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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10535: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (2): Como fui parar a Gadamael, por acção do meu pai e reacção do 'Paizinho' ...

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires, que bebeu a água do Rio Cacine e que, depois da passagem à peluda, deixou a Pátria em 1972, passando a viver desde então nesse grande país lusófono chamado Brasil...

Ficamos a saber que ele conheceu o nosso blogue em circunstâncias infelizes: no "estaleiro", em recuperação das sequelas de um acidente automóvel. 

Daqui de Angola, e com alguns problemas de comunicação com a nossa Tabanca Grande Global, aqui vai um afetuoso abraço para ele, desejando-lhe completa recuperação, e para os demais amigos e camaradas da Guiné, incluindo o Rosinha que está ansioso que eu lhe mande umas fotos da rua e da casa onde ele morou em Luanda...  Infelizmente, regresso já na 5ª feira, sem tempo para sair da "ilha" de Luanda, onde estou "prisioneiro" das 9 às 18h... (LG):


A CAMINHO DE GADAMAEL... Ou como a acção de meu pai e a reação do "Paizinho" me levaram lá.)

Caros Luis Graça/ Carlos Vinhal,

Estas mal traçadas linhas são a minha modesta homenagem à vossa coragem e determinação, para trazer à luz do dia, e administrar, tantas emoções de uma geração, guardadas lá no fundo do subconsciente (Valha- nos "São" Lacan!!!), moderando magistralmente tantas visões de uma realidade multifacetada.

É também uma oportunidade para eu agradecer a todos que me ajudaram a chegar de volta ao Aeroporto da Portela. Não poderia deixar de agradecer também a Maria Helena, que me acompanhou nos anos "pós-Guerra", e criou meus filhos.

Saí de Portugal, ainda no mesmo ano de 72, em que voltei da Guiné, e por aí vou andando até esta data, sou um desses milhões da multissecular diáspora Lusitana, que deve ter começado lá pelo século XV, quando as caravelas jogavam em terra os "lançados", que tinham pegado nas ruas ou tirado das prisões, para na volta servirem de "linguas".

A Artilharia da Guiné era de rendição individual, para oficiais, sargentos e alguns especialistas, sendo soldados e cabos da guarnição local, inexistindo posteriormente essas reuniões que vão alimentando o espírito de corpo, das Companhias e Batalhões. Dificultado o contacto com os camaradas,esses três anos de serviço militar vão ficando no fundo do "baú de recordações".

Após um acidente de automóvel recente, que me obrigou à recuperação em casa , conheci o blog. Então, como a história é mais benevolente com quem a escreve, ousei rabiscar este meu, "A CAMINHO DE GADAMAEL".


Eu venho lá da Bairrada pofunda, que na década de 50 era mais conhecida como terra da batata, ao invés de terra do vinho, o vinho ainda se vendia a granel. Apesar de haver registro de vinhas na região no século XII, a região sofreu por muitos anos da determinaçao do Marquês de Pombal de as arrancar.

O meu pai vinha de um grupo familiar, que se poderia enquadrar no que Gramsci apelida de "intelectuais rurais"; a escola de Samel no fim do século XIX começo do XX, era na casa do meu avô, sendo ele professor, como o foram meu pai e meus tios.

Meu avô materno era filho de comerciante e, como seus irmãos,  emigrou para o Brasil, e ao contrário deles voltou a Portugal, no fim da primeira década do século XX, casou com uma professora, que era duma família profundamente ultramontana, originária da Madeira.

A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena Coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África.

Nesta caminhada de soldado-cadete, apareceu o Raul, que era da Mealhada, professor, com família constituida, e lá rumávamos todo Domingo para Mafra. O Raul era um gordo bem humorado, que fazia todos os exercícios como qualquer atleta, mas comer do rancho já era pedir muito, logo tratou de desarranchar e alugar apartamento, e lá fui eu "no vácuo". E assim foi-se amortecendo o choque da irreverência da Academia Coimbrã, com a disciplina do quartel.

Onde quer que estejas Raul, o meu muito obrigado!

Depois de uma recruta sem grandes altos e baixos, anúncio das especialidades. IOL, mas que raios será isso? e fui ouvindo as mais disparatadas interpretações dessa sigla enigmática. Até que uma alma caridosa explicou que IOL era a sigla de Informação, Observação e Ligação, teoricamente o Oficial que faria a ligação da Artilharia Divisionária com o Comando. Na prática tal como o PCT, Posto de Comando e Tiro, um puxador de cordão de obus.

E lá fomos nós, eu e o Raul , para Vendas Novas, lembro que num Domingó à noite, parámos no caminho, para ver a descida do homem na Lua.

Na EPA, havia dois pelotões, um de PCT e outro de IOL, e se não me falha a memória com entre 30 e 40 alunos somados os dois. O "Jornal da Caserna" informou que quem ficasse nos primeiros lugares duma lista conjunta não iria para África, como era costume. Menos gente, tratamento um pouco melhor, lembro o Tenente Carita, que penso hoje é Coronel Reformado de Artilharia e Professor na Universidade da Madeira. E lá fomos todos, fazendo o nosso melhor, para ficar por lá mesmo (Portugal). Na EPA encontrei o Vinagre de Almeida que tinha sido aluno do meu pai.

Fim de curso e começo do estágio de um mês na própria EPA, já Aspirantes, pelo menos não seríamos praxeados como soldados-cadetes nos quartéis de destino.

Resultados conhecidos, quarto lugar no curso, RAP 3 , Figueira da Foz, comecei a antegozar umas prolongadas férias à beira mar. Chegado ao RAP 3, vários Alferes de cursos anteriores, estava confirmado, minha "Guerra" seria nas areias do Atlântico, mas, do Atlântico Norte. Figueira da Foz, fora de temporada, fácil de alugar apartamento, quando perguntado qual a previsão, falei com segurança: dois anos.

Aí começaram as notícias, Fulano foi para a Guiné, Cicrano para Angola, até aí tudo normal, os últimos colocados sempre eram mobilizados. E a fila continuou andando, até que chegou no décimo colocado, e acendeu a luz amarela, mas ainda tinha seis na frente. Quando o Aspirante Conceição quinto colocado foi chamado, acendeu a luz vermelha, provável dar Atlantico Sul!

Deu Guiné, e lá fomos nós, eu e o Vinagre de Almeida, de barco rumo a Bissau. GA 7, e logo o "Jornal da Caserna", informou em "Primeira Página": Cuidado, o "Homem" é louco, desafiou até o General. O Homem em questão era o famoso "Paizinho", controverso Oficial Superior de Artilharia, com relacionamento díficil com subordinados, bem como com superiores (o General Spínola, tinha-o punido com pena de prisão e tinham um relacionamento tumultuado). Abordava a todos com um "Oh meu filho...", daí a alcunha, era também conhecido como "o Homem da voz meiga", contudo não era nada meigo na hora da punição.

Na semana seguinte à minha chegada, recebi uma ordem através de um oficial, para me apresentar em tal data no Palácio do Governo, sem mais explicações. Nada sabia, e nada pude responder às perguntas, que deviam ter sido feitas por ordem do "Paizinho".

Apresentei-me, na data marcada (não era louco!), por acaso encontrei um conhecido de Coimbra que era Chefe de Gabinete, só disse que o General ia falar comigo. Acalmei, somente quando soube que o General e meu pai tinham amigos comuns, e que ele tinha-me chamado para me dar as boas vindas, e mais não disse. Sim Senhor, Meu General!

Ora o Homem não gostou nada, que o General, com tinha péssimas relações, tivesse chamado um Oficial do seu Comando, sem nada saber. Penso eu, como "prémio", escolheu o pior buraco disponível, que no momento era Gadamael Porto, e lá fui, trocando as "férias" da Figueira da Foz, por aquelas outras à beira do Rio Sapo.

De novo a sorte me acompanhou com relação aos superiores, a quem o comando do 23° Pelart estava subordinado: (Repetindo o que já disse anteriormente),

"Cheguei a Gadamael Porto, lá por meados de 70 para assumir o comando do 23° Pelart, encontrei uma Companhia em fim de comissão, comandada pelo experiente, então Capitão de Artilharia Rodrigues Videira, que me muito me ajudou nos primeiros tempos em zona de guerra. 

"Logo em seguida veio uma Companhia de Infantaria, comandada pelo saudoso Capitão de Infantaria Assunção Silva, morto em combate, generoso e intrépido oficial , que foi substituído pelo então capitão de Artilharia António Carlos Morais Silva, sobre o qual já falei neste blog, como um dos mais brilhantes Oficiais do Exército Português que conheci, nos meus três anos de serviço". 

O mesmo devo dizer dos Sargentos, dedicados e leais:

"O Furriel Miliciano de Artilharia, Lopes de Oliveira, foi professor dos soldados, e além de ser um esforçado cozinheiro, montou uma sofisticada logística, para garantir o abastecimento de carne e peixe com o pessoal da tabanca, e o Furriel Miliciano de Artilharia Krus coordenava com eficiência a atividade operacional do Pelotão".

Assim, pois, a conjugação da acção do meu pai, com a reação do "Paizinho", me levou até Gadamael Porto.

Cordiais saudações, VP

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Nota do editor:

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Fantasmas do fundo do baú (Vasco Pires) (1): Uma história do artilheiro de Gadamael, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos...

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10307: Estórias cabralianas (73): O Conde de Bobadela (Jorge Cabral)

1. Mensagem do nosso alfero Cabral, através do seu representante na terra, o nosso camarigo Jorge Cabral:

Amigos!

Após achaques vários e um grande susto. o Alfero estoriador está de volta.

Abraços.

J. Cabral

PS - Não liguem ao Que Fazer!


2. Estórias cabralianas > O conde de Bobadela

Estou no Tribunal de Mafra à espera de um Julgamento, quando uma mulher me  interpela:
-É o Senhor Conde, não é?

Hesito, mas para evitar mais conversa, respondo:
 -Sou sim. Como vai a senhora?
 -Ai, que já não se lembra da Aurora! Eu trabalhava em casa do Senhor D.Ilídio. O Senhor Conde ia lá muito, quando estava na tropa.
 -Pois ia. Claro que já morreram, o senhor D.Ilídio e a esposa, a Dona  Florípedes. E a menina Francisca ainda lá habita?
 -Oh não.A casa ficou ao abandono.A Menina vive no estrangeiro.

Chamam-me para a Sala de Audiências. Despeço-me.
  
No regresso a Lisboa, qual arqueólogo, colo os cacos da memória.Foi  há quarenta e quatro anos, no início de Junho, que o meu  velho vizinho Alvarenga, coronel reformado, me procurou. Sabendo que eu ia para Mafra, pediu-me que levasse uma encomenda ao seu amigo, Coronel Ilídio Montez, que morava na Achada, perto da Ericeira.
-Nem precisas de ir à casa. Vais ao CMEFD., mesmo ao lado do Convento. Ele passa lá os dias a montar a cavalo.

E assim,poucos dias depois de apresentado na EPI., fui procurar o Coronel. Logo no portão recebi uma reprimenda do 1º  Cabo de serviço:
- Dobre a língua, nosso Cadete! O  Coronel Montez é Dom! Dom Ilídio, está bem !?

Conduziu-me ao picadeiro e conheci D. Ilídio. Um velho pequenino, sem dúvida já octogenário, de bigode branco, pose altiva, mas simpático. Abriu à minha frente a encomenda e rejubilou: umas bonitas esporas prateadas.
 -Hoje vais jantar a minha casa - ordenou.  - A minha mulher deve estar a chegar.

Pouco tempo depois, eis-me metido no carro conduzido por Dona Florípedes, a mulher.Uma senhora muito branca, talvez triste, com ar de tédio e algo de snobe.Jantei nessa noite e em muitas outras.

Bebia os conhaques do Coronel. Declamava para a Dona Florípedes. Comentava o Maio francês com a filha Francisca, mas à noite no quartel, era com a empregada Aurora, que sonhava.

Dona Florípedes sentia-se exilada em terra de saloios.Trocar o Estoril pela Achada. E tudo por culpa dos cavalos…E logo ela.  neta do Marquês de  Pintéus, sobrinha do Barão da Marateca. Para não destoar, confessei-lhe que também eu era Conde. Mas não usava o título, nem aliás o nome completo - D. Almeida Cabral y Athouguia De Vasconcelos, Conde da Bobadela.

Às vezes discutia-se o meu futuro militar. D. Ilídio tinha esperança que eu fosse parar a Santarém, à Cavalaria. Possuia perfil e estatura de grande combatente dizia, contra a opinião de Dona Florípedes:
-Um rapaz tão sensível. Até faz versos..-
- E daí? - retorquia o Coronel- - Camões também andou na Guerra!

D. Ilídio tinha uma teoria, segundo a qual os mais valentes são  sempre  os Homens mais pequenos:_
- Olha o Napoleão, para não falar no nosso Marechal Carmona!

Ele nunca fora  a África, mas falava das savanas de Angola, com tal propriedade, que era fácil imaginá-lo à frente do Esquadrão a galope, perseguindo o inimigo.

Conhaque e cavalos.Cavalos e conhaque constituíam os interesses do Coronel. Nos conhaques ainda o ia acompanhando:
- Prova-me este Courvoisier!  Que achas do Remy Martin?  Gostas do Henri IV ? 

Mas nos cavalos….Bem, convidou-me muitas vezes a ficar em Mafra, um fim de semana, para montar e escusei-me sempre. A apendicite da mana….. A úlcera do Avô…A apoplexia do tio Gilberto…O certo é que nunca cheguei a demonstrar os meus dotes equestres.

Acabou a recruta. Deixei Mafra e rumei a Vendas Novas. Estou, ainda nem passaram quinze dias, sou chamado ao Comandante da Bateria.
 -Qual é o seu nome completo,n osso Cadete?
- Jorge Pedro de  Almeida Cabral, meu Capitão.
 -Então esta carta é ou não é para si? - E entrega-ma.

Está endereçada a Jorge D. Almeida Cabral y Athouguia de Vasconcelos, Conde da
Bobadela.
 -Alguma brincadeira, meu Capitão.
 - Brincadeiras estúpidas, nosso Cadete!

 A carta era de Dona Florípedes. Trazia um poema, com muitas açucenas, tardes amenas e até metia o pão de ló da avó.. Bem, rimar, rimava... Não respondi.

Embora tivesse ficado como Aspirante em Vendas Novas, nunca o Capitão, depois Major, me voltou a tocar no assunto. Escrevi-lhe da Guiné. E assinei:  Jorge Alfa  Mamadú Cabral de Embalo Balde, Conde de Missirá e Barão da Bolanha de Finete.

Jorge Cabral

3. Comentário do editor: Falei ontem ao telefone com o Jorge, de quem não tinha notícias há uns bons tempos. Andou por aí um mês e tal na "mão dos médicos", a "checar" a anatomia e a fisiologia. Felizmente, está bem. E "manda estória", sinal de que está vivo da costa, como a sardinha, e vai-nos continuando a fazer sorrir "com meia cara"... Gostei do seu "post scriptum": Não liguem ao Que Fazer!... Eu descodifico: Vivam a vida, rapazes!
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de maio de 2012 >  Guiné 63/74 - P9873: Estórias cabralianas (72): Ressonar... à fula (Jorge Cabral)

(...) Além de ressonar, sempre falei a dormir. Um dia em Missirá propus-me descobrir, de que falava, o que dizia.  Ora, havia lá um velho gravador de fita, máquina pertencente a não sei quem, enfim nossa, pois viviamos numa espécie de “economia comum”. Resolvi pois gravar uma das minhas noites.  (...)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9834: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte I: De Mafra (EPI) a Bissau (BAC1)




São Martinho do Porto > s/d > Página do Facebook de João José Alves Martins, foto nº 23/88 do seu álbum sobre São Marinho do Porto (onde tem casa de verão). O João é um apaixonado pela baía de São Martinho do Porto, uma das mais belas do mundo, e pelo mar... ou não fora ele filho de oficial da marinha... Conheci-o há dias, em Lisboa. Com ele temos mais um camarada na Tabanca de São Martinho do Porto - para além dos Schwarz (Pepito e Clara) e do JERO - , tabanca essa que se costuma reunir, solene e festivamente, pelo menos uma vez por ano, em meados do mês de agosto.


Foto: © João Martins (2012). Todos os direitos reservados





Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte I
João Martins  (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) .

[Texto enviado em 19 do corrente; será publicado em várias partes]


Dedico estas minhas memórias ao Jornal “Defesa da Beira”, e muito particularmente a Pinheiro Salvado, seu ilustre colaborador, que não tenho o prazer de conhecer pessoalmente, mas cujos artigos leio com o maior agrado e reconhecimento.

___________


ÍNDICE

1 – Curso de Oficiais Milicianos

1.1 – Mafra – Escola Prática de Infantaria

1.2 – Vendas Novas – Escola Prática de Artilharia – Especialidade: PCT (Posto de Controlo de Tiro)

2 – Figueira da Foz – RAP 3 - Instrução a recrutas do CICA 2

3 –Viagem para a Guiné (10 de Dezembro de 1967)

4 – Chegada à Bateria de Artilharia de Campanha Nº. 1 (BAC 1) e partida para Bissum

5 – Bissum-Naga

6 – Regresso a Bissau para gozar férias na Metrópole (Julho de 1968)

7 – Piche

8 – Bedanda

9 – Gadamael-Porto

10 – Guilege

11 – Bigene e Ingoré
_____________________



1 – Curso de Oficiais Milicianos (COM) e colocação no RAP 3

1.1 – Mafra, EPI



Nos primeiros dias de Janeiro de 1967, entrei na Escola Prática de Infantaria em Mafra, como soldado cadete nº mecanográfico 00325165.

O que recordo desta recruta é o de ter tido um comandante de companhia bastante duro, alguns fins-de-semana sem ter ido a casa por chegar ao refeitório para tomar o pequeno-almoço, em cima da hora, uma subida por um riacho em grande velocidade ultrapassando rapidamente alguns obstáculos e muitos camaradas bem mais lentos, e, pelo frio que apanhei, uma valente gripe que me atirou para a enfermaria. Também me recordo de umas marchas finais no Barril com muita chuva e lama, e de uma noite dormida ao relento num caminho de carros de bois, tal era o cansaço, depois de ter caminhado uns 60 quilómetros.

Não sei se era do capitão ou se fazia parte da instrução, o que recordo é que não me sentia enquadrado no ambiente que caracterizava aquela disciplina militar. Na minha opinião, demasiado rude e autoritária, um tanto na continuação da Mocidade Portuguesa que também não me tinha deixado quaisquer saudades, tal o espírito que a enformava. Tive a oportunidade de constatar que o sentimento que caracterizava aquela instrução também estava impregnado de uma filosofia que atravessava transversalmente todo o Estado Novo, e que me causava tal repugnância que me admirava que muitos camaradas meus não pensassem em desertar. Face ao que sentia, compreendia que vontade não lhes faltaria.

Era também minha opinião que o facto de sentir tal espírito de aversão a todo o ambiente que me envolvia era contrário ao espírito de “união” e de “amor à Pátria” que permitem vencer uma qualquer guerra; portanto, bastava esse facto para concluir que a guerra de guerrilhas que nos era imposta estava perdida. E recordava que, ainda no liceu, no 5º ano, tinha afirmado na prova oral de história, que para se vencer uma guerra, e esta adivinhava-se, era importante não só a conjugação de esforços de toda a Nação, o que incluía, evidentemente, governantes e governados, mas também era fundamental o merecimento da vitória. Na EPI, em Mafra, o que constatávamos era uma total ausência de motivação e de sentimentos de “Unidade Nacional e de patriotismo”.

Esperava-nos uma guerra de guerrilhas, vulgo “terrorismo” ou “guerra de libertação”, enquadrada no confronto mais global entre as duas grandes potências da altura que se digladiavam nos mais diferentes pontos do globo na defesa dos seus interesses, nomeadamente, pelo domínio e controlo das matérias-primas, em particular pelo controlo das áreas petrolíferas, invocando as mais variadas razões, tais como as ideológicas supostamente justificáveis, como seja a conquista da “independência”, da “liberdade” e da “democracia”, confrontação que ficou conhecida por “guerra fria” e que opunha os países do ocidente aos da cortina de ferro, muito particularmente os USA à URSS e que se iniciou imediatamente a seguir à capitulação da Alemanha e dos seus aliados, a Itália e o Japão, que marcou o fim da 2ª Grande Guerra Mundial em 1945.

É muito significativa a invasão pela URSS de países do Leste Europeu, constituindo o bloco do pacto de Varsóvia, completamente dominado a ferro e fogo pela ditadura comunista, e recordo o muro de Berlim, onde muitos cidadãos foram abatidos ao quererem fugir para o ocidente; e até recordo a “Rádio Livre”, emitida de Bucareste para Portugal anunciando a “Terra Prometida”, como se fosse uma oportunidade para um “Mundo melhor” em alternativa ao regime republicano autoritário, com uma polícia política repressiva que pretendia impor respeito, que não consideração, pelas numerosas detenções, muitas vezes sem justa causa.

A história ensina-nos que os povos quando unidos e bem chefiados, enchem-se de força para se expandirem e conquistarem novos territórios; foi assim com os Gregos, os Romanos, os Mouros, os Portugueses e Espanhóis, os Franceses, os Alemães, e não podemos esquecer a forma como a América do Norte foi colonizada, em que muitos índios foram perseguidos, abatidos e espoliados das suas terras.

Quanto à URSS, não ficou atrás dos USA, com milhões dos seus habitantes a serem assassinados por ordem de chefes que se tonaram ídolos para muita gente, e também recordo a “anexação e o domínio” de países europeus com uma história própria muito rica que lhes permitiu cimentar uma identidade específica.

Nos dias de hoje ainda constatamos que há povos que combatem pela independência e pela liberdade relativamente à Rússia e à Turquia, ou, o caso do Tibete relativamente à China que o anexou há relativamente poucos anos sem grande oposição da Comunidade Internacional, mas muitos outros há que conseguiram finalmente adquirir o estatuto de independência e recordo a desintegração da antiga Jugoslávia, nos Balcãs, amálgama de povos com diferentes origens e diferentes especificidades, dominada pelo ditador Marechal Tito. Quanto aos espanhóis, sabemos quão barbaramente trataram os povos da América Central e do Sul, incas, aztecas e outros.

As épocas são diferentes e o que é desculpável numa época já não o será noutra, é por isso que a história deve ser contada tendo em consideração os usos e costumes do período em que ocorrem. O conhecimento da história e particularmente da história económica é particularmente importante para cimentar a cultura de um povo, transmitir-lhe identidade, transmitir-lhe valores, dar-lhe razões para lutar por uma causa, pelo país. Caso contrário, esse povo será facilmente dominado e explorado por outros que se aproveitarão das suas fraquezas e das suas divisões.

Os portugueses, tal como todos os outros povos, têm a sua história, e os factos ocorridos no século XX, foram a continuação dessa história. Mas, para compreendermos o presente temos também que conhecer o passado e raciocinar a partir desse conhecimento. Portugal conheceu a sua Fundação em 5 de Outubro de 1143, graças à vontade de um pequeno grupo de homens e do seu primeiro Rei, D. Afonso Henriques, que enfrentou a oposição da sua mãe cujas tropas teve que derrotar. Portanto, divisões internas, diferentes interesses e opiniões ocorreram desde a Fundação da Nacionalidade, e repetiram-se durante muitos reinados, mas o que caracteriza particularmente a Nação Portuguesa é que ela tem a sua génese na força das armas, em que a componente religiosa assume primordial relevo; com efeito, foi aproveitando a passagem dos cruzados que vindos do Norte da Europa se dirigiam aos lugares santos da Palestina que, com o seu apoio militar, D. Afonso Henriques e os seus sucessores conquistaram Lisboa e muitas outras terras ao sul do Tejo. A presença de combatentes pela implantação e expansão da Fé Cristã, prontos a dar a vida pela mesma, foi crucial na conquista de territórios até ao Algarve. 



Na defesa da Pátria, desde a sua fundação, foi muitas vezes invocado São Jorge, e os artilheiros invocam, em sua proteção, Santa Bárbara. A Fé cristã esteve presente em muitos confrontos não só com os Mouros mas também com Castelhanos. Por exemplo, D. Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, rezou profundamente antes de enfrentar alguns dos seus próprios irmãos na célebre batalha de Aljubarrota em que o exército castelhano era muito superior ao exército português.

Também o Infante D. Henrique assumiu a missão que Cristo confiou aos Cristãos “Ide e Evangelizai”. E talvez por “inspiração divina”, contribuiu decisivamente para que os portugueses levassem Cristo ao conhecimento de outros povos.

Dá-se assim início à expansão ultramarina com Naus e Caravelas ostentando a Cruz de Cristo. No dizer do poeta, os portugueses propõem-se mais uma vez irem por esses “mares nunca dantes navegados” a “dilatar a Fé e o Império”.

Sabemos que a religião cristã tem como primeiro e fundamental mandamento: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”, e sabemos que os cristãos são chamados à “missão de evangelizar”, transmitindo essa “mensagem” que acreditam ter a sua origem no próprio Deus. É por isso que, além de procurarem desenvolver trocas comerciais numa relação de convivência e de amizade, também tiveram como objetivo, por meio dos missionários, a conversão dos povos autóctones.

Relativamente aos interesses das grandes potências, recordo que já nos finais do século XIX tínhamos tido uma disputa com a Inglaterra porque pretendíamos o domínio de todos os vastos territórios entre Angola e Moçambique. Face ao grande potencial bélico britânico, tivemos que capitular. Esta nossa pretensão ficou conhecida por “Mapa cor-de-rosa” e a nossa derrota é apontada com sendo uma das razões da queda da monarquia.

Nos anos 40 do século passado, o general Norton de Matos, conhecedor das pretensões das grandes potências, tinha pugnado pela transferência da capital do Império para Nova Lisboa, em Angola, mas, Salazar, com receio de se criar um novo Brasil, não concordou e quando teve conhecimento do petróleo existente no ultramar compreendeu que dificilmente o manteríamos. Mandou tropas “para Angola e em força”; era no entanto tarde demais, durante muitos anos tinha evitado a concessão de vistos que permitissem aos portugueses irem para lá; só nos anos sessenta é que permitiu o rápido desenvolvimento e determinou investimentos muito significativos como foi o caso da barragem de Cabora-Bassa em Moçambique e do porto de Sines na Metrópole, porto de águas profundas, destinado a receber grandes petroleiros com ramas de petróleo extraídas no enclave de Cabinda, a partir do qual seguiria a gasolina com destino a toda a Europa. Cabinda que, por sinal, depois de toda a parafernália de vozes vociferando na Organização das Nações Unidas pelo direito dos povos à “autodeterminação e à independência” ainda se encontra à espera das mesmas. Será que foi por esquecimento, ou será que os políticos e a Comunidade Internacional (USA) se fazem de esquecidos porque o que conta verdadeiramente são outros interesses?

E foi nos anos sessenta que este regime político altamente repressivo e com uma política económica de investimento e crescimento com grandes perspetivas mas ainda em estado embrionário para garantir a criação de postos de trabalho para todos, que americanos e soviéticos implementam, fomentam, apoiam e armam os designados “movimentos de libertação”.

Era fundamental explicar ao país a conjuntura política internacional movida por interesses expansionistas das duas grandes potências; em vez disso, a governação salazarista preferiu mantê-lo na ignorância deixando-o à mercê dos imperialismos americano, soviético e chinês (caminho de ferro da Tanzânia), por desconhecimento generalizado de todo o jogo estratégico de interesses pelas matérias-primas a nível mundial. O povo não tomou consciência do perigo que o país corria, e muito menos, do futuro que lhe estaria reservado com a perda de muitas riquezas que o País não soube explorar, nem em seu proveito nem em proveito das populações.

Nos anos 60, o MPLA e a Unita em Angola, e a Frelimo e a Renamo em Moçambique, passam a ser os braços armados dos interesses das três grandes potências, e podemos finalmente entender, não só as circunstâncias, a origem e a natureza da guerra que tínhamos que enfrentar, mas também, quais os nossos verdadeiros inimigos.



Esta é a razão pela qual esta guerra estava perdida desde o seu início, é que, à medida que o tempo passava, nos íamos confrontando com um material de guerra cada vez mais sofisticado. O nosso verdadeiro inimigo eram as grandes potências que conseguiam “virar elementos das populações contra nós” convencendo-os que iriam ter enormes vantagens. É óbvio que a guerra tinha que ser conduzida explicando às tropas e às populações a sua verdadeira razão de ser, e portanto, todo este jogo de interesses.


Era necessário explicar quais os beligerantes, e, muito particularmente, era fundamental obter a adesão de homens como Amílcar Cabral, que escutei muitas vezes e percebi que tinha motivações e um discurso muito semelhante ao do General António de Spínola; ambos estavam firmemente apostados em contribuir para uma “Guiné melhor”, que oferecesse melhores condições de vida às populações.


Quero acreditar que eram ambos pessoas muito bem-intencionadas e que desenvolveram esforços no sentido de entabular conversações e negociações, mas não tiveram o discernimento de o fazer da melhor maneira, pois minimizaram os interesses e a ausência de valores de outros grupos mais enfeudados nos interesses da URSS, sendo a designação de “grupos terroristas” bem mais adequada ao que de facto eram. Aliás, as disputas pelo poder entre cabo-verdianos, as múltiplas etnias e os vários grupos de interesses, com o recurso, inclusivamente ao assassínio, tem sido uma realidade até aos dias de hoje, tal é a natureza das pessoas em causa, e é como diz o ditado “quem com ferros mata com ferros morre”.


1.2 – EPA – Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas 


Seguiu-se o curso de Posto de Controlo de Tiro (PCT). Ali a alimentação era melhor, mas a dureza da instrução era uma realidade que não dá para esquecer, penso que se justificava pela dureza de guerra que nos esperava no Ultramar.


Em minha opinião, o tratamento a que éramos sujeitos também nos trazia um sentimento de revolta, absolutamente contrário à compreensão e aceitação da defesa dos interesses da Pátria. 


Lembro-me de ter feito um trabalho sobre geoestratégia, e, para a sua concretização, ter estudado alguns livros do meu Pai que entretanto tinha concluído o Curso Superior Naval de Guerra e tinha sido colocado no Ministério da Defesa Nacional. Nessa altura, contrariamente a muitas opiniões, sobretudo de pessoas de esquerda e ligadas ao partido comunista, não me foi difícil prever a invasão de países do Leste Europeu pela União Soviética.


Relativamente a Vendas Novas, não posso deixar de recordar e prestar homenagem ao meu camarada de nome Resende, que, nas marchas finais, foi colocado a fazer guarda à bateria constituída por três obuses, e que aceitou trocar de posição comigo porque me recusei a ficar à frente das bocas-de-fogo. Aconteceu que, num dos disparos, uma granada rebentou à saída do obus e ele morreu no lugar que me tinham destinado.


2 – Figueira da Foz – RAP 3 - Instrução a recrutas do CICA 2


Como Aspirante a Oficial Miliciano, fui colocado no Regimento de Artilharia Pesada Nº 3 (RAP 3), na Figueira da Foz, onde dei instrução a um pelotão de futuros condutores-auto (CICA 2), originários da Madeira, em Julho, Agosto e Setembro, de 1967, pelo que tive a sorte de apanhar o período de verão, o que me permitiu passar alguns fins-de-semana em S. Martinho do Porto e estar com os meus pais e amigos.


Foi no RAP 3, que me deram a notícia de que tinha sido colocado na Província Ultramarina da Guiné. Pensei na altura: “quanto mais depressa me despachar desta vida tanto melhor”, e vim gozar em Lisboa as férias que antecederam a partida para a Guiné.


3 – Viagem para a Guiné


Em 10 de Dezembro de 1967, numa manhã invernosa, embarquei no navio “Alfredo da Silva” com outros dois alferes do meu curso, também idos em rendição individual e com destino à Bateria de Artilharia de Campanha Nº 1, em Bissau. Do navio, disse adeus ao meu pai e pensei na possibilidade de não o tornar a ver nem à ponte Dr. Oliveira Salazar, que, na altura, se nos afigurava como sendo a grande obra do regime.


Embora me considere um homem de mar, durante o jantar, quando o navio saía a barra do Tejo, depois de ter comido a sopa, e porque o navio balouçava fortemente, tive que a deitar fora porque não me assentava no estômago pois andava de um lado para o outro, e, para apanhar ar, subi ao convés, constatei então que, apanhando as ondas de través, estas galgavam a amurada e passavam por cima do navio.


Pensei nos marinheiros de antigamente, alguns, antepassados meus que, em tempos idos em autênticas “cascas de noz” enfrentaram em muito piores condições estes mares e muitos outros bem piores. Realmente, não lhes damos o devido valor e muito dificilmente compreendemos todos os sacrifícios que enfrentaram e o muito que fizeram pelo nosso País.


No dia seguinte, chegámos ao Funchal, demos uma pequena volta, e a partir daí, em termos de navegação, a viagem decorreu com normalidade. Vimos peixes-voadores, o que para mim era uma novidade e lembro-me de uma rapariga, muito bonita, que acompanhava o pai na sua ida para uma comissão na Guiné.


Pareceu-me adoentada, já tinha ido ao médico mas sem grandes resultados, a comida que ingeria não fazia o percurso normal. Ocorreu-me convidá-la para jogarmos ping-pong; ao princípio recusou-se desculpando-se que não se sentia bem, mas, face à minha insistência, anuiu. Jogámos algum tempo, mas depressa teve que se ir embora.Mais tarde, veio agradecer-me, pois lhe tinha salvado a vida na medida em que tinha vomitado a comida que já estava em decomposição no estômago.


Chegámos a Cabo Verde, é um arquipélago em que a população, apesar das dificuldades inerentes à escassez de água, ou para esquecer as dificuldades da vida, dá grande valor à música e à dança. Sem ter quaisquer conhecimentos de música, diria que a saudade que os cabo-verdianos cantam tem alguma semelhança com a saudade que muitas vezes caracteriza o “fado” deste povo da Lusitânia que se lançou, logo que dispôs de naus e de caravelas, à aventura, deixando para trás, pais, mulheres e filhos. Muitos desses homens partiram para nunca mais voltarem.


Os cabo-verdianos possivelmente cantam a saudade que os seus antepassados viveram por terem sido arrancados dos seus locais de nascimento no continente africano, e contra a sua vontade terem sido transportados para o arquipélago de Cabo-Verde.


(Continua)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7620: Álbum fotográfico de António Sá Fernandes, ex-Alf Mil da CART 3521 e Pel Caç Nat 52 (Guiné 1971/73) (1): De Mafra à Guiné

1. Mensagem de António Sá Fernandes (ex-Alf Mil, CART 3521 e Pel Caç Nat 52, Guiné 1971/73), com data de 10 de Janeiro de 2011:

Meu caro:
Tendo em vista a publicação no blogue da Guiné, envio estas fotos.

Um abraço
Sá Fernandes
Valença




Mafra - COM

COM - Vendas Novas, 1970


3.º Pelotão V. N. Gaia 1970


Chegada a Bissau-1970


3.º Pelotão da Cart 3521


LCD - Bolama


Construção de pontão


Com o amigo Novais


Bafatá - 1972


Cart 3521
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2788: Tabanca Grande (64): Apresenta-se Sá Fernandes, ex-Alf Mil da CART 3521 e Pel Caç Nat 52 (Guiné 1971/73)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País


Estórias de Mansambo






Torcato Mendonça
ex-Alf Mil
CArt 2339
Mansambo, 1968/69





2 - Instrução, embarque e viagem até á GUINÉ da CArt 2339

2 -1 - O 2º GrComb

Concentração em Évora

RAL 3, Setembro de 1967, local de concentração dos graduados da Companhia Independente 2339.
Dias depois chegariam os soldados, a maioria saída da recruta, para receberem a especialidade de atiradores. As outras especialidades seriam dadas noutras Unidades Militares e mesmo no RAL.
Nos primeiros dias as habituais reuniões de graduados, a constituição de grupos para ministrar a instrução e outros assuntos.
Os Cabos Milicianos escolhiam os aspirantes para a formação dos quatro pelotões de instrução. O meu era, devido á classificação, o 2º Grupo. Fui escolhido pelos futuros Furriéis – Rei, Rodrigues e Sousa. Todos tínhamos tirado, na mesma altura e local, Vendas Novas, a especialidade: Atirador de Artilharia.
O Comandante de instrução fora um Capitão, a puxar forte por nós pensando, talvez assim, preparar “melhor” os graduados para a defesa do Império. Certo é que ficamos a perceber mais de equipas de cinco, sentido de punho fechado e “coisas de comando” do que secções de nove elementos, pelotões e outras. Misturaram-se, durante a instrução dada á Companhia, os conhecimentos adquiridos e saiu algo de jeito.
Vieram os soldados, foram integrados nos vários grupos, creio que de forma aleatória, ou mais pelo conhecimento, que tinham entre eles, da recruta ou vida civil.
Eram quase todos homens do Norte. O meu grupo tinha só dois alentejanos. Todos os outros eram do Porto, Póvoa, Lousada, etc.
Com os graduados era metade, metade: O Alferes era algarvio, criado no Alentejo e um Furriel natural de Vila do Bispo, algarvio portanto. Os outros dois Furriéis eram da zona do Porto.

Já na Guiné houve mudanças. O Sousa (Fernando Luís, desportista e professor conhecido) foi ao segundo ou terceiro mês para a 3ª ou 5ª de Comandos. Ficou nos Comandos, mudando de Companhia, até ao fim da comissão. Não perdeu o contacto connosco e regressamos juntos. Foi substituído pelo Sérgio, natural de Angola. Estudou e trabalhava na zona do Porto. O Rei, ficou sempre, felizmente, no grupo a corrermos Guiné fora.
O Rodrigues, algarvio, foi ferido com alguma gravidade na Lança Afiada. Evacuado para Bissau, teve que ficar a tirar estilhaços até ao fim da comissão. Nunca foi substituído por razões óbvias. Regressou connosco. Parece viver no Algarve a tentar esquecer aquele tempo. Óptimo se o conseguir.
Infelizmente não regressaram três militares do 2º Grupo. Dois porque morreram e outro por ferimentos e doença, o Pimenta. O Bessa morreu em combate e o Casadinho por acidente, em Bissau, já no fim da comissão.
Um outro devia ter sido evacuado mas nunca o foi.
Ainda em Évora, o grupo adoptou o nome de "Panteras Negras". No fim da instrução diária, ao destroçar, havia sempre o grito: Panteras e batimento forte com o pé esquerdo. Hoje, penso nisso e interrogo-me: Porquê?
Mas estes relatos, estas estórias para reproduzirem, o mais fielmente possível o que se passou têm, tanto quanto possível, ser vistas com os “olhos” de outrora. Era um grupo, a procurar união, a mais ou a melhor preparação para “ a guerra colonial”, um espírito próprio e coeso. Não procurava ser melhor, pior ou diferente dos outros. Tinha, isso sim a auto estima, a vontade de contribuir para uma Companhia unida, onde todos fossem solidários com todos e os Viriatos fossem um conjunto forte e coeso. Parece-me que isso foi conseguido. Creio mesmo que se mantém até hoje.

Ordem de embarque

Terminada a instrução, depois de curtas férias aparece a ordem de embarque. Numa gélida manhã de Janeiro, que certamente ninguém esquece devido aos gritos, choros e ao dramatismo de uma despedida, para muitos a ser vivida como final, embarcámos no Ana Mafalda, rumo á Guiné.
Ao quinto dia aportámos, por horas, em Cabo Verde. No dia seguinte, aí estava a Guiné.
Fizémos o treino operacional no Xime. A 1ª operação ao Galo Corubal.
Caímos em emboscadas e montámos outras; flagelaram e tentaram assaltar o nosso aquartelamento muitas vezes, assaltámos e destruímos alguns do IN; detectámos e rebentámos minas, deixámos outras para os adversários; apreendemos material ao IN, construímos tabancas em autodefesa, sentimos a vida a esfumar-se e a voltar, vimos morrerem camaradas nossos – brancos e negros ou, se preferirem, metropolitanos e guineenses – deixámos um dos nossos ser apanhado. Matámos e apanhámos adversários nossos. Foi uma campanha dura, violenta, desgastante e demasiado longa.
Nunca o Grupo ou a Companhia sentiu o peso da derrota.
No fim éramos homens bem diferentes, amadurecidos ou precocemente envelhecidos. Em tão pouco tempo amámos e odiámos, fomos humilhados e ofendidos, trataram-nos e tratamos outros, justa e injustamente, vimos, sentimos e vivemos situações dispensáveis, para gentes civilizadas.
Regressámos. Despedimo-nos, aos poucos, num fim de tarde e princípio de noite de Dezembro, novamente, de onde, cerca de dois anos antes havíamos saído: Évora.
Partimos por esse País fora, á procura da Vida interrompida. Só que antes já tinha partido o melhor da nossa juventude, o tempo perdido, as transformações em nós operadas, a visão da violência sofrida. Aos poucos recuperamos, talvez ou certamente nem todos o tenham conseguido. Mas certamente tentámos esquecer e viver outras vidas.
Voltámos a encontrar-nos, creio que em 1991, num restaurante da cidade de Aveiro no habitual almoço convívio. Emocionámo-nos. Todos os anos se repetiram os almoços em convívio-terapia. Só voltei, há dois anos a Évora. Julgava ser uma despedida. Ainda por cá estou e talvez volte um dia. Gosto demasiado da malta.
Mas sinto muito a despedida, a falta de brancos e negros que já partiram…e algo de “raiva surda” por certo passado… aos poucos passa…aos poucos encontrarei certamente a paz ou o saber esquecer e perdoar… talvez não…talvez sim…talvez alguém leve os meus fantasmas…

2 – 2 - Breve síntese, desde a formação e instrução em Évora, á Comissão na Guiné e finalmente o regresso. Parece estar tudo dito. Mas não está. Só focar mais dois ou três pontos: a instrução, a preparação e o embarque, a viagem.

Assim:

- A instrução foi em Évora e arredores, tendo o RAL3 por base. Procurou ser a mais consentânea com a guerra que nos esperava, com os conhecimentos adquiridos e com os homens que formavam cada pelotão. A Guiné, o destino não desejado, estava sempre presente. Era muito pouco tempo para ministrar uma instrução adequada.
Carência de meios postos á disposição, alguma falta de conhecimentos dos graduados (excepto dois ou três Sargentos do Q.P., com anteriores comissões) e os militares, os instruendos da especialidade que, uma breve recruta, não tinha sido suficiente para lhes dar a devida preparação para a especialidade.
Tínhamos a vantagem, muitas vezes isso é esquecido, da qualidade do homem português. A origem, da maioria daqueles homens era camponesa, trabalhadora da construção civil ou dos têxteis, a darem duro desde tenra idade. A rusticidade deles, o hábito á dureza da vida era uma enorme vantagem. Alguns eram homens que nunca tinham sido crianças. Outros já eram casados e pais de filhos. Muitos não eram bons ginastas, devido á dureza dos músculos travar a flexibilidade ou a dificuldade na coordenação motora. Relembro três casos: um que não era capaz de saltar o muro de terceira. Não me atrevo, dizia ele. Foi excelente combatente. Outro, casado e camponês, foi o “ bazokeiro” do Grupo. Ao segundo mês de comissão recebeu a noticia que era pai de uma menina. Nunca a conheceu. Faleceu pouco antes do embarque e num acidente em Bissau. Era a brutalidade daquela guerra. O terceiro caso é sobre a dignidade de um homem. Já na Guiné recebeu a noticia que ia ser pai, só que não tinha casado com a mulher a quem prometera, certamente depois do regresso, casar. Assim que pode, não eram permitidas férias ao segundo ou terceiro mês, veio para casar. Era esta, felizmente, a massa humana do segundo Grupo. Estes três casos podemos estendê-los a todo o grupo ou à Companhia.
Com a determinação de todos decorreu bem a especialidade, para alguns um pouco dura mas foi útil em combate. Não sei se ensinei mais ou se aprendi mais. As duas certamente e, volvidos estes anos recordo-os todos como amigos e camaradas.
Terminou a especialidade depois de uma semana de campo.
Antes de um merecido período de férias, veio a notícia do destino: Guiné.

Preparação para o embarque

- A preparação e o embarque tinham que ser feitas com certo cuidado. A notícia da ida para a Guiné, não foi recebida com entusiasmo pela maioria. Até os Militares do Q.P., estranharam nova ida para lá, pois a última fora lá passada.
As praças receberam o fardamento, meteram-no em dois sacos cilíndricos, também fornecidos, puseram-nos ás costas e foram de férias. Passaram o Natal e o Ano Novo em casa e apresentaram-se nos primeiros dias de Janeiro. Os graduados receberam um subsídio, creio que foi isso, e foram ao Casão Militar comprar o fardamento apropriado. Se bem me lembro, o 1º Sargento Clemente ou outro, Silva ou Moura Gomes, fizeram uma listagem e fui com ela ao Casão. Comprei a mala mais feia que encontrei – cinzenta e de plástico duro – e meti lá todo o material constante da lista. Mais tarde em minha casa foi, tanta e esquisita roupagem, posta á medida. Curiosamente até certos pormenores os Profissionais nos indicaram.

Embarque

Passaram rápidas as férias e, no dia indicado, parti para Évora. Não tinha a certeza do dia de embarque. Para a Guiné partiram antes de nós um Oficial e um Sargento. Nós iríamos depois. Não me recordo o dia da apresentação ao certo. Sei que tivemos duas baixas; um alferes que espatifou um pé e o furriel mecânico que, talvez devido ao calor e excesso de humidade guineenses, preferiu a Europa ou a América. Gostos…Os restantes apresentaram-se todos.
Esperámos pelo embarque, adiado pelo menos uma vez. Um dia soubemos: embarque a 14 de Janeiro. Telefonei para casa e pedi a meu pai para ninguém ir a Lisboa. Despedidas não.
No dia 12 recebi a ordem de ir, no dia seguinte para Lisboa tratar do embarque. O resto da Companhia iria depois.
Vestido á civil, roupa militar num saco, a restante entregue para me levarem para Lisboa, na madrugada de um sábado dia treze, aí estou eu a embarcar no comboio em Évora para, poucas horas depois estar em Lisboa. Ida á residencial habitual, telefonar ao Furriel Whanon, que já estava em Lisboa, combinar encontro, vestir a farda e aí vamos nós ver o barco. Lembro-me, a cara de espanto do dono e pessoal conhecido da residencial. Eram meus conhecidos pois, essa e menos outra ali na Braamcamp, eram os meus poisos habituais. Não sabiam que eu era militar. Figurava nos arquivos como estudante. Que é isto? Dizia o Senhor Manuel. Vou para a Guiné amanhã de madrugada. Fiquemos por aqui. Fui e vim, o meu poiso continuou, por muitos anos, a ser lá. Boa gente. Já desapareceu a residencial e o Parque…
Lá fui, com o Furriel Whanon ver o barco. Ou por estar maré vazia, ou porque o barco era pequeno, quando olhei para o "Ana Mafalda" pensei ser uma traineira. Papéis tratados e o resto do dia e noite por minha conta. Passou-se. Às cinco ou seis da madrugada estava eu na Estação Sul Sueste á espera do resto da Companhia. Chegaram, entraram rapidamente nos camiões militares e rumámos ao Cais da Rocha. De noite todos os gatos são pardos ou não dão nas vistas…
Embarque: o reboliço da carga do material, a formatura para um estúpido desfile, os cumprimentos de um membro do Governo (?), não recordo bem, e uma pausa antes do embarque, para as despedidas dos familiares.
Assisti então a uma situação incrível pelo seu dramatismo. Não descrevo pois não seria capaz. As famílias em atroz sofrimento, os militares igualmente, o choro, o grito, que, de tantos que eram, pareciam um só e deixaram-me arrasado. Foi dada ordem de embarque e muitos tiveram que ser “empurrados” até ao barco. Perto do meio-dia afastava-se o barco lentamente e os acenos, de ambos os lados, os gritos e choros mantiveram-se. Indescritível. Penso que só quem embarcou assim consegue recordar todo aquele dramatismo.


Viagem

Deixei as malas no camarote e vim até à amurada. Ali estive, não sei quanto tempo a pensar, a ver o meu País a afastar-se. Ainda o Cabo São Vicente se via ao longe, senti o Rodrigues, Furriel do meu Grupo, ao pé de mim. Disse-me: será que voltamos a ver o nosso Algarve? (lembras-te camarada? Não me deves ler… tentas esquecer…tens esse direito). Respondi-lhe: eu vejo e você também. Com “ganas”e a raiva do não querer estar ali. Porquê? Porque não devia estar ali! Não era guerra minha e devia acabar o curso. Além disso tinha 22 anos e queria viver…mas já estava transformado…
Continuou a viagem, com enjoos de alguns e os dias a escorrerem devagar. Na terça dia 16, ao longe as luzes das Canárias e na madrugada de sexta dia 19, aí estavam o porto de Pedra Lume, Ilha do Sal, Cabo Verde. Carga e descarga de material e nova largada rumo a Bissau.

cont.

__________

Notas de vb:

1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.

2. Artigo anterior em

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): De Évora a Mansambo...

Estórias de Mansambo
Torcato Mendonça

ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo

1968/69

O Torcato Mendonça nos dias de hoje.

E nos tempos de Mansambo A – De Évora a Bissau Não tinha combinado com o José, a continuidade da segunda parte das suas Estórias da Guiné, prometidas, sem compromisso como era hábito nele, meses antes. Um dia, ao final da tarde, voltou, calmo e sorridente, menos cabelo e mais rugas, com o “eterno” saco a tiracolo.Depois dos cumprimentos, apontou, o José, para o saco e disse: - Tenho as estórias da Guiné aqui. A fase A, a que chamei de Évora a Bissau e parte da Fase B, que será sobre a comissão ou os dois anos que por lá andei. Procurei não me repetir. Eu sorri e esperei o que dali sairia. Abriu a sacola, sacou de umas quantas mini-cassetes e de um bloco. - Olha - disse-me - Ouves as cassetes, seguindo as indicações escritas no bloco. Passas à tecla e dás-me depois uma cópia. Podes cortar à vontade. Não podes é desvirtuar o texto. Se alguns, achares estarem repetidos ou não terem interesse eliminas. Vou ler e passar a limpo. Falaremos depois, disse-lhe. O resultado é este, negando-se ele a ler o que foi passado a limpo e os cortes. 1 – Évora Na primeira parte, das estórias do José, falei da recruta e especialidade. Procurando não me repetir, volto a Vendas Novas.

Cadetes em Vendas Novas limpando as G3. Pouco tempo antes de terminar a especialidade, foi-nos dada a hipótese de “escolher” o quartel para onde queríamos ir. Escolhi Évora e nada mais. Não acreditava que os cadetes, quase aspirantes – fora os que iam chumbar – pudessem escolher algo. Certo é que deu. Terminada a especialidade, galão ou risca num ombro, guia de marcha e um papel na mão para, depois de curto período de férias, me apresentar em Évora.

Conhecia bem a velha cidade. No quartel, que não conhecia, o meu pai tinha estado cerca de trinta anos antes, a cumprir o serviço militar sob a ameaça da II Guerra.

Parada do antigo RAL 3 aqui, nos anos quarenta (RAL1). A Parada mantinha, cerca de trinta anos depois, o mesmo aspecto. Boas recordações dos meses que lá estive. Sempre que por lá passo, se puder, paro e dou uma volta pela cidade… e volto atrás no tempo… até ao dia, há muitos anos atrás em que lá casei… Recordações de outras vidas! No dia determinado apresentei-me um dia no RAL 3. Nada tinha a ver com Artilharia, pois era atirador. Especialidade igual em qualquer Arma. Havia, e apresentaram-se no mesmo dia em Évora, os aspirantes das especialidades de Artilharia. Creio que éramos dez ou doze. Não sei ao certo e também não me recordo como lá cheguei. Lembro-me, isso sim, da velha mala do tempo de estudante, cheia de autocolantes de cidades e hotéis, a maioria fruto de sonhos adiados e do velho saco de cabedal. Saco mais, muito mais velho do que eu, estou hoje já sexagenário. Comprei-o em Portimão a um velho correeiro e acompanhou-me durante muito tempo. Apresentaram-se os novinhos aspirantes, hirtos na postura, continência pronta, sentido de mão fechada. Riam-se os outros oficiais, principalmente os do QP, conhecedores de quem tinha sido o nosso comandante de especialidade. Olhem os pupilos do Capitão Comando Oliveira e Artilheiro anteriormente, se a memória me não atraiçoa. Fomos praxados, como mandam as regras, seguindo-se um lanche, comido nessa tarde ou na seguinte, com pagamento a ser feito por nós, quando o primeiro soldo estivesse a pagamento. Antes do toque do fim da tarde fomos apresentados ao Comandante. Era um Coronel de estatura baixa e olhar manhoso que, depois do toque da saída virava censor. Tempos depois ainda cheguei a acompanhar um dos jornalistas, de um Jornal de Évora, quando estava de Oficial de dia, ao Comandante. Iam os escritos ao lápis… geralmente era o jornalista obrigado a esperar em excesso para gozo do censor… eu tentava, geralmente sem sucesso, abreviar… Na apresentação dos novos aspirantes, o Comandante com mais galões do que ombros, apartou logo artilheiros e atiradores. Distribuiu tarefas. Lembro-me de duas: o Zé Maria virou responsável pela messe de oficiais, eu fui enviado para a PJ Militar. Logo eu?! Nada disse claro. Ouvi a sentença em sentido e toca a encaixar. No dia seguinte fui apresentar-me, a um velho Capitão do Serviço Geral e o principal mentor da organização da praxe e do lanche. Descansou-me o velho militar dizendo: -Escolha um escrivão, furriel ou cabo miliciano seu conhecido, passa depois pelo Quartel-General, aprende as bases e pouco terá que fazer. Se tiver problemas fala comigo. Pus a boina na cabeça, sentido, continência bem puxada e pedido para me retirar. Levantou-se o Capitão, olhou-me e disse: - Aqui não se faz isso pois a disciplina militar não passa por aí. Vá aprendendo essas diferenças. Cumpri as instruções e pouco tive que fazer. Mantinha-me ocupadíssimo e o escrivão, meu antigo colega de estudo também. Ainda tive que dar aplicação militar a uma Bataria e uma ou outra instrução a militares de passagem. E aprendi, isso sim, muito, sobre a vida militar dos oficiais, sargentos e praças. Os milicianos, os profissionais, os nem uma coisa nem outra, os obrigados, os voluntários e tantos outros a gravitarem à volta daquele quartel. Que gentes e que vidas vividas, passadas, bem passadas à pala do tropa… Outras vidas. À tarde, depois do toque, uma ida até a cidade, geralmente ao Fialho ou lugar semelhante com petisco ajantarado, cinema quando havia, uma volta ou outro mata tempo, isso também pois era uma questão de equilíbrio psicológico e, nas terras com militares, há sempre isso. Abreviando, com tanta recordação a ficar no tinteiro. Um dia… conto. Um dia…depois… Corria o tempo de feição, na paz do Senhor, civil ou militar, com fugas em fim-de-semana alargado, trocas de serviço, coberturas para proteger e Beja, Lisboa, a minha casa ou o Algarve ali tão perto… Não há bem que sempre dure... Um dia veio a noticia: - Está mobilizado e apresente-se, daqui a - já não recordo quando -, em Lamego (CIOE). Depois vai para Penafiel formar Companhia. - Creio que, quando fui para Lamego, já sabia ir depois para Penafiel. Lá fui eu e o Zé Maria, no carocha dele, até Lamego. Por lá andamos, em cambalhotas e eteceteras, comendo presunto bom, um peixe desconhecido para mim, trutas, e bebendo branco, tinto ou Raposeira. No regresso, rumo a Lisboa, trocamos, antes, de Companhia com dois camaradas. Eles foram ou ficaram em Penafiel e nós regressamos a Évora, para formar Companhia. Fintámos o destino aqui, mas, mais tarde, eles foram para Moçambique e nós para a Guiné. Era o papão temido… ainda bem, daí… quem sabe? Começou então em Évora, pouco tempo depois, a formação e instrução da CART 2339 __________ Notas de vb:

1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.

2. Artigos do Torcato Mendonça em

13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3310: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Encontro em Bissau: o nosso homem de Missirá...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

Guiné >Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça (Alentejano, vive hoje no Fundão).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > c. 1969 > O cais do Xime, no Rio Geba, por onde passavam milhares de homens e toneladas de material para os aquartelamentos do chão fula, Bafatá e Gabu.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Rio Geba nas proximidades do Xime


Guiné > Bissau > Cais > c. 1969 > Cais onde acostavam os navios da Marinha: neste caso, vê-se em primeiro plano a LDG 105 que ia frequentemente ao Xime, transportando homens e materiais para a zona leste.

Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Rio Geba > A caminho de Bissau > 1968 ou 1969 > O Fur Mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339, Mansambo, 1968/69, num dos típicos barcos civis de transporte de pessoal e de mercadoria. Estes barcos (alguns ligados a empresas comerciais, como a Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF) tinha, como principal cliente a Manutenção Militar.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Estórias de Mansambo > O Último Encontro com o Alferes Carvalho, a bordo da BOR, Rio Geba abaixo (1)

Zape, zape, zape, num barulho sincronizado das pás e do motor do barco, Geba abaixo, até Bissau. Encostado à carga, cigarro na boca, mão no bolso afagando nervosamente a pistola, a tristeza do momento a apertar o peito. Branco e negro, vida e morte, a louca dicotomia do matar ou morrer numa guerra que não era a dele, nem fora do outro, seu camarada, agora ali deitado, em urna de chumbo coberta a madeira de bissilom ou pinho.

Tudo começou num Janeiro frio. Tentou recordar: o pensamento viajou até Vendas Novas, no Alentejo distante. No início desse mês, os Cadetes apresentaram-se em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, para tirarem a Especialidade de Atirador.

O primeiro dia de instrução trouxe uma série de surpresas: testes físicos, ausência de refeições – excepto uma carcaça e um tubo de leite condensado – , formação dos Cadetes, em equipas de cinco militares à sua escolha. A dele era formada pelo Carvalho, Sales, ele (Torcato), Zé Almodôvar e Fernandes.

O porquê, de um comportamento assim, devia-se ao Comandante da Instrução ser Capitão Comando. Assim sendo, tiveram uma instrução dura, com demasiados saltos e cambalhotas, ausência de horários e várias formas de os tentar endurecer ou melhor preparar para a guerra no Ultramar.

Terminada a instrução, os agora aspirantes espalharam-se pelos vários Quartéis. Passou o tempo e como era normal foram mobilizados. Encontraram-se novamente uns em Lamego, outros em Tancos. Nova instrução recebida pela maioria. No fim desta, voltaram aos quartéis da mobilização, formaram e prepararam Companhias para combater numa qualquer parcela do Império.

O Carvalho, o Almodôvar e ele juntaram-se em Évora. O primeiro na CART 2338, os outros dois na CART 2339. Como eram rapazes com sorte apontaram-lhes o caminho da Guiné. Foi ele e o Carvalho. O Almodôvar estoirou um pé e foi meses depois(2).

Fizeram operações juntos – Galo Corubal, Enxalé (Sinchã Camisa, Madina, Belel), zona de Nova Lamego (Canjadude) e outras. A amizade, fruto da convivência vinda desde Vendas Novas, era forte. Separaram-se. Ele ficou em na CART 2339. O Carvalho foi para Nova Lamego, com a CART 2338.

Um dia, as más notícias correm céleres, soube-se: vítima de mina antipessoal faleceu o Alferes Carvalho. Na malfadada estrada para Madina do Boé ficava o amigo. Menos de três meses após a chegada àquela terra. Soube agora no Blogue a data esquecida, 17 de Abril [ de 1968] e o local onde hoje repousa (2).

Mais um nome, a juntar a tantos vitimados naquela estrada. Toda a Companhia sentiu aquela morte. A primeira sofrida pelas duas Companhias gémeas.

Voltaram-se a encontrar-se, como e porquê? Por acaso ou porque se deviam despedir ainda. Tinha que ir a Bissau, ao Hospital Militar. A curiosidade e não só levou-o a fazer a viagem na BOR – um barco com pás na proa, verde-claro, e que se habituara a ver passar nas seguranças a Mato Cão.

Naquele dia, como era normal, transportava africanos, fazendo o barulho habitual com os seus risos e alegres conversas, vacas, galinhas e carga diversa. Tudo desorganizado, ao monte, pois só assim devia funcionar. Ele ia de camuflado, galões no bolso, olhar atento. Escolheu o local para a longa viagem, junto a uma parte de carga mais baixa, mas de modo a observar bem e a ter protecção nas costas. Pôs o saco no chão e antes de se sentar, levantou o oleado que cobria a carga. A visão fê-lo dar um passo atrás – caixões. Viu as placas e leu numa delas: Rogério Nunes de Carvalho, Alferes

O choque, o aperto no peito, a tristeza e raiva a subirem, o conflito interior, o desejo de nada ver. Acendeu um cigarro, ajeitou o saco com o pé, sentiu as granadas no bolso e nervosamente acariciou a pistola. A algazarra a diluir-se, o barulho do motor, o zape zape das pás, iam os dois, naquele barco, Geba abaixo. O pensamento, vagueou por tanto tempo que só se lembra da zona onde o Corubal entra no Geba. Mesmo aí porque um africano lhe disse algo e o tocou. Talvez pelo seu olhar, pela sua reacção, o homem recuou. Apercebeu-se disso e tentou sorrir-lhe. Mais um esgar que um sorriso. Foi o suficiente para sentir que o olhavam intrigados, talvez pensando: mais um soldado lixado com esta vida.

Despertou e olhou com mais atenção aquela gente. Quantos informadores iam ali, quantos agentes do inimigo ou mesmo combatentes? A viagem foi lenta, aborrecida. De quando em vez um gole no cantil, uma trinca num chocolate e outro cigarro acesso. Zape, zape, zape…

Finalmente o barulho aumenta, as gentes mexem-se e puxam as bagagens. Bissau está à vista. Levanta-se, arruma o cantil e outro material no saco, tira os galões do bolso e coloca-os no lugar. Destapa a urna, põe a mão sobre ela – adeus camarada. Tapa-o, ergue-se e faz-lhe continência. Sente o olhar daquela gente para o soldado, ora alferes. Olha-os. Talvez tenha tentado sorrir. Certamente a emoção não o deixou. Saltou para o cais e rumou a Santa Luzia.
- Adeus camarada. Hoje sei onde estás. Um dia vou ver-te a Pêga, Guarda e voltarei a encontrar-te. Desta vez sem zape, zape e menos ainda saudações militares.

Falamos em encontros. Conto-te mais um, mas diferente…
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriors desta série:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

(2) Vd. poste de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

(3) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

(...) Companhia de Artilharia 2338

Rogério Nunes de Carvalho, Alferes Miliciano de Artilharia, natural de Pêga / Guarda, inumado no cemitério de Pêga, tombou vítima do rebentamento de uma mina antipessoal na estrada do Cheche a Canjadude, em 17 de Abril de 1968; (...)