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quarta-feira, 2 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6519: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (4): Os balantas; as diversas individualidades (J. Armando F. Almeida / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Reordenamento de Nhabijões > 1970 > Luta tradicional balanta, presenciada por mim (à esquerda) e mais  dois militares do destacamento (entre eles, o Humberto Reis, que segura um instrumento tradicional mandinga, o kora). O destacmento era composto por um mix de militares da CCS e da CCAÇ 12 (Julgo que na época já estavam em Bambadinca instalados o Comando e a CCS do BART 2917).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mero  > s/d (1969 ?) >  Visita a uma das pontas, em Mero... Na foto, dois velhos balantas, um deles cego, que é conduzido por outro completamente nu (apenas com um rudimentar tapa-sexo).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010. Direitos reservados




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Santa Helena > 1970 >  Passeio, à civil, de diversos niliatres da CCS/BART 2917 (1970/72) e da CCAÇ 12 (1969/71) à tabanca balanta de Santa Helena e visita, obrigatória, à nascente onde as bajudas iam buscar água e/ou tomar banho... Na foto, vêem-se três furriéis milicianos da CCAÇ 12: O José Luís Vieira (Funchal), o Arlindo T. Roda (Setúbal) e o António Branquinho (Évora) (Entre parênteses, indica-se a terra onde vivem neste momento).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010. Direitos reservados


Guíné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > BART 2917 (1970/72) > Brasão  (à esquerda)

Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917 - De 15 de Novembro de 1969 a 15 de Março de 1972. (Versão em texto processado por Benjamim Durães)


[Continuação da publicação de excertos do Cap II da História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, pp. 17-21 (Documento classificado como "reservado"), segundo versão policopiada gentilmente cedida ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande; comparada  igualmentecom a versão,  em suporte digital,  corrigida e melhorada pelo Benjamim Durães] (*)

Advertência de L.G. :

Todas as Histórias de Unidade, umas mais do que outras, reflectem a visão "etnocêntrica" que os portugueses, civis e militares, tinham dos povos da Guiné. O termo "etnocentrismo" não é fácil de definir: (i)  atitude, existente  dentro de um dado grupo social,  face aos outros que estão fora, e que  se pode  caracterizar em termos de preconceito, condescendência e/ou de desconfiança; (ii) a maneira própria de ver a 'minha' cultura por oposição à cultura do 'outro'...

Tanto nós (os comandos militares) como o próprio PAIGC pecámos por etnocentrismo... Afinal de contas, tanto Amílcar Cabral (**) como a nossa 'inteligentsia' político-militar leu o António Carreira, o Manuel Belchior,  o Fernando Rogado Quintino e outros etnógrafos/etnólogos da Guiné... A única sensibilidade sócio-antropológica que nos incutiram, à chegada áàGuiné, foram meia dúzia de 'clichés' sobre os fulas, os mandingas, os balantas, os felupes, e por aí fora...

É interessante, em todo o caso, ir vendo como evoluiu a atitude das chefias militares em relação àqueles grupos étnicos e sociais que, no início da "guerra subversiva", escolheram o "campo do inimigo"... A aliança dos fulas com as NT sempre foi incensada, até ao consulado de Spínola e à 'psico': a necessidade de concorrer com o PAIGC, não só com as armas de fogo, mas também e sobretudo com as da sedução, levou os comandos militares a passar a 'namorar' os balantas, os beafadas e os mandingas, e a criticar certas facetas do modo de vida e de pensar dos fulas...

É o caso, por exemplo, do Comando do BART 2917 que tem, em Nhabijões, um dos maiores reordenamentos da Guiné: cerca de 350 casas...  Em contrapartida, esta abordagem 'etnográfica' está práticamenet  ausente da História da Unidade anterior, o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), podendo ler-se na pag. 1 do Cap II este delicioso naco de prosa:

"No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Beafada.

"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado  de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse  homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus  feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero.

"Com o início do reordenamento da população  em auto-defessa, num futuro próximo o IN se verá com sérias dificuldades, pois deixará de ter apopio e de ter a possibilçidade de roubar para deste modo poder sobreviver" (...)

A transcrição de documentos político-militares, tanto de um lado como do outro, não implica qualquer concordância, aval ou aceitação do seu conteúdo... São documentos de trabalho, para leitura e análise 'desapaixonadas'... Partimos do princípio que o nosso leitor é soberano... E os nossos leitores são, fundamentalmente, os antigos combatentes desta  guerra (colonial, para uns; do ultramar, para outros; de libertação, para outros tantos...).


3. População > e. Aspecto político (...)

3 – O “BALANTA”

-  Nesta apreciação incluímos todos os Balantas,  incluindo os Mansoancas,  por não se conhecerem, no Sector [L1], problemas específicos para cada ramo Balanta.

- Aguerridos, alegres e folgazões, desconfiados mas demasiados ingénuos, depois de quebrada a sua confiança atávica, são o povo mais trabalhador da Guiné e só a ele se deve a transformação da lalas em produtivas bolanhas.

- O Chefe Político é o Chefe de Família e por isso o Chefe de Povoação tem funções limitadíssimas,  não podendo decidir sobre qualquer assunto sem que haja um total consentimento por parte dos Chefes de Família. A figura de Régulo ou Chefe de Tabanca, é de criação Portuguesa e, como é óbvio, não se integra na estrutura deste povo e, por conseguinte,  nada representa para eles.

- A sua economia assenta na exploração do arroz alagado, aparecendo as culturas de milho, mandioca e arroz de sequeiro como complemento mas em muita pequena escala.

- Vive sempre junto da bolanha pois desta necessita,  para as suas necessidades imediatas, o barro para os seus potes, a palha para as suas casas. Povo agrícola, pouco gado cria e este mesmo reserva-o quase só para rituais. Praticando o roubo de gado como modo de aumentar a sua importância social, visto tal roubo ser uma verdadeira instituição social sem o significado desonrado que tem para as outras sociedades, evita-o,  dividindo o seu gado pela guarda dos seus vizinhos e amigos e guardando em contra partida o desses vizinhos.

- A subversão apanhou os Balantas na altura em que o seu dinamismo demográfico se fazia sentir no Sector ao longo das lalas dos Rios Corubal  e Geba,  tendo penetrado neste praticamente até à área de Bissaque-Canchicamo e naquela até Jargavida.

- Ao mesmo tempo que se expandia,  introduzia novos métodos de cultura junto das populações. Entretanto a ingenuidade e imprevidência do Balanta e o seu gosto pelo álcool são aproveitados não só pelos comerciantes pouco escrupulosos, que de um momento para o outro os colocaram na sua dependência mercê de juros elevados, mas também pelos Mandingas e Fulas,  especialmente estes,  que os sujeitaram a uma dependência económica tal que chegaram ao ponto de colherem os próprios frutos do trabalho dos Balantas, dando-lhe somente o terreno para cultivo.

- Encontrando-se enquadrados em sistemas políticos mas vastos, em que os Chefes eram quase todos de etnia Fula ou Mandinga,  eles com o seu conceito de grupo social apenas estendido à família não podiam fazer nada para evitar a sua desorganização social e defenderem-se das prepotências sofridas.

- É neste contexto que se deve compreender a fácil adesão do Balanta à subversão, as promessas de libertação dos povos que os subjugavam económica, política e socialmente,  induziram-nos a ver no PAIGC um meio de serem realizadas as suas aspirações.

- A inclusão sistemática de Balantas nos grupos de guerrilheiros, a obrigação de darem grande parte da sua produção agrícola para alimentação desse mesmos grupos, a necessidade de, em virtude da acção das NT,  se afastar cada vez mais das suas bolanhas, obrigá-los a abandonar a cultura do arroz alagado, a constatação de que os que ficaram nas zonas dominadas pelas NT têm uma vida fácil e progressiva, sendo cada vez menor, embora ainda existindo, a exploração que sobre eles exercem os outros grupos étnicos,  exerceram a sua nostalgia da bolanha e criaram as condições quase ideais para uma viragem da sua atitude perante a subversão.

-  Contudo os que estão junto do IN sabem que aqueles que se apresentaram em Bambadinca e que não possuem bolanhas na área,  são explorados apenas como mão-de-obra pelos donos da terra – alguns mesmo seus irmãos de raça – e continuam a ter a nostalgia das suas próprias bolanhas.

- Tal não sucede ainda aos que se têm apresentado no Enxalé porque aí a bolanha é vasta e encontra-se ainda desocupada, especialmente em locais bastante longe da povoação, mas, se não nos preocuparmos em pôr cultivável toda aquela imensa bolanha, a curto prazo veremos acontecer também ali a exploração do Balanta pelo Balanta e estancar-se-ão as apresentações quase semanais que ali se vêm realizando.

- Julgamos que o único modo de conseguir retirar ao controlo IN um substancial número de Balantas,  será criar condições de segurança das ricas bolanhas que se encontram abandonadas. De entre todas essas está a de Samba Silate em virtude de ser uma bolanha rica e muito grande, encontrar-se completamente deserta, ser a sua população recenseada antes do início do terrorismo superior a 1200 pessoas, saber-se que os seus antigos ocupantes se encontram sobre controlo IN, na área de Incala, e desejarem para ali voltar.

- Dos Balantas existentes no Sector os seguintes núcleos:

ENXALÉ

- Francamente colaborante com as NT.

NHABIJÕES

- Colaboram com as NT mas possuindo muita família no mato têm assíduos contactos com pessoal, especialmente da região de Incala que ali vai vender arroz e,  através de Bambadinca, abastecer-se de artigos de primeira necessidade. Sempre negam tais contactos embora sejam de todos conhecidos. (***)

SANTA HELENA

- Colaboram com as NT mas possuindo muita família no mato, especialmente pessoal do Regulado do Cuor, mantêm frequentes contactos com esses familiares que ali se deslocam, mas negam esses contactos e raramente os denunciam.

MERO

- Colaboram com as NT. Mantêm intensos contactos com pessoal desarmado sob controlo IN que na maioria são seus familiares. Negam sempre tais contactos.


4 – “OUTROS GRUPOS SOCIAIS”


- Conseguindo que seja o apoio dos três grupos étnicos referidos, FULA, MANDINGA e BALANTA e por arrastamento dos que lhe são fiéis, todos os outros grupos sociais existentes no Sector não terão qualquer influência no estabelecimento de uma paz, que todos mais anunciada ou dissimuladamente desejam,  especialmente se se continuar a respirar “a procura de uma justiça social” acabando com os privilégios injustos, mas mantendo, tradicionalmente por todas aceites [.. frase incompleta ou ilegível],  e que hoje no Sector se revela.

5 – INDIVIDUALIDADES


- Tivemos ocasião de nos referirmos a alguns dos indivíduos mentores da opinião no Sector, mas porque outros foram esquecidos aqui se mencionam aqueles de que temos conhecimento:

- Tenente de 2ª Linha MAMADÚ BONCO SANHÁ [ fuzilado depois da independência]

Régulo do Badora;
Vogal do concelho logístico da Província;
Comandante da Companhia de Milícias do CUOR;
Intitulando-se Fula,  é considerado pelos Mandingas e Beafadas como Beafada,  em virtude da ascendência materna;
Pelos seus actos de valentia é condecorado com a Cruz de Guerra;
Régulo justo e especialmente preocupado com a segurança das suas populações;
O seu prestígio transvasa em muito para além dos limites do seu Regulado;
É um excelente colaborador das NT, parece representar o movimento dos “FULAS NATIVOS”.

- Alferes de 2ª Linha ABIBO BALDÉ, FULA PRETO

Régulo do XIME;
Comandante da Companhia de Milícias do XIME;
Embora ainda novo,  é considerado pelos “HOMENS GRANDES” do seu Regulado;
Goza de prestígio junto das suas populações,
preocupando-se francamente com a segurança das mesmas;
Tem-se mostrado digno de toda a confiança
e é um bom colaborador das NT.

- Alferes de 2ª Linha MALAN SONCO

Mandinga;
Régulo do Cuor;
Tem prestígio junto das populações do seu Regulado ;
Tem mostrado sempre uma atitude de repúdio face ao terrorismo;
É bom colaborador das NT embora sua avançada idade não lhe permita já dar a colaboração activa que desejaria.



- ANTÓNIO BONCO BALDÉ

Fula-Forro,
Encarregado há 14 anos do Regulado do Corubal,
Tem prestígio junto das populações,
embora alguns o acusem de interesseiro;
Tem colaborado com as NT.

- Alferes de 2ª Linha QUEMÓ NANQUI

Dirigente absoluto e incontestado de povoação do Enxalé,
Dizendo-se a si próprio Mandinga,
 parece ser um Beafada Mandinguizado;
Quando da preparação do 2º Congresso do povo da Guiné,
a povoação passou a ter também um Chefe Balanta (tal facto tirou-lhe prestígio);
Tem sido um magnífico colaborador das NT,
preocupado com a defesa do sei Enxalé;
Comanda agora o GEMIL 309, recentemente criado.

- BIAIA NADUM

Balanta do Enxalé;
Chefe incontestado dos Balantas da povoação;
Tem sido um excelente colaborador das NT;
Comanda agora o GEMIL 310, recentemente criado.

- FAMÍLIA SURÉ de JABICUNDA


Dirigentes do Centro de Irradiação do Islamismo sita naquela localidade (Confraria Cadiria);
Os seus ensinamentos irradiam para quase todo o Sector L1,  especialmente para os Regulados Cuor, Xime  e Badora.

- Parece aconselhar os seus adeptos a abandonarem o PAIGC e a tomar,  senão uma atitude pró-portuguesa,  pelo menos uma atitude de “neutralismo” perante o conflito.


- CHERNO RACHID de ALDEIA FORMOSA

Chefe religioso da Confraria TIidjania;
A sua influência no Sector parece ser grande no Regulado do Corubal,
bastante limitada no Regulado de Badora,
quase nula no Regulado do Xime,
e nula no Cuor.

________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série: 30 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6499: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (3): Quando Mandinga já não quer dizer turra, mas quando ainda não se esquecem os desmandos feitos pelas NT no início da guerra (J Armando F. Almeida / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3000: Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

 (...) A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.



Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.


Estranha-se, não haver aqui uma referência ao fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema. (...) .

(...) Tenho ideia que Cabral se movimentava (e pensava) melhor no campo do que na cidade, já que ele trabalhou como engenheiro agrónomo, na Guiné e depois em Angola, ao longo da década de 1950. Entre 1953 e 1956 fez o recenseamento agrícola da Guiné (…), e julgo que lhe veio daí a sua admiração pelos povos animistas, e em especial os balantas, os magníficos camponeses da Guiné, os grandes cultivadores de arroz. (...)

(...) Falando das gentes do mato, Cabral dá uma lição sobre os balantas, grupo que ele não só conhece, como agricultores, como admira, enquanto povo, que foi historicamente um povo resistente. Chama-lhes uma “sociedade horizontal”, isto, é, “que não classes por cima umas das outras”. Entre eles não há hierarquias. Os chefes foram uma invenção dos tugas, que lhe impuseram régulos fulas ou mandingas, nalguns casos antigos cipaios, leais aos portugueses:
“Cada família, cada morança tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselhos dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda gente”. A sociedade balanta seria uma sociedade tendencialmente igualitária, que Cabral descreve nestes termos singelos : “A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o outro”… Explicitando melhor: “Quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se lavrou muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar" (...).

(***) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

(...) Excertos do Diário de um Tuga (L.G.):

Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969


Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus)...

(...) Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate  (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poindon (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (...).


(...) Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…(...)

domingo, 30 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6499: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (3): Quando Mandinga já não quer dizer turra, mas quando ainda não se esquecem os desmandos feitos pelas NT no início da guerra (J Armando F. Almeida / Luís Graça)



Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917 - De 15 de Novembro de 1969 a 15 de Março de 1972. (Versão em texto processado por Benjamim Durães)



[Continuação da publicação de excertos do Cap II da História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, segundo versão policopiada gentilmente ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande] (*)

3. População > e. Aspecto político (...)

2 – OS ”MANDINGAS”

- Construtores de grandes impérios dos quais o maior foi o do Mali que durou do Século XI até ao Século XVII,  as suas relações com os Portugueses foram de tal modo intensas que o Rei D. João II, frente ao conflito ”Mandinga – Fula”,  enviou emissários ao Imperador do Mali e ao Chefe Fula Coli Tenguela, procurando servir como medianeiro nas disputas entre ambos.

Com o desmembramento do Império Mali,  inicia-se o enfraquecimento do poder Mandinga na Província em benefício do aumento de influência Fula, tendo a sua hegemonia política sido fortemente abalada a partir do Século XIX; a Batalha de Bere Colom (no ano 1850) em que os Mandingas são vencidos pelos Fulas,  atesta o seu declínio que se prolonga até 1866,  data da Batalha de Camsala Turubã,  em que os Mandingas foram totalmente desbaratados. 

Apesar de vencido,  a cultura deste povo impõe-se a quase todos os povos da Guiné e, difundindo o seu islamismo (do tipo africano,  revelando resíduos do antigo animismo),  criou, pelo contacto directo e contínuo com outras etnias, o fenómeno da aculturação destas, conhecido por “Mandinguização”.

Antes do terrorismo,  a etnia Mandinga mostrava-se em franca expansão por toda a Província invadindo áreas de outras etnias e competindo economicamente com elas sendo bem aceite por todos os povos da Guiné. 






"Era conhecida a separação entre fulas e mandingas. Estes pouco simpatizavam com as nossas tropas, eu tive essa ideia, os fulas, na generalidade, estavam do nosso lado. Esta rivalidade, e o não querer estar com os fulas, têm razões históricas: os mandingas tiveram um grande império no sudeste africano e foram senhores do reino do Gabú. Mas dum e doutro foram usupados pelos fulas...

"Nesta brochura, editada pela Editorial Cosmos (sem data) na sua colecção "Cadernos Coloniais" (é o N.º 13), António Carreira faz uma resenha histórica da islamização daquela zona de África e da lutas entre fulas e mandingas pelo seu domínio. São dados importantes para a história dos povos da Guiné e para a nossa commpreensão deles". [
António Barbosa Carreira nasceu em 1904, em São Filipe, Ilha do Figo, Cabo Verde. Morreu em 1988, em Lisboa].

Imagem e legenda: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados


Nos últimos anos que antecederam o terrorismo,  o poder económico de alguns dos seus membros e o domínio cultural que exerciam tornaram-no um dos mais progressivos da Guiné, surto do progresso que a subversão veio quebrar levando grande parte a aderir ao PAIGC ou a refugiar-se nos Países limítrofes, nomeadamente no Senegal e Gâmbia.

A sua atitude perante o terrorismo deve ser interpretada com todo o bom senso, eles viram no PAIGC a oportunidade de reaver a sua independência política, em face aos Fulas, e vingar um Século de prepotências a que estiveram sujeitos pelos Fulas; depois, nos primeiros anos de terrorismo, Mandingas era sinónimo de terrorista e temos de ter a coragem para admitir os erros de procedimento que as NT e Autoridades tiveram perante os indivíduos que eram rotulados de “terroristas”.

Hoje os Mandingas estão convictos de que não é mais possível, no Sector, ser-se acusado pelas Autoridades de “terrorista” apenas porque se pertence a esta etnia ou, se denunciam erros de indivíduos ligados às Autoridades, Militares ou Civis, Europeus ou Africanos (embora ainda existem no Sector alguns residentes Europeus a assimilados que, por convicção ou interesse, propalam, especialmente a quem chega de novo, que todos os Mandingas são “terroristas”).

Tal convicção,  associada ao seu desencantamento em relação ao PAIGC,  onde “calcinhas e oportunistas” ocupam lugares de mando que os Mandingas julgam deveriam ser concedidos aos seus Chefes, criou uma brecha que, a curto prazo, pode levar, se bem explorada pelas NT,  ao divórcio total desta etnia com o PAIGC.

- No SECTOR L-1 a actividade dos Mandingas vivendo sobre o nosso controlo difere de Regulado para Regulado.

ENXALÉ

- Sobre a designação de Mandingas estão agrupados na povoação do Enxalé, Beafadas e Mandingas sob o Comando efectivo do Beafada, Alferes de 2ª Linha Quemó Nanqui; fortemente hipotecados na defesa da sua povoação, colaboram activamente com as NT na procura e destruição do IN. 

Até à preparação do Congresso do Povo da Guiné de 1971, toda a população daquela povoação obedecia a Quemó Nanqui, e não se notavam quaisquer diferenças na forte determinação com todos, independentemente de raças a que pertenciam, colaboravam na defesa da povoação e perseguiram o IN. Deu-se então a separação dos Balantas, que passaram a ser dirigidos por Biaia Nadum,  dos restantes cujo Chefe se manteve Quemó Nanqui.Tal divisão consciencializou os “Mandingas puros” que passaram também por ali, embora colaborando com as NT, a dar indícios de um crescente neutralismo em relação ao conflito. 

A criação do GEMIL 309 e 310 (Grupo Especial de Milícias) e a sua consequente actuação acarretará decerto uma maior acção do IN sobre o Enxalé e,  com ela, acreditamos a destruição de tal neutralismo.

CUOR

- Encontram-se reordenadas nas Auto Defesas de Finete e Missirá, onde são protegidos por Pelotões de Milícia na sua quase totalidade formados por Fulas do Regulado Badora. Estão profundamente hipotecados na defesa das suas povoações e seguem a forte determinação do seu Régulo, Malan Soncó, de não abandonar o que resta do Cuor seja qual for a pressão do IN. Mas ao procurar-se fazer o recompletamento dos seus Pelotões de Milícias com elementos Mandingas, encontram-se grandes dificuldades no seu recrutamento. Também ao procuraram-se guias para as diversas operações no Cuor,  se encontra fortes reservas por parte dos Mandingas em colaborar com as NT.

BADORA

- Concentraram-se neste Regulado a maioria dos Mandingas do Sector. Muitos são daqui naturais mas há um importante núcleo constituído por “refugiados” de outros Regulados, especialmente do Regulado do Cuor e Oio.

- Os naturais do Regulado de Badora têm queixas das prepotências antigas fulas com conveniência ou nãos das Autoridades Administrativas, não esqueceram ainda os desmandos feitos pelas NT no início do terrorismo em que Mandingas e terroristas era considerado sinónimo, confiam bastante no Régulo de Badoera – Tenente de 2ª Linha Mamadú Bonco Sanhá, que dizem ser Beafada, porque nos seus ascendentes há uma mulher desta etnia, ser justo, ser valente e ter espírito Mandinga. Pelas razões apontadas, porque muitos deles têm família no mato, e talvez e especialmente por ser essa a orientação dos seus Chefes Religiosos, assumem uma atitude de neutralismo em relação ao actual conflito.

- Os refugiados neste Regulado pensam em cada momento nas suas árvores de fruto, nas suas terras, e muitos deles desejariam ocupar povoações de onde a guerra os expulsou.
- Desde que lhes seja garantida uma certa segurança,  estão disposto a ocupar as suas antigas povoações e cooperarem na sua defesa, desde que recuperadas.

- Na sua actual situação de refugiados procuram empenhar-se o menos possível tendendo para um neutralismo total.








Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917 - De 15 de Novembro de 1969 a 15 de Março de 1972. pp 53/74 (Versão em texto processado por Benjamim Durães)

[Fixação / revisão de texto / bold / título: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 20 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6437: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (2): O Fula, a sua lealdade,o seu preço (José Armando F. de Almeida / Luís Graça

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6437: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (2): O Fula, a sua lealdade,o seu preço (José Armando F. de Almeida / Luís Graça)





Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010). Direitos reservados


[Continuação da publicação de excertos do Cap II da História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, segundo versão policopiada gentilmente ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande]


3. População (…)

c. Modo de vida

A população do Sector pratica na sua maioria uma agricultura de subsistência (arroz e milho) e “cava” a importa agricultando mancarra (Fulas e Mandingas) [,frase ininteligível].

Os Balantas produzem arroz para além das suas necessidades.

Como complemento desta actividade praticam ao longo do ano, e quando livres das culturas de subsistência, a exploração do coconote (Regulados do Corubal, Xime e Badora), artesanato (Regulados de Badora e Xime) e banana (Regulado do Xime), produtos que exportam para Bissau.

Dedicam-se também à caça e à pesca mas quase só em regime de subsistência.

É importante a quantidade de pessoal empregado na estiva dos Portos de Bambadinca e Xime.

É muito importante, especialmente respeitada entre os Fulas, a instituição Homem Grande, para quem a única ocupação digna é a meditação do Corão ou a guerra. Como o homem ascende à situação de Homem Grande na maior parte dos casos na plenitude das suas possibilidades físicas, passa a constituir um pesado encargo para o seu agregado social, obrigando as mulheres e as crianças a um trabalho intenso nas bolanhas para a sua subsistência.


d. Línguas e dialectos


Apenas uma pequena percentagem fala portguês; o idioma veicular mais comum é o crioulo, adoptando cada grupo étnico a sua língua. Sendo portanto predominante em cada área a língua do grupo Fula, Mandinga, Balanta, etc.


e. Aspecto político


(i) Fula


Sob esta designação incluimos todo o grupo Saheliano – Ramo Fula.

Constituindo o grupo étnico, dominante no Sector, o último invasor, ocupando antes do desencadeamento da subervsão quase exclusivamente todos os lugares do baixo funcionalismo (cipaios e intérpretes, etc. ), desenvolveu contra si o intenso ódio do Beafada, e a dissimulada aversão dos vencidos Mandingas.

Islamizados, despoticamente paternalistas, com o culto da velhice (Homens Grandes) e das posições de privilégio, considerando como únicas ocupações dignas do homem a meditação religiosa ou a guerra, desprezando os que trabalham ou que denunciam vontade de progresso, os Fulas alimentaram com o seu procedimento a aversão do Balanta, individualista e trabalhador, a quem o Fula explora como dono da terra.

Por sua vez, o Fula odeia o Caboverdiano que com ele compete na ocupação dos diversos lugares do funcionalismo.

Aproveitando-se dos ódios e aversões expostas pôde, o PAIGC, com facilidade desencadear a guerra racial contra os Fulas a quem identificou com os Portugueses. Tal circunstância impermeabilizou os Fulas contra o terroismo actual, e a sua necessidade de sobrevivência tornou-os nossos aliados, levando-os a um contacto íntimo e prolongado cujas consequências não podemos ignorar.

Praticando uma agricultura de subsistência e angariando recursos para as demais necessidades imediatas pela prestação de serviços às guarnições militares locais (soldados, milícias, lavadeiras, etc.) , as inúmeras necessidades que o maior contacto com o Europeu lhe foi criando e a quase nula existência de infraestruturas do Sector, agravada para mais pela situação da guerra, habituaram o Fula a pedir tudo às unidades militares: pede dinheiro, pede transportes, pede alimentação, pede materiais para a sua casa, pede assistência sanitária, pede água, pede luz, pede, etc., etc.

Em troca dá a sua lealdade à luta em que estamos envolvidos e não dá absolutamente mais nada, pois até recusa a mão de obra para o trabalho em seu único proveito.

Apesar de muitos procedimentos tradicionais chocarem e até ferirem a nossa sensibilidade [ poligamia ? fanado ?, infanticídio ?], temos que condescender com eles porque a manutenção da sua lealdade depende da colaboração dos seus chefes e a destes é função da nossa aceitação dos seus privilégios e da satisfação das necessidades imediatas do grupo.

As facilidades de transporte, o contacto íntimo com o militar europeu começa a desenvolver na juventude fula (os nossos milícias, os nossos soldados) uma certa atitude de contestação contra a sua situação de subalternidades no grupo social, apesar de constituir a principal fonte de recursos desse mesmo grupo social. E, na medida em que, por conveniência, apoiamos as suas estruturas, pode tal juventude de hoje, seus dirigentes de amanhã, acusar-nos de travar o seu progresso, apoiando o despotismo a que as estruturas a sujeitam, e criando assim uma brecha potencial por onde o PAIGC pode penetrar na lealdade Fula.


(Continua: b. Os Mandingas)

[Revisão / fixação de texto / bold a cor / título: L.G.]

Fonte: BART 2917: História da Unidade. [Bambadinca, 1972]. XCap II, pp. 13/14.


______________

Nota de L.G.:

17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6413: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (1): Populações controladas pelas NT e pelo PAIGC, ao tempo do BART 2917 (1970/72) (José Armando F. de Almeida / Luís Graça)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6413: Elementos para a caracterização sociodemográfica e político-militar do Sector L1 (1): Populações controladas pelas NT e pelo PAIGC, ao tempo do BART 2917 (1970/72) (José Armando F. de Almeida / Luís Graça)




Excertos de: BART 2917: História da Unidade. Cap II. Páginas 11/12

 [Versão policopiada gentilmente ao nosso blogue pelo ex-Fur Mil Trms Inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72,  membro da nossa Tabanca Grande, foto à direita]

3. População

a. Generaliades:

São muito ténues as migrações que hoje se verificam no Sector L1 [, com sede em Bambadinca,] que sofreu sucessivas grandes invasões de povos vindos do interior: primeiro os Beafadas, depois os Mandingas no séc. XIV e posteriormente, já no Séc. XIX, os Fulas.

Senhores de um a cultura mais avançada, os Mandingas pacificamente habituam aos Beafadas aos seus costumes e religião (de tal forma que os dois grupos étnicos muitas vezes se identificam), e convertem,  no Sector L1, os seus vencedores Fulas ao seu islamismo, passando a influenciá-los profundamente através dos dignatários religiosos, ainda hoje quase todos eles Mandingas ou a estes subordinados (Confraria Cadiria).

Aliados, os Fulas, aos portugueses nas campanhas de “ocupação”, vêem, por influência das próprias autoridades administrativas, aumentar já no presente século [XX] o seu domínio sobre os restantes grupos étnicos como quasi exclusivos mandatários daquelas autoridades (Cipaios e intérpretes).

Com a ocupação efectiva do Sector L1 pela autoridade portuguesa, dão-se novas migrações, agora do litoral para interior: 

(i) os Papéis acompanhando as casas comerciais especialmente ligadas à navegação;

(ii) os Manjacos acompanhando a expansão da exploração do coconote (são ainda desta etnia a quasi totalidade dos que sobem às palmeiras no corte dos cachos de chabéu);

e (iii) os Balantas, mestiços de Beafada e Papel (?), atraídos pelas extensas e produtivas bolanhas dos Rios Geba e Corubal que ocupam, praticando a cultura alagada do arroz em que são exímios.

Parece também, ser posterior àquelas campanhas a dessiminação dos (iv) Caboverdianos, especialmente ligados, neste sector, ao funcionalismo (veterinária, agricultura, correios, casa Gouveia, etc.).

A actual guerrilha deu origem a novas migrações na área:

(i) o rico regulado do Cuor – praticamente Mandinga - despovoou-se, quase completamente; 

(ii) diminuiu a ocupação dos Regulados do Corubal e do Xime, passando grande parte das suas áreas e populações ao conrtolo IN;

(iii) o Regulado de Badora – ilha de paz na conturbada Guiné - vê aumentar a sua população especialmente com Balantas e Mandingas deslocados do Regulado do Xime e do Cuor, e Fulas vindos do Regulado do Corubal, Gabu e outros onde o IN campeia.

b. Grupos étnicos
 
(1) Na zona controlada pelas NT [Vd. Quadro 3.1,  acima].
 
Verifica-se que predomimam os Fulas nos Regulados do Xime, Corubal e Badora, os Mandingas no Regulado do Cuor e os Balantas no Regulado do Enxalé; estes últimos estão no Regulado de Badora localizados  nos grandes núcleos de Nhabijões, Mero e Santa Helena.
 
Quanto à ocupação branca, ela é muito pequena assim como a caboverdianna, limitando-se quase só a comerciantes e funcionários.
 
(2) Zona controlado pelo IN

Todos os dados de que se dispõe são estimados e as notícias contraditórias. Podem,os contudo, sem grande margem de erro, avaliar em cerca de 5400 pessoas, na sua maioria de etnia Balanta, Beafada  ou Mandinga, a população controlado pelo IN no Sector L1  dividida pelos seguintes núcleos:
- A NW do Sector, espalhada pelso reguados do Enxalé e do Cuor - 1900 pessoas.
- No Regulado do Xime, ao longo do Rio Corubal, e a sul da Ponta do Inglês - 2000 pessoas.
- No Regulado do Corubal, ao lonmgo detse rio e para jusante da foz do rio Pulom - 1500 pessoas.

(Continua)

[ Revisão / fixação de texto  / quadro: L.G.]



Guiné 1969/71 > Croquis do Sector L1 / Zona Leste (Bambadinca) (vd. Sinais e legendas). O Sector L1 era basicamente constituído por 5 regulados: Enxalé e Cuor, a norte do Rio Geba; Xime, Corubal  e Badora, a leste do Rio Corubal. No regulado de Bissari, não havia população controlada pelas NT.

Em 1970/72, o BART 2917 estava sedeado em Bambadinca, com três unidades de quadrícula em Xime e Enxalé (CART 2715), Mansambo (CART 2714) e Xitole e Ponte dos Fulas (CART 2716).


Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971
Infogravura: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5878: Documentos (11): PAIGC: um curioso croquis do Sector 2, área do Xime, desenhado e legendado por Amílcar Cabral (c. 1968) (Luís Graça)




Um interessantíssimo manuscrito de Amílcar Cabral, com o croquis da Frente Leste, Sector 2, Área de Xime.  S/d. Arquivo Amílcar Cabral. Fundação Mário Soares

Imagem digitalizada e reproduzida com a devida vénia...

Fonte: Fundação Mário Soares: Arquivo Amílcar Cabral. Bissau, Cidade da Praia, Lisboa. Lisboa: Fundação Mário Soares. 2005. p. 13.

1. Leitura e interpretação do documento (L G.):

Ao canto superior esquerdo, consegue ler-se o seguinte:

Educação - Mamadu  Dembo;
Comandante de sector - Mamadu Indjai;
Comissário Político de FARP - Pedro Landim;
Comissário Político junto do Povo - Juvêncio Gomes;
Comis[sário] Abast [escimento] FARP - Mamdu Alfa Djaló;
Segurança Milícia - Sabino Mendonça;
Saúde - Benjamim Brito.


Na parte superior, ao centro:

Escolas - Satecuta, Mina, Cancódea [, a sudeste da Mata do Fiofioli,], Manhai [ou Mangai?], Gã Dias [ou Ponta Luís Dias ?],Gã Carnes [Ponta do Inglês], Baio [ou Darsalame, junto ao Buruntoni]

Saúde - 1 médico, 4 enfermeiros"

No mapa desenhado por Amílcar Cabral, estão indicados os seguintes topónimos ou localidades do Sector 2 (delimitado a norte pelo Rio Geba, a oeste e a sul pelo Corubal e a leste pela estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole, não incluindo portanto a região a norte do Geba que, no meu tempo, também fazia parte do nosso Sector L1 / Zona Leste):

Rio Geba / Ponta do Inglês [ou Gã Garnes ] / Xime / Bambadinca / Bafatá

Indicam-se as distâncias em quilómetros:

- 4 Km de Ponta do Inglês (ou Gã Garnes) até ao Xime; [pela antiga estrada, são mais de 12, aliás no meu tempo os obuses 10.5 não chegavam lá];
- 7 km do Xime a Bambadinca; [por estrada, são mais uns quatro ou cinco];
- 30 km desta localidade até Bafatá, em estrada alcatroada (sic)

Está também desenhada a estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole, com as seguintes observações:

Bambadinca - Xitole: 42 km
Mansambo: 80 tugas (sic)

Há ainda referência  a uma comp[anhia] (?), com 50 m [militares ?] , possivelmente o destacamento de Ponta  do Inglês...

Há ainda referência a um valor de grandeza, 300 / 400 m . Ainda pensei que Amílcar Cabral estivesse a referir-se à larg[ura] (?) do Rio Corubal ... Mas não: antes da foz, entre a Ponta do Inglês e Ganturé (na margem esquerda), o rio mede mais de 2 quilómetros de largura; antes da curva de Mangai, começa a estreitar, mas mesmo assim, terá cerca de 1 quilómetro... Onde terá 200 metros é nas proximidades do Xitole... (Estou a fazer cálculos pelos mapas).

 Esse valor de grandeza (300/ 400 m) deve referir-se a efectivos do PAIGC (FARP, milícias, população militarizada). Do PAIGC, acho exagerado, no máximo, teria 5 bigrupos em todo o Sector L1, no tempo do BCAÇ 2852, 1968/70) (*)...  Conferir estes dados com o croquis do Sector L1, feito no tempo da CCAÇ 12 (1969/71) (Documento a seguir).

E logo a seguir, há as seguintes notas à margem, sempre escritas com a letra elegante de Amílcar Cabral:

Populações - Beafadas, mandingas, balantas.

Estacionamentos de milícia: Moricanhe, Dembataco, Amedalai, Samba Silate. Em cada um desses estacionamentos, há 8 ou 10 tugas, excepto em Moricanhe onde só há africanos (sic).


Guiné 1969/71 > Croquis do Sector L1 / Zona Leste (Bambadinca) (vd.  Sinais e legendas).

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971

Infogravura: © Luís Graça (2005). Direitos reservados


2. Comentário de L.G.:

Uma vez que é referida a existência da Ponta do Inglês como um destacamento das NT, guarnecido por um pelotão reforçado (os tais 50 m ?)  (retirado em finais de 1968), este documento deve ser do ano de 1968 (meados).  Quem estava no Xime, com um destacamento na Ponta do Inglês, era a CART 1746 (que veio de Bissorá, 1967/69, sendo comandada pelo cap mil art António Vaz).

Nesse ano a CART 2339 (do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos) instalou-se em Mansambo. Moricanhe foi abandonada em meados de 1969, depois do ataque a Bambadinca em 28 de Maio de 1969. Em Agosto desse ano, o pessoal da CART 2339 feriu gravemente o Amadu Indjai, comandante do Sector 2 / Área do Xime (Op Anda Cá, com o BCP 12, CCAÇ 12 e CART 2339)...

Peço aos camaradas que estiveram no Sector L1 / Zona Leste (Bambadinca), nesta altura, para completar ou complementar as minhas notas... Refiro-me à malta do BCAÇ 2852, da CCAÇ 12, da CART 1746, da CART 2339, dos Pel Caç Nat 52 e 63, etc. De qualquer modo, Amílcar Cabral revela, senão  um perfeito, pelo menos um bom conhecimento da região (o famoso triângulo Xime-Bambadinca-Xitole).

Imagem

Fonte: Fundação Mário Soares: Arquivo Amílcar Cabral. Bissau, Cidade da Praia, Lisboa. Lisboa: Fundação Mário Soares. 2005. p. 13. (Com a devida vénia...)
______________

Nota de L.G.:

Vd. poste, da I Série,  de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

(...) Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 48-54. Classificação: Reservado (Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste documento em formato.pdf)

Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) - I parte

1. Situação: Inimigo

1.1. Desde há anos que a região da margem direita do Rio Corubal até à linha Xime-Xitole, é considerada uma zona de refúgio e preparação do IN [inimigo]. A profundidade continental da região, a sua espessa arborização (excepto na franja marginal do Rio), a falta de trilhos e caminhos, a grande distância a que ficam os aquartelamentos mais próximos (Xime, Mansambo e Xitole), tudo isto são características que convidam o IN a permanecer na Zona, em relativa tranquilidade.

O IN sabe que detecta facilmente qualquer tentativa de aproximação das nossas Forças Terrestres. Se a aproximação terrestre é difícil, a actuação das FN [Forças Navais] parece facilitada pela existência do Rio Corubal. E a tal ponto que, em estudo realizado por este Comando, a área da margem direita do Rio Corubal, desde a Ponta do Inglês a Gã Júlio, foi considerada uma área que devia ser batida pelas NT [Nossas Tropas] em operação conjunta de meios navais e helitransportados.

A deficiência destes meios contribuiu para o quase completo sossego em que o IN tem vivido na área, controlando uma população de balantas e beafadas que o alimenta e que se reputa numerosa. E determinou a realização da Op Lança Afiada com o emprego exclusivo de forças terrestres.

1.2. O reconhecimento aéreo e as poucas operações realizadas não dão uma ideia muito clara acerca do IN na região considerada. Admite-se no entanto que existam na região pelo menos 5 bigrupos e um grupo de artilharia.

As acções ofensivas do IN tem sido relativamente espaçadas e dirigidas contra o Xime, Mansambo e Xitole, além de emboscadas nas estradas Xime-Bambadinca e Mansambo-Xitole e de penetrações contra tabancas fiéis na direcção do [regulado do] Cossé e na área entre o Xitole e Saltinho.

Embora apresentando bom potencial de fogo (canhão s/r, mort 82 e 60, LGFog, etc.), o IN continua a mostrar uma execução deficiente. As reacções à actividade das NT não têm sido muito fortes. Mas os poucos trilhos de acesso estão normalmente armadilhados. O IN embosca por vezes as NT quando regressam a quartéis. Além disso tem tiro de Mort 82 preparados sobre os seus próprios acampamentos, executando-os quando as NT os ocupam. E as arrecadações de material e armamento encontram-se em geral afastados dos acampamentos.

De uma maneira geral podem considerar-se as seguintes áreas principais de concentração IN:

1 – Poindon;
2 - Baio-Buruntoni;
3 - Gã Garnes (Ponta do Inglês);
4 - Ponta Luís Dias (Calága) – Gã João;
5 - Mangai-Tubacuta;
6 - Madina Tenhegi;
7 - Fiofioli;
8 - Cancodeas;
9 – Mina – Gã Júlio;
10 – Galo Corubal – Satecuta;
11- Galoiel.


1.3.

a) Área de Poindon:

Localização aproximada – (1500 1155 B2). RVIS efectuado em Novembro de 1968 revelou que toda a área se encontrava muito povoada tendo sido referenciadas mais de 15 casas de mato distribuídas por 2 núcleos. As bolanhas estavam cultivadas.

b) Área de Baio-Buruntoni:

Baio – Localização aproximada: (1500 1150 G7); deve ser uns dois a três km a Oeste. Chefe: Mário Mendes. Efectivo aproximado: 1 bigrupo dividido com Varela.

Burontoni – Localização aproximada: (1500 1150 G7) e (1455 1150 A 7). Efectivo aproximado: 100 homens: Armamento: MP, Mort 82 e 650, LGRFog.

c) Área de Gã Garnes (Ponta do Inglês):

Localização aproximada – (1500 11540 B5-5) com trilhos de acesso a Baio e à Ponta João da Silva. O itinerário a seguir quando se vem da Ponta do Inglês atravessa o Rio Buruntoni em (1500 1150 A2 -82). Efectivos e armamento: mais de 15 homens com Mort, LGFog, etc.

d) Área de Ponta Luís Dias – Gã João:

Ponta Luís Dias – Localização: (1505 11?3 F3 ou G2 G0-44). O itinerário mais fácil parece ser pela margem do Rio Corubal mas na época seca pode ir-se partindo de Gã Garnes. Efectivos: Cerca de 25 (?) elementos, armados de MP, ML, Mort 82 e 60, LGFog., etc. Consta talvez (?) 1 Canhão s/r em Ponta Luís Dias, apontando para o Corubal.

Gã João - Localização: (1505 1150 H5 ou I6 ou 13-55). Acessos idênticos ao acampamento de Ponta Luís Dias. Pode ficar à direita da picada Ponta Luís Dias – Ponta do Inglês sobre um trilho que parte desta. Foi localizado um grupo de casa em 1505 1150 G9-2.

e) Área de Mangai-Tubacuta:

Mangai – Localização: (1505 1145 G8). O acesso é mais fácil pela margem do Corubal. Por terra o acesso mais fácil parece ser por Madina Tenhegi (1500 1150 E2). Efectivos: 1 Gr Artilharia, parte em Tubacuta.

Tubacuta – Localização: (1500 1145 B9 B6 ? ), entre a tabanca e a Casa Gouveia, ao pé da bolanha. O acesso é mais fácil pela margem do Rio Corubal ou partir de Madina Tenhegi. Efectivos: mais de 100 homens com cubanos.

f) Área de Madina Tenhegi:

Não há referências sobre acampamentos IN.

g) Área de Fiofioli:

Localização: (1500 1145 E4 ou D5). Não são conhecidos os acessos à área. A mata do Fiofioli é muito [ densa ? ] e está praticamente cercada por bolanhas que o IN provavelmente baterá. Efectivos: talvez 1 bigrupo. Consta existir um hospital, com médicos cubanos.

h) Área de Cancodeas:

Cancodea Balanta – Localização: (1500 1145 E3). Efectivos: 50 homens armados.

Cancodea Beafada – Localização: (1500 1145 G2)

i) Área de Mina – Gã Júlio:

Mina

Localização: Em (1500 1145 h6 ou I6), na mata próxima da tabanca, dividida em dois núcleos, afastados cerca de 400 metros. Um núcleo é formado pelas instalações de pessoal e pelo posto de rádio. Parece ser aqui o comando do Sector 2 do IN. Consta haver uma enfermaria com cubanos. Há quem diga existir 200 elementos IN. Mas há quem diga serem poucos. A reacção à operação dos páras em 16 de Dezembro de 1968 foi nula. Em Novembro de 1968 foi indicada a existência de canhão s/r, 10 LGFog, 5 metralhadoras Degtyarev, 1 morteiro 60, etc.

Gã Júlio – Localização: (1500 1145 D4 ou E4). Não há outras indicações.

j) Área de Galo Corubal – Satecuta:

Galo Corubal – Localização (1455 1145 D4 ou E4), no fundo do palmar e a cerca de 300 m do Rio Corubal. O acesso tem sido feito pelo Norte do Rio Pulon desde a estrada Xitole-Mansambo, mas as NT têm-se perdido por vezes. O acesso, atrvés do Rio Pulon, próximo da foz, por Seco Braima, pode ser efito na época seca. Efectivos e armamento: Considerados poucos, mas com MP, ML, Mort LGRFog.

Satecuta – Localização (1455 1145 D2 ou E2 ou F2), a oeste de Seco Braima. Acesso idêntic o ao de Galo Corubal. Em meados de 67, apresentava grande actividade IN. O acampamento foi destruído em Maio de 68, baixando a actividade IN. Efectivos: ignoram-se mas parecem dispor de MP, ML, Mort LGRFog.

l) Área de Galoiel:

Localização (1455 1150 F1) próximo de Galoiel. Ataque das NT em 28 de Novembro de 1968 repelido pelo IN. Novo ataque em 23 de Dezembro não tendo o IN oferecido quase resistência. Efectivos entre 20 a 30 elementos, armados com LGRFog, Mort 82, ML, etc.

1.4. Admite-se que, sendo a Op Lança Afiada, uma operação demorada, o IN tenha possibilidade de reforçar os seus bigrupos, exercendo um esforço sobre este ou aquele dos nossos destacamentos. Admite-se também que quer as populações civis sob controlo In quer o próprio IN atravessem de noite o Rio Corubal, furtando-se assim ao contacto com as NT.
(...)

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Fotos Falantes II > Os dois primeiros mortos do Grupo de Combate do Alf Mil Torcato Mendonça: o Bessa (46) e o Casadinho (45)...

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 20 de Junho último:

Luis Graça: vou ser rápido porque isto é o despejar de um impulso, de uma revolta sentida, de um flash vindo, demasiado rápido, do passado ao presente. Talvez um Psi conseguisse dizer, melhor que eu, o porquê. Li a morte de um Camarada em Madina (1). Sei que não eram relatados os pormenores à família. Sei a frieza da comunicação da morte dada aos familiares. Mas… eu conto-te, Camarada, eu conto-te e anexo – para dares uma vista de olhos – um escrito, creio que já enviado, O Natal, onde relato OS MORTOS DO MEU GRUPO, OS MEUS MORTOS.

Paro em tentativa de calma, calma com respiração funda e passa um pouco. Depois do ataque, fui apanhar o Bessa, subi ao palanque danificado, olhei à volta certamente com ódio, com vontade de acertar contas... De repente vejo, à luz amarelada das lâmpadas, algo a baloiçar e brilhando. Fixo o objecto, vejo um bocado de fio e um crucifixo, aperto os dentes, como neste momento o volto a fazer, dou uma palmada naquilo e solto um palavrão em blasfémia sentida. Ajudam-me e embrulham-no e limpam-no com carinho, revolta e choro contido, no local. Os homens também choram, porra, mesmo por dentro, dói, dói!

Passados tempos, alguém do meu Grupo e talvez da terra dele, perguntou-me:
-A família recebeu as coisas mas não o fio e o crucifixo.

Não me lembro mas creio que houve uma resposta a tentar suavizar a situação... Não faltava só o fio… parte DELE não foi também recebido… Dizia-se áà família? Creio que era duro demais, nós sentimos demasiado aquela morte. Meses depois, quando da Op Lança Afiada, veio de héli o Comandante do PAIGC Braimadicô (2). Levei-o para o meu abrigo… pois ouvi logo o nome do Camarada morto, repetido por uns e por outros.

Respeitei os meus Homens e levei-o para outro lado. Eles também não esqueceram e, certamente não sabem perdoar. Hoje, trinta e oito anos depois é difícil. O que seria naquela altura. Sabes, penso que não se podia ou era preferível, esconder certos pormenores às famílias. Só se provocava mais sofrimento. Devia era haver uma postura mais humana por parte das Forças Armadas. Análise posterior com calma.

Queria ser mais breve, alonguei-me. Senti a falta de partilhar isto, com o meu Grupo, agora… recordarmos, reflectirmos. Mas eles merecem descansar, recordar ou não. Falar nisto é doloroso ainda HOJE.

Amigo, um abraço,
Torcato Mendonça

2. Estórias de Mansambo (5) > Natal, Ano Novo, dias normais

por Torcato Mendonça (3)

Os militares da CART 2339 só passaram um Natal na Guiné. Partimos, no Ana Mafalda em meados de Janeiro/68 e regressámos em Dezembro/69 no Uíge. Portanto só o Natal de 68 lá foi passado.

Espero que a memória me não atraiçoe e eu tenha arte e engenho para vos descrever tão faustosas festas. Ou seja, as Festas do Natal e Passagem do Ano de 1968/1969. Os Salões engalanaram-se; os Mestres Cozinheiros esmeraram-se e, digo mesmo, em salutar competição guardaram em segredo os menus; as Fardas de Gala foram engomadas…

E..., bom!... Não fantasiemos, pois a realidade era outra. Estávamos em Mansambo, na guerra estúpida e dura, não pertencíamos a grupo de privilégio, fantasia ou outro. Passámos por isso, o Natal e Ano Novo como muitos milhares de militares. Uns melhor outros pior por questões de afectos perdidos, por sentirem mais ou menos a falta das mulheres e filhos, das famílias e de quem gostavam.

Pessoalmente lastimo mas de pouco me lembro. Já estava acima da normalidade, chamemos-lhe assim, para sentir menos o Natal e mais a segurança. Tenho, nestes dias, pensado nisso e infelizmente deve ter sido assim. Socorro-me do Historial, de duas pequenas agendas e tento recordar.

É com esses auxiliares que vou relatar, o mais fielmente possível, aqueles dias.

Não posso dissociar o Natal do Ano Novo. Eram datas festivas, tempos com maior probabilidade de ataques do inimigo, necessidade de nos sentirmos mais ocupados. O ócio fazia-nos voar para outras paragens.

Havia, como é natural, uma maior quebra anímica. Por isso, todo esse período de tempo deveria ser ocupado com diversas tarefas. Seriam, contudo, preservados, o mais possível, os dias festivos.

Assim:

A 23 e 24 de Dezembro de 1968 houve uma Operação/patrulhamento à zona de Biro e Galoiel. Leve troca de tiros com o IN. Fuga deste, missão cumprida e regresso a Mansambo.

Véspera de Natal: os pensamentos longe, cada vez mais longe daquele lugar. Homens a pensarem nas mulheres e filhos, nas namoradas, nos pais e noutros familiares, nos amigos, no frio, nas lareiras e nas luzes a enfeitarem, ruas e presépios, na Pátria distante. Outros, muito poucos, mantinham-se atentos num desligar, mais aparente que real, virando a atenção, o cuidado para o inimigo em hipotética espreita, para lá do arame farpado.

A maioria era do Norte. A religiosidade da data era, talvez, mais sentida por eles. Mas o Natal é festa de família, penso eu. Hoje sinto-o mais assim. Parece que jantei com o meu Grupo, o tradicional bacalhau. Creio mesmo que o Capitão deu uma volta pelos vários abrigos.

Em Mansambo vivíamos em abrigos. Houve certamente o convívio possível. Não me recordo bem. O dia de Natal foi diferente certamente, com pensamentos a irem para junto dos que, lá ao longe, o faziam em sentido contrário. Talvez se tenham encontrado e abraçado a meia distância, em viagens imaginárias, com os deuses a apadrinharem. Talvez!

Entre os dias 28 e 30 de Dezembro houve coluna-auto ao Xitole. Mas o itinerário foi Bambadinca, Galomaro, Quirafo (?), Saltinho e Xitole. Uma coluna formada por bastantes viaturas civis e militares. A Intendência era responsável pela carga. Nós, um Grupo reforçado por picadores e alguns Milícias, éramos os responsáveis pela segurança e bom andamento, daquele enorme comboio com vários tipos de viaturas.

Impusémos regras rígidas. Levámos dois ou três mecânicos o que se veio a revelar de grande utilidade. Um dia de viagem para lá, outro para cá. Merecia ser relatada esta viagem. As avarias, o pó e toda uma loucura quase indescritível. Fizemos, duas ou três centenas de quilómetros (ida e volta) devido à estrada – Mansambo/Xitole – cerca de vinte quilómetros, estar ainda fechada [ou interdita].

O fim do ano aproximava-se e o dia 31 aí estava. O meu Grupo, depois do regresso do Xitole, preparava uma saída para Candamã no primeiro dia de Janeiro.

Talvez, na noite de passagem de ano, se tenha batido a zona com os [obuses] 10,5 e os [morteiros] 81 e bebido mais um copo. Mantínhamo-nos contudo bem atentos. Lá fora, poderia estar alguém pronto a estragar qualquer princípio de festa.

De repente um tiro e gritos. O Pimenta, do meu Grupo, ferira-se com a sua própria arma. Felizmente um tiro de raspão na zona abdominal. Era um faz tudo, por isso e pelo cansaço, estava encarregado dos geradores Lister que forneciam a electricidade ao aquartelamento. No dia seguinte foi evacuado para Bissau e, mais tarde, para a Metrópole. Ainda o visitei no Hospital em Bissau, dias depois, antes da minha ida para férias.

Começava o ano com um ferido, mesmo por acidente, no meu Grupo. Não gostei dos sinais. Depois da evacuação partimos para Candamã. Missão: reconstruir o pontão da Chanca na picada para Dulo Gengele. Nós fazíamos, a segurança e a ajuda, se necessária, a uma secção de engenharia de Nova Lamego, comandada pelo Furriel Zamite.

O trabalho teria que ser feito com rapidez. Questão de eficácia e principalmente segurança. Moto-serras a trabalhar no mato… não era saudável. Com a ajuda de todos, população incluída, e o saber do pessoal da engenharia, no final do dia 2 de Janeiro estava a missão cumprida.

Começamos a aprontar o material para a saída na madrugada seguinte. Um descuido, azar ou outro motivo qualquer, fez com que o Casadinho sofresse uma queimadura ligeira numa perna.

Faço aqui um parêntese para contar breve história deste militar [, o Casadinho]:

Era o Bazuqueiro do grupo. Alentejano de S. Matias, aldeola quase encostada a Beja. Cerca de dois ou três meses, após a chegada à Guiné, soube do nascimento da filha. Os meses passaram, o desgaste era grande e, como era necessário um militar da Companhia ir para Bissau – serviços de apoio logístico – foi indicado o Casadinho. Pouco tempo lá esteve. No dia 3 de Outubro, a dois meses do embarque, faleceu vítima de um desastre de viação na estrada para Bissalanca. Depois de quase dois anos de mato, muitas horas debaixo de fogo, morre, estupidamente, num acidente. Repousa no cemitério da sua terra natal. Nunca conheceu a filha.

Quando lá passo, no IP2, o carro, todos os carros que, ao longo destes anos tenho tido, abrandam sempre, aceleram e travam um pouco, num engasgar de soluço, de modo a que eu me possa voltar na direcção dele e o cumprimente. Nunca tive coragem de procurar a viúva ou a filha. Um dia…

Voltando á Guiné, a Mansambo, aos primeiros dias de Janeiro de 1969:

No dia 3, abandonámos Candamã e regressãmos à nossa Base. Havia correio fresco á nossa espera e a natural alegria. Nesse dia, após o jantar, fui ao meu abrigo. Na sala, à volta da mesa, a malta lia o correio, escrevia ou passava o tempo de outra forma. O Bessa partilhava uma garrafa de bagaço acabada de receber. Ofereceu-me um copo. Agradeci e entrei no abrigo. Ele foi para o palanque do posto de sentinela. Segundos depois um rebentamento. Aí estava mais um ataque ao aquartelamento. O estrondo inicial foi de uma roquetada que acertou no Bessa.

Durou talvez meia hora o tiroteio. Só que o meu Gr Comb sofreu o primeiro morto e o 1º Grupo um ferido grave. Terminado o ataque fui apanhar o Bessa. Embrulhei-o num lençol e não relato os pormenores. Ainda hoje os tenho bem vivos na memória. Ainda hoje aperto os dentes. Nunca esquecerei aquela morte, qualquer morte de um camarada. Por má formação, além de não esquecer, nunca perdoarei.

Ao terceiro dia, do novo ano – 1969 – o meu Grupo sofreu um morto e dois feridos, embora um muito ligeiro. No dia seguinte fizemos uma coluna para Bambadinca. Acompanhei o fechar da urna com o Soldado Bessa lá dentro. Já não regressei a Mansambo. Afoguei a raiva bebendo e dando uma volta à tabanca á procura de um amigo…

Devo ter tido um acordar difícil no dia seguinte. Não sei bem. Lembro-me que o [sargento piloto aviador] Honório me deu boleia, na sua avioneta, até Bissau com passagem por Bigene, onde consegui dar um abraço a um conterrâneo.

Dias depois, embarcava para a Metrópole para gozar o meu segundo período de férias.

Resumo:

O Natal e Ano Novo foram dias muito normais;
Operação na véspera de Natal;
Coluna ao Xitole, por Galomaro; Na noite de passagem de Ano feri
do o Pimenta;
No dia de Ano Novo ida para Candamã, fazer segurança á reconstrução de um pontão;
Findo o trabalho, dia 2, o Casadinho ligeiramente queimado numa perna;
Regresso a Mansambo, ataque ao aquartelamento e morte do Bessa;
Dia 4, em Bambadinca, fechada a urna do Bessa;
Dia 5, com passagem por Bigene, vinda para Bissau;
Dia 8 embarquei de férias para a Metrópole. Cortei as barbas a contragosto, do Capitão Vaz, da 1746, meu companheiro de viagem. A PIDE/DGS falava mais alto…

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1862: 42 anos depois, com emoção e revolta, sei das circunstâncias horríveis em que morreu o meu irmão... (Adelaide Gramunha Marques)

(2) Vd. post de 5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu

(3) Vd. 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969


T/T Uíge > CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) > Três oficiais milicianos, da esquerda para a direita: Ismael Augusto (manutenção), o David Payne (medicina) e o Fernando Calado (transmissões). Todos eles estavam em Bambadinca, na noite em que o aquartelamento foi atacado em força pelo PAIGC, como represália pela Op Lança Afiada (1). Bambadinca voltara a ser atacada, a 14 de Junho de 1969. O Calado e o Augusto são os organizadores do encontro, deste ano, do pessoal de Bambadinca (1968/71). O Payne, infelizmente, já morreu. (LG)

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > O Alf Mil de Transmissões, de braço ao peito, junto à parede, crivadas de estilhaços de granada de canhão sem recuo, das instalações do comando, messe e dormitórios de oficiais e sargentos, na sequência do ataque de 28 de Maio de 1969. Esta era a parte exterior dos quartos dos oficiais, mais exposta, uma vez que o ataque partiu do lado da pista de aviação. O Fernando traz o braço ao peito, não por se ter ferido no ataque mas sim por o ter partido antes, num desafio de... futebol.

Foto: © Fernando Calado (2007). Direitos reservados.



47ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Texto enviado a 3 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.


Caro Luís, muito obrigado por teres impulsionado este segundo encontro [, em Pombal, no dia 28 de Abril de 2007,] onde revi camaradas inesquecíveis como o Humberto ou conheci outros como o Mexia Alves, um pouco a história da minha vida no Cuor.

O texto que te envio hoje centra-se no ataque a Bambadinca, em 28 de Maio [de 1969]. Tens aí a fotografia do Calado de braço ao peito a mostrar os estilhaços de uma morteirada junto às habitações dos oficiais. Eu próprio escrevi um aerograma à Cristina em cima do acontecimento, que tens plena liberdade para usar. Não me recordo de outras imagens deste evento e, como sabes, as marcas passaram depressa. Quando a CCAÇ 12 chegou, já se tinha feito a cosmética. E o segundo ataque deixou ainda menos marcas. Seguem igualmente pelo correio os dois livros referidos. Um grande abraço do Mário.


Finete está a arder?
por Beja Santos


Hoje, 27 de Maio [de 1969], levanto-me estonteado e bem derreado pela emboscada feita há poucas horas em Sinchã Corubal. Tenho uma secção de pelotão de milícias em Finete, onde vão trabalhar no levantamento de um novo abrigo e na construção do balneário. Vamos, pois, levar um dia ameno, entregue aos afazeres domésticos até que o Teixeira nos comunique a hora de partida para Mato de Cão.


Antecipando a vingança da gente de Madina


O que aconteceu ontem em Sinchã Corubal (2) não me sai da cabeça mas procuro prevenir a reacção da gente de Madina: Será que desta vez irei ser emboscado entre Canturé e Gambaná? Em Mato de Cão é impossível, é um planalto de onde se avista todo o palmeiral de Chicri, qualquer aproximação é facilmente detectada de dia. A não ser que eles ensaiem uma emboscada nocturna, embora seja difícil saber qual o itinerário que vamos usar, faça sol ou chuva andamos sempre por caminhos diferentes para evitar as mais amargas surpresas. E momentos há em que duvido da capacidade de beligerância da gente de Madina.

Converso com os furriéis, hoje é melhor dar condições para haver aulas para os soldados e crianças, vistoriar as munições e o abastecimento de víveres, fazer uma capinação lá para os lados de Sansão, olhar com mais cuidado a contabilidade, já que as folhas de pagamento têm que ser enviadas urgentemente para Bambadinca.

Enquanto ganhamos balanço para as actividades no interior de Missirá, o Casanova recorda-nos que o mês que finda [, Maio de 1969,] foi marcado por emboscadas a colunas em todo o sector, flagelações brutais a tabancas em autodefesa como Amedalai, Moricanhe e Taibatá.
- Se digo isto, é só para lembrar que andamos numa permanente correria e o nosso inimigo não nos vai fazer excepção, vamos ser atacados em breve. Proponho que conversemos sobre medidas mais rigorosas de segurança. - Aceito a sugestão e o tema fica para ser apreciado sem papas na língua ao almoço.

A hora do expediente ou a burocracia da guerra

Com o Pires, aprecio o expediente corrente: as queixas do Setúbal quanto às velas do radiador do burrinho [, o Unimog 411,] a necessidade de fazer uma coluna com a nova vaga de doentes cheios de malária e até um soldado milícia com elefantíase, o abate de vários cantis que desapareceram nos últimos patrulhamentos; depois procedemos ao apuramento das contas e concordei com as folhas de pagamentos dos milícias de Missirá e Finete; ainda com o Pires tratei do novo mapa das férias, o aquartelamento de Missirá obrigou todos a um esforço medonho, há que reintroduzir a escala de férias ainda que moderadamente dado o número significativo de baixas por doença.


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Furriel Mil Pires > "O Pires era um algarvio discreto, sóbrio na comunicação e de uma lealdade a toda a prova. Por vezes zanguei-me com ele, por falta de sugestões ou iniciativas. Concentrei demasiados poderes e cometi asneiras e fui imprevidente. Quando o Casanova começou a desmoronar-se psicologicamente, não dei por nada, por pura insensibilidade. Julgo que devia ter empenhado mais o Pires que era meticuloso e tinha um excelente trato com a tropa africana. Ao fundo, vê-se o último abrigo a ser arranjado, que era o dele. Ele queixava-se que lhe tinha deixado a segurança para o fim. Não foi bem assim, já que a carapaça tinha duas camadas de cimento recheadas de três folhas de bidão. Quando abandonarmos Missirá em Novembro este abrigo já não existirá´".



Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Fonte de Cancumba, a noroeste de Missirá.

"Sem a água da fonte de Cancumba a vida em Missirá era impossível. Todos os dias, no mínimo duas vezes, uma secção ia buscar bidões, jerricãs e garrafões. Na véspera de eu chegar a Missirá (3 de Agosto de 1968) veio gente de Madina deixar propaganda e avisos sinistros. Até fins de Outubro de 69, registei por seis vezes a presença do inimigo, aqui. Nunca envenenaram a água. Montávamos segurança para as mulheres lavarem a roupa e abastecerem-se. Era ali que elas tomavam banho com as crianças, recusaram sempre o balneário de Missirá.

"O grande tormento era quando o Unimog 404 ou o burrinho, o 411, estavam avariados. Então, meia Missirá arrastava os bidões ida e volta, operação penosa só compensada pelo banho frio, muitas vezes a cheirar a petróleo. O Furriel Pires tirou a fotografia para celebrar a cabeça rapada".



Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Pires, de quem são as chapas, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.

Ao fim da manhã, concluído este expediente, e aguardando que Umaru Baldé anuncie que o almoço esteja pronto, olho para o correio recebido e por responder, e guardo energia para correspondência tão dispersa: recebi um amável aerograma do Cláudio Neto, que foi meu furriel na CCAÇ 2402, que me descreve a vida dura que levaram depois de estar em Có e que termina assim: "Não o esqueço nem ao Medeiros Ferreira" (3).

Começo um aerograma para a Cristina, lançando uma trivialidade: "O capim começa a aproximar-se do arame farpado, anoitece muito depressa com um céu funesto, pela noite fora a parada azula-se com o rugido das borrascas. " Será que o cansaço já me rouba a inspiração, estou condenado a escrever estas frases sem nexo? No fundo, ando à volta de uma questão principal que é responder à Cristina se vamos ou não casar por procuração, ainda há uma remota esperança do meu recurso ser aceite e a punição dos dois dias de prisão eliminada, e então poderia ir a Lisboa e casarmos. Esta dúvida vai manter-se até Agosto, altura em que conhecerei que a punição se manterá ainda com redacção diferente, o que vai mudar toda a minha argumentação. Vejo a sombra de Umaru à porta do meu abrigo, oiço-lhe os seus passos que esmagam o saibro. É com alívio que suspendo estas cogitações, esta dor em aerogramas onde nada posso prever para o meu futuro, para o nosso futuro.

Ao almoço, antes de dar a palavra aos três furriéis e aos cabos presentes (o Alcino, o Barbosa, o Teixeira e o Raposo) anuncio que o Raposo vai partir e que Bissau informou que o seu substituto, António da Silva Queiroz, vai chegar em breve. Aproveito para agradecer ao Raposo toda a ajuda que me deu na intendência dos víveres e anuncio que ele será substituído pelo Alcino. Olho-o quando faço este anúncio e sinto a muita amizade que se vai consolidando entre nós.

Recordo o dia, há meses atrás, quando o conheci junto à Capela de Bambadinca, ele tremia como varas verdes, seguramente que o tinham praxado, dizendo-lhe que ia para o pior dos infernos, às ordens de um chefe alucinado. O Alcino é um camponês que reclama sopas adubadas, tem saudades do vinho forte da sua região, tem saudades do seu terrunho, está desamparado de afectos, é frugal no contacto humano, é uma criatura inocente que sofre com a nossa linguagem de caserna, um palavreado indisponível para os seus valores telúricos. Naquele momento ainda não sei o papel determinante que ele vai ter um dia para o encadeado destas recordações, quando, de um só jacto, eu lhe dedicar uma carta, escrita com a maior das intranquilidades e com o meu pedido público de desculpas por nunca mais ter sabido dele, depois de ele passar a sinistrado de guerra.

As preocupações do Casanova são sentidas por todos: vivemos a um ritmo alucinante, com colunas à fonte de Cancumba, desmatamos e descapinamos por vezes em situações de risco, vamos diariamente a Mato de Cão, com as chuvas a precariedade dos abastecimentos obriga-nos a caminhar e a patinhar até Bambadinca, há as emboscadas nocturnas, a segurança ao Sintex, o que ainda resta das obras de Missirá, as idas a Finete, e o mais que se sabe. A correr de um lado para o outro, esqueçemo-nos que o inimigo vigia, recolhe informações e um dia explorará fraquezas, multiplicamos as actividades e o número de efectivos baixa.

Fico mandatado para falar com o Comandante [do BCACAÇ 2852, sito em Bambadinbca,] sobre a necessidade de recebermos mais efectivos, as duas secções de milícias de Missirá devem voltar, há que propor apoios da CCS, gente dos morteiros, sapadores, apontadores de metrelhadora, praças. Precisamos de ajuda, é esta a mensagem que recebo dos presentes. E nos presentes está o Adão que é soldado-maqueiro e alinha em tudo: nos patrulhamentos, nas colunas e nos reforços.
- Já agora, meu alferes, lembre-se de mim, não me quero ir embora, mas fazia jeito mais dois maqueiros, com a vida que levo nem tenho tempo para estar em Finete.

Findo o almoço, recomeçámos as nossas tarefas, fui com uma secção reforçada até à ponte de Sansão. Regressei ao anoitecer, jantei e na parada revistei o armamento dos vinte homens que me iam acompanhar na emboscada nocturna. Esta exigência das emboscadas nocturnas era uma novidade do nosso major de operações: fosse em que condições fosse, era determinado a todos os destacamentos que tivessem uma emboscada montada para dissuadir o inimigo, desde o anoitecer até horas que tornassem as flagelações praticamente impossíveis. Com a usura das nossas actividades, estava decidido que quem ia a Mato de Cão não emboscava. O quebra-cabeças era prever os cenários de ataques a Missirá e como é que nós podíamos reentrar no quartel sem ficar debaixo de dois fogos...

Naquela noite quem se meteu até à cintura numa bolanha entre Missirá e Cancumba até às 11:30 da noite fui eu e um contigente de caçadores nativos e milícias. Findo este tempo, que não dá para dormir no tépido da água porca e barrenta, sempre afugentando a mosquitada a zunir furiosa porque não pode atravessar a rede mosquiteira, e debaixo da tensão que é estar com os olhos concentrados nas diferentes sombras que nos cercam e nos ruídos próprios das florestas, regressámos com o corpo moído e a vontade de mergulhar no duche frio do costume.


Em socorro de Finete...


Era precisamente meia noite e vinte e cinco quando começámos a ouvir roncos em catadupa dos obuses, uma sinfonia de armas pesadas, rockets e morteiros, a terra tremia bem perto de nós, o negrume da noite deu lugar a riscos desses pequenos cometas que são as balas tracejantes a esvoaçar no éter. Ainda a limpar-me , subo ao abrigo onde Ussumane Baldé assiste deslumbrado ao foguetório e sinto o coração contricto quando lhe pergunto:
- Ussumane, é Finete que está a ser atacada? - A resposta é me dada pelo seu olhar súplice:
- Ah, meu alfero, eles vão partir Finete todinha!.

Os minutos passam e não vejo chegar resposta do fogo de Finete.
- Que é que leva aqueles gajos a demorarem tanto tempo a reagir? - A multidão cresce na parada, não há militar e civil que não esteja esgazeado a ver este ataque assustador, quer pelo porte, quer pela falta de reacção.

De vez em quando há fogachos em direcção contrária, mas quem domina nesta cantilena de morte são as armas pesadas e os sons que conheçemos ao armamento do PAIGC. O meu olhar mareja-se de lágrimas incontidas, de tudo me recrimino por não ter pensado que o PAIGC ia rapidamente embalar uma resposta à nossa aparição em Sinchã Corubal. O fogo atroador prossegue, todos lastimam a destruição de uma Finete e há quem já vaticine que está reduzida a escombros.

Pela última vez, no alto daquele abrigo que abre para Sansão e que numa grande angular permite ver tudo o que é floresta de 14 quilómetrs até Finete, vejo e olho e começo a sentir no ar a nuvem espessa de um fogo que devasta quem vive para aqueles lados do Geba. É então que grito que vou partir com os voluntários que se oferecerem , em auxílio de Finete. Para quem falou de prudência à hora do almoço, é exactamente o oposto o que se está a viver no frenesim na parada de Missirá: O Setúbal já faz roncar o Unimog 404 para onde vão saltar cerca de 20 voluntários armados até aos dentes.

No meio daquele desatino, ainda consigo seleccionar dois bazuqueiros, três apontadores de dilagrama e levo o morteiro 60. Sento-me ao lado do Setúbal e determino:
-Daqui até à entrada de Canturé podes ir a 100 à hora. Depois páras, iremos todos a pé os últimos 4 quilómetros.

A corrida desenfreada é digna de um filme: aos tombos dentro da caixa do Unimog, os meus soldados examinam as cartucheiras, as cavilhas das granadas, a posição em riste das metralhadoras; gritamos como num manicómio acerca de cuidados que sabemos que não iremos cumprir, zelos impossíveis de respeitar, apelo à serenidade que ninguém controla. E minutos depois, muitos minutos depois, o Unimog pára arfante onde começa a longa recta de Canturé, muito antes da curva que se orienta para Gambaná e daqui para Mato de Cão.

O Setúbal vai sozinho na viatura e de faróis apagados. Graças a uma nesga de lua, dez homens de cada lado flanqueiam a picada.O ar está empestado pela pólvora. Caminhamos à espera do pior. A prudência vai aparecer a dois quilómetros de Finete, onde o mato é denso e os poilões escondem o luar. De tanto gritar durante a viagem, como se estivéssemos a incutir coragem uns aos outros, damos agora com o silêncio sepulcral que nos envolve. Que raio de Finete é esta que não tem cubatas a arder, nem se ouvem tiros isolados, nem gritos dos agonizantes?

Com alívio, em marcha lenta, passamos os pontos onde era possível o inimigo estar emboscado. E do alto do alcantilado, que é essa inclinação abrupta que descemos e subimos para chegar ou partir de Finete, assobia-se aos sentinelas que respondem com entusiasmo. Aguarda-nos um quadro surreal: somos recebidos com entusiasmo, abraços, tudo quanto é sinal de boas vindas. Vejo Bacari Soncó avançar em passo lesto e abraçar-me. É a medo e com a voz embargada que lhe pergunto:
-Irmão, temos muitos mortos? - Um olhar coruscante precede o atónito da resposta:
- Mortos, mortos de quê?. Mortos só se for em Bambadinca, ali é que há manga de canseira!- Atónito estou eu:
-Bambadinca, então foi Bambadinca que foi atacada?



Os pormenores do ataque a Bambadinca, em carta enviada à Cristina

E o Unimog marcha aos tropeções pela bolanha de Finete. Quando chegamos à margem do Geba, o canoeiro Mufali vem buscar-nos. O rio está na vazante, entramos na canoa com lama até à cintura. Na outra margem aguarda-nos o Machado e as suas Daimlers. Enquanto subimos a rampa para o quartel, dá-me os pormenores do ataque.

Em aerograma à Cristina, no rescaldo da manhã seguinte:

Os rebeldes vieram pela pista de aviação e cemitério, atacaram o quartel frente à porta de armas, perto da tabanca fula, onde o Almeida (Pel Caç Nat 63) tem a sua tropa, as morteiradas caíram perto da central eléctrica, residência de oficiais e sargentos. Todos, que nunca tinham sonhado em tal arrojo, encheram-se de pânico, e vieram para a parada onde desataram a fazer fogo desnorteado, e só não houve feridos e mortos por milagre.

O Capitão Neves foi para o morteiro enquanto a tropa do Almeida repelia os rebeldes que avançavam para a residência dos oficiais. Depois retiraram e entretanto o pesado morteiro de Bambadinca começou a reagir. Há muitos quartos esburacados e tectos desfeitos. Só há um ferido ligeiro: o apontador de morteiro do Almeida que ficara em Finete enquanto eu estava numa emboscada, ainda ontem. Esta é a resposta à grande operação do Corubal, de há dois meses atrás. Este o ajuste de contas....


A recordação mais impressiva dessa madrugada era a mulher do Tenente Pinheiro à porta do abrigo, enquanto as crianças dormitavam lá dentro. Ao amanhecer, verificámos a extensão dos danos, mas o meu lugar já não era ali. Ainda aproveitei para fazer compras de víveres, trazer algumas camas e fardamento.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 > Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo; a dos oficiais, à direita (a cozinha era comum). Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. A regra geral era a bunkerização (por ex., Mansambo). Em 28 de Maio de 1969, quando o pessoal metropolitano da futura CCAÇ 12 estava a chegar à Guiné, Bambadinca sofreu um grande ataque do PAIGC. Quando lá passámos uns dias depois, a 2 de Junho, eram ainda visíveis os impactes das granadas de morteiro (por ex., num dos quartos dos sargentos, à esquerda) e a estupefacção do pessoal... Recordo-me de ter trocado impressões com um conterrâneo meu, o 1º cabo de transmissões Agnelo Pereira Ferreira, natural da Zambujeira Lourinhã, e que pertencia à CCS do BCAÇ 2852... Dois meses antes, havia sido executada a grande Operação Lança Afiada (1) , destinada a varrer toda a margem direita do Corubal, e desalojar o PAIGC do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole... A resposta, em força, não se vê esperar... Uma das questões controversas, já aqui debatidas, foi o papel do tenente-coronel Pimentel Bastos durante o ataque... Hoje sabemos que ele estava lá... Essa informação foi-me confirmada recentemente por dois alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2852, o Ferando Calado (transmissões) e o Ismael Augusto (manutenção)... A anedota que no meu tempo se contava sobre o Pimbas é isso mesmo: uma mera anedota de caserna (4).

Bambadinca revisitada... Soubemos depois que, a seguir à independência, fora palco de trágicos acontecimentos: desvario revolucionário, ajustes de contas, julgamentos populares e execução sumária, por fuzilamento, de régulos fulas (o tenente Mamadu, por exemplo), além de combatentes que estiveram integrados nas NT (CCAÇ 12, incluída) (LG)...

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.




Leitura: uma obra-prima de Simenon, O Comboio de Veneza

Regressei a Finete e daqui a Missirá a cogitar sobre as minhas fraquezas e as de Bambadinca. Pressentia que estavam mudanças no ar, o inimigo mais forte e indiferente aos aldeamentos em autodefesa. O inimigo sabia o que queria, tinha sempre a seu favor o conhecimento da mata e o factor da imprevisibilidade. Nós só podíamos esperá-lo e destruí-lo perto do nosso terreno, retirando-lhe a facilidade dos abastecimentos. Vou saber em Junho, Julho e Agosto que o inimigo vai ter o desplante de lançar morteiradas e fogo breve e retirar. Uma vez vou perder a cabeça e persegui-los pela noite escura, mas cedo compreenderei que é um acto demencial.

Em Missirá aguarda-me a notícia que nessa madrugada parto para Mato de Cão. Em breve vou fazer 24 anos. É aqui que me estou a fazer um homem, há dez meses atrás era impensável supor que a vida do Comandante de Missirá e Finete fosse a do meu atribulado quotidiano. Não gosto nem desgosto, limito-me a agradecer a Deus a coragem que Ele me oferece.

Durante este tempo, li dois livrinhos (mas que grandes livros!) que falam de comboios. Primeiro, O Comboio de Veneza, por Georges Simenon. Justino Calmar está em férias no Lido de Veneza, com a mulher e filhos. Num dia quente de Agosto, tem que regressar a Paris e toma o comboio que o leva até Lausana e daqui à Cidade Luz. Na carruagem, é interpelado por um passageiro que viria de Belgrado ou do Trieste. Inúmeras perguntas, e Justino sem saber porquê responde a tudo. Em dado momento o passageiro pede-lhe para em Lausana ir buscar uma mala que está num cacifo na gare, tomar um taxi e entregar a mala numa residência perto da estação. Ele tem tempo, aceita a incumbência.

É aqui que começa a mudança da sua vida. Quando chega à morada, encontra uma mulher estrangulada. Sem saber como reagir, regressa ao comboio e daqui parte para Paris. Em casa descobre que a mala tem uma fortuna em dinheiro francês, americano e inglês. Espera um contacto que não chega. A mala muda de cinco em cinco dias de cacifo e de estação. Aos poucos, começa a gastar o dinheiro, inventa que está a ganhar nas apostas dos cavalos. A mulher e os amigos sentem que há diferenças desde o regresso de Veneza. Depois uma secretária, que nutre por ele uma secreta paixão, declara-se. Entrámos na recta final da tragédia: apanhado a fazer sexo pelo patrão no escritório, suicida-se.



Estátua do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), na sua cidade natal, Luik.Fonte: Wikipedia, De vrije encyclopedie (Imagem do domínio público / This image has been released under the 'GNU Free Documentation License' ).

Vinte anos antes da sua morte, Simenon tinha, em Missirá, um jovem apaixonado leitor, de nome Mário Beja Santos, que está prestes a fazer 24 anos, e que é alferes miliciano do exército colonial português... (LG).


É uma obra-prima em que Simenon joga habilmente com as recordações de Justino, dando-nos o retrato de um homem comum que age como nós, sem deter as motivações e as consequências. As explicações essenciais não existem: Terá havido crime? Há relação entre aquela mala e a mulher estrangulada em Lausana? O que aconteceu ao homem que lhe entregou a mala e desapareceu? Temos aqui a tragédia do homem comum, a continuidade da linha de vida que não se controla, uma tragédia em que o ser hesitante é ultrapassado por todos os acontecimentos e então desiste.



Salão Lisboa (Foto: Mário Novaes, 1949). Arquivo Municipal de Lisboa, AFML - A12538. Ficava na Rua da Mouraria. Da autoria de José António Pedroso, foi construído em 1916. Era popularmente conhecido como o Cinema Piolho. Foi o primeiro edifício da cidade a ser desenhado e construído como sala de cinema ou animatógrafo... Ainda estávamos na época de ouro do cinema mudo... (LG)


O desconhecido do Norte Expresso é o primeiro livro que leio de Patricia Highsmith. Tenho sorte com a iniciação. Guy Haines vai reencontrar-se com Miriam para tratar do divórcio. É um arquitecto de 29 anos cujo talento começa a ser reconhecido. Guy pretende casar com Anne. No comboio é abordado por Bruno que lhe faz uma proposta macabra: Guy mata o seu pai e ele matará Miriam. Guy rejeita a proposta mas a fatalidade já está em movimento naquela carruagem do Norte Expresso. Enquanto leio, ocorre-me subitamente o portentoso filme de Alfred Hitchcock a que alude a capa deste livro da Colecção Vampiro. No meu abrigo, de vez em quando páro para olhar o beijo do par amoroso e lembro-me vezes sem conta dos cinemas que frequentei na minha adolescência e onde eram habituais os panos pintados e os cartazes.

... e recordações de Lisboa e dos seus cinemas


Lembrei-me do Cine Oriente, o Salão Lisboa, o Chant Éclair, o Cine Bélgica, o Rex (primeiro Lis), o Royal, o Pathé, o Alvalade, o Max... Sessões de dois filmes, um de aventuras ou acção ou de guerra, outro sentimental, comédia ou até musical. Lembrei-me da religiosidade de ir ao cinema , a combinação com os amigos, ia-se com a melhor roupa como para a igreja. O cinema era a suprema alegria das imagens reconfortantes com que nos identificávamos com os bons e os maus. Onde terei visto este filme de Hitchcock? Terá sido num cineclube, num ciclo alusivo a este mestre do suspense? Não sei e estou muito cansado. Vou repousar um pouco, tenho depois o ritual de ida a Mato de Cão. E aguardam-me muitas surpresas em Junho.

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Notas de L.G.:

(1) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal


(...) "Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros...

"Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé [, alcunha por que era conhecido o Spínola,] deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS... Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné...

"A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue...

"Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava libertada... Eu faria o mesmo, na minha terra...

"Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico: Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros. LG" (...).


(2) Vd, último post da série > 20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

(3) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(4) Sobre o tenente Pimentel Bastos, primeiro comandante do BCAÇ 2852 (substituído a meio da comissão pelo tenente-coronel Pamplona Real), vd. os seguintes posts:


1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)