vapor de água nas matas, e gatinhando sobre a lama dos rios de maré ou matando a secura no velho copo de bambu.

Já era muito tarde!...Tinha amigos tombado a meu lado,e outros, estropiados, tinham lançado aquele olhar de adeus... "Até Quando"? Morrer? Seria solução? Outros caminhos e opções eramos obrigados a ter. E aí, meu amigo, o homem torna-se animal!
Transforma-se em monstro. As minhas histórias fui contando. Geralmente a
resposta era a mesma:
- O gajo está a pintar!

Não queria ir embora, dar de comer aos bichinhos da minha querida planície, e egoisticamente levar estas verdades, e o meu ódio e repuúdio pela guerra, sem deixar algo que tentasse sensibilizar a condição humana.

Respondendo às tuas dúvidas:

(i) É certo que os balantas não praticavam a excisão, os politeístas, mas os que já estavam ligados ao islamismo, esses, faziam-no. Como tenho referido, há momentos de ficção no livro, esse pode ser um deles.

(ii) Da Miriam, podia dizer-te tudo! Da Pami, nesse aspecto felizmente não!( Agora estou a rir) já deste uma olhadela pelos Putos Gandulos e Guerra. Concerteza. Pois é, Chefe da Tabanca Grande, não foi fácil, não!

(iii) Quanto aos interrogatórios, não era feito pelos milícias, mas sim por graduados, eles serviam apenas de intérpretes, pois as únicas pessoas de etnia balanta que ouvi falar crioulo e português, foi a personagem Pami, e o ex-guerrilheiro Alfa nam Cabo.

(iv) De facto havia psico sobre as quatro tabancas a sul de Cufar, dávamos aulas e pequeno almoço a mais de cem miúdos, e tentava-se que os prisioneiros por nós efectuados, rejeitassem o PAIGC é verdade, nós também recebíamos correspondência do Alfero de Mato, colocada no cruzamento do Cabaceira.

(v) Também tinhamos agentes duplos! Olha um deles, o Bia, chefe da tabanca de Impunguedada, levava e trazia. Um dia soubemos que tinha sido morto no Cafal (Cantanhez), por tentativa de fuga (?). Nunca o soubemos. O Codufu, chefe da tabanca de Cantone, foi comprar caqui com dinheiro nosso, como sendo para o PAIGC.

(vi) A guerra era porca! A emboscada em que morreu o Gonçalo, foi montada pelo PAIGC, por informações fornecidas pelo Admnistrador de Posto de Catió, com quem o Comandante de Batalhão se tinha aberto. Por estas e por outras, levou a trancada na cabeça, e que já alguém contou no nosso Blogue.

(vii) Luís, fala-se do que as nossas tropas faziam. É verdade! Nós tinhamos problemas com isso, principalmente com os Heróis do arame farpado, que se borravam todos nas operações. Mas também havia problemas do outro lado [, do lado do PAIGC,] e talvez piores. Já alguma vez ouviste falar na limpeza étnica em que foram executados guerrilheiros de etnia balanta? O próprio Amilcar Cabral! Porquê? Foi tudo muito sujo e feio. O mal foi ter começado. Depois era de esperar: Porcaria!


Estou cansado e triste, ao recordar tudo isto, mas há que criar forças, pois há tanto para contar!

Aqui para nós, a nossa Menina existiu e viu muita coisa!

Um abraço do tamanho do Cumbijã.
Mário Fitas


29 de Outubro de 2007:

Mário:

O teu testemunho é desassombrado, lúcido e corajoso... Autorizas-me que o publique, antes, durante ou depois da publicação da Pami Na Dondo (em folhetim, em partes) ?

Devo dizer-te que adorei a estória da Miriam, do furriel Mamadu e do Homem Grande. Vou ter que a publicar, com retrato e tudo... Não me vais dizer que não! Até porque está em livro... E se ela, a tua Miriam, está viva e alguém lhe contar/ler a estória (o que é de todo improvável), ela vai ter de novo orgulho em ti, saudades de
ti...

É uma belíssima história de amor (por que não ? de ternura, de paixão, de atracção, de solidarieddae humana...) em tempo de guerra. A malta tem imenso pudor em falar disto, dos amores e desamores em tempo de guerra, da sexualidade, da descoberta dos outros/as.

Os meus parabéns, Mário.

29 de Outubro de 2007:
Luís,

Obrigado pelas tuas palavras. Do que está escrito nos meus livros, estás à vontade, podes publicares no Blogue tudo o que quiseres. Não são obras-primas de literatura, mas sei a força que têm.

Quanto à Pami, acho que não devo tocar, o livro foi escrito assim! Deve assim ficar, só com a inclusão de algumas fotos que são referência do que está escrito. Nesse aspecto, o Briote ofereceu-se, para me dar uma ajuda para tratar das fotos em termos informáticos, o que para mim é um grande favor. Agradecia também a inclusão do prefácio do Coronel Costa Campos, pois é um depoimento de grande valor (4).

Quanto ao que ontem escrevi, és livre de publicares o que quiseres. Não há problemas absolutamente nenhuns, eu o que não quero é que haja quem fique machucado, com o que eu escrevo.

Quanto a mim sou um homem livre e assumo os meus actos, tive a felicidade de ter dois homens extraordinários perto de mim. Meu avô materno João Fitas, monárquico e católico, que me tratava por companheiro, e meu pai António Vicente que me contou a chacina de Badajós - ainda eu era puto - à qual ele assistiu, e muita fome matou aos desgraçados que fugiam da morte.

Um Abraço do tamanho da minha Planície.

Mário Fitas

___________

Notas de L.G.:

(1) Mário Fitas foi Fur Mil Op Esp, da CCAÇ 763 (Cufar 1965/66); é autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné

Vd. posts de:

12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

(2) Vd. pots de:

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

(...) "(xvii) O Mário Fitas, que não conhecia pessoalmente e que a teve a gentileza de me oferecer um exemplar dos seus dois livros; no mais recente (Pami Na Doindo, a guerrilheira) escreveu a seguinte dedicatória:

"Silêncios parados, ressoar de passos do passado! Para o Dr. Luís Graça, agradecendo toda a disponibilidade para com todos os que fizeram o 'Vietname Português'. Um abraço sincero do Mário Vicente.

"Obrigado, Mário, o Doutor é que está mais, camarada! Fica o pedido de autorização para publicares no nosso blogue a belíssima narrativa da tua guerrilheira". (...)

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2202: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (8): Voltei a Cufar e a chafurdar nas bolanhas e rios de maré (Mário Fitas)

(3) Vd post de 4 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1919 - Tabanca Grande (22): Gilda Pinho Brandão, uma nova amiga

(4) Já foi aqui publicado: Vd. post de 2 de de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

(...) "É uma edição do autor, de Julho de 2005, patrocinada pela Junta de Freguesia do Estoril. O Prefácio é da autoria do Coronel Carlos da Costa Campos, e diz assim (Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue)" (...)



(5) Episódio sangrento da guerra civil de Espanha, que foi presenciada pelo jornalista português Mário Neves, do Diário de Lisboa:


Sitografia (sumária):


Blogue de José Viale Moutinho > 19 de Março de 2006 > 129 livros sobre a guerra civil de Espanha (e depois)

Fundação Mário Soares > O repórter Mário Neves na Guerra Civil de Espanha > A chacina de Badajoz





Cópia da página da edição do Diário de Lisboa, de 15 de Agosto de 1936, 2ª tiragem, com a famosa reportagem de Mário Neves sobre a reconquista da cidade de Badajoz pelos franquistas e a chacina dos vencidos.

Fonte: Fundação Mário Soares (2007) (com a devida vénia...)

(...) "Quando Mário Neves, com apenas 24 anos, e ainda estudante de Direito, foi incumbido da sua primeira e derradeira prova como repórter do Diário de Lisboa, nunca iria imaginar as repercussões internacionais que iria ter o seu testemunho da tomada violenta de Badajoz por parte das tropas nacionalistas.

"A 'Matança de Badajoz' foi presenciada em primeira mão por três jornalistas: Reynolds Packard, da United Press, Jacques Berthet, do Temps, acompanhados por Mário Neves. Estes jornalistas, e mais tarde Jay Allen, correspondente do Chicago Tribune, foram os primeiros a denunciar a violência e a 'inflexível justiça militar' realizada pelo Exército de África, comandado pelo tenente-coronel Yagüe.

"Estes testemunhos directos e oculares iriam ter um impacto muito forte na imagem que os rebeldes nacionalistas queriam dar ao mundo, de libertadores da barbárie e da anarquia.
Para Mário Neves significou a última oportunidade de apresentar a verdade, já que depois do seu artigo de 16 de Agosto de 1936, a crónica do dia seguinte foi integralmente censurada e ele próprio envolvido numa polémica internacional sobre a veracidade dos relatos, que se arrasta até aos nossos dias.

"Se em Portugal a faceta violenta do Exército de África foi facilmente neutralizado pela censura, no estrangeiro as repercussões foram enormes, e o Governo Português foi associado e condenado pela colaboração com a facção nacionalista, num período em que ainda estava a ser delineada a política de 'neutralidade' assumida oficialmente por Salazar" (...)

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)


Capa e contracapa do livro do nosso camarara Mário Vicente [Fitas], Pami Na Dondo, a Guerrilheira

Mensagem do A. Marques Lopes, com data de 26 de Junho último:

Caros camaradas

Para a nossa bibliografia sobre a guerra vai a capa e contra-capa do livro Pami Na Dondo, a Guerrilheira, da autoria do nosso tertulaiano Mário Vicente [Fitas Ralheta] (1). Teve a amabilidade de nos oferecer esta obra e eu aceitei, e já lhe disse que vai ser o primeiro livro a ler durante as minhas férias, que começarão na Nazaré já na próxima sexta-feira.

É uma edição do autor, de Julho de 2005, patrocinada pela Junta de Freguesia do Estoril. O Prefácio é da autoria do Coronel Carlos da Costa Campos, e diz assim (Subtítulos da responsdabilidade do editor do blogue):


Entre a ficção e a realidade


"Nesta obra, de forma peculiar, o autor apresenta-nos a bajuda (nativa jovem e ainda virgem) Pami Na Dondo - A GUERRILHEIRA - e por ela vamos saber como na Guiné, entre os seus naturais, nasceu a ideia de Nação e como surgiu o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde).

"A obra oscila entre a ficção e a realidade, bem documentada, descrevendo o ambiente e as personagens; somos assim postos perante a profundidade de um romance e não face à superficialidade de qualquer outro tipo de narrativa.

"Assim, somos transportados desde a vivência dos militantes do PAIGC até à acção e forma de viver dos soldados que compõem a Companhia de Caçadores 763, uma Unidade do Exército Português onde o autor esteve integrado, numa comissão de serviço militar na Guiné Portuguesa.


A odisseia da jovem Pami Na Dondo


"Ao longo do texto vamos de mãos dadas com a jovem Pami Na Dondo que nos narra a sua infância e adolescência, as peripécias que viveu, até que, já mentalizada, se transformou numa guerrilheira do PAIGC mais tarde, e por via dos factos, é feita prisioneira pelos militares que ela combate e, retida no interior do seu Aquartelamento com o seu espírito de observação, tem a oportunidade de nos poder denunciar o procedimento e as personalidades daqueles que ela tem por seus inimigos.

"Pami Na Dondo conta-nos como chegou à noção de Nação, como ajudou a diluir os antagonismos existentes entre os diversos grupos étnico-tribais, acabando por aderir ao PAIGC que para ela seguia a prossecução dos objectivos que ela também visava.

"Pelos olhos dela vamos assistir ao desenvolvimento do PAIGC desde os seus primórdios até ao seu completo amadurecimento e, quando mais tarde prisioneira, ficamos a saber o seu comportamento e pensamentos relativos aos seus captores.

"A acção desenrola-se no Sul da Guiné, nos princípios de 1965, e gira em torno das actividades de uma Companhia de Caçadores e é pelos olhos de Pami Na Dondo que vamos tomar contacto com diversos elementos daquela Companhia.

"Pami Na Dondo alista-se nas hostes da guerrilha que dominava aquela zona de território e, por motivo de um acidente que lhe incapacita um dos braços, acaba como professora do PAIGC devido à sua formação escolar e pelo facto de falar correctamente o português, o que a recomenda para tal função. É na escola que ela mentaliza e doutrina os futuros guerrilheiros e lhes dá paralelamente a correspondente pre paração escolar (2).


O génio de Amílcar Cabral


"À data em que se inicia a obra, a acção subversiva interna já atingiu a 4ª Fase (criação de Bases e de forças pseudo-regulares). Isto só foi possível em tão curto espaço de tempo, pelas qualidades de Amílcar Cabral, Fundador do PAIGC, homem esclarecido e determinado, cabo-verdiano, engenheiro agrónomo formado no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, e que antes prestara serviço nos Serviços de Agricultura de Bissau, tendo passado à clandestinidade por dissidências com os seus colegas europeus.

"De vontade firme e forte, homem culto, Amílcar Cabral procede ao recrutamento dos futuros guerrilheiros, atenua as divergências étnicas entre aqueles que vão cooperar com ele, cria entre todos a noção de Nação e, dirigindo a subversão externamente através do Comité Revolucionário, instalado em Conakry, articula rapidamente as forças do Partido com o apoio dos países de Leste".

"Refira-se como curiosidade que os EUA se deixaram atrasar na corrida ao apoio dos diversos "grupos de libertação nacional", mas apesar disso ainda conseguem colocar no porto de Conakry um navio-hospital para tratamento dos guerrilheiros feridos do PAIGC.

"Ao atingir a 4ª Fase da subversão Amílcar Cabral tinha o território dividido em Regiões e Zonas sendo as zonas divididas em Áreas cujas Bases foram estabelecidas nas matas de muito difícil acesso.

"As Forças Armadas Revolucionárias Populares (FARP) são constituídas pelo Exército Popular (EP), Guerrilha Popular (GP) e Milícia Popular (MP). Estas últimas são o instrumento local de defesa e vigilância das populações.

"Nas tabancas (povoações) das zonas que considera libertadas, nomeou responsáveis -2 homens e 2 mulheres- que constituem o comité da tabanca, controlando os movimentos dos elementos combatentes e também da própria população.

"As bases dispõem de escolas que fazem a doutrinação dos jovens ao mesmo tempo que desenvolvem uma intensa campanha de alfabetização das massas. É numa destas escolas que Pami Na Dondo lecciona dando todo o seu empenho ao Partido.

"A guerrilha é a base de recrutamento do Exército Popular e actua regionalmente apoiando a MP e o EP.

"Os 1°-, 2°- e 3°- comissários militares, os 1°-, 2°- e 3°- comissários políticos, são as categorias dos chefes existentes nas FARP. Os elementos combatentes são militantes (EP), guerrilheiros (GP) e milicianos (MP), e revelam-se atacando ou flagelando os quartéis, alvejando aviões ou embarcações, implantando abatises, minas e armadilhas nos itinerá rios, destruindo pontes ou casas de alvenaria, coagindo as populações e exercendo represálias. Furta-se normalmente ao contacto com as tropas regulares, mas resiste nos locais de refúgio. Ataca ou flagela as tropas quando estas estão a destruir as tabancas abandonadas pela população ou estão a remover os abatises colocados nos itinerários.

"É dentro deste ambiente e vivendo esta situação que vamos encontrar a bajuda Pami Na Dondo que nos descreverá quanto se passa sob os seus olhos, o que ouvem os seus ouvidos e, enfim, descobrindo os seus pensamentos e raciocínio.


Guerrilha e contraguerrilha: a imprepação do exército português

"Convêm acrescentar que o PAIGC bem treinado e mentalizado, desfruta de uma vantagem ímpar: enfrentava e dava luta a um exército que não fazia a mais pequena ideia do que era a luta de guerrilhas onde o inimigo pode surgir de qualquer direcção, que se esvaía no seio da população - como o peixe na água - com superioridade de armamento, o que nada tinha a ver com a guerra convencional que se ministrava nas escolas militares.

"No Exército o oficial de patente mais elevada que pisa o terreno, que enfrenta o guerrilheiro e que tem de resolver todos os problemas de ordem logística que se lhe deparam diariamente, é o Capitão. O capitão tem de possuir caracter e personalidade, é orgulhoso e cheio de brio, tem coragem física e destemer, não evita o combate com o inimigo e no decorrer da actividade operacional procura sempre ter do seu lado a iniciativa das operações, com o intuito de retirar o espaço de manobra ao guerrilheiro.

"Um capitão consciente procura compreender a guerrilha e as populações e preparar-se para em comissões futuras poder aplicar da melhor forma os conhecimentos colhidos. Com o decorrer dos anos muitos desses capitães, de novo no T.O. (Teatro de Operações) ou ainda capitães ou já promovidos a majores, vão dar o seu melhor na contenção da guerrilha. Infelizmente o Exército vai buscar os melhores para os ingressar no Corpo do Estado Maior (CEM), desfalcando os operacionais, o que se torna grave com a falta de quadros de capitães tendo de se recorrer a capitães milicianos sem qualquer vocação ou preparação para a guerra.

"O CEM é um escol onde não se toca a não ser para funções políticas, governamentais ou diplomáticas, o que não tem implicações directas na guerrilha que se enfrenta; assim, ficam por aproveitar os possíveis ensinamentos que eventualmente pudessem ser aplicados no terreno.

"Por outro lado, e infelizmente, os oficiais superiores (majores e tenentes-coronéis, nomeadamente) trabalham nos QG (Quartel General) ou Agrupamentos de forças e não faziam ideia do que era a luta de guerrilhas, não baixam ao terreno e limitam-se a manterem-se nos PC (Posto de Comando) durante o desenrolar das operações pelo que as suas instruções (e mesmo as Ordens de Operações) se tornam razoavelmente irreais ou de difícil cumprimento.

Uma unidade de excepção: A CCAÇ 763


"Enfim, e apesar de todas as dificuldades, é de justiça mencionar que a Companhia de Caçadores 763 conseguiu pacificar a sua Zona de Acção. Apesar de tantas vicissitudes é com prazer e orgulho que realçamos a acção da CCAÇ 763 a cujos efectivos pertenceu o autor.

"A CCAÇ 763, transportada no M/M Timor, chega a Bissau em 17/ 02/1965 e em 17/03/1965 ocupa a Zona de Acção (ZA) que lhe foi atribuída, entrando em quadrícula em CUFAR, no Sul da Guiné (3).

"A Companhia empenha-se operacionalmente com um sentido de missão e de patriotismo dignos de registo, não há interrogações sobre as razões por que ali se encontram, não havendo a registar um único caso de deserção, toma a iniciativa das operações tácticas desalojando os guerrilheiros dos seus refúgios o que permite desarticular a guerrilha que perde totalmente o controlo da situação; por outro lado constróem-se as infra-estruturas do futuro aquartelamento, cria-se um campo de futebol, um de voleibol e um de badmington, por forma a manter os seus elementos permanentemente ocupados.

"Não deixamos de mencionar que a Companhia, por sua iniciativa e à revelia do Exército, consegue recrutar ainda em Lisboa oito cães Pastores Alemães (6 machos e duas fêmeas) aos quais tendo sido atribuídos os respectivos tratadores à custa dos seus efectivos, se ministrou instrução com vista ao seu emprego em patrulhas, guarda, sentinela, esclarecedor do terreno, ataque e combate, todos bastantes acarinhados pelo pessoal da Companhia, e tendo vindo a tornar-se extremamente úteis no decorrer das operações.

"Desenvolvendo a maior actividade em todos os sectores, sempre empenhados, em menos de seis meses a ZA foi pacificada, a guerrilha abandonou a zona e o contacto com as povoações vizinhas tornou-se um facto natural; a criação de uma escola dentro do aquartelamento para cento e oito (108) crianças, com um instrutor desportivo e um professor, e tendo os alunos direito ao pequeno almoço e almoço, foi um passo de grande valia no âmbito da acção psicológica sobre as populações. Por outro lado sendo a ZA maioritariamente Balanta (povo animista) e tendo a Companhia ao seu serviço um Pelotão de milícia nativa constituído por Fulas e Mandingas (povos vindo do leste de África e muçulmanos), e que tradicionalmente se odiavam, conseguiu-se um estreito espírito de cooperação entre todos, o que muito veio contribuir para o bom êxito das nossas actividades em todas as vertentes.

"O Governador e Comandante-chefe na altura, chegou a confidenciar a alguém que se tivesse seis Companhias como a CCAÇ 763 o problema da guerrilha estaria resolvido.

"Infelizmente este problema não foi resolvido, tendeu a agravar-se, considerando do nosso lado a falta de quadros preparados, e do lado da Guerrilha a sua melhoria em todo o tipo de armamento enquanto nós nos mantínhamos agarrados à G-3 e à bazooka.

"Em 1973 o PAIGC consegue abater no Norte da Guiné, numa única manhã, dois aviões Dornier e um avião T-6; no Sul em dias não consecutivos, abate dois aviões a jacto Fiat; estava detentor dos mísseis terra-ar, apanhando as forças Portuguesas completamente de imprevisto. Isto vem afectar seriamente a nossa cobertura aérea e o moral dos nossos soldados. No entanto, apesar de tão sérios revezes, continuou a lutar-se até ao dia 25/04/1974.

Putos, gândulos e guerra: uma autobiografia


"Vai longo o prefácio e há que dar a palavra a Pami Na Dondo.

"Mas não queremos terminar sem frisar que para nós foi extremamente honroso o convite do autor para elaborarmos este prefácio, que, esperamos, tenha servido para esclarecer alguns aspectos ligados à subversão na Guiné-Bissau.

"Ainda não há muito tivemos o ensejo de ler a obra do autor Putos, gandulos e guerra, uma autobiografia elaborada com bastante mérito, onde aborda a sua infância, adolescência e a passagem pelas fileiras do Exército.

"Agora, depois de tomado o contacto com a GUERRILHEIRA congratulamo-nos com o salto estilístico e linguístico que o autor sofreu, facto pelo qual o felicitamos vivamente.

"Um abraço ao Mário Ralheta na certeza de que no futuro saberá fazer jus às suas capacidades literárias, vindo a engrandecer as letras portuguesas.» (4)
________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

(2) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1899: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (1): O português...na luta de libertação

(3) Vd. post de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)


(4) O autor faz questão de oferecer, a quem o desejar, um exemplar do seu último livro Pami na Dondo, a Guerrilheira.


Contacto >

Mário Fitas

Rª D. Bosco 1106

2765-129 Estoril.