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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

1. Parte IV de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (4)

Cacine

Tinha um pequeno porto que já não me lembro a função dele pois as LGD’s faziam o seu descarregamento na praia.

O interior do quartel era composto duma avenida ladeada de palmeiras que incutia um ambiente próprio de zona equatorial. Desde a margem do rio até à saída do quartel, desembocando na aldeia, o panorama arborizado inspirava-nos de modo a abstrairmo-nos do monstro que era a guerra. Para além das palmeiras havia muitas árvores de fruta, bananeiras, mangueiras, laranjeiras e muitas outras. O nosso quartel era um lugar aprazível e a restrição de entrada do pessoal da tabanca não era rigoroso pois por volta das 16 horas lembro-me de lhes comprar mancarra (amendoim) do qual fazia o meu lanche acompanhado com uma cerveja. Nos dias de batuque na tabanca também íamos ver e tomar parte. Havia um comerciante que abastecia a população e até onde se ia muitas vezes. O administrador do posto, um cabo-verdiano, fazia parte do convívio e lembro-me que no fim da comissão nos preparou umas boas refeições de frango de caril. Ele vivia com a mulher.

O nosso convívio com a malta do pelotão era intrínseco criando-se uma forte amizade baseada nas circunstâncias da guerra e onde os longos convívios faziam brotar uma certa espiritualidade de onde nascia o saber ouvir o outro desfilando na memória do tempo rasgos de facetas de vidas duras passadas na terra de origem. Os problemas individuais desfilavam como contos de histórias e uma vez foi a sério e chegou longe demais. A namorada escreveu a informar que o namoro acabara. Longe, isolado, sem nada poder participar e ouvir directamente o que se passava a imaginação alcançava situações à maneira dele e foi de tal ordem que se abordou da beira rio e desvairado começou a disparar a G3. Já não me lembro quem foi ter com ele onde o imprevisto poderia acontecer mas que resultou em bem.


Cacine era o local onde se passava cerca de dois anos envolvidos na mística da guerra. Os nossos aposentos deviam ser precários que nem me lembro como estávamos acomodados. Todos os meses fazíamos rotação entre Cameconde e Cacine. Por isso devíamos andar sempre com a roupa atrás de nós.


O desporto era sempre um motivo para estarmos activos e o futebol era o que era mais requerido por todos. Um desporto barato porque são muitos atrás de uma bola cujo preço a dividir pelos que jogam e a sua duração dá como resultado uns tostões a cada um.


Formar equipas não era difícil entre mais de meia centena de pessoas porque a outra estava noutro lado. A disputa entre sectores era aliciante. E depois de um bom desafio de futebol um bom banho de água tirada por uma bomba sabia bem. O balneário era público feito de bidões enchidos a partir dum Unimog. Cada sector tinha o seu balneário.


De Fevereiro ao Natal de setenta o tempo passou-se. A alternância entre Cacine e Cameconde dava para variar um pouco. Quem estava em Cacine fazia os patrulhamentos até Cameconde e quem estava em Cameconde fazia-os para além em direcção à fronteira com a Guiné Konacry. A alimentação constava muitas vezes de peixe pescado na zona ou de carne arranjada por caçadores locais e até de elementos da milícia. Eram alturas de convívio em que faziam parte o comerciante local assim como o PIDE.

Ao longo do ano e conforme a estação sabia bem fazer as refeições ao ar livre debaixo duma boa sombra. A companhia dividida em quatro pelotões de 25 soldados entre os quais 12 cabos, 12 furriéis e 4 alferes juntava-lhe o pelotão das Daimlers. Sargentos havia 3. O capitão era o Magalhães. O nosso capitão foi do melhor que se pode arranjar no exército português. Fomos e voltamos todos e nesta pequena frase está tudo resumido.



Já não me lembro bem quando tirei as minhas primeiras férias as quais foram passadas em S. Miguel. Apanhava-se a avioneta para Bissau e daqui um avião da TAP para Lisboa e depois S. Miguel. Pormenores já não me lembro. Não me recordo por exemplo o preço da avioneta para Bissau nem a passagem para Lisboa e S. Miguel. Sei que ganhava naquela altura cerca de sete mil escudos. Transferia cinco mil para os Açores dos quais dava mil aos meus pais. Ficava com dois mil para as minhas despesas. Tinha que pagar a lavadeira, as bebidas fora das refeições, a mancarra e sei lá que mais. Fui duas vezes para Bissau através dum artigo do RDM que me dava 5 dias indo para o hotel que já nem sei o nome. Em Bissau percorríamos a cidade entrando nas esplanadas onde a cerveja era servida com um prato de sobremesa com camarões. À noite o serão era passado num quartel onde se jogava o bingo. Havia bons prémios tais como frigoríficos.

Passar a tropa no mato ou na retaguarda fazia a diferença. Neste contexto os nossos miolos começavam a fazer muitas perguntas. O por quê disto assim! Com que direito a situação desta guerra gerava um conjunto onde muitos seres humanos se debatiam consigo próprios a respeito da sua existência e para que servia ela. Defender a pátria ou interesses de alguns que se serviam da pátria para fins obscuros que no fundo não passava de dinheiro e bem estar à custa da vida de seres humanos. Olhando a história ela está eivada de guerras e o homem não aprende a viver sem ela. É a lei da selva, a lei do mais forte, os que não têm consciência, sobrepondo-se aos que a têm. Espero bem que um dia os dirigentes políticos sejam obrigados a passar por uma instituição religiosa para formarem a sua consciência para não ouvirmos de muitos políticos que têm a consciência tranquila quando o mais comum dos cidadãos sabe que é exactamente o contrário. Esta relatividade tem que ser bem definida. Deve ser proibido países serem governados por um Hitler, por toda a espécie de ditadores mesmo por um Bush.

Mas voltemos a Cacine para falar dum pelotão de milícias. Era uma tropa civil que na Guiné servia para fazer a picada dos caminhos e trilhos por ode se passava. Eram detectores de minas. Por acaso enquanto estive nesta guerra não me lembro de alguma mina ter sido despoletada. Dos 23 meses que ali estivemos, estive dois de férias e dois a tapar buracos em outras duas companhias. Mas neste pelotão havia de tudo um pouco. Havia os revoltados mais conscientes da situação que chegavam ao ponto de serem vergastados por lutarem por uma justa causa mas que na altura ponham em risco a sua sociedade. Era a ditadura. Os chefes da tabanca sabiam com quem estavam a lidar e colocar em risco de vida uma população ou alguns deles era periclitante sair fora da visão Salazarista. Sei dum caso em que foi bem vergastado. No entanto havia outros tipos de seres humanos e deixei bons amigos sendo um deles o Salifo Dabó.


Era um meio de subsistência ser-se integrado nesta tropa civil porque nunca soube como se vivia em lugares destes sem uma agricultura. Uma vez dei comigo num terreno onde estava a trabalhar um nativo tentando retirar alguma coisa da terra depois de fazer uma queimada. Um terreno cheio de tocas de árvores queimadas. Ele estava irritado e zangado. Mais para os arredores e mais longe dos espaços da tropa havia aquilo que antigamente parecia terrenos de muita fruta.

A milícia era um pelotão de nativos que por eles iam passando as mais diversas companhias e certamente já cansados de andarem a repetir a mesma lição dezenas de vezes.


 A população vivia em palhotas no aldeamento ao lado do quartel, para o interior do terreno. O contacto é coisa que se vai fazendo e adquirindo no bom ou mau sentido consoante a mensagem que transmitimos. Muito longe da mentalidade objectiva do tempo estava eu, formado numa congregação religiosa, transmitindo uma sã cordialidade de modo a conseguir um bom relacionamento com as pessoas. Não foi fácil nem possível, tirando algumas excepções. O diálogo era sempre à base da desconfiança. Os mais velhos e responsáveis pela população, os religiosos e homens do povo, esquivavam-se e normalmente não apareciam. Falar com eles era pior que ter uma audiência com o presidente da república. Por isso, fora desse ciclo mas certamente com a prevenção deles, apareciam as crianças e jovens. Em todas as situações do planeta as crianças são sempre as mais espontâneas e certamente por isso as que mais sofrem.

Esta “bajuda”, termo para rapariga ou menina, era filha dum milícia que lavava a minha roupa.

Algumas mulheres dos milícias apareciam com as suas crianças às costas. Fui nomeado para estar à frente deste grupo apesar de não ter isso muito em conta pois eles tinham o seu dirigente.


O meu amigo Salifo Dabó com a sua irmã

O meu amigo Salifo Dabó, um milícia e três bajudas


Makissa, uma criança filha dum milícia, penso que pai da moça que me lavava a roupa, já não me lembro, e que dediquei muita da minha atenção. Com autorização do capitão e dos pais levava-a para o quartel onde a mimava com o que havia de comestíveis, chocolates, e bebidas gasosas etc. A transpiração era um dos cuidados a ter. Dava-lhe banho, levava-a para a messe dos oficiais e estava connosco parte da tarde.

Hoje pergunto onde estará essa criança. Será que é viva? Sabe-se que após a independência foram mortos, por vingança, muitos dos milícias espalhados por toda a Guiné. Se alguém souber do paradeiro da Makissa, eu gostaria de saber.



Outra coisa curiosa que aconteceu em Cacine foi a visita duns jornalistas, penso que alemães, acompanhados por uma patente militar e sempre debaixo de olho e que me entrevistaram com uma série de perguntas que já nem me lembro sobre a situação da guerra. A Makissa estava comigo nesses momentos. Outra situação que gostaria de saber por onde anda a reportagem desses jornalistas.

Estávamos a esfregar as mãos de contentes porque estava a chegar o fim da comissão quando nos aparece um major com um plano maquiavélico para fazermos uma operação bem para o interior e para sul. Foi coisa que ainda não nos tinha acontecido. Não nos queriam deixar sair de Cacine sem um rebuçado destes. Todo o aparato foi montado e não sei quantos pelotões saíram mato dentro com um esquema que o capitão tinha em seu poder. Pormenores não me lembro mas certamente comunicados a nós sem fazer a mínima ideia da realidade do terreno. Alguém sabia o caminho e como tal lá nos embrenhamos por atalhos durante horas. A dada altura chamaram-se lá da frente com mensagem passada ao de trás. Era uma mina anti pessoal que era preciso desmontar. Lembro-me de ter nas minhas mãos o detonador. A dada altura paramos. Uma avioneta percorreu o espaço por cima de nós. Mais tarde resolveram ir buscar-nos de batelão. A maré já estava vazia e foi longe que nos deixaram entrando lodo dentro, patinhando, de modo a chegarmos ao quartel.


Texto e fotos: © Tibério Borges

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

1. Parte III de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (3)

Cacine

E passamos uma semana em Bissau. Aqui fizemos alguns patrulhamentos nocturnos para nos irmos ambientando ao terreno. Dos Açores ao Continente português a maneira de ser e viver era muito diferente mas muito mais era em África relativamente ao Continente. Mundos diferentes.
Em Bissau ouviam-se histórias tenebrosas de mortes, ataques, bombardeamentos, emboscadas, as mais diversas operações no hospital e sei lá que mais. Mas vivia-se intensamente a vida. A promiscuidade era enorme. A vida dos militares na retaguarda era um luxo. Pobres dos que estavam a chafurdar na frente de combate. Em breve iria saber isso o que era. O que me aconteceu até aqui foi encontrar um oásis no deserto. Daqui por diante iria deixar o oásis e entrar no deserto. Quase dois anos me esperavam na frente de combate. Não fazia a mínima ideia do que me esperava.


Em Bissau, 1970

Não me lembro de muitos pormenores mas recordo-me de estar numa LDG (lancha desembarque grande) rumo a Cacine e penso que de noite. Entramos no rio Cacine onde as águas se misturavam e depois de estudadas as marés para podermos desembarcar na margem esquerda onde estava sediado o quartel de Cacine. Ao longo dos cerca de dois anos que ali permanecemos os nossos abastecimentos vinham por mar nestas lanchas.


 LDGs


Cacine

Fomos render a Companhia de Caçadores 2445 em Maio de 1970.
Cacine era o último reduto do Sul da Guiné onde estavam tropas portuguesas tendo como segurança na retaguarda o lugar de Cameconde, havendo mais a norte dois quartéis, Gadamael e Guileje, onde existia o corredor da morte, corredor esse que dava entrada ao armamento do PAIGC da Guiné Konacry para o interior da Guiné Bissau.

Logo à saída do quartel havia as habitações dos residentes de Cacine para mais perto de Cameconde existir ainda outra povoação, a Tabanca Nova. Entre Cacine e Cameconde com paragem na Tabanca nova fazíamos o trajecto diário, picando o caminho a fim de detectar alguma mina. Era necessário abastecer Cameconde e manter seguro esta picada. Além de cada um estar armado acompanhava-nos as “Daimlers”, Unimogs e a GMCs com sacos de areia como lastro. Todos os meses havia a mudança de pelotões de Cacine para Cameconde e vice-versa.

O lugar de Cacine situado na margem esquerda do rio Cacine era um lugar aprazível e não muito longe do mar. As marés eram muito acentuadas e como tal para navegar neste rio havia que ter em conta as marés. Fora do quartel e na margem do rio havia praia da qual desfrutamos bons momentos. Pena é a guerra ter condicionado o dia-a-dia destas populações que bem podiam desfrutar do seu modo de vida peculiar.


O pôr-do-sol era lindo. Em contraste a vida dura que a população levava derivado aos condicionalismos no terreno imposto pela situação militar portuguesa.


Este Unimog tem uma história que se passou com ele ao ficar uma noite na praia devido a não se conseguir tirá-lo pois as rodas enterraram-se na areia. Seria necessário a GMC para o puxar. E porque isso não aconteceu nesse dia não sei. O que me lembro é que a maré, quando encheu, provocou um curto-circuito no sistema eléctrico do carro e com o movimento das águas a luz começou a acender e a apagar. Isto durante a noite. Uma das sentinelas ao aperceber-se desta alternância de luz começou a disparar. A malta foi logo para os abrigos e foi o descarregar de uma tensão que se vinha acumulando duma notícia que iríamos ter um ataque aos arames. As armas desenferrujaram-se, a tensão desapareceu e tudo voltou ao normal no dia seguinte.

Nestas margens do rio a população apanhava as tão saborosas ostras com as quais nos deliciávamos. Eram bem graúdas. Era uma maneira de enriquecer o PIB local. A pesca era outro meio de sobrevivência. A caça fazia parte do modo de viver e lembro-me bem da carne do animal “monte” que era bem saborosa. A mancarra (amendoim) era outro produto.
A praia era um lugar para mitigar a solidão nestas paragens.

A vertente religiosa era bem acentuada onde em grupo ou em individual a oração fazia parte da vida. Um factor mais forte pesava na religiosidade que era a situação da guerra. Nos tempos difíceis o ser humano agarra-se a algo para além do que é material pois a impotência do humano perante os acontecimentos leva-o a pensar no sentido da vida.

Capela de Nossa Senhora de Fátima

A Capela de Nossa Senhora de Fátima estava ali para nos receber em grupo ou em particular, até os mortos que vinham de dois quartéis mais acima, Gadamael e Guileje. E foram muitos. O Carapeta de tanta pancadaria que apanhou teve que ser rendido mais cedo. Lembro-me dum capitão, de nome Ascensão (penso), dum desses quartéis ter sido morto numa emboscada. Eram notícias que nos congelavam as veias.

 Mesquita

Por outro lado a população que vivia ao lado do nosso aquartelamento era muçulmana e como tal aprendia a sua religião e costumes. E tinham a sua mesquita. Com a sua conjuntura social própria o encarregado de educar as crianças na religião muçulmana reunia-as e sentadas no chão aprendiam o Corão.

Na medida em que o tempo ia passando as saudades das notícias dos nossos entes queridos aumentavam e os aerogramas (envelopes-carta distribuídos pelo MNF) funcionava como meio de comunicação. Mas nem sempre o correio vinha directamente para o nosso quartel mas sim para outro ao lado e mais acima rio, Gadamael. Por isso era necessário lá ir de sintex e saber das marés porque só quando estava cheia era possível atracar no porto. Uma vez a maré já estava em posição avançada de baixar mas mesmo assim aventuramo-nos a lá ir ficando para o outro dia o regresso.

Lembro-me que quando lá chegamos a maré já estava em fase adiantada de abaixamento e por isso tivemos que arrastar o sintex até lugar seguro, amarrá-lo e tiramos as botas, arregaçamos as calças, enterramos os pés no lodo e chegamos a terra firme. Cortei a sola dos pés penso que por causa das conchas das ostras.


Na altura não medíamos a dimensão do perigo que nos rodeava pois a conjuntura política estava longe da nossa noção real da Guiné. Dizia-se que do outro lado da margem do rio, que ficava bem afastada, era mato denso. Portanto o perigo de sermos atacados dali não se avizinhava na nossa realidade. Cacine era o último reduto do sul rodeado de mata e água, havendo apenas uns carreiros pelo lado de Cameconde onde tínhamos o nosso destacamento. Era a retaguarda de Cacine. O enquadramento geo-estratégico de Cacine era bom. Plantado à beira rio com a população mais a interior o nosso quartel estava bem posicionado tendo ligação por um caminho que passava pela Tabanca Nova a caminho de Cameconde. O interior do quartel abrangia a messe dos Oficiais com condições más, vistas em 2009 mas que na altura até não eram más. Hoje ao olharmos para trás é que nos arrepiamos ao vermos onde estávamos instalados. Fazia parte, ainda, a messe dos sargentos, as Transmissões, a secretaria, a oficina mecânica, o refeitório, o local da PIDE, a nora de onde tirava a água, a capela…
Como em todos os quartéis havia a disciplina militar com os seus usos e costumes. Logo de manhã o tocar da alvorada e à noite o arrear da bandeira à qual se prestava homenagem.

Na Guiné penso que todos os quartéis tinham a sua pista para as avionetas. Este meio de transporte servia tanto para civis como para militares. Uma vez fui para Bissau gozar um artigo do RDM que me dava 5 dias longe do mato e comigo iam também civis. Estes monomotores sobrevoavam toda a Guiné, penso e noutra vez o motor, que era posto a trabalhar pegando numa haste da hélice e rodando-a, parou simplesmente dizendo o piloto que no ar não parava.


No isolamento em que vivíamos tudo que era fora do comum era novidade e uma atracção que quebrava a monotonia da nossa existência.
Fora do quartel e para os lados da Praia existia uma viatura fora de serviço, velha e estanque. Ao se passar por ela explorávamos a viatura pois na altura tudo era novidade. Estávamos em 1970. Mas conduzir um jeep sem ter carta era entusiasmante assim como um Unimog. Foi aprendendo assim que numa das férias que fui a S. Miguel tirei carta no quartel em Belém.



Entre Cacine e Cameconde havia diariamente um patrulhamento para assegurar a vigilância na zona e para deslocar toda a gama de material quer alimentício quer de armamento ou outra coisa qualquer.
Para isso um pelotão de 25 homens, 3 furriéis (no meu caso apenas dois), pessoal de transmissões, um pelotão de milícias que seguia na frente a fazer a picagem, as viaturas com os respectivos condutores (Unimog, Daimlers, GMC com a arma “Browning” com lastro de sacos de areia). Munidos de G3, metralhadora HK21, bazuca, não me lembro de morteiro 60 fazíamos o percurso para o qual já tinham seguido a milícia a fazer a picagem.

O obus 14 fazia parte da nossa segurança em que a artilharia fazia uso dele sobretudo em Cameconde. Era uma arma que mandava um rebuçado de 45 kg e que metia respeito.


O sector da “ferrugem”, oficinas de viaturas, era sui generis. Com espírito próprio e adquirido por um grupo pequeno era ali que a folia parecia brotar. Uma viola fazia parte da farra que acompanhada com umas ostras cozidas em meio bidão faziam a delícia de quantos tomavam parte dela. Eram estes uns dos poucos momentos que faziam esquecer o isolamento, o afastamento da família ou da mulher e filhos.

"Ferrugem"

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

1. Continuação da apresentação do trabalho do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72), intitulado "3 anos nas Forças Armadas", enviado ao nosso Blogue em 28 de Junho de 2015:


3 anos nas Forças Armadas (2)

Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Tibério Borges

Lembro-me alguns pormenores da minha chegada a este quartel. Fizeram-me e a outros a recepção da praxe. Na altura não entendi este método e não fiquei bem disposto. Sei que nos sentaram à volta duma mesa de sala de estar, sem comer, enquanto eles, os organizadores desta cena, comiam lautamente. Depois perguntaram se o barman podia fornecer martini em nosso nome. Eu que não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e mal disposto com esta recepção a resposta foi um não. Tive pena, passados tempos, de não ter ido na jogada. Teria sido mais engraçado.

Outro episódio foi o de um preso ter arrombado o tecto da prisão para fugir. O episódio foi comunicado ao comandante que com a sua experiência pediu calma e mandou uma viatura com alguns soldados mas sem armas a casa do fugitivo para o trazer de regresso. Ainda me lembro de lhe ter dito para não me criar problemas e regressar ao quartel mas ele foi peremptório na resposta que regressava só porque não vinham armados como de outras vezes. E veio nas calmas.

A disciplina era muito rigorosa mas havia quem se estava a marimbar para a vida. Morrer por morrer Marquês de Pombal.

Mas a companhia foi-se formando. Muitos treinos debaixo de chuva, frios, vento… fora deles eram outra vida fora do quartel. Os continentais alferes como eu dormiam fora do quartel. Já nem me lembro onde ficava se dentro ou fora. Esta minha memória está de rastos. Sei que andava a namorar e todo o tempo que tinha era para estar com a minha namorada. Não foi fácil este namoro. Mas aconteceu.

Finais de sessenta e nove, Ponta Delgada mais parecia uma aldeia e sem condições. O pouco que havia de restauração fechava depois das horas de expediente. Vida nocturna só em particulares. Quem tinha o privilégio de entrar num grupo estava safo. O contrário era uma situação difícil pois o micaelense era demasiado fechado. Apenas um pequeno grupo desta sociedade tinha regalias porque eles próprios as criavam. Havia muito sangue azul. Mas havia pequenos grupos já da futura classe média que se reuniam para patuscadas cujo convívio são era muito agradável. O sair de casa à noite era um prestígio. Tudo era diferente comparativamente com 2008 onde o inverso existe. Foi passar dum extremo ao outro depois do 25 de Abril de 1974.
Se lerem “Gente feliz com lágrimas” vão entender bem a sociedade que existia na altura.

O que é certo é que depois da companhia formada embarcamos rumo a Setúbal onde tirámos o IAO cujas iniciais já não me lembro o significado. Era o passo anterior à ida para a Guiné, local destinado à nossa companhia. Já nem me lembro porque não era batalhão.

Setúbal era na altura uma cidade simpática porque conseguimos entrar num pequeno grupo local com o qual passamos bons momentos. O mundo era diferente, muito diferente de Ponta Delgada. Havia muitos locais onde se podia comer. E lembro-me de uma vez termos ido comer a uma tasca onde começamos pelo pão enquanto se esperava pela refeição. Foram vinte e dois papos-secos que quatro ou cinco pessoas devoraram num pouco. O homem da tasca ficou estupefacto a olhar para nós pois não sabia que éramos açorianos.

Em Setúbal

O mundo aqui era mais largo. Disso já me tinha apercebido quando vim estudar para o continente. Em vésperas de embarcar de Lisboa para Bissau o nosso capitão Magalhães deu-nos a noite livre mas marcou uma hora para formar e ninguém podia faltar. Era ver toda a malta ir já não sei como para Lisboa. Fomos para a “night”. Percorremos uma série de pubs e sei lá que mais. Bebeu-se, comeu-se e depois cada um terminou-se. Também já não me lembro como regressamos a Setúbal. Só sei que no dia seguinte, 11 de Abril de 1970, estávamos em Lisboa a fazer a marcha de despedida às altas patentes.

 Desfile antes do embarque

Depois de estarmos no navio, o Ana Mafalda, tivemos oportunidade de ver um mar vasto de gente com lenços brancos, gritando de dor a despedida do seu ente querido que o mais certo era não o tornar a ver. Era arrepiante constatar esta dura realidade. Era deprimente. Era este cenário que Salazar evitava publicar. Largamos debaixo de gritos profundos de dor e rumamos a mar alto com destino a Bissau.

Despolitizado, como éramos todos, não tinha a noção da verdadeira realidade. Lembro-me que quando tinha aulas nos Jesuítas, ali para os lados de Sete Rios, pois apanhava o comboio em Sta Iria, falava-se a boca fechada ou dava-se a entender muito sobre o regime de Salazar. O Cardeal Cerejeira era muito badalado. Havia uma revista que era muito lida pelo clero e que era muito discutida. Soube mais tarde que a PIDE expulsou de Portugal padres que pertenciam à Congregação onde estudei, Sagrados Corações de Jesus e Maria. Os meus professores eram holandeses.

A bordo do Ana Mafalda

Uma semana em alto mar deu muito para pensar e escrever. Na altura estava a namorar e eu escrevia longas cartas. Tinha tido quase dois anos de filosofia e isso dava-me campo para de uma frase expandir as minhas ideias. Lembro-me de ter tido um diário de 4 anos sem falhar um dia mas como apanhei meu pai a lê-lo e achei que aquilo era só meu decidi queimá-lo. Mais tarde arrependi-me mas já era tarde. Muitos pormenores da minha vida desapareceram, simplesmente. Mas eu estava em alto-mar. E neste percurso lembro-me de um soldado se querer atirar borda fora. Foi uma situação crítica e foi dado conhecimento ao capitão.

Foi um tempo de antevéspera à crueza duma guerra sem sentido como todas as guerras. Já o Padre António Vieira dizia: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
A nossa literatura está cheia de escritos sobre a corrupção de quem lidera a nação. O mesmo Vieira escrevia: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os seus imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos". Está muita coisa inventada e dita. É uma questão de interpretação. E tudo isto dito no século dezassete.

E mais. O Vieira era o imperador da língua Portuguesa segundo Fernando Pessoa. Sobre as conquistas pelos holandeses de terras portuguesas no Brasil: “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos Alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhámos, as hajamos de perder assim! Oh!, quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!”.
Para quê mais comentários? E no Séc XIX ainda teimávamos em ficar com terras africanas.

E lá íamos a caminho de África teimar em combater por ficar com aquilo que não era nosso. Uma semana num barco a caminho de Bissau. Soldados mal acomodados como gado de exportação. E para tudo se inventava uma desculpa esfarrapada para não se dar melhores condições a quem ia defender a Pátria. Mas seria realmente a Pátria que ia defender? Não. Ainda hoje vivo revoltado com toda esta situação. A Pátria grita por justiça! Abram os olhos! Ex-combatentes! Agora é altura de defender a Pátria. Mas somos nós que tomámos as rédeas do rumo da Pátria.

Estava um calor húmido terrível. Antes de desembarcarmos ficamos horas esperando ordem para o desembarque. Tudo era estranho. Outro mundo. Tudo diferente.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro parte inserta no poste de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72, com data de 28 de Junho de 2015:

Caro Vinhal

Sou Tibério Borges que esteve na Companhia de Caçadores 2726 em Cacine de 70 a 72 e, pelo que sei do Luís Paulino, viajámos no mesmo barco, Ana Mafalda, de Lisboa para Bissau.

Posto militar: Alferes Miliciano

Especialidade: Infantaria

De S. Miguel fui estudar para a Terceira. Daqui para o Continente. Regressei a S. Miguel de onde tive que ingressar na Tropa, Mafra e daqui para os Comandos em Lamego.

De seguida fui para Tancos tirar minas e armadilhas. Regressei a S. Miguel para formar companhia no BII 18.

Antes de embarcarmos para a Guiné passamos por Setúbal para tirar o IAO. Depois do desembarque em Bissau fomos para Cacine / Cameconde onde alternávamos mensalmente.

Fui deslocado para Gadamael mais de um mês assim como para Bedanda.

Feita a tropa passei à vida civil e depois de alguns meses em S. Miguel fui para Luanda onde estive 3 anos na vida civil.

Regressei a S. Miguel em Junho de 75. Trabalhei 3 anos na CTM (Companhia de Transportes Marítimos) tendo concorrido à TAP onde estive 20 anos.

Reformei-me por imposição aquando o fecho da delegação em Ponta Delgada em princípios de 2000.
Neste longo espaço de tempo em S. Miguel estive no Brasil (Rio e S. Paulo), Canadá (Mississauga), América (Nova Inglaterra com artesanato).  Portugal de Norte a Sul. Europa: Itália, Suiça, Checoslováquia, passando por Zurique, França (S. Genis Laval – Lyon), Espanha (Rio de Honor).

Com um abraço
Tibério

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2. Comentário do editor

Caro camarada Tibério Borges_

Bem aparecido na nossa tertúlia onde és recebido de bom grado.

Em poucos dias és o segundo português insular a apresentar-se no Blogue. Felizmente temos entre nós alguns açorianos (assim de repente só me lembro de um madeirense, o Inácio Silva, meu camarada da CART 2732) que prezamos especialmente, por serem pessoas também especiais, já que vivem em pequenas ilhas dispersas no Atlântico, para muitos pequenas demais, que os leva à emigração. Por esse mundo fora, especialmente no continente americano, honram o nome de Portugal, e por isso a nossa especial estima e consideração.

O meu particular apresso também aos madeirenses, com que convivi cerca de 28 meses, e entre os quais fiz amizades para a vida.

Não só as nossas Companhias viajaram juntas a partir do Funchal, no "paquete" Ana Mafalda, até à Guiné, como nós os dois nos devemos ter cruzado em Tancos - Casal do Pote - no mesmo Curso de Minas e Armadilhas, o XXXIII, entre 20 de Outubro e 28 de Novembro de 1969.

Mandaste no teu mail de apresentação um excelente texto de memórias, ilustrado com muitas fotos, a que chamaste "3 Anos nas Forças Armadas", que comecei aqui mesmo a publicar.

Que mais te posso dizer? Que espero te sintas em casa e participes comentando o que por aqui se vai escrevendo. Não sei as tuas memórias se esgotam no texto que agora enviaste, se não, esperamos a continuação das mesmas.

A partir de hoje tens mais umas centenas de amigos para trocar impressões e conversar sobre aquilo que nos marcou, e que os "outros" já estão fartos de ouvir.

Deixo-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores Luís Graça, Magalhães Ribeiro e eu mesmo.

Ao teu dispor
Carlos Vinhal

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3 anos nas Forças Armadas (1)

Tibério Lopes

Após os estudos que fiz fiquei um ano esperando por ser chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Neste ano de espera estive a trabalhar na Clínica do Bom Jesus. Em Março de 1969 fui para Mafra a fim de fazer a recruta.

Tenho fotos de há quarenta anos e muita coisa já não me lembro. Meu irmão Mariano e eu entramos ao mesmo tempo para Mafra. Tínhamos acabado de estudar. Por isso entramos mais tarde para a tropa. Lembro-me de nos terem ido buscar a Lisboa aonde chegamos de barco dos Açores. As portas do quartel estavam fechadas e tivemos que esperar. Ao entrarmos uma alta patente falou-nos das nossas instalações que cheiravam a bafio. Algo de muito esquisito pairava no ar. Começava a minha odisseia. Sabia-se que morria muita malta nova no Ultramar. No dia seguinte foi a distribuição da farda. Foi vestir o que nos deram. Tudo ficava desproporcional.

Tibério e Mariano Borges

Ouvia-se falar de muita coisa sobre o que era ou não regulamentar usar. Do lado de fora do quartel os comerciantes vendiam quépis o que era mais atraente do que o que nos davam adentro muros. Lembro-me de um dos militares do quadro nos encontrar fora e nos avisar que deveríamos portar-nos de maneira a não deixar mal o militar, isto referindo-se ao nosso vestir. De facto mais parecíamos uns fantoches do que militares. Mas era o que nos davam. As nossas mães não estavam ali do lado de fora do quartel prontas a intervirem no arranjo da roupa. Sei que houve um grupo que adquiriu quépis que não eram regulamentares mas quando saíamos, acabávamos por o usar às escondidas.

Pelotão de Mafra

Os Exercícios começaram. Era ainda inverno. Sair da camarata onde se dormia em beliches era tomar uma lufada de ar fresco. Mas estava frio. E as ordens eram para se cumprir. Deitar no chão! Nem que fosse em cima de lama ou água. Uma ética completamente diferente daquela a que estávamos habituados. Era a preparação para a guerra. Tudo era estranho e um mundo completamente diferente nos esperava. Claro que é preciso enquadrar tudo isto no tempo. Mas como muita coisa já está escrita sobre o antes vinte e cinco de Abril dispenso esse enquadramento.

Foram cerca de três meses a tirar a recruta. Os nossos fins de semana eram no quartel. Via os continentais a saírem para as suas famílias e regressarem no Domingo à noite. Num desses muitos fins de semana lembro-me dum colega de pelotão me levar até sua casa em Santarém e para a refeição desenterrar uma garrafa de vinho. Acho que se conservava mais fresco. As finanças não abonavam pelo meu lado e como tal era tudo dentro do quartel. Meu irmão e eu lá saímos mas com rédea muito curta. Tempos muito difíceis. Penso que pedi uns dinheiros ao meu pai para lhe pagar depois. Mas os treinos eram puxados. O nosso instrutor era um tenente. O meu fito era não perder a recruta porque fazer a tropa abaixo de oficial, no meu caso, era mau. Por isso dei tudo por tudo e foi de tal ordem que a dada altura o instrutor veio dizer-me que me preparasse para ir para os Comandos em Lamego. Ora eu não fazia a mínima ideia do que me estava a dizer. O que me lembro foi que tirei informações de colegas que me foram elucidando do que já tinham ouvido falar sobre essa tropa. Pintaram-me o quadro de negro e fui ter com o tenente a dizer que não queria ir para Lamego. Mas foi o mesmo que nada. Ele já tinha decidido. Estavam a pedir elementos para os comandos e eu já estava incluído nesse grupo. Mal sabia eu o que me esperava. No final da recruta fomos a Ericeira fazer o almoço de despedida.

 Almoço de despedida

Três meses depois estava em Lamego. Guia de marcha para o Porto e daqui de comboio para a Régua. Era a vapor. Lento mas bonita a paisagem. Fui admirando a natureza numa mística que eu nem sabia qual. Ah! Lembro-me de ter parado em Coimbra. Uma colega da Clínica estava a tirar o curso de parteira e parei para darmos uns dedos de conversa. Seria a minha futura mulher. Coisas do destino. Em Lamego estive uma semana sem nada fazer pois a especialidade só começaria depois. Passeei. Conheci Lamego.

Lamego

Foi uma boa semana mas o que se iria passar a seguir não era rebuçado nenhum.

O Capitão Jaime Neves estava a presidir esta unidade. O Carapeta era instrutor. Um sargento que esteve na Índia aquando o colapso de Goa, Damão e Dio. Outros. Havia um outro sargento que fisicamente parecia o Golias. Pois isto aqui era a doer. Os exercícios começaram. Era de dia de noite a qualquer hora. Carreira de tiro com fogo real. Simulação de guerra com fogo real. Até petardos. Foi aqui que fiquei sem o tímpano dum dos ouvidos. Ainda hoje sofro as consequências disso. Vestidos de farda, arma, cartucheiras, munições (acho que granadas, também) e botas, lá marchávamos de noite desde Lamego para a Régua onde no rio nos banhávamos em águas paradas a cheirar mal e cheias de rãs. Também passávamos por buracos onde as tripas de animais faziam parte da merda a que ficávamos a cheirar. Visitas ao cemitério depois da meia-noite fazia parte do programa. Aqui o terror era o tema e lembro-me que ao saltar os muros logo de início afocinhei, resultado dum arame no caminho para logo de seguida apanhar uns bons socos com luvas de boxe do tal sargento Golias. Vozes a surgirem das campas. Mas para a frente era o caminho. Estava escuro como breu. No fim do cemitério saltei para cima dum muro e logo apareceu uma voz de comando para saltar para o incerto e tenebroso vácuo. Era baixo ou alto? Aquela sensação de pensarmos que vamos saltar para muito alto quando afinal não era. Uma sensação terrível. A “psico” era ambientada com a música “Mãezinha” sei que estás a chorar… não chores. Deitados de papo para o ar na parada a olhar a estrelas e a ouvir esta música. Destruir, preparando a malta para uma guerra de guerrilha. Três dias deixados no mato sem sabermos onde estávamos e apenas com coordenadas para regressarmos a casa depois de termos que passar por objectivos. Eram os dias da “sobrevivência”.

Lembro-me que neste trajecto fomos parar a um sítio onde um homem estava em obras numa casa. Soubemos que tinha estado no ultramar pois fomos lá pedir de comer. A fome era negra. Rato como já era, o dono da casa e nós ao entrarmos dentro e ele ao ir buscar algo para enganar a fome, um dos nossos elementos ia vasculhar mas não deu tempo porque o dono logo deu meia volta e nos avisou para estarmos sossegados. Depois de uma cavaqueira amena continuamos o nosso percurso comendo a fruta que apanhávamos por aqueles sítios. Sei que era verão e muita água bebi duma canalização de alimentação de águas para a rede pública. Como consequência apanhei uma insolação. Três dias de cama a tremer de frio em pleno verão.

Foram três meses de duro exercício. Sei que me correspondia com uma senhora minha amiga e minha segunda mãe, Maria Teves. Por ter tido um filho na Guiné foi avisando-me que onde eu estava era bom não me deixar levar pelo espírito que cultivavam nestas unidades porque depois no terreno a morte estava esperando por nós. Estávamos a ser formados para tropa de intervenção. Sei que foi aqui que andei pela primeira vez de helicóptero. De facto o espírito de camaradagem que adquirimos era fora de série. E no meu interior comecei a desenhar o meu sofisma. Chegar ao fim da recruta era meu objectivo. Três minutos antes de acabar um balde de água fria gelou o nosso espírito. Um dos nossos colegas, um furriel, tinha acabado de levar um tiro apanhando a aorta num exercício final de meia lua onde os homens da ponta cruzaram fogo entre si. Uma hora depois estava morto. Um exercício mal efectuado pelo sargento que tinha estado na Índia. A malta ficou mesmo em baixo. Acho que nem ao funeral fomos. Já nem me lembro.

Um papel chegou até nós para o assinarmos. Dizia que éramos voluntários. Bolas!
Assinei o “não” e todos ficaram a olhar de lado para mim.
E foi assim que deixei de ser comando.

Enviaram-me para Tancos a fim de tirar minas e armadilhas.
Devo ter estado em Tancos cerca dum mês. Ensinaram-me a técnica de manejar explosivos, mostraram-me algumas minas e a maneira de as armar e já não sei que mais.

Tancos - Casal do Pote

Uma coisa é certa. Fui bem preparado para ir para o ultramar. Pelo menos para me defender. A vitória duma guerra baseia-se no medo que cada tem e que faz tudo para se defender. Existem pessoas que através de leis se aproveitam desta situação para juntar milhares de pessoas que as colocam num determinado terreno para matar outros. Tirando algumas excepções na história da humanidade impor ideais numa guerra é utopia. O medo é a base da guerra. Todos têm o buraquinho no fundo das costas. O resto é fanfarronice.

Mas a filosofia da guerra é discutível e como tal vamos a factos. Enquanto estive em Tancos andei a conhecer os arredores. Lembro-me de ter ido ao Castelo de Almourol e à Barquinha. Aqui havia um café onde se podia passar umas horas aos fins-de-semana que se convertiam sempre em ver os continentais irem para junto da família e eu, Açoriano, a ficar nos aquartelamentos.

Terminado este tempo de instrução enviaram-me para S. Miguel a fim de ingressar nos métodos de formação de companhia. Disponibilizaram-me vinte e cinco homens e dois furriéis em vez de três para dar formação. Era inverno. Arrifes, BII 18.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14834: Tabanca Grande (468): José Jorge de Melo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876 (Có, Jolmete, Ponate, Bula e Minar, 1966/67)