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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20271: Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXXI: 1984/85: um regresso, quinze anos depois: (i) a primeira viagem de saudade


Foto nº   16 > Guiné-Bissau > O Virgílio Teixeira junto à instalação da fábrica descascar arroz,  desativada. Bissau, 5Jan85


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Bissau > 3 de janeiro de 1985 >  No Pilão, na porta da casa do nosso taxista fula, de nome Mamadu.


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  3 de janeiro de 1985 >A nova ponte acabada então de inaugurar, em Bafatá, com ligação a Fá Mandinga.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Esta era a picada entre Nova Lamego (hoje Gabu) e o aquartelamento de Cabuca, a uns 20 a 30 km da sede do comando do antigo sector L3.

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Em Cabuca recolhendo terra para amostras de produtividade e rendimento.



Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > Aqui estamos numa lagoa, que faz fronteira com a Guiné-Conacri.


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Gabu > Cabuca > 3 de janeiro de 1985 > – Pormenor de um lago lodoso de águas paradas, e o aviso no placard da existência da mosca Tsé-Tsé. O nome escrito diz ONCORSECOSE (a doença mais conhecida por "cegueira do rio").

Foto nº 11 >  Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 > Vista geral complexo agroindustrial, inacabado e abandonado. Tratava-se de uma fábrica de descasque de arroz.


Foto nº 12 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 > Outra vista das instalações fabris que nunca chegaram a funcionar.


Foto nº 13 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Em primeiro plano, os porcos que se passeiam livremente pelo complexo industrial abandonado.



Foto nº 14 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Vista geral do complexo, Bissau, 5Jan85.


Foto nº 15 > Guiné-Bissau > Região de Bissau > 5 de janeiro de 1985 >  Interior do complexo inacabado, Bissau, 5Jan85

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem, de 9 do corrente, do nosso amigo e camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde; tem já perto de 140 referências no nosso blogue- (*)


Luís, como estás? 

Segue o texto (e as fotos) para o tema T999: foi enviado por mail, em Junho de 1998, já passou mais de um ano. 

Não sei o que se passou, mas devo ter enviado em conjunto, no Wetransfer com prazo de 8 dias, e por isso perdeu-se. 

O interesse é mostrar no que se passou a seguir à Independência, aquele território tornou-se não no 3º mundo, mas uma parcela única do 4º mundo. Naquela altura a Guiné estava classificada como ‘o paíos mais pobre do planeta’… Pobre povo que tanto sofreu com esta mudança! 

Este poste trata de um assunto muito particular da minha vida, e agora estive e reler tudo, e achei que vale a pena tentar, e ver o feedback desta história. Não toquei em nada, foi escrito naquela data, era assim que pensava, e hoje igual. 

Tenho andado agora muito ocupado nas minhas rotas pelo Porto, já vou em mais de 7000 fotos, e eu que pensava conhecer o Porto, e afinal só conhecia as pedras da estrada, o paralelo, o alcatrão, a terra batida, e depois os restaurantes, hotéis e afins. 

Ontem fiz a minha mais dolorosa ronda. Para quem sabe, desci ‘as escadas do Codaçal’ e subi ‘as escadas dos Guindais’. São cerca de 400 escadas para baixo e para cima, mas depressa recuperei desta fadiga. Foram 158 fotos, coisas inéditas para mim, nunca lá tinha ido! 

Um dia talvez venha a publicar algumas, que interessam mais às gentes do Porto e do Norte. 

Quanto ao nosso Tema de hoje, esta descrição, apesar de longa, são 13 páginas, acho eu, está longe do todo, pois esta aventura já está escrita nas minhas memórias há muitos anos, nem me passava pela cabeça este Blogue, isto daria para mais 3 a 4 vezes, e isso, não sei se virei a contar na totalidade. 

O final do projecto não foi muito feliz, e contém tanta coisa pessoal e que tenho de preservar. Acho que, no final de tudo, quase desgracei a minha vida, e já se passaram 35 longos anos, desde que iniciei esta loucura. 

Em todo o caso, é parte da vida de um camarada da Guiné, e julgo que tem interesse para quem quer perceber o curso que seguiu aquele novo País de língua portuguesa. 

Isto como tem muito texto e fotografias, vai ter de se dividir em 3 postes ou em 3 partes, caso consideres que é um assunto de interesse para a malta. 

Um abraço, 

Virgilio Teixeira 

Em, 2019 –10- 09


2. Álbum fotográfico > Guiné 1967/69 

TEMA 999 – O REGRESSO À GUINÉ 15 ANOS DEPOIS

ANOS 1984 E 1985 : UMA VIAGEM DE SAUDADE ; DUAS VIAGENS DE NEGÓCIOS


I - Anotações e Introdução ao presente Tema

Este tema tem tanto de louco como apaixonante,

Não vou entrar em pormenores, porque para qualquer um que tivesse a ousadia de querer ler tudo o que já escrevi sobre o tema, teria aqui tanto para ler que até daria sono ao nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Já escrevi no meu livro ‘Não editado’ todos os dramas pessoais e familiares que esta saga me trouxe, nunca saberei se valeu a pena, abandonar a família, correr riscos, desbaratar dinheiro que viria a fazer falta, com resultados nulos.

Vou dividir isto em 3 partes que correspondem a 3 viagens, agora apenas escrevo sobre a primeira delas, aquela que mais me marcou, as restantes ficam para mais tarde…:

I Parte – A viagem de saudade à Guiné

II Parte – A viagem de negócios à Guiné e Senegal

III Parte – A viagem de arranque do projecto na Guiné


Parte 1 – A primeira viagem de saudade à Guiné


Corria o ano de 1984, e um dia qualquer, estava eu a ficar, podemos chamar com uma loucura incontrolável, tinha pesadelos diários com a Guiné, acordava todo suado, eram noites seguidas, anos a fio com estes sonhos, o meu regresso à Guiné, e o mais estranho é que até nos sonhos aparecia com a minha família toda, a caminho de lá. Incríveis.  estes sonhos, e porque não aguentava mais, resolvi que tinha de matar os fantasmas.

Vou ao Consulado da Guiné-Bissau no Porto, falo com o major Valentim Loureiro, era o Cônsul da Guiné em Portugal, na altura também era o tutor dos filhos do 'Nino' Vieira, que estudavam aqui no Porto. O Valentim era também já conhecido, ele e o meu pai,  eram já camaradas, estiveram a trabalhar juntos no RI 6 do Porto.

Nunca meti o meu pai nisto, conversei longamente com a minha mulher, expliquei que eu tinha de fazer isto sozinho, aliás ela também nunca iria, tem horror a África. Tinha eu então 41 anos feitos, a caminho dos 42, e a minha mulher em casa com 37 anos, e os meus três filhos, a mais velha com 13 anos, o rapaz seguinte com 12 e a mais nova com 10.

Abandonar a mulher e filhos, quando vivíamos todos felizes, como sempre até hoje, era uma obra do diabo, mas fui fazendo os preparativos para esta aventura de loucos, digo eu.  Passamos aqueles meses anteriores bastante tensos com esta perspectiva, pois nunca nos havíamos separado antes, eu amava a minha mulher e os meus filhos, eles eram todo o meu mundo, eu superprotegia-os. Como vou abandonar isto, e vou para o escuro ?... Há aqui dramas escondidos que só por si davam um romance, mas vamos em frente.

Sonhava que iria encontrar aquilo que lá deixei em 1969, um país normal de África, com todas aquelas mordomias que tinha quando lá estava, uma cidade de Bissau limpa, as esplanadas com aquelas maravilhosas ostras, os mariscos, a musse de chocolate gelada do Solar dos 10, e os restantes bons petiscos, e tudo bem acompanhado de cerveja gelada e uns uísques com muito gelo, o Grande Hotel, uns bons restaurantes, nada a faltar. Aquele calor insuportável, a humidade, tudo o que era de bom e mau, eu estaria mesmo louco.

Não vou descrever mais, sobre os dramas da partida, os preparativos, os encontros com outras pessoas que pudessem conhecer aquilo melhor, isto são coisas do nosso íntimo e não são fáceis para os outros perceberem. Posto isto, pedir o visto no passaporte por 15 dias, e a surpresa é que tive de esperar mais de um mês pela autorização do visto, mas o Valentim Loureiro alertou-me para não ir, que já não era nada daquilo que fora no tempo da tropa, mas desvalorizei, estava com umas palas como os burros e só via para a frente, ninguém me desviava do meu sentido.

E lá fui, depois de imensas peripécias que vou passar à frente, chego ao Aeroporto da Portela, pois o voo era por volta da meia-noite, de um sábado, como todos os voos para a Guiné, naquela época, em 20 de Outubro de 1984, chegando a Bissau na madrugada de 21 de Outubro. Vai fazer agora 35 longos anos, de recordação e muita angústia.

Era tudo escuro, os passageiros eram na maioria africanos, a confusão indescritível na fila para fazer o check-in e enviar as malas. Como já era hábito aquilo estava carregado de guineenses, que estavam cá a trabalhar ou a passar tempo, e, quando me apercebo,  já estava cercado por uns quantos que me entregavam caixas e embrulhos para meter na minha bagagem, e o peso não tinha importância pois a TAP facilitava isso.

Eu só pensei numa coisa. Se me metem droga nas malas e nas caixas deles, e quando lá chego e me revistam,  entro logo na prisão. Bom, em conversas acesas, pois eu não queria levar nada comigo, as hospedeiras convenceram-me que não havia problemas, era normal, eles só diziam que era ‘leite pra minino que está no Bissau’. Bom,  lá meteu mais uns 20 kg de carga e não paguei mais por isso, ainda perguntei a quem vou entregar aquilo, mas eles dizem que não se preocupe, alguém vai ter comigo e leva as embalagens.

O voo levantou uma hora mais tarde, pois aquilo era uma confusão total, mas eu estava decidido e já tinha gasto com a preparação da viagem e com a Agência, quase 200 contos [, 200  contos em 1984 é o equivalente a 4.754,87 €, a preços de hoje], incluindo viagens mas de fora a estadia. Eu não sabia nem tinha ideia para onde ia, tinha como referência o Grande Hotel de Bissau, mas nunca falei com ninguém nem marquei nada, fui mesmo à aventura, às cegas. 

Como já era normal, paramos no Sal, e comecei a sentir aquela sensação que já não estava habituado, aquilo não era uma Província de Portugal, é um País novo, e as pessoas, ainda com a sua jovem independência, olhavam e tratavam-me de uma forma não muito simpática. Eu tantas vezes lá tinha pousado, no antes, e era tudo nosso, fazia o que me apetecia. Mas não deixaram sair do aeroporto, agora já mais moderno, onde comprei qualquer coisa para entreter o estômago, afinal ainda era jovem, tinha os meus 41 anos, tinha apetite.

Lá deixamos aquilo, e voltamos ao avião Boeing 707 da TAP. Passado uma hora estava a sobrevoar aquela Guiné que já conhecia, os céus a mesma coisa, e cá para baixo a mesma paisagem. Como era ainda cedo, a neblina estava lá presente.

Escrevi durante a viagem, desde que deixei a família com um aperto enorme na garganta, uma carta com aquilo que estava a sentir, angústia e ansiedade. Já levava um envelope endereçado à minha mulher e, quando estava perto de aterrar,  chamei uma hospedeira, mostrei a carta com selo e endereço, e disse que ia metê-la no envelope, pedindo que ela na volta a Lisboa a colocasse no correio, e assim foi.

A aterragem deu-se pelas 9 horas da manhã, na mesma hora em que eu lá tinha chegado da primeira vez, em 21 de Setembro de 1967, ou seja 17 anos depois.  Mas agora era o dia 21 de Outubro de 1984, e estava num novo país independente.

Quando as portas se abrem, saindo daquele ar condicionado frio, pois ainda nos deram umas mantas para não se sentir aquele gelo dentro do avião, leva-se então com aquela baforada de ar quente e húmido, como se tivesse entrada no forno da minha cozinha. Entro da sala do aeroporto, e sem ar condicionado, tudo fechado, imediatamente o suor começa a cair pelas faces, pela roupa e em pouco tempo estou encharcado até à ponta dos pés. Nada que eu já não conhecesse, mas agora mais grave, pois cheguei a um novo país, ainda na minha mente um país... "inimigo" de Portugal.

As filas eram intermináveis para o check-in, pois o pessoal africano tinha prioridade sobre os brancos, e assim fui derretendo as poucas banhas que tinha. Chega a minha vez, apresento o passaporte de turista, e logo perguntam com grande autoridade: o que vem cá fazer? Eu disse que vinha fazer uma visita, não me veio mais nada à cabeça. Acharam estranho e, pouco tempo depois já me tinham chamado a uma sala reservada, eu levava comigo uma pasta preta de boa qualidade e marca conhecida, e uns homens, deduzo que da Polícia política local, ainda me perguntam se pertenço a algum ‘corpo diplomático’ e respondi que não, vinha apenas matar saudades dos tempos em que lá tinha estado na guerra colonial, há muitos anos atrás. Deram ordens para avançar, e fui para outra sala para a revista de tudo. Aí os guardas, como em todo o lado, logo me apanharam algumas coisas, era recordações para eles e família, cigarros, isqueiro, roupa, e coisas assim. Não levantei problemas.

Estava tudo em ordem, lá colocaram o visto de turista para 15 dias no passaporte. Voltei à fila do check-in, e perguntaram-me qual era a minha morada na Guiné, onde ia ficar. Fiquei indeciso, pois não tinha nenhum sítio marcado, disse que talvez fosse para o Grande Hotel. Escreveram tudo. Depois foi a vez do dinheiro, quanto é que levava, claro que declarei menos, e tive logo que cambiar o mínimo de 50 USD no Banco Local no aeroporto, tendo recebido 5.668,50 Pesos Guineenses, e alertaram que o câmbio de rua era ilegal, era crime e dava prisão. Ficou tudo escrito no passaporte. Eles olhavam-me muito desconfiados, não acreditavam em nada do que eu dizia. Mas finalmente consegui abandonar aquele forno.

Cá fora, lá estavam eles à minha espera, nem precisaram de procurar muito, pois os seus familiares em Lisboa devem ter dado todas as informações físicas da pessoa a contactar. E foi bom, porque tinham lá uma carrinha de caixa aberta e deram-me boleia até às portas do Grande Hotel. Despediram-se e foram à sua vida, e lá fiquei eu com a bagagem.

Mas o mais espantoso vem a seguir. Eu que estive na Guiné dois anos, e nunca vesti mais do que uma camisa, e de mangas curtas a maioria das vezes, levava então nesta viagem de loucos, já vestido um fato e gravata, e, num saco em separado, outro fato. Para quê? Só me estorvou o tempo todo. Meti-o na mala, ficou todo amachucado e deixei aquele apêndice que me estorvava os movimentos.

Quando desembarco do avião, aquela garra toda desaparece, como da primeira vez, e de imediato fico novamente apanhado pelo clima, e passo a andar como os outros, muito devagar, devagarinho, não há pressa para nada, nem capacidade física. E enquanto estou de viagem desde Bissalanca – agora aeroporto Osvaldo Vieira -, até à cidade, vou então confirmando os meus receios após a chegada, ou seja, que estou no sítio errado, aquilo não era a Guiné que conhecia.

A miséria era geral, e a falta de tudo em particular, era uma evidência. Vou passando pelos pontos conhecidos, A Base Aérea nada tinha, o quartel dos Comandas não existia, o quartel dos Paras nem se viu, passamos o quartel dos Adidos estava tudo destruído, até que passei pelo Hospital Militar e estava tudo coberto de mato, nada existia, a população levou tudo para casa ou para vender, e o edifício, o melhor hospital daquela zona do mundo, não existia mais.

Quando chego à entrada de Bissau, lá estava o mercado de Bandim, o cheiro era impressionante, o lixo abundava por todo o lado, passamos pela Bissau nova e está quase tudo em degradação, ainda fomos pela avenida principal, a antiga Avenida do Império, e não havia um único café, cervejaria, restaurante, casa de pasto, ou de comes e bebes, nada, tudo tinha desaparecido como se uma peste tivesse varrido a cidade de Bissau.

Quando entro do Grande Hotel aquilo estava a cair de podre, não havia ninguém, fui ver um quarto, meteu-me nojo, os preços eram pagos em Pesos Guineenses. Pediram 3500 Pesos por dia, que feitos os diversos câmbios oficiais, dava uns 2000$00 [, o equivalente a 47, 55 € a preços de hoje], por noite, ou seja o dobro do que tinha pago no dia anterior no Hotel Roma em Lisboa.

Claro que este valor pago com Pesos da candonga, significava então uns 200 Escudos Portugueses [, 4,75 €]... Claro que recusei logo, pois nem de graça eu lá ficava, abundava o lixo e a degradação total. Inacreditável o que via. Voltei a ver naquele espaço que tanto frequentei, os célebres "jagudis",  os abutres, à procura de carne podre, e os grandes lagartos a subir e a descer pelas palmeiras já minhas conhecidas.

Ter-me-ia enganado no local para onde comprei o Bilhete? Pelo sim, pelo não, fui logo de imediato à agência da TAP, que ficava na antiga Praça do Império, para ver se ainda podia apanhar o voo de regresso para Lisboa, mas já não era possível, então marquei logo para o próximo, uns 3 a 4 dias depois, quando a ideia era ficar 15 dias.

Lá fui ter não sei como, talvez num daqueles táxis que param em todo o lado para entrar e sair passageiros, e vou directo a Santa Luzia, onde diziam que havia o Hotel 24 de Setembro,  que era o melhor nessa época. O meu espanto é que estava a chegar ao antigo Club de Oficiais do tempo chamado agora de colonial. Eles fizeram daquele belo espaço um Hotel. Ainda construíram mais umas suites individuais, nos antigos terrenos e edifícios do Biafra, que era o sítio onde ficavam os oficiais milicianos quando passavam por Bissau.

Fui à recepção, e pedi um quarto, o preço eram 10 US Dólares, por dia – 2.000$00  [, o equivalente a 47, 55 € a preços de hoje] -, sem direito a nada. Com a ajuda de uma empregada negra, fomos para o quarto. Novo espanto, estava tudo partido, não havia ar condicionado, nem ventoinha, a água era escassa, os chuveiros estavam estragados, as baratas abundavam, e não tinha sanita, ou seja a sanita estava partida, não dava para uma pessoa se sentar, a empregada encolhia os ombros. Onde é que eu me meti, pensei com os meus botões?

Vou à recepção, o homem lá se desculpa, diz que há falta de manutenção, isso já eu sabia! Eu não queria aquele quarto, por isso ele sugeriu outro, dos novos, eram melhores, o preço era a 40 US Dólares por dia – 8.000$00  [190,19 €]...

Ok, fico para já, estava cansado e tinha novamente de pegar na bagagem e levar para outro quarto. Com o calor e de fato vestido, é fácil ver a cena. Instalei-me e tomei banho, deitei os fatos para o lado, e vesti calça e camisa. Tomei alguma coisa no bar, mas não havia quase nada, nem cerveja, nem uísque, só água com rótulo não conhecido. Mas tinha pressa em sair e ir conhecer melhor a cidade.

Fui a pé pela estrada de Santa Luzia abaixo, as bermas não existiam, estava tudo esburacado, as casas estavam em grande degradação. Procurei e encontrei logo a casa da minha primeira amiga cabo-verdiana, mas os novos inquilinos e vizinhos não sabiam nada dela nem da mãe. Fiquei desiludido, mas lembrei-me quando lá fui em fins de Julho de 1969 para me despedir dela e da mãe, me terem dito que ela tinha regressado a Cabo Verde, talvez seja verdade, e desejei que estivesse bem.

Fui por ali abaixo, na sombra dos grandes poilões, até chegar ao famigerado Pilão de Bissau. A população tinha aumentado para o dobro, as condições eram inimagináveis, nada que me fizesse lembrar as outras más condições do tempo colonial, agora aquilo eram mesmo bairros de lata ‘made in África’.

Vamos à Cidade, avenida abaixo, o calor e a sede aperta, procuro uma cerveja mas não há nada. Andam uns rapazes com uns bidões de barro com água e sumo de limão, diga-se que não estava quente nem fria. O serviço era em pé e na rua, e bebe-se pelo mesmo caneco sem lugar a lavagem, porque não há onde lavar. Paga-se qualquer coisa em pesos, era assim que se tratava o turismo de Bissau. Cansado sento-me na berma de um passeio, sempre na sombra de alguma árvore, o sol não perdoa, era implacável.

É preciso comer, aparece um dos muitos miúdos, que já antes existiam, com sacos ao pescoço, com mancarra descascada e torrada – amendoim, como se diz por cá – mas tão saboroso que parece marisco, era ainda igual àquela que se comia antes, uma primeira boa recordação. E mais umas canecas de água, tudo servido ali sentado no passeio esburacado.

Isto é surreal, estou sozinho sem saber o que fazer, mas vou continuar. Vou ter ao mercado local, onde há fruta e vegetais à venda. Os preços incrivelmente baratos. Compro ananás, bananas, mangas, limões, laranjas, e vou comendo tudo com a mão. Felizmente tinha levado um canivete suíço que dava para descascar aquilo. Já composto vou ver o que há para beber e comer, as primeiras necessidades.

Vou à antiga Casa Gouveia – agora são os Armazéns do Povo –, entro e está tudo vazio. Procuro nas prateleiras não há nada, mas encontro numa delas, isto fica na memória, pois não se pode esquecer..., encontro duas embalagens pequenas de sumos da Compal, daquelas latas pequenas de abrir com abre-latas em bico. Milagre. Vou ver os prazos já tinham passado vários anos de validade, e ainda por cima estão tipo caldo, não arrisquei, ficaram na memória, e na prateleira para o próximo cliente.

Não vou continuar mais a falar nisto, pois as surpresas acontecem à velocidade a que me desloco, não há lojas como antigamente, o famoso Café Bento desapareceu, as lojas fecharam, ainda vou até à Catedral de Bissau, pois está sombra e mais fresco. Rezei para que tudo corra bem para mim e para os meus familiares.

Agora os câmbios... I dinheiro que troquei no aeroporto e ficou registado no passaporte, eram 50 USD e deram-me um maço de Pesos Guineenses, a um câmbio que ficava tudo muito caro. Logo aparece sempre gente a tentar trocar Escudos ou US Dólares, por Pesos, a um câmbio 10 a 20 vezes menos do que o oficial. Ponderei para ver se não era nenhuma armadilha, depois arrisquei, e com 5 contos [, 118, 86 €, a preços de hoje,] fiquei com dinheiro para comprar quase tudo, o que era Nacional.

Mas não havia nada para comprar em divisas, só na segunda viagem já tinha aberto um chamado ‘Free Shopping’, onde se poderia comprar algumas coisas com moeda estrangeira. Mas o que havia era na maioria bebidas e pouco para comer. Daí que o mercado local era o abastecimento preferencial, comprava-se tudo por meia dúzia de tostões.

As surpresas estavam para vir, ao jantar no Hotel pouco ou nada havia, uns peixes secos daqueles que nunca antes havia comido, algum bife duro, pão só até acabar, vinho de garrafão fraco, quente, ou misturado com pedras de gelo da água do Geba. Não havia nem cerveja, quente ou fria. Sopa de estrelinhas, e compo sobremesa a fruta da época. Café de saco e nada de bebidas extras. Preço para isto tudo rondava os 1000 pesos, que com o câmbio no mercado paralelo, isto seria no nosso dinheiro 10 ou 20 escudos, nada mais [.o equivalente hoje a 0,24 € ou 0,48 €, respetivamente]. Tenho as facturas disto tudo, eram talões numerados com papel químico, e pagava no fim da estadia.

De manhã ainda pior, o café com leite, café de saco que não sabia a café, e o leite era ao natural, não tratado, aquilo e a manteiga derretida meteu-me nojo e só comi o pão sem nada, com uma chávena de café simples – digamos chicória.

Bom, a solução era mesmo o mercado, comprei tudo o que havia, muita fruta de toda a espécie, os preços ridículos, e assim comecei a comer no quarto a maioria das vezes. Tinha um frigorífico, onde também entravam as baratas, tirava-se um ananás inteiro, com a minha faca canivete cortava às rodelas e ia para a porta comer aquilo tudo, só com as mãos, tipo um sem-abrigo, enchia a barriga de fruta de vária categoria e sabia muito bem. O sumo de laranja fazia eu, partia várias laranjas a meio e com as mãos apertava aquilo e enchia um copo de sumo. Era tudo básico, não dá para acreditar. Era o mesmo com os limões.

O que fazer então?... Levava um contacto, o Ministro das Finanças local, fui falar com ele ao Ministério, que ficava num daqueles edifícios que se vê do cais na Marginal, à frente do Quartel da Amura. Recebeu-me porque eu levava o nome do Valentim, que por acaso também tratava das coisas dos filhos cá em Portugal. Apresentamo-nos, ele era mais velho do que eu, já tinha os cabelos meio brancos, falava com toda a educação e delicadeza. Acabamos por saber que tínhamos frequentado a Faculdade de Economia do Porto mais ou menos ao mesmo tempo, talvez nos tenhamos encontrado nos dois primeiros anos de 1964-66. Ficamos ‘amigos’, e até me convidou para ir jantar um dia a casa dele, ficava na Bissau nova, nas vivendas bem tratadas, onde não faltavam também nas paredes, dentro de casa, as ‘osgas’ que se passeavam calmamente. Chama-se Dr. Francisco Godinho. Foi-me orientando e até me apresentou outros Ministros e Secretários de Estado, das áreas do Comércio e Agricultura, que lhe chamavam de ‘desenvolvimento rural’.

Andei a deambular os primeiros dias, fui ver o novo Porto de Bissau, enorme, uma mudança radical, já tinha cais para encostarem os grandes navios, foi um investimento de um Banco Árabe, e construído por uma empresa portuguesa, a Somague.

Mas eu tinha de me desenrascar, e assim uma noite no Bar do Hotel, à volta dos copos e a sacudir e afugentar os mosquitos, estava um grupo de pessoas, falavam Português e notei logo pelo sotaque que eram do Porto, não me enganei. Eram uns 5 personagens, 4 de Portugal e um da Alemanha, Harald Muller. Estavam todos picados e com os braços inchados das picadelas dos mosquitos, e viram como eu estava normal sem os efeitos das picadelas dos mosquitos, pois eles não me pegavam, daí o início de uma conversa entre nós.

Expliquei que já lá tinha estado, contei a velha história, e que os mosquitos quando me ferravam eles é que morriam, o meu sangue era venenoso, eles não aguentavam. Acharam graça mas era assim, nunca tive nenhuma marca de mosquitos apesar de sentir as picadelas, acho que tem a ver com a cor e tipo de pele, a minha é escura, a deles era branquinha, os mosquitos aterravam e só largavam depois de lá deixar o ferrão, comigo felizmente não. Apesar de ter apanhado a Paludismo por duas vezes em 1968, não era imune a isso e não tomava nada para salvaguarda dos efeitos colaterais.

Resumindo vim a perceber que andavam por lá, com o aval do major Valentim Loureiro – que era o Cônsul da Guiné Bissau em Portugal – amigo do nosso ‘amigo’ Nino' Vieira–  , para um grande projecto agro-industrial no valor global de 20 milhões de US Dólares. Eram 4 milhões de contos [, o equivalente a 95 milhões de euros , a preços de hoje], o câmbio nessa altura era a 200$00 por cada Dólar.

Já tinham conseguido um ‘aval’ do presidente 'Nino', no qual era cedida ao grupo uma área bruta de 7000 hectares de terreno, nas margens do Rio Corubal, a 200 quilómetros da foz, por causa dos efeitos do sal, com o centro em Cabuca que eu já conhecia. Já tinham mapa de toda a área, e a cedência era pelo período de 100 anos.

Era preciso passar tudo por muitos estudos, e lutar ferozmente contra os ‘consultores’ do Leste que não queriam lá os ‘Tugas’. O Governo só confiava nos pareceres do Leste. Aquelas pessoas que encontrei, nenhuma delas tinha conhecimentos nem capacidade para demonstrar ao Governo que o seu projecto era viável, e muito.

Precisavam de um Economista para elaborar todo o projecto económico e financeiro, e tratar de toda a burocracia que um Investimento Estrangeiro precisa. Bateram na porta certa, pois já tinha no meu CV dezenas de projectos e estudos, e conhecia muitíssimo bem o CIE, os procedimentos do investimento estrangeiro, pois a Guiné Bissau, ‘copiou’ linha a linha o nosso Código do Investimento Estrangeiro (CIE), que eu tão bem conhecia por ter trabalhado com os Suecos tantos anos e que tinha de ser aplicado em Portugal. Estava nas minhas quintas.

Daí para diante tudo mudou, pois entrei dentro do sistema que estava já montado, são os amigos de negócios, e assim havia um esquema com as empresas de construção que lá estavam instaladas, a Somague, a Soares da Costa e muitas outras, portuguesas. Todas tinham os seus estaleiros e não faltava nada, era só mesmo ‘entrar’.

Regressei a Portugal ao fim dos 14 dias com os novos amigos e futuros sócios, e passamos a trabalhar no projecto no escritório deles no Porto, perto da Rua da Boavista, dedicando-me a 100% a este projecto, pois as expectativas eram muito grandes.

Depois disto, tem uma história muito longa, pois durou cerca de um ano inteiro, com 3 viagens à Guiné e uma a Dakar. Um dia talvez volte a este assunto, que não me é nada grato voltar a lembrar-me dele, pois não teve um fim feliz, mas é uma história verídica, e que ainda hoje não sei como fui capaz de embarcar em semelhante ‘loucura’! Fica para os próximos capítulos, se os houver.

Em, 06-06-2018 - Virgílio Teixeira


II - Legendas das fotos:

Nota: O primeiro parágrafo da legendagem explica o que significa a foto. Já nos seguintes, são notas e observações que faço em relação à história e contexto de cada foto no seu tempo.


F1 a F6 – INTRODUÇÃO:

– No Pilão em Bissau, na porta da casa do nosso Taxista Fula de nome Mamadu.

Fomos a casa dele para nos alugar o seu táxi – Citroen Mehari. Ele ficou 15 dias sem trabalhar e recebeu o mesmo como se andasse a trabalhar, foi um bom negócio para ele, e também para nós que ficamos sempre de carro, totalmente descapotável. Bissau, 02Jan85.

F2 – A nova ponte acabada de inaugurar, em Bafatá, com ligação a Fá Mandinga.

Esta ponte veio substituir outro troço de caminho, que não tinha ponte e era necessário dar umas voltas para o contornar. Acho que faz a ligação para Fá Mandinga, e assim fica uma ligação completa por estrada asfaltada, entre Bissau até Gabu e daí até Pirada na fronteira com o Senegal. E tem portagem perto de Safim. Pagávamos 2 pesos e meio para abrirem a barreira. Bafatá 03Jan85.

F3 – Esta era a picada entre Nova Lamego – Gabu – e o aquartelamento de Cabuca, a uns 20 a 30 km da sede do comando do sector L3.

Este troço estava em 1985 completamente tapado, de mato, árvores, capim, e muitos buracos no troço da picada. Foram precisas algumas horas até chegar ao local de destino, que era a zona onde se iria desenvolver um projecto agrícola de 7000 há. Cabuca, 03Jan85

F4 – Em Cabuca recolhendo terra para amostras de produtividade e rendimento.

Em primeiro plano o Isidro Quaresma Gomes, o Técnico agrícola vindo de Angola como refugiado, e que levou a cabo este estudo complicadíssimo. Depois tem mais 3 técnicos locais do Ministério do Desenvolvimento Rural da Guiné Bissau. O Jeep era do Estado, O fotógrafo era eu que não ficou na foto. Cabuca, 03Jan85.

F5 – Aqui estamos numa lagoa, que faz fronteira com a Guiné-Conacri.

O barco segundo me parece, pertencia a alguém que fazia a prospecção de diamantes na lagoa, o homem do leme era o responsável por isso, Nunca soube ao certo o que faziam, era tudo muito secreto. Na foto está o Quaresma, o barqueiro e o Virgílio, sou eu. Cabuca 03Jan85.

F6 – Pormenor de um lago lodoso de águas paradas, e o aviso no placard da existência da mosca Tsé-Tsé. O nome escrito diz ‘ONCORSECOSE’ deve ser o nome latim da mosca do sono.

Dado o perigo eminente desta maldição, não ficamos lá muito tempo, viemos embora sem olhar para trás, não vá aparecer alguma mosca maldita. Cabuca, 03Jan85.

F11 A F16 – Série de Fotos tiradas no complexo agroindustrial de uma fábrica de descasque de arroz, construída do lado esquerdo da foz do Geba, completamente abandonado. Acho que é o local se chamava de Cumeré.

Chamo a atenção que este complexo enorme, quase pronto, mas inacabado, nunca funcionou, estava ali uma fortuna enterrada em obras e equipamentos. O nosso objectivo seria recuperar o complexo e depois apoiar o projecto agrícola do arroz.

Isto tudo foi financiado pela Comunidade Internacional, numa ajuda ímpar à Guiné Bissau, país na cauda da miséria, que recebeu,  segundo estimativas dessa época, a maior ajuda mundial "per capita", que foi dada a um país, em termos de relação – montante investido, versus área e população.

A visão que me impressionou foi ver que no cais de desembarque de Bissau, encontravam-se centenas de contentores, arrumados há anos, nunca abertos, que continham componentes para montar várias fábricas, mas que por uma inoperância dos sucessivos governos locais, nunca foi levada a efeito, ficou tudo a apodrecer, ninguém queria trabalhar, o que interessavam eram os sacos de arroz que desembarcavam de ajuda alimentar mundial. Vi isso com os meus olhos. Bissau, 05Jan85.

(Continua)

Em, 06-06-2018 - Virgílio Teixeira

Propriedade, Autoria, Direitos Reservados: Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BCAÇ 1933 / RI 15, Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SeT67 a 04Ag69.

[Revisão / fixação de texto / conversão de escudos para euros, através do conversor da Pordata, para efeitos de edição neste blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19815: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LXX: Viagem, de regresso, do Gabu a Bissau, em 26/2/1968: no 'barco turra', a partir de Bambadinca (II)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20108: Vemos, ouvimos e lemos..., e não podemos ignorar (1): Carta aberta ao presidente da república do Senegal: os dramáticos efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé, construídas na bacia do rio Kayanga / Xaianga / Geba, que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984 (Umaro Djau)



Fotograma do vídeo Rio Kayanga / Geba (apresentação em crioulo, por Umaro Djau) (13' 48'')






Capa da página Rio Geba, criada por Umaro Djau com o objetivo de divulgar, assinar e partilhar a carta aberta ao presidente do Senegal





I. Do cidadão guineense Umaro Djau, nascido em Pirada, jornalista,  ativista social, recebemos a seguinte mensagem; 

Assunto: Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall

Sirvo-nos da presente nota para vos informar sobre uma Carta Aberta que dirigi à Sua Excelência, o Presidente da República do Senegal, Sr. Macky Sall.

A referida carta aberta debruça-se sobre os efeitos das barragens senegalesas de Niandouba e de Anambé que vêm privando a Guiné-Bissau de valiosos recursos hídricos desde 1984.

A carta aberta foi traduzida para duas outras línguas internacionais, nomeadamente o inglês e o Francês (em anexo).

Sem mais assuntos no momento, subscrevo-me com a mais elevada estima e consideração.

Umaro Djau, MA.
Strategic Communications Specialist | Journalist & Producer | Political Analyst & Commentator
Skype: umaro.djau

Mobile: +1-404-723-7225 (USA) | +245-96-520-5911 (Guinea-Bissau)
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/umarodjau/



II. Carta Aberta ao Presidente da República do Senegal, Macky Sall, por Umaro Djau

Agosto de 2019

A Sua Excelência
O Presidente da República do Senegal
Macky Sall

Senhor Presidente,

Chamo-me Umaro Djau e sou natural da Guiné-Bissau. Começo parabenizando-lhe, do fundo do meu coração, pela sua releição para um segundo mandato, no escrutínio de Fevereiro passado.

Estou a escrever-lhe para partilhar as minhas preocupações sobre os efeitos das barragens de Niandouba (de regulação) e de Anambé (de confluência), construídas na bacia hidrográfica do
Kayanga/Geba, da qual, a maior parte (65%) está localizada na Guiné-Bissau. De facto, o Geba, a parte jusante dessa mesma bacia, é o maior rio da Guiné-Bissau.

As barragens citadas, particularmente a de Anambé, localizada entre as áreas de Kolda e Velingara – apenas 20 quilômetros da fronteira com a Guiné-Bissau - vêm privando o meu país de valiosos recursos hídricos desde 1984, aquando da sua construção na confluência entre os rios Anambé e Kayanga. Reconhece-se, no entanto, a diminuição da pluviosidade na região, nos últimos anos, como sendo um dos factores adicionais na redução dos caudais do leito principal da bacia e dos seus afluentes.

Nenhum outro lugar mostra as consequências dessas ações (no lado guineense) mais do que os rios Bidigor, Campossa e Gambiel, todos tributários/afluentes do rio Geba/Kayanga. Assim que a estação seca começa (em Novembro), esses rios secam muito rapidamente, devido a uma diminuição drástica do caudal de água da parte montante do rio, no território senegalês. Esse fraco e debilitante fluxo de água está a afetar de forma grave e diretamente mais de meio milhão de pessoas nas regiões rurais de Gabú, Bafatá e Oio, de acordo com dados divulgados em 2009.

Hoje, um número superior de pessoas estará a ser afetado. Com base em dados disponíveis (e situações visíveis), permita-me, Senhor Presidente, citar algumas das consequências das barragens construídas no seu território:

• Alterações hidrológicas profundas na parte jusante do rio Kayanga/Geba, com a diminuição dos níveis de água na Guiné-Bissau;

• Morte lenta dos afluentes do Kayanga/Geba: Bidigor, Campossa e Gambiel;

• Escassez dramática de água que é a fonte da vida e responsável pela sobrevivência da humanidade e dos ecossistemas;

• Um impacto negativo nas atividades das populações, incluindo a interrupção da agricultura, pecuária (animais de pasto, especialmente gado) e caça;

• Degradação ambiental em geral devido a uma redução drástica da flora (perda de biodiversidade na vegetação) e fauna aquática e terrestre;

• Empobrecimento do solo, a deterioração das margens dos rios e o aumento da salinização, especialmente nas áreas costeiras da Guiné-Bissau;

• Aumento da profundidade de captação nos poços artesianos de águas subterrâneas devido ao abaixamento do nível estático dos lençóis freáticos;

• Efeitos sociais irreparáveis com a deslocação indiscriminada dos guineenses em busca de outros locais e regiões com cursos de água mais acessíveis, ou seja, a incrementação da transumância.

Sr. Presidente, é compreensível o facto do Senegal não querer desperdiçar os valiosos recursos
hídricos que atravessam o seu território (a montante) e que eventualmente não estariam a ser utilizados pela Guiné-Bissau (a jusante). Também estou informalmente ciente de que, através da
SODAGRI (Sociedade para o Desenvolvimento Agrícola e Industrial no Senegal), o seu país teria eventualmente entrado em contato com as autoridades da Guiné-Bissau nos anos 1970/80 para mantê-las a par do que pretendia fazer, ou seja, os estudos iniciais e as diferentes fases de implementação dos projectos das referidas barragens.

Sem o pleno conhecimento dos factos que cercam esse período e as respectivas concertações, a
fraqueza institucional da Guiné-Bissau é, todavia, bem documentada e conhecida entre os seus
parceiros regionais, nomeadamente as frequentes crises domésticas, a falta de recursos financeiros, a limitação no tocante ao conhecimento especializado, assim como a falta da capacidade técnica, sobretudo na primeira década após a sua independência. Todos esses obstáculos contribuíram certamente (e muito) para um comportamento pouco ou não responsivo por parte do Estado guineense.

Independentemente do que possa ter acontecido naquela época, compreendo a necessidade do Senegal de sustentar as necessidades agrícolas da sua população do sul, através da agricultura
irrigada , nomeadamente o cultivo do arroz, a prática da horticultura e a conservação da água. Assim, as barragens foram construídas e têm beneficiado grandemente o seu país, o Senegal, através de projetos nacionais ambiciosos destinados a reforçar os meios de subsistência do seu povo (a produção de energia elétrica, a captação e a acumulação de água para a agricultura, a pesca, a piscicultura, a horticultura, a pecuária, etc.).

Devo confessar que, da última vez que passei pelas áreas de Tabendo e Kounkane, fiquei encantado com a sua paisagem. A ponte de Kounkane e os seus arredores estão repletos de água proveniente do reservatório de Waima que já mudou todo o ecossistema local, criando oportunidades económicas substanciais nessas áreas. Waima e outros dois reservatórios (Niandouba e Confluência Anambé) são tidos como depósitos essenciais de todas as águas da bacia, estimadas em mais de 130 milhões de metros cúbicos.

Sr. Presidente, a bacia hidrográfica Kayanga/Geba é um curso de água transfronteiriço que nasce nas montanhas de Fouta Djalon, perto da aldeia de Labé, na República da Guiné-Conacri. Este curso natural de água atravessa o território do Senegal, antes de se desembocar na vila de Xime (perto de Bambadinca, na Guiné-Bissau), onde Kayanga/Geba se cruza com o rio Koliba/Corubal.

Durante séculos, os nossos ancestrais comuns - das terras altas de Fouta Djalon (Guiné-Conacri) ao sul do Senegal e até à Guiné-Bissau - compartilharam e desfrutaram pacificamente desses recursos cruciais hídricos fornecidos por este rio de cerca de 550 quilômetros em extensão.

O mesmo senso comum, as mesmas relações e os mesmos princípios ancestrais não regulamentados levaram à coexistência pacífica entre os nossos povos, superando todos os obstáculos de comunicação, nas eras de impérios e doutras chefias que reinaram por muitos séculos, em toda a nossa Costa Ocidental da África.

Para preservar ainda mais o compromisso ancestral entre países - agora na era da regulamentação
e de interesses nacionais – a Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG) nasceu em
1978 com os objetivos de promover e coordenar ações conjuntas, por forma a garantir o uso racional e durável dos recursos dessa importante Bacia Hidrgráfica, com realce para os domínios de conservação e de desenvolvimento, realçando especificamente os componentes de “estudos, planeamento e infraestrutura, agricultura e ambiente, bem como outras tarefas de desenvolvimento dos recursos dos rios Gâmbia, Kayanga-Geba e Koliba-Corubal nos territórios dos estados membros”,  nomeadamente a Gâmbia, o Senegal, a Guiné-Conacri e a Guiné-Bissau, tendo este último se juntado ao grupo em 1983.

É importante salientar que o Rio Kayanga/Geba já ganhou um estatuto internacional e todas as suas obrigações legais estão em vigor e sob à gestão da OMVG, sublinhando, neste particular, a existência de uma Convenção para a gestão desta Bacia já aprovada no Conselho de Ministros da organização, faltando apenas a sua promulgação pelos Chefes de Estado.

Sr. Presidente, embora eu lhe esteja a lembrar detalhadamente sobre alguns princípios legais baseados em convenções, acordos, e declarações internacionais e regionais, deixe-me também afirmar que não sou um advogado e nem estou a tentar produzir um argumento legal contra o seu país nas suas decisões soberanas. Mas, permita-me informar-lhe que hoje, os nossos dois países podem confiar em várias diretrizes e estruturas institucionais nacionais, regionais e internacionais que podem servir de guia para a produção de melhores e mais adaptadas medidas e políticas no tocante às águas transfronteiriças, a saber:

1. Declaração de Madrid sobre o Regulamento Internacional relativa à Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (1911) adverte contra alterações unilaterais dos fluxos de rios e lagos - contíguos ou sucessivos - sem o consentimento de um Estado co-ribeirinho. Essa Declaração recomenda a criação de comissões conjuntas de água.

2. A Declaração de Montevidéu (1933) argumenta que nenhum estado pode, sem o consentimento do outro Estado ribeirinho, introduzir em cursos de água de caráter internacional quaisquer alterações que possam ser prejudiciais aos outros Estados interessados, mesmo para os efeitos da exploração industrial ou agrícola (artigo 2).

3. As Regras de Helsínquia (1966) recomendam o equilíbrio entre as necessidades variantes (económicas e sociais) e as demandas das nações fronteiriças, aplicando o princípio de “uma parcela razoável e equitativa” nos usos benéficos das águas de uma bacia de drenagem internacional, excepto onde existem outros acordos (Capítulo 2, Artigo 4, 5), sem causar danos substanciais a um estado de co-bacia.

4. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos Não Navegacionais dos Cursos de Água Internacionais - adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1997 e que entrou em vigor em 17 de Agosto de 2014 - defende os princípios fundamentais de “utilização equitativa e razoável” e a “obrigação de não causar danos significativos”. Esta Convenção foi ratificada pela Guiné-Bissau desde o ano de 2010.

Como podemos concluir, muitas dessas regras, declarações e convenções recomendam uma forma “razoável e equitativa” de usar as águas transfronteiriças e obrigam as partes a evitar a alteração dos fluxos naturais dos cursos de água, cujas ações podem levar a “danos significativos” num dos países.

Apesar de toda a minha explicação, factos e argumentos até aqui apresentados, o objetivo desta carta não é culpar o Senegal por ter optado pelas políticas que considera corretas para o seu povo, mas sim fazer com que a Sua Excelência esteja consciente sobre os efeitos dramáticos dessas medidas (as barragens de Niandouba e Anambé) sobre o povo da Guiné-Bissau.

Sr. Presidente, nasci em Pirada, uma pequena vila perto da fronteira entre a Guiné-Bissau e o Senegal. Na verdade, quando era criança, o meu pai ocasionalmente me levava para as localidades vizinhas de Nianao e Wassadou, para o mercado semanal, conhecido por "Lumos". Durante a minha infância, confesso que não via muita diferença entre os dois lados da fronteira, devido à minha inocência da criança. De facto, as proximidades e as semelhanças geográficas, sociais, étnicas e culturais fazem com que as localidades fronteiriças do Senegal e da Guiné-Bissau sejam difíceis de diferenciar e dividir.

E ainda durante essa época - no final dos anos 1970 e início dos anos 80 - pequenos agricultores
e pastores de gado na região de Gabú costumavam contar com as dádivas do rio e dos riachos que desciam da fronteira norte pelo país adentro. Os campos de arroz, ou seja as “bolanhas”, permaneciam verdes o ano inteiro, cheios de vida e de esperança. A abundância em água satisfazia quase todas as necessidades, de homens e animais.

Infelizmente, os corredores da água e outras reservas hidrográficas já se evaporaram há muito tempo devido, em parte, às barragens construídas no Senegal. Estou, todavia, ciente doutras condições climáticas e humanas que têm tido impactos negativos em toda a região do Sahel, mas todas as áreas transfronteiriças da Guiné-Bissau estariam significativamente melhores em termos hidrográficos, se o seu país gentilmente mantivesse a circulação regular da água doce de montante para a parte jusante, através do Rio Kayanga/Geba.

Sr. Presidente,

Como a Sua Excelência deve saber, grande parte do mundo depende da água dos rios que percorre de uma nação para outra. Por exemplo, o vital recurso hídrico do Senegal, o rio com o mesmo nome, nasce das maravilhas de Semefe e Bafing (na Guiné-Conacri e no Mali, respectivamente) com as bênçãos dos rios Faleme (também da Guiné-Conacri) e do Gorgol (Mauritânia). Seria desconcertante para o seu país se as necessidades humanas nesses três países os obrigasse a mudar os cursos daqueles fluxos naturais de água, assim como os seus padrões geológicos. Do mesmo modo, o próprio Rio Gâmbia,  o fulcro do projecto OMVG, nasce nas montanhas de Fouta Djalon, percorrendo uns 1.200 quilómetros de distância.

No mundo de hoje, equilibrar as necessidades económicas e humanas é um dos grandes desafios
- seja na África ou noutros lugares. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO), existem mais de 3.600 tratados relacionados com os recursos hídricos
internacionais e que incluem os aspectos da navegação, da demarcação de fronteiras, do uso, do
desenvolvimento, da proteção e conservação de recursos naturais.

Outros dados indicam que também existem mais de 260 bacias hidrográficas (entre rios e lagos)
transfronteiriças no mundo e elas cobrem quase a metade da superfície terrestre. Em quase todas as circunstâncias, os países a montante têm o dever moral e ético de partilhar os recursos hídricos
com os seus vizinhos a jusante. De facto, há muitos exemplos interessantes, encorajadores e inspiradores dessas práticas em todo o mundo. Aqui passo a transcrever alguns deles:

• Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã têm compartilhado o Rio Mekong desde 1957, mesmo durante a Guerra do Vietnã;

• Israel e a Jordânia têm compartilhado o Rio Jordão desde 1955, mesmo sob constantes ameaças de conflito regional;

• Índia e o Paquistão têm compartilhado o Rio Indo, apesar das duas guerras entre os dois países;

• Mais de 160 milhões de pessoas de pelo menos 10 países africanos têm compartilhado o Rio Nilo, assim como outras cinco bacias - Congo, Níger, Nilo, Zambeze, etc.;

• Rio Danúbio ainda serve mais de 10 nações da Europa Central e Oriental;

• Rio Colorado é uma fonte vital de água para mais de 40 milhões de pessoas, tanto nos Estados Unidos como no México.

Sr. Presidente,

Reconheço ser difícil conseguir um consenso global sobre os problemas da água no mundo, mas gostaria de lhe pedir respeitosamente que considere as seguintes observações e recomendações de muitos especialistas da Guiné-Bissau e internacionais com os quais abordei as minhas preocupações:

• O Senegal deve estabelecer uma regra do jogo justa em relação ao nosso curso de água comum, o que levaria à partilha dos seus benefícios para um desenvolvimento sustentável em ambos os países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem capacitar a sua Comissão Conjunta de Gestão de Recursos Hídricos, através da Comissão Hidrológica, para se reunir periodicamente para avaliar o comportamento da bacia Kayanga/Geba, bem como para testemunhar as descargas e represas periódicas das águas para garantir o seu fluxo apropriado de um lado para o outro, o que não acontece desde o ano 1998. As tais descargas regulares e suficientes da parte superior da bacia podem permitir a recuperação de alguns afluentes, bem como recarregar as águas subterrâneas, fontes de abastecimento de água para a população local nos dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem envidar esforços para mitigar os impactos negativos mencionados anteriormente, através de atividades de reflorestamento, recuperação de terras e formação pública sobre questões ambientais;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem reconhecer que revisões periódicas são necessárias para sustentar o curso de água, protegendo assim os ecossistemas e atendendo às necessidades humanas e um equilíbrio justo entre os dois países;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem rever todas as disposições existentes sobre o monitoramento, a avaliação, a execução, a pesquisa e o desenvolvimento, o intercâmbio e o acesso à informação para uma partilha mais equitativa e adequada do rio Kayanga/Geba e as suas bacias;

• O Senegal e a Guiné-Bissau devem conduzir mais consultas para encontrar um quadro aceitável no âmbito da OMVG ou bilateralmente para implementar mecanismos que levem à cooperação através da celebração de acordos específicos e/ou criação doutros órgãos conjuntos.

Sr. Presidente,

Já deve estar claro para a Sua Excelência de que acredito piamente em princípios como a “partilha justa” de recursos. Nesse sentido, estou particularmente atraído por uma iniciativa específica da ONU conhecida como "Águas Compartilhadas, Oportunidades Compartilhadas". Esta iniciativa defende a ideia de que “fomentar as oportunidades de cooperação na gestão transfronteiriça da água pode ajudar a construir o respeito mútuo, a compreensão e a confiança entre países e promover a paz, segurança e o crescimento económico sustentável”.

De facto, o respeito mútuo, a compreensão e a confiança podem e servir-nos-ão bem, pois o Senegal e a Guiné-Bissau têm certamente procurado assegurar e construir um futuro melhor para os seus cidadãos que estão ansiosos em permanecer bons e indivisíveis vizinhos hoje e nos séculos vindouros.

Assim, compartilhar amigavelmente os recursos que nos foram dados pelo poder divino seria o
primeiro passo em direção a esse objetivo. Na verdade, a promoção do uso equitativo desses recursos hídricos comuns ajudaria a sustentar o nosso clima regional, combater a pobreza e estimular o desenvolvimento económico em ambos os países.

Sr. Presidente, estou esperançoso de que possa haver um futuro para o Rio Geba se o seu país, o
Senegal, puder gentilmente e regularmente ter em mente que doutro lado da sua fronteira, há um
vizinho que está igualmente carenciado e sedento pelo curso de água do Kayanga. Seria desnecessário lhe reiterar que este recurso hídrico transfronteiriço é também a nossa herança
comum que devemos todos valorizar, compartilhar, cuidar e preservar.

Sr. Presidente,

Reconhecendo que as barragens aqui mencionadas alteraram dramática e negativamente os modos de vida da população na Guiné-Bissau, é necessária uma forte vontade política para forjar uma compreensão mútua e cooperação entre o Senegal e a Guiné-Bissau, no quadro propício da OMVG, em prol de uma partilha consistente e fidedigna de benefícios num futuro próximo.

Sr. Presidente,

Embora eu não represente o Governo da Guiné-Bissau, gostaria de ter a oportunidade de me encontrar com a Sua Excelência para discutir esta questão vital. Mais importante ainda, encorajaria a Sua Excelência para se aproximar das autoridades da Guiné-Bissau para discutir as medidas urgentes que são necessárias para começar a abordar as questões e as preocupações expostas nesta carta aberta, podendo posteriormente com as autoridades que envolvem os dois estados, mandatar os peritos especializados em matéria de hidrologia, meio ambiente e desenvolvimento durável, a elaboração de uma proposta técnica concreta e viável, que poderia servir de roteiro para a atenuação da situação vigente.

Sr. Presidente,

Hoje, pela importância e valor dos recursos hídricos na luta contra a pobreza e como uma garantia de
tranquilidade e paz social no mundo, é aconselhável institucionalizar a hidrodiplomacia e a
hidrossegurança, como abordagens apropriadas para resolver a escassez de água e conflitos hídricos,
através da cooperação, gestão e desenvolvimento sustentável, como recomendado pelas muitas iniciativas globais e regionais, nomeadamente o Fórum Mundial da Água de Brasília, Brasil (Março de 2017).

E, por outro lado, se a Sua Excelência também achar necessário, por favor, não hesite em entrar
em contato comigo pelo telefone +1-404-723-7225 ou através do meu e-mail pessoal:
umarodjau@gmail.com.

Obrigado, Sr. Presidente, por ter reservado este valioso tempo para ler esta carta aberta que destaca uma questão de extrema importância para as populações da Guiné-Bissau, na medida em que tentam lidar com os dramáticos efeitos das barragens de Niandouba e Anambé no Rio Kayanga/Geba, ações que acabaram por influenciar negativamente os afluentes Bidigor, Campossa e Gambiel.

Que Allah/Deus lhe proteja e lhe dê forças e coragem para continuar a servir não só o Senegal, mas também toda a humanidade, a começar pela própria sub-região.

Sinceramente,
Umaro Djau

Um obrigado especial para as seguintes individualidades:
Eng. Inussa Baldé e Eng. Justino Vieira

Com o conhecimento das seguintes instituições e dignitários:
Presidente da República da Guiné-Bissau, José Mário Vaz
Presidente da Assembleia Nacional Popular, Cipriano Cassamá
Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, Aristides Gomes
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, Suzi Barbosa
Ministro dos Recursos Naturais e Energia, Issufo Baldé
Bancada Parlamentar do PAIGC na ANP
Bancada Parlamentar do MADEM G-15 na ANP
Bancada Parlamentar do PRS na ANP
Bancada Parlamentar da APU-PDGB na ANP
Partido União para a Mudança, UM
Partido da Nova Democracia, PND
Embaixada da República do Senegal na Guiné-Bissau
Embaixada da Guiné-Bissau no Senegal
Secretário-geral das Nações Unidas
Assembleia Geral das Nações Unidas
Missão Permanente

III.  Nota do editor:

Declaração de interesses:

(i) parafraseando a nossa grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, há realidadades que "não podemos ignorar", sobretudo depois de  "vermos, ouvirmos e lermos"... 

(ii) esta carta aberta do guineense Umaro Djau, filho do Gabú, e de que certamente por lapso não foi dado conhecimento ao Governo Português, à CPLP e à União Europeia, merece o devido destaque no nosso blogue, até por todas as razões e mais uma, de natureza afetiva: muitos de nós conhecemos o leste da Guiné-Bissau, as regiões de Bafatá e de Gabú, antes e depois da independência, e  o passado, o presente e o futuro dos nossos amigos da Guiné-Bissau não nos são indiferentes: de resto, só há uma terra, uma casa comum da humanidade, e a hidrossegurança é um requisito fundamental para a paz e o desenvolvimento;

(iii) o rio Geba (ou Xaianga, segundo a preciosa cartografia militar portuguesa) também é meu, também é nosso; temos cerca de 90 referências no nosso blogue a este rio que tanto amámos e odiámos durante a guerra colonial (1961/74);

(iv) o documento parece-nos bem elaborado, do ponto de vista técnico, e escrito em bom português, tendo tido a colaboração de especialistas guineenses em recursos hídricos  e geologia, como o engº Inussa Baldé, quadro superior do Ministério de Recursos Naturais, engº Justino Vieira, antigo secretário-geral da Organização para a Valorização do Rio Gâmbia (OMVG), ou Orlando Cristiniano da Silva, geólogo guineense com residência no Brasil:

(v) não discutimos aqui questões como a oportunidade da sua divulgação que alguns  vão querer associar ao recente lançamento, na Guiné-Bissau,  de um novo partido, o Movimento Guineense para o Desenvolvimento (MGD), fundado e liderado por Umaro Djau;  julgamos que esta causa é transversal, e deve mobilizar todos os guineenses e todos os seus amigos e os seus vizinhos;

(vi) depois de ler este notável documento, eu não posso assobiar para o lado e dizer que, de acordo com as nossas regras editoriais, o nosso blogue não se pode imiscuir nos assuntos de Estado e na atualidade política e social;

(vii) Umaro Djau é um conhecido jornalista, que se formou, viveu e trabalhou  nos Estados Unidos;

(viii)  o editor do blogue não conhece o Umaro Djau, tendo no entanto recebido deste,  em 13 de fevereiro de 2007,  no seu endereço pessoal, a seguinte mensagem:  (,,,)" Chamo-me Umaro Djau e fiquei deveras surpreendido com o seu maravilhoso blog. Sou guineense e Jornalista. Resido nos EUA há mais de 11 anos. Trabalho para a cadeia da TV mundial, CNN. Gostaria de poder corresponder consigo".

(ix) o nosso coeditor Carlos Vinhal convidou-o, em 2008,  para integrar a Tabanca Grande, convite que não teve resposta até hoje (*).

(x) apoio a petição mas não consigo assinar, devido a erro informático... LG
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Nota do editor

sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018



1. Mais um artigo de opinião da nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres (*), publicado no Diário de Coimbra a 23 de fevereiro de 2018. Foi-nos remetida cópia,  diretamente, por mensagem da autora, de 26/2/2018.  

O "Diário de Coimbra", "órgão regionalista das Beiras", foi fundado em 24 de Maio de 1930 por Adriano Viegas da Cunha Lucas (1883-1950). Afirma-se como um jornal republicano,  independente, de orientação liberal, defensor da democracia pluralista,

A guerra em "copo meio cheio"

por Sílvia Torres
O Fernandes nunca viu o mar, ao vivo e a cores, mas imagina-o enquanto pesca, silenciosamente, à beira-rio. O Rodrigues toma banho às vezes. Poucas. O Simões nunca entrou numa escola e o Veiga só sabe escrever o seu primeiro nome. Foi o irmão mais novo que o ensinou, ao serão, quando ele era já um pastor experiente, apesar da juventude que vivia. O Marques nunca saiu da aldeia onde nasceu mas sonha conhecer Lisboa. Um dia, talvez. O Falcão não sabe usar talheres e não vê neles qualquer utilidade. O Oliveira trabalha de sol a sol, sete dias por semana, desde menino. O Pinto, nas suas orações diárias, pede a Deus um carro, enquanto poupa trocos para a carta de condução. O mealheiro é um tacho velho, furado e ferrugento, escondido num monte de agulhas. Está mais vazio do que cheio.
No século passado, histórias idênticas encaixavam perfeitamente noutros sobrenomes: Ribeiro, Sousa, Martins, Lopes, Sena… Alguns, durante o Serviço Militar Obrigatório e no decorrer da Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, tiveram a "sorte" de ser destacados para Angola ou Moçambique. A milhares de quilómetros de casa, num Portugal pouco português, ficaram estupefactos com o mundo novo que lhes era dado a conhecer: tão grande, tão diferente, tão quente, tão despido, tão livre, tão africano…

Para os Fernandes, os Rodrigues, os Simões e muitos outros, a tropa e a consequente ida para o império lusitano longínquo, não foi apenas sinónimo de perda mas também de ganho, a vários níveis. A Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, afinal, também teve um lado positivo para alguns dos soldados que nela foram forçados a participar, no auge da juventude.

"Lá longe, onde o sol castiga mais", o Fernandes viu e sentiu o mar e até aprendeu a nadar. O Rodrigues inseriu o banho na rotina diária. O Simões e o Veiga foram à escola e conseguiram ainda escrever, orgulhosamente e com a ajuda de camaradas, aerogramas para a família. O Marques descobriu que o mundo é enorme e o Falcão, a custo, aprendeu a comer com talheres. Regressados à metrópole, o Oliveira, mudou de profissão e o Pinto, já com a carta de condução que a tropa lhe deu, passou a amealhar para o carro. Apesar dos horrores da guerra, ambos viveram no ultramar momentos felizes e de descoberta. Para alguns (muitos) jovens combatentes, que foram e voltaram sem grandes mazelas, a vida mudou para melhor porque o olhar alcançou outros mundos.

A guerra foi uma lição e um impulso para um futuro mais promissor e cheio de oportunidades. Jovens combatentes regressaram a Portugal (metrópole) com mais conhecimentos, mais competências e novas ideias. Assim, a Guerra Colonial/Guerra do Ultramar pode também ser vista na perspetiva do "copo meio cheio". Afinal, até na guerra há um lado positivo. E nesta, como noutras, o conflito foi também um "catalisador de desenvolvimento", que teve depois impacto na sociedade portuguesa. (**).

Sílvia Torres

[Fixação de texto, negritos e sublinhado a amarelo: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17638: Notas de leitura (982): “L’Afrique Étranglée”, por René Dumont e Marie-France Mottin, Éditions du Seuil, 1980 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
René Dumont visita a Guiné-Bissau num período de grande expetativas e ainda quando o país goza de prestígio pelos seus créditos revolucionários. Não esqueçamos que uma das figuras mais eminentes da pedagogia à escala mundial aqui arribou e procurou estimular processos comprovadamente bem-sucedidos de elevação na literacia.
René Dumont já vinha desencantado com o que vira e ouvira noutros países, quando publicou o seu relato, em 1980, todos os seus vaticínios estavam a bater certo, aquelas aspirações de industrialização maciça da Guiné iriam falhar e levar a nova república a um endividamento externo que a mergulhou no desespero. Vale a pena juntar todas estas peças para se perceber que os dirigentes guineenses afinal estavam muito bem avisados de que um país subdesenvolvido não pode gastar à toa sem hipotecar o futuro.

Um abraço do
Mário


L’Afrique Étranglée, por René Dumont e Marie-France Mottin

Beja Santos

“L’Afrique Étranglée”, por René Dumont e Marie-France Mottin, Éditions du Seuil, 1980, foi um dos mais polémicos e debatidos livros do famoso engenheiro agrónomo francês, brilhante ambientalista que um dia até se candidatou às presidenciais francesas.

O que para o caso interessa é que nesse longo périplo chegou à Guiné-Bissau, num período de grandes sonhos e promessas, não gostou do que viu, e o que escreveu, compreende-se, cai mesmo na aceção da África estrangulada, muitíssimos dos problemas da jovem república decorreram de escolhas totalmente imponderadas para um país subdesenvolvido, ainda por cima num tempo em que gozava de uma grande aura de respeitabilidade pelo seu trabalho revolucionário.

Vejamos o que ele escreve sobre a Guiné-Bissau, é direito e brutal, não há frases arrebicadas. Em Bissau, na Primavera de 1979, encontrámos uma pequena burguesia que de modo algum se tinha suicidado (alusão a uma controversa frase de Amílcar Cabral sobre o suicídio da pequena-burguesia, que devia optar por se pôr ao lado dos oprimidos e fugir à tentação das benesses de classe, meio caminho andado para liquidar o movimento revolucionário, detém os postos da administração e o essencial do poder, porque é a única classe capaz de fazer funcionar os mecanismos do Estado e que se pretende “moderna”. Herdou dos portugueses o que se pode chamar uma “não-colónia”, sem indústrias para além de 23 destilarias semi-artesanais.

Ofereceram a esta Guiné-Bissau, de todos os quadrantes, os equipamentos mais modernos e os menos apropriados para a situação real do país, carente de capitais e de técnicos mas cheia de mão-de-obra pouco qualificada. Os sete projetos industriais aprovados entre 1976-1979 previam investir 12 milhões de dólares para criar somente 373 empregos, algo como 32 mil dólares por cada emprego criado. Cometeram-se depois erros monumentais ao ponto de parecerem suscetíveis de comprometer grandemente o futuro económico e a política de independência deste modestíssimo país. Venderam-lhe um projeto verdadeiramente demencial. No Cumeré, não muito longe de Bissau, instalaram um enorme equipamento para o descasque de arroz. Este projeto aumenta todos os encargos e está condenado à falência, veja-se o que se passou na Costa do Marfim. Neste complexo do Cumeré propõe-se descascar a quase totalidade do amendoim produzido no país para o transformar em óleo refinado e outros produtos para exportação. Ora esta concentração irá obrigar a transportes muito dispendiosos do amendoim num país que não possui viaturas nem estradas, fatalmente que irão aumentar todos os preços de revenda. Este projeto do Cumeré é um desastre em perspetiva para a economia agrícola e para o desenvolvimento do país.

No Gambiel, um projeto gigantesco de cana-de-açúcar fala na produção de 60 mil toneladas de açúcar por ano, foi felizmente abandonado. O projeto em curso da realização de 10 mil toneladas de açúcar ainda nos parece excessivo, pois deverá custar em 1979 (depois dos preços aumentarem) 35 milhões de dólares, ou seja, 3500 dólares por tonelada prevista de açúcar! Só a barragem de irrigação teria um custo de 5 milhões de dólares. Os 27 hectares de cana plantada em 1979 já estão a suscitar problemas de gestão e pergunta-se o que irá acontecer com os 1500 hectares previstos. Os solos serão verdadeiramente aptos para a irrigação? Também criticámos a rede de arroz de sequeiro em Contuboel, em terrenos que nos parecem muito arenosos e desadequados à orizicultura.

A manter-se este tipo de projetos, os camponeses correm o risco de serem atraídos para Bissau que beneficia, face ao conjunto do país, de vantagens substanciais: Bissau consome já seis vezes mais eletricidade que o resto do país.

Depois René Dumont exalta as capacidades de trabalho dos Balantas e volta aos riscos gravíssimos de uma industrialização pesada que levará ao desastre, cita uma nota sobre a estratégia de desenvolvimento industrial na Guiné-Bissau da autoria de Ladislau Dowbor em que este chamou oportunamente à atenção para o facto da indústria ser um processo custoso que exige ritmos muito elevados de rotação que podem muito mais facilmente desequilibrar do que dinamizar uma economia. A Guiné-Bissau teve a oportunidade de não ter herdado um setor industrial virado para a exportação ou para as necessidades menos prementes do seu mercado interno. Se acaso se vierem a estabelecer grandes unidades dispendiosas, como aquelas que foram atrás referidas, vai-se construir uma economia de cima para baixo e as atividades agrícolas terão de se adaptar, o que vai conduzir a um desastre. Todas essas fábricas exigem infraestruturas económicas, financeiras, técnicas, estradas, portos, uma pujante rede comercial: isso existe em Dakar, não em Bissau. Dowbor recomenda que haja uma estratégia judiciosa para se multiplicarem pequenas instalações pelo país, será o modo melhor estruturado para elevar o nível tecnológico geral capaz de operar um processo de industrialização mais dinâmico. Se for assim, as povoações ficarão equipadas de pequenas máquinas para descascar o amendoim e poder-se-á usar tanto a tração animal como a motor. Virá a seguir a indústria têxtil para utilizar o algodão. Os relatórios apontam para as grandes possibilidades associadas à pesca, seria interessante que o governo ponderasse empresas mistas suscetíveis de trazerem divisas e um abastecimento barato de proteína para o mercado interno. O mesmo se poderá dizer de um estratégia florestal muito acompanhada de perto e que não deverá obedecer à lógica pura do lucro, só interessada em desbastes sem reflorestamento.

O tempo veio dar razão às piores previsões de René Dumont.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17626: Notas de leitura (981): Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau, 2008/2009, Lema: a força sem discernimento colapsa sob o seu próprio peso (2) (Mário Beja Santos)