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terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes!









Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 > Um  sítio surpreendente que precisamos de conhecer melhor e usar mais... Já fiz o desafio ao régulo da Tabanca de Matosinhos...

Oxalá, caros leitores e leitoras, exemplos como este [, o da Tertúlia dos Camimheiros do Parque da Cidade]  frutifiquem e se multipliquem pelos belos parques das vilas e cidades que temos no nosso fantástico país. Não deixem os parques tristes, sós com as suas árvores e os seus passarinhos... Por favor, usem-nos, enchem-nos!... São os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos... livres e felizes!

Fotos  (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


A Galeria dos Meus Heróis >  Os caminheiros do Parque da Cidade (II e última Parte)(*)


por Luís Graça





(Continuação da Parte I) (*)

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para liderar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol em Paços de Ferreira ou Penafiel, não sei ao certo. 

Era natural de Resende, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguiu formar-se.A “Poetisa”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Poetisa” e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha à minha frente uma eternidade de pasmaceira…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…

− Não me f… com essa! Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… “Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade. Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conheceu as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração…

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

− Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o “Coronel”, um DFA (Deficiente das Forças Armadas) que estivera em Angola, no fim da guerra colonial, em 1974/75, nos paraquedistas ou nos comandos, não sei ao certo. Foi ferido, com gravidade no leste, e teve direito a cruz de guerra.

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que a “Poetisa” e o “Filósofo” embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia o “Filósofo” que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado o 1º ano da Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pôs os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, só no verão de 1974, matriculou-se ainda nesse ano no curso de filosofia, depois de fazer o “exame adhoc”, andou a sanear professores, ao mesmo tempo que se metia no negócio da edição de livros. Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. Foi durante vinte anos também professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”.

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!

− Olha, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada nota de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates,o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do pequenino Portugal de 89 mil quilómetros quadrados a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Coronel”.

− “Jangada de pedra”, chamou-lhe o Saramago! – completou a “Poetisa”.

Desta feita era o “Coronel” a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Filósofo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de ir para a tropa…

E continuou o “Coronel”, que lidava mal com “faltosos, refratários e desertores”, agora com a autoridade do historiógrafo (, um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”,por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821. A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Coronel”, nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Poetisa”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país.

− Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos…

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Poetisa”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos s de batalha do "Mister" nos últimos tempos.

− O Facebook reproduziu a estrutura e ampliou a dimensão da aldeia, agora vivemos na aldeia virtual global. Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, namorar, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses…

− Pedimos amizade uns aos outros (, gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício… − contrapôs o “Filósofo”.


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Coronel”.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”… − comentou o “Filósofo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! – diz o “Filósofo”.

− Ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a “Poetisa”.

− E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais – diz o “Filósofo” –, é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário”:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… −interrompeu a ‘desbocada’ da “Poetisa”…


No meio disto tudo, eu, que por mais de uma vez tenho sido um intruso neste grupo, por convite da “Nucha”, e com um papel mais de observador do que ator, fiquei a saber que eles são já um “case study” académico: alguém da Universidade do Minho ter-se-á lembrado de pegar neste caso de alegado “sucesso de promoção do envelhecimento saudável e proactivo”… E eu julgo que houve aqui mão da “Nucha”, que é uma rapariga de Braga, de 67 anos de idade, solteirinha,   e que sempre se interessou pela promoção da saúde, esteve ligada à Rede Europeias das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis...

Enfim, posso dizer que tive a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de me chamarem “Mouro” na brincadeira. De vez em quando, quando estou no Porto, apareço com a “Nucha” e junto-me a eles, para para duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio…

Sei, por outro lado, que fazem alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal, e outro no solstício do verão", antes das “férias grandes”, imaginem!... É que ainda gostam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, são circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer um de nós…

A “Poetisa” costuma escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pude aparecer. Dizem-me que são versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adora pôr um pouco de picante no que escreve e diz... Neste último Natal, ela fez um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só aparecem nesta data para “dar ao dente”. Mas no fundo, é um homenagem a este pequeno grupo fantástico de pessoas do Norte que me surpreendem pela energia e alegria que põem todas as quintas-feiras nas sua "voltinha" pelo Parque da Cidade... 

A “Nucha” teve a gentileza de me mandar uma cópia do texto por email. Pensei duas vezes antes de o publicar, pensei em não fazê-lo para respeitar e preservar a sua intimidade, já que o grupo é avesso à publicidade e à devassa das "redes sociais"...

Mas sei que o grupo também precisa de partilhar estes momentos mais intimistas, em que se juntam caminheiros e ex-caminheiros, cerca de uns trinta, alguns dos quais infelizmente tiveram de arrumar as sapatilhas, por esta ou aquela razão, e nomeadamente de saúde…


Enfim, acho que ficava bem este o soneto, a rematar esta história dos caminheiros nortenhos a quem eu só posso desejar muita saúde e longa vida porque, eles e elas, merecem tudo…

Eis o texto que a "Nucha" me mandou, da autoria da talentosa "Poetisa" (e com a sua generosa permissão):

"Recapitulemos um pouco a história deste grupo, a 'Tertúlia dos Caminheiros da Quinta das Conchas', que é um mix de grupo convivial, e de ajuda mútua, de gente que gosta de caminhar e conviver, mas também de dar à língua e ao dente,e que até podia ser um clube, recreativo, cultural, desportivo,
e até prandial e excursionista:  faz um excursão e dois almoços… por ano, um no solstício do verão e outro no solstício do inverno!

"Quanto ao resto, todas as semanas, à quinta-feira, procuram acrescentar  mais vida à vida, mais saúde à saúde, mais amizade à amizade.

"Para os que chegaram ontem, é bom que se saiba que estão aqui duas mães-fundadoras,
a 'Nucha' e a 'Rosa Mota', como carinhosamente as tratamos.

"Há cerca de 10 anos,  faziam então parte de um grupo de professoras, da escola de X... Quando se reformaram, olharam umas para as outras e houve alguém que perguntou: 'Ouçam lá, e agora ? O que é que vamos fazer amanhã,
o primeiro dia do resto das nossas vidas,
em que deixamos de vir à escola, por dever e obrigação ?!'

"Foi assim que nasceu a nossa tertúlia, como sabem... Entraram uns, saíram outros, vêm uns mais regularmente, outros menos… E é para todos os caminheiros que eu fiz este soneto ou 'sorneto', como lhe chama o nosso 'Mister' que vai mantendo a nossa chama viva...

"Começo, na 1ª quadra, por me dirigir, em tom de saudável brincadeira, aos menos assíduos… Peço a vossa colaboração para adivinharem ou completarem, em voz alta, a última palavra de cada uma das duas quadras e dos dois tercetos.


"Boas festas de 2018, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos compa…nheiros.



"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, e não tem desconto,
Que a quota é só a da ami...zade.

"Sempre com as malas feitas p’ra viajar.
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas sempre com medo do mundo aca…bar.

"Filhos e netos são outras preocupações;
De saúde, vão indo, menos... mal;
P’ra todos, Bom Ano… e Xico...rações!

"Parque da Cidade, 20 de dezembro de 2018"...



Oxalá, caros leitores e leitoras, que exemplos como este frutifiquem e se multipliquem pelos belos parques das vilas e cidades que temos no nosso fantástico país. Não deixem os parques tristes, sós com as suas árvores e os seus passarinhos... Por favor, usem-nos, enchem-nos!... São os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos... livres e felizes!


Luís Graça
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19211: Convívios (881): Festa do Magusto da Tabanca de Matosinhos (José Teixeira)

1. Em mensagem do dia 19 de Novembro de 2018, do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a reportagem do Magusto da Tabanca de Matosinhos:


FESTA NA TABANCA DE MATOSINHOS

Com castanhas, bom vinho e bom fado, depois de um almoço bem servido, como sempre, e com a sala cheia de combatentes, assim foi mais uma quarta feira de convívio em Matosinhos.
Depois do almoço, o Rodrigo, o camarada sempre pronto para cuidar da bem estar da malta, foi a correr buscar o vinho e logo chegaram as castanhas ao som da musica tangida pelo Campos, pelo Luís Bento, pelo Arménio e pelo Alexandre Cardoso.
Seguiu-se uma excelente tarde de fados.
O Vitorino, o grande cantor da Tertúlia, trouxe à Tabanca para com ele animar a malta, a sua sobrinha Francisca Silva, uma voz a reter pela forma como dá vida ao fado, o Delfim Costa que andou por Angola e nos presenteou com excelentes fados e canções da América Latina, como só ele sabe cantar.
Entretanto houve tempo para cantarmos os parabéns ao grande Zé Manel Lopes pelo seu aniversário. Uma forma de lhe desejarmos muitos anos devida e de saborear o seu "vinho fino velho" que tem um sabor delicioso. Recebemos ainda alguns camaradas que escolheram este dia para nos visitarem pela primeira vez.
Quase no fim o Leite Rodrigues usou da palavra para mostrar a sua alegria pela tarde, relembrar que somos uma classe em extinção e há de chegar o dia em que um de nós fechará a porta da Tertúlia Tabanca de Matosinhos. Registe-se a sua afirmação que ficou gravada no mais intimo do ser de cada um dos presentes: " A guerra é um conflito armado em que jovens que não se conhecem e não se odeiam, se matam entre si, mandados por velhos que se odeiam... mas não se matam entre si".

A tarde passou rapidamente. Que pena!









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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19190: Convívios (880): 72.º Encontro da Tabanca do Centro e Almoço-convívio de Natal, Monte Real, 28 de novembro, 4ª feira, a partir das 12h30... Prazo de inscrições (até ao limite de 90): dia 23 do corrente

sábado, 10 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19181: Convívios (878): Convite para o Magusto da Tabanca de Matosinhos, dia 14 de Novembro, Restaurante Espigueiro, Matosinhos (José Teixeira)

C O N V I T E



A Tabanca de Matosinhos continua a ser o ponto de encontro semanal de antigos combatentes da Guiné. 

Iniciada em Abril de 2005 na sequência de uma viagem à Guiné de três ex-combatentes que se reuniram no regresso para fazerem a avaliação da viagem, tudo começou com uma sardinhada a três; rapidamente cresceu e se tem mantido. Na verdade, tem feito uma permanente renovação, com um Secção de velhinhos a dar-lhe forma e a “impor” respeito, porque a velhice é um posto. 

A porta mantém-se sempre aberta e não se paga nada à entrada e à saída paga-se o almoço. Daqui, partiram já, muitos grupos de “turistas” em romagem de saudade à Guiné, e... vão ficando pela nossa caserna para lhe dar vida e continuidade. 

Pois bem, desta vez, um grupo de camaradas decidiu organizar um Magusto “à maneira”. Toca a “desenrascar” as castanhas e o vinho, convidar os fadistas e convencer o gerente do Restaurante a preparar o Magusto, para depois do almoço, como sobremesa. 

O Convite, com o sempre, é alargado a todos os combatentes, familiares e amigos.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19166: Convívios (877): Convite para o 40º convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, Restaurante "Caravela de Ouro"... Ementa: Bacalhau à Lagareiro... Dia 22 de novembro, 5ª feira, das 12h30 às 15h30 (Manuel Resende)

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19085: A galeria dos meus heróis (10): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) Parte (Luís Graça)

Luís Graça, Contuboel, junho/julho de 1969
Segunda e última parte do texto elaborado para a "Galeria dos meus heróis", série literária da autoria do nosso editor Luís Graça.

O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) parte


Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor ?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e colegas de escola"… Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Aliás, os pais opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que o filho do "rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

10. Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, trocados pelos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias. Os "fidalgos" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua "morgadinha"… 

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda,onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Não, um homem das Áfricas – emendou o Arlindo.− Partiu para Angola com o coração destroçado.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné logo em janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: foi dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabou por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné.

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "kumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... 

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "kota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes...Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "kota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "kamanga", como se dizia em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "kota, seguramente menos "atiradiço" (e "com mais escrúpulos"...)  que o caçula da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou falei, ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária, com o valor de um saquinho de "vidrinhos". Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos diamantes...Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequena accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75".

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente da junta de freguesia da sua terra natal. Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grander amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

Tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas, ganhou uma fortuna (um "pequena fortuna", como gostava de precisar...) com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos,túneis, quartéis de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, é uma vida de trabalho... E o futebol ?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória"! ?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o memso que limpou ao Zé Pequeno, e lhe cortou a língua, por traição, aqui na  Lixa!...

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da tua terra.

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco de quem foi amigo nba Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam o "padrinho")… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Também já fechei este departamento, que me ficava caro, e trouxe-me dissabores.

− Padrinho... ?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

−… Sem olhar a quem ?!

− Sim, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1967 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou: 

− Tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses", no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia do "Felgueiras". Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras".

− Tornou-se popular no Batalhão, viemos a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo… Nas costas do capitão, pois claro... Se bem me lembro, rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

Ao que parece, o "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a rapaziada da companhia, mas motivo de chacota pelo resto do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola ?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, no ano passado, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos.

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada". O seu compadre não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia em agosto passado, quando estive no Norte, antes das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito, nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[Costuma-se prevenir o leitor de textos literários como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Boa noite.]
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19084: A Galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19084: A galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


Luís Graça, Contuboel, c. junho/julho de 1969
Texto, em duas partes, escrito, no fim do verão, para a série literária "A galeria dos meus heróis", do nosso editor Luís Graça.


O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017)



1. Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o lourinhanense Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu conterrâneo). 

A sua história já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado ambos no mesmo batalhão, colocado no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu. Estavam em diferentes companhias de quadrícula, a uma distância de 20 a 30 km, um do outro, mas encontraram-se, algumas vezes, na sede do batalhão. Foram e vieram no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"...

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O pai do noivo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que mantinha) na região do Vale do Tâmega, desde há cerca de 40 anos, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e cansado país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / NOVA. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar. Não tive pretextos nem argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 

Confesso que nunca gostei de bodas e batizados, e muito menos de funerais. Mas neste caso não consegui arranjar desculpa consistente e convincente para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, belíssima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava.

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fez as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses! – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, algo insólita, do "Felgueiras". Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que não tinha feito o serviço militar (ou esteve na tropa já depois o 25 de Abril), sendo mais novo do que nós os três.

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras" fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-me o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de pôr o "Felgueiras" na "galeria dos meus heróis". Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, trata-se de uma figura tão digna como as outras que lá estão, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre finais de 1966 e princípios de 1969. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado num pelotão de morteiros, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 4º pelotão de uma companhia de caçadores, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulha-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… −acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá uma secção de um pelotão de morteiros, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima'…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia…

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula",  não chegou a acabar o almejado 5º ano do liceu, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro". E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" deu lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões...− reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

−O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

−Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

−Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado…− galhofei eu.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T Niassa a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1º cabo hortelão da companhia (uma especiaidade que, diga-se de passagem não existe na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1º cabo hortelão… Não me lembro –repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde o IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê ?

− Imaginem que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…~

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau e as batatas, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras"=…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta!

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono ? − perguntei eu.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão ?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações.

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós. Um ano antes teria ido parar ao Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa  de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava ?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e a horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o engº Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.


A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A ganhar como 1º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2º sargento do quadro permanente,que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório,  se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo ?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco ?

− Sim, na tua terra... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo ?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim … Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou ? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer... ?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se um dia o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso ?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta,  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)