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segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22423: Casos: a verdade sobre... (26): Forças Armadas Portuguesas, 1961/74: Nº de desertores, refractários e faltosos



Nº de desertores das Forças Armadas Portuguesas, no período de 1961/73  (Fonte: Cardina e Martins, 2019, p. 46)


1. O número de desertores, refractários e faltosos da guerra do ultramar / guerra colonial foi durante muito tempo (e continua a ser)  objecto de especulações e até de polémicas, por falta de investigação historiográfica compreensiva.(*)

Nos últimos cinco anos temos já dados, se não consolidados, pelo menos mais aproximados...  A metodologia da sua recolha é, porémm discutível, já que se baseiam  apenas em fontes administrativas (Excército). O investigador Miguel Cardina, da Faculdade de Coimbra,  aponta hoje para um número  de desertores da ordem dos 9 mil, podendo todavia essa estimativapecar por defeito. Um aspeto relevante: a deserção dá-se, na maioria dos casos na "metrópole# e não nas "frentes de combate", o que já há muito sabíamos  que respeitava ao CTIG.

 Embora sejamos um blogue de antigos combatentes, onde não cabe a figura do desertor como membro do nosso coletivo , isso não nos impede de falar sobre o assunto e de procurar saber mais sobre os desertores das Forças Armadas Portuguesas, no período de 1961 a 1974, em que durou a guerra, a par dos refractários e dos faltosos... 

Aliás, sobre este descritor, "desertores", temos mais de uma centena de referências...

De vez em quando o tema vem à baila, como recentente num artigo do investigador da Universidade de Coimbra, Miguel Cardina, publicado no "Público" de que tomamos a liberdade de reproduzir um excerto, para conhecimento dos nossos leitores.

2. Recortes de imprensa: 

Miguel Cardina, "Público", 30 de Julho de 2021 > Guerra à guerra: as oposições e a contestação anticolonial (Com a devida vénia)

https://www.publico.pt/2021/07/30/politica/noticia/guerra-guerra-oposicoes-contestacao-anticolonial-1972307

(...) Um estudo que efetuei, juntamente com Susana Martins (Miguel Cardina e Susana Martins, “Evading the War. Deserters and draft evaders of the Portuguese army during the colonial war”, E-Journal of Portuguese History, 2019, n.º 17/2):

(i) aponta para a existência de cerca de 9000 desertores (com lacunas pontuais em certos anos e ramos militares), a maioria deles desertando ainda em Portugal;

(ii) devendo a isso associar-se um número estimado de refratários na ordem dos 10 a 20 mil jovens;

(iii) e de faltosos à inspeção que rondará os 200 mil jovens - ou seja, perto de 20% dos rapazes chamados à inspeção na então metrópole, neste caso a partir de dados do próprio Exército.

Muitos deles não recusavam a guerra a partir de um posicionamento ideologicamente explícito e eram alheios às discussões políticas nas oposições. 

Além disso, nem todos os faltosos à inspeção o fizeram certamente para escapar da guerra: uma parte viria mesmo a regressar ao país para cumprir o serviço militar. No entanto, e como os trabalhos de Victor Pereira sobre a emigração têm sublinhado, é também possível ver estes trânsitos como parte das estratégias de resistência infrapolítica das classes populares. 

Com efeito, no gesto de emigrar intersetavam-se, frequentemente, as questões relativas ao sustento material e à busca de oportunidades de vida no exterior com o escape a constrangimentos de outro tipo, entre os quais, na vida dos jovens, pesava com especial relevo o fantasma de ser mobilizado para combater numa guerra distante. (...)

[  Revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG    ]

3. Comentário do editor LG:

Fizemos uma primeira leitura, a correr, do artigo supracitado, de resto disponível aqui (em português do Google e no original em inglês, e também em formato pdf). Merece uma nota de leitura, e uma análise mais fina, quando tivermos disponibilidade de tempo. Para já limitamo-nos a reproduzir, com a devida vénia, um resumo (gráfico, acima)  dos dados relativos aos desertores por ano e por local (Portugal e os 3 teatros de operações).

Recorde-se que o Código de Justiça Militar de então definia como desertor aquele que se ausentava, indevidamente,  num prazo superior a oito dias, da unidade militar a que pertencia. As razões (e as circunstâncias) da deserção seriam naturalmente complexas, mas em princípio significavam a "recusa" da guerra.

Outra categoria estudada são os refratários (mancebos que faziam a inspeção mas que fugiam antes da incorporação militar), que não devem ser confundida com a dos faltosos (os que nem sequer faziam a inspeção militar). 

Entre 1967 e 1969 (os dados de que se dipõe),  cerca de dois por cento dos jovens,  chamados à inspeção,  foram considerados refratários: 1402 (2,26%) e 1967; 1268 (1,79%) em 1968; e 743 (1,09%) em 1969.  Não se dispõe de dados para os outros anos
.(Fonte: Cardina e Martins, 2019, p. 46).

Quanto aos faltosos, e de acordo com dados de 1985, do Estado-Maior do Exército, seriam da ordem dos 200 mil, no total,  no período entre 1961 e 1974 (Fonte: Cardina e Martins, 2019, p.47).

 Se os desertores e os refractários são um fenómeno mais próximo da "recusa" da guerra, a questão dos faltosos tem que ser vista no âmbito mais vasto do fenómemo da emigração.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21855: O segredo de... (34): Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando (testemunho recolhido por José Ferreira da Silva)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 

O nosso tertuliano José Ferreira da Silva (,, o "Silva da CART 1689") com o protagonista desta história, o camarada Dionísio Cunha , aqui à direita. 


Foto (e legenda): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um segredo... que já não é segredo (****). Foi recolhido e divulgado há cerca de 8 anos, pelo nosso camarada (e escritor, com três livros publicados), o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com mais de 160 referências no nosso blogue.


Foi publicado na sua série "Outras memórias da minha guerra" (e mais tarde reproduzido em livro, o I volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", Lisboa, Chiado Books, 2016) (*).

Já na altura tive ocasião de dar os parabéns ao Dionísio e ao Zé Ferreira pela coragem, frontalidade, autenticidade e honestidade deste testemunho. Não tinha na altura (nem tenho ainda hoje) razões para pôr em causa a sua veracidade nem o rigor da recolha do Zé Ferreira. Sei que ele levou alguns meses a confirmar e acertar certos pormenores. E obteve aautorização do Dionísio para publicar esta "história", primeiro no nosso blogue (*) e depois em livro [, vd, imagem da capa à esquerda].

Eu próprio falei, há dias, no dia 24 de janeiro passado, com o Dionísio. E mais uma vez ele não levantou qualquer objecção a que o seu testemunho pudesse ser de novo reproduzido, agora, nesta série, "O segredo de...". Disse-me: "Tudo o que lá está foi verdade"...

Por sua vez,eu retorqui-lhe que um dia ainda haverá um cineasta que pegue  nesta história já esquecida, mas reveladora da importância que têm os valores humanos, na paz e na guerra.  E repeti o que tinha comentado há oito anos atrás:

 "Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um 'fait-divers' da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma. (...) Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande."... 

Sei que o Dionísio não é utente das redes sociais, não conhece o nosso blogue, não tem computador nem endereço de email... Mas tem um filho que é informático, e a quem vou pedir um dia destes uma foto do pai, do tempo da Guiné, para o apresentar formalmente à Tabanca Grande e sentá-lo à sombra do nosso poilão, como ele tão justamente  merece. 

Continua ligado ao Centro Social e Paroquial de Valbom. Estava em casa com a sua Ângela, um e outro já com alguns problemas de saúde  próprios da idade. Desejei felicidade a ambos.

E vamos agora "ouvir (e saber ouvir)" o seu testemunho (****), reproduzido com talento, detalhe e rigor pelo Zé Ferreira.  Mesmo que para aqueles que já o conhecem, o depoimento merece ser lido, relido e comentado. 

O único ponto de discórdia (, já discuti isso com o Zé Ferreira),  é o nome da operação, referida no texto: estamos a publicar a história da 3ª CCmds (1964/66), na versão de João Borges, e em maio de 1967 não parece ter havido nenhuma Op Azimute: houve duas no Oio (Op  Vermute, a 10 de maio;  e Op Vinagre, a 17; e uma terceira, na ponta Matar, na região de Cacheu, a 26 de maio). 

Pela descrição do Dionísio (que não se lembrava já do nome da operação, o Zé Ferreira é que lhe chamou Op  Azimute),  admitimos nós que possa ter sido  a Op Vermute, mas o relatório  parece ter sido omisso quanto a eventuais baixas civis. O que não admira: quem conheceu a realidade operacional do CTIG, sabe que os nossos relatórios de operações por vezes pecavam, uns por excesso, outros por defeito. Confronte-se, entretanto,  as declarações do Dionísio com o resumo da Op Vermute feito pelo João Borges, infelizmente já falecido em 2005  (***):

(...) "Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume." (...) [Dionísio Cunha]


Resumo  da Op Vermute, segundo João Borges (***)





Feia > Fiães > 2 de dezembro de 2017 > Sessão de apresentação dos Volumes  I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", do nosso camarada José Ferreita da Silva.   

"O  cmnbatente  da 3.ª CComandos, Dionísio Cunha - protagonista da história “É Guerra, é Guerra (Será?)”, pág,119, I Volume - fala da guerra, da sua justeza e da sua condição de desertor, de que se orgulha muito, segundo diz. Preso na Metrópole, voltou à Guiné e à sua Unidade, tendo participado voluntariamente em perigosas operações até terminar a sua comissão de serviço." (**)

Foto (e legenda): José Ferreira da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O segredo de Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando

por José Ferreira da Silva


Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial, oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, a destinava à próxima quadra natalícia.

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:

– Quem está doente?

Logo a resposta veio célere:

– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:

– Onde andaste?

– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.

– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.


A paixão, aos 18, pela Ângela, de 14

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom [Gondomar] . Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano [Azevedo], no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:

– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.

– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.

– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.

–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino, das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “Livre”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “Apurado  para todo o Serviço Militar”. Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal tenente  Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.


Maio de 1967 : No Oio, três mulheres mortas, 
com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas, vivos.


Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no RALIS de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.

E ele iniciou:

"Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) (***), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de dois de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e,  após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o subcomandante Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos."


O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:


"Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça."


Saudades da Ângela e uma 'boleia' no Uige até casa, clandestino,  
no meio da comissão
 

"Estávamos aquartelados em Brá, Bissau,  e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o navio Uíge, que havia trazido mais militares (BART 1913) [, desembarcado em 1 de maio de 1967] e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa,  fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.

Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 

– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras."


Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre [, leia-se: "Voz da Liberdade"], programa do conhecido Manuel Alegre. Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:

–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.

– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:

– Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.


Eh!, pá, estás f..., sabes o que é um  desertor?!


Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca,  encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:

– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:

– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?

– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.

– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu alferes Sampaio Faria.

"Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou duas vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor 'Comando' Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó."

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta operação, o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.


Voluntário para a Op Bola de Fogo: 
a salvação do Dionísio

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

– Entretanto, o sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: 'Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra comissão de serviço'.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:

– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?

– Foi a informação que chegou do Quartel-General – respondeu o Sargento.

O Dionísio saiu ao encontro do Capitão:

– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.

– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – prguntou o Capitão.

– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.

– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação – disse o Capitão.

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rolls Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até 15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.

– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.

José Ferreira da Silva
___________

Post scriptum do autor:

Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:

– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.

– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?

– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?

– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

[Revisão / fixação de texto /título e subtítulos, 
para efeitos de publicação deste poste: LG. 
Com a devida vénia, ao José Ferreira da Silva e ao Dionísio Cunha]

 
2. Comentários dos nossos leitores [em 2013; repare-se que três, infelizmente, já não fazem parte da lista dos vivos: o Jorge Teixeira 'Portojo', o Luís Faria e o Mário Vasconcelos]  (*)

(i) Fernando Gouveia

Luís Graça: Aqui tens a história, inderectamente contada pelo próprio, estória um pouco romanceada incluida no meu livro NA KONTRA KA KONTRA, a páginas 139. O Dionildo da minha estória, como podes ver, chama-se efectivamente Dionísio. (...)
 
19 de março de 2013 às 13:12
 
(ii) Luís Graça

Fernando, tinha ideia de ter ouvido esta história ... do "arco da velha". Algures... Afinal, foi no teu livro. Dou os parabéns, aos dois, ao Dionísio e ao José Ferreira...

Não tenho razões para pôr em causa a veracidade do testemunho do Dionísio e o relato do Silva. De resto, no blogue é proibido julgar um camarada. Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um "fait-divers" da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma.

Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande. (...)

19 de março de 2013 às 17:04

(iii) Carlos Silva

Olá,  Luís: A história do nosso camarada "melro" Dionísio Cunha e aqui contada pelo Zé Ferreira já é conhecida no seio da nossa Tabanca dos Melros, creio que desde a altura [2010/2011] que o Fernando Gouveia tomou conhecimento.

De facto a história das crianças é arrepiante ...

Quanto a conheceres pessoalmente o Dionísio Cunha, tu que vais várias vezes ao Norte, porque não apareces num 2º sábado de um mês à Tabanca para conviver com a rapaziada ?

Pode ser que ouças mais histórias por lá. (...)
 
19 de março de 2013 às 17:54

(iv) Jorge Teixeira

Eu estava lá, ou por outra, estava cá a ouvir com atenção a história do Dionísio (estava mesmo em frente dele), mas também estive lá na guerra e como costumo dizer, aquilo em certas situações mais parecia a guerra do Solnado:

- Porra! Mas o que é que eu estou aqui a fazer, esta guerra nem é minha, aproveito a boleia do Uíge e vou mas é para casa! Se bem o pensou, melhor o fez!

Também sei que se contam muitas "estórias", mas estar ali frente ao Dionísio a ouvir a sua narrativa fluída e sem artifícios, sem dar ares de quem se estava a armar, foi impressionante.

Se porventura inventou alguma coisa foi sem maldade, porque via-se mesmo que não era fanfarrão e não estava a inventar.

Tempos de guerra. (...=)

20 de março de 2013 às 00:29
 
(v) Luis Faria

Gostei de ler.

A crueza da passagem (?) referente às crianças, reconduziu-me lá para as bandas de Capó,  Teixeira Pinto (Balanguerez). Vd. Poste P7172 de 24 Out 2010.

Por vezes a guerra obriga a tomada de opções com potenciais implicações, sempre dificeis de tomar e a meu ver nunca mais esquecidas! (...)


20 de março de 2013 às 10:48

(vi)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Ao apresentar estes dois camaradas, sabia que o Silva era capaz, como ninguém, de anotar e escrever de forma notável esta história de vida do Dionísio.

Não conheço o relato do Fernando Gouveia, mas presumo que também deve ser interessante.

Se bem me lembro há uma "Pasta" aqui no blogue referente ao capítulo dos desertores. A quem muita gente chamou de covardes. Parte da história do Dionísio poderia ser contada e arquivada nessa "Pasta". Alguém teria coragem de lhe chamar covarde ? (...)

2 de abril de 2013 às 13:40

 (vii) Mário Vasconcelos

Na verdade, este testemunho ou depoimento dava um perfeito filme.

O Dionísio é de facto, pelas descrições feitas, um grande militar, ao qual acrescenta situações mirabolantes, mas compreensivas. A leitura deu-me um bom dia para hoje.

Um abraço ao nosso camarada com votos de uma vida cheia de tudo. Ele merece-o, como tantos outros afinal.

14 de abril de 2014 às 13:18

 (viii) Ze de Lamego

Meus caros amigose camaradas.Adorei! Nunca tinha ouvido uma estoria deste cariz.Vou querer conhecer o ator.Consehuiu emocionar-me.Ao Ze Ferreira apenas dizer-lhe que continue a dar-nos o prazer de ler os seus escritos,pois são sempre de uma rigorosa veracidade.Abraço-vos. Ze de Lamego

14 de abril de 2014 às 14:17

 (ix)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Zé Lamego Pereira, já estiveste várias vezes ao lado dele. Pelo menos na mesma sala.
Na próxima vou-te apresentá-lo.

14 de abril de 2014 às 15:44

(x) Silva da Cart 1689 [José Ferreira da Silva]:

Caros amigos,

Tal como mostram algumas fotos, o Dionísio contou a história diante alguns camaradas, na Tabanca dos Melros (*). Daí até à sua publicação, foram vários meses. Como se tratava de um relato verídico, procurei que todo o resto também o fosse. Até porque os nomes se mantiveram os verdadeiros. 

Por outro lado, foi preciso aferir das coincidências ligadas à minha pessoa (Companhia de Comandos), ao desembarque do meu Batalhão, o  1913 (Uíge, Bissau, 1 de Maio de 1967) e à minha Cart 1689 (Gandembel, Op Bola de Fogo). Desloquei-me algumas vezes ao encontro do Dionísio e, com ele, efectuei algumas correcções.

Resta-me agradecer ao Dionísio pela sua disponibilidade e pela sua verticalidade nos testemunhos que me prestou. (...)

_________

Notas do editor:



segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21778: Fotos à procura de... uma legenda (138): um desertor do PAIGC, uma ave de grande porte e o manual do oficial miliciano, uma raridade (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74)


Foto nº 1 >  Guerrilheiro do PAIGC, equipado com uma pistola-metralhadora Shpagin PPSH-41 (Costureirinha). que se apresentou a uma patrulha da CCAÇ 3491, perto do quartel do Dulombi, em 8 de Março de 1973, vindo da zona do Boé, donde desertou, após o assassinato de Amílcar Cabral.



Foto nº 2 > O  1º Cabo Avelino, a segurar um pássaro de grande porte (que até hoje não conseguimos identificar), que teve o azar de pousar ou tropeçar num dos arames que ligavam as nossas minas AP, colocadas numa das frentes do quartel, em Dulombi.



Foto nº 3 > Manuais do oficial miliciano


Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Mensagem de Luís Dias [, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ
3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento; tem cerca de 85 referências no nosso blogue]:

 
Date: sexta, 6/11/2020 à(s) 12:27
Subject: Material que pode também interessar
 

Caro Luís Graça

Incluso fotos dos manuais do Oficial miliciano [, foto nº 3], em que o volume sobre operações contra bandos armados e guerrilhas era difícil de obter. Espero um dia destes oferecê-los ao Museu Militar, caso não os tenham. 

Também uma foto do 1º Cabo Avelino, a segurar um pássaro de grande porte (que até hoje não conseguimos identificar), que teve o azar de pousar ou tropeçar num dos arames que ligavam as nossas minas AP, colocadas numa das frentes do quartel e que trazido para o quartel, ninguém quis degustá-lo, nem mesmo o pessoal da tabanca, porque não o conheciam. [Foto nº 2]

Julgo ser uma ave de mar ou mesmo rio mas, de facto, apesar de ter visto muitas fotos de pássaros africanos não consegui ver o que era este bicho. Pode ser que alguém da nossa Tabanca Grande consiga identificar.

Junto também foto de um elemento do IN, equipado com uma pistola-metralhadora Shpagin PPSH-41 (Costureirinha). que se apresentou a uma patrulha da CCAÇ 3491, perto do quartel do Dulombi, em 8 de Março de 1973, vindo da zona do Boé, donde desertou, após o assassinato de Amílcar Cabral.[Foto nº 1].


Grande Abraço
Luís Dias
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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21622: In Memoriam (376): Raul Albino (1945-2020): recordando as peripécias da formação e partida da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, com menos duas baixas de vulto, à chegada a Bissau




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > Da esquerda para a direita, o primeiro é o Raul Albino, o segundo é o Francisco [Henriques da] Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos. Também aqui falta o Comandante da Companhia, Capitão Vargas Cardoso.  O Medeiros Ferreira iria desertar antes do embarque para o CTIG; o Beja Santos iria, em rendição individual, comandar o Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Foto (e legenda): © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em memória de um camarada e amigo, um histórico da nossa Tabanca Grande,  que nos deixa, precocemente, o Raul Albino (1945-2020) (*)...

Para avivar e honrar  a sua memória, não podíamos deixar de voltar a reproduzir aqui este excerto da História da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, história essa publicada por ele,  no nosso blogue, pelo menos em dezoito postes,  entre 2006 e 2010 (**). 

Em papel, ele organizou e publicou dois volumes com a história dos "Lynces de Có", o segundo dos quais,  em 2008, com a participação especial de Vargas Cardoso (ex-comandante da companhia) e do João Bonifácio, que emigrou para o Canadá (ex-fur mil SAM). E ainda com a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro (ex-1º cabo, o talentoso fotógrafo da companhia). 

Desse segundo volume, com excelente execução gráfica, possuímos uma cópia, que o Raul nos oferecera em tempos.  No prefácio, o antigo comandante, cor inf ref Vargas Cardoso,  fez um grande elogio ao Raul Albino justamente pela sua capacidade de  manter vivo, até então, o espírito da CCAÇ 2402, os "Lynces de Có". Nesse II volume estão documentados os 10 primeiros convívios anuais do pessoal, entre 1982 e 2007.
 

História da CCAÇ 2402 > Uma cruz pesada para o alf mil at inf MA Raul Albino, logo no início da comissão, com duas baixas de vulto, as de Beja Santos e Medeiros Ferreira

por Raul Albino (2006)


Partida para a Guiné


A Companhia de Caçadores 2402 do Batalhão de Caçadores 2851 formou-se no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.

Embarcou no paquete Uíge a 24 de Julho de 1968, com destino à Guiné. O BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70]  foi acompanhado na viagem pelo BCAÇ 2852 [, Bambadinca, 1968/70].

Achei imensa graça a esta poesia popular, sentida, do soldado António Maria Veríssimo, militar da nossa companhia, retirada do seu livro de poesia Diversos.


Uíge! Volta para a terra,
Muda de rota, de direcção,
Não nos leves para a guerra.

Por favor! Pára p’ra pensar,
Não corras tanto,
Navega mais devagar.

Somos crianças, que vais deixar
Na guerra do Ultramar.
Porque não queres a rota mudar ?

Uíge! Não sigas p’rá guerra,
Muda de direcção! Muda de rota!
Volta p’rá nossa terra.


A M Veríssimo


[Formação da Companhia]

Mas voltemos um pouco atrás, mais propriamente à altura em que a companhia se formava na Amadora, comandada pelo então Capitão Vargas Cardoso.

Estive inicialmente incluído na formação, em Évora, de uma companhia independente com destino a Timor. A minha felicidade era imensa, como podem calcular. O quartel de preparação da companhia era o RI 16, aquartelamento que na altura mais parecia um museu militar em decadência. Não possuía instalações suficientes, pelo que os oficiais eram convidados a procurar alojamento no exterior. A alimentação também era no exterior, salvo erro, numa unidade de artilharia, que não recordo o nome.

Do que me recordo bem – além da simpatia para connosco das raparigas que estudavam em Évora – era do parque de obstáculos para o treino dos militares:

(i) A Ponte interrompida estava tão interrompida pela podridão das madeiras, que foi considerada vedada ao trânsito;

(ii) A Vala estava seca, o que não seria de estranhar nos tempos actuais com as temperaturas elevadíssimas que temos, mas naquela época só se tinha alguma rotura e como os engenheiros tinham ido para a guerra, as valas tinham virado alfobres, com alguma terra no fundo e ervas a crescer;

(iii) As Paliçadas estavam decadentes, com a madeira apodrecida, não aconselhando a sua utilização sem um seguro contra todos os riscos;

(iv) O Pórtico dava graça de tão baixo que era, parecendo ter-se enterrado no chão com o tempo, mas mantendo-se gloriosamente de pé, com as cordas puídas pendentes;

(v) Lá nos entretínhamos a saltar o Muro e mais algumas brincadeiras. Mesmo o muro, devido à idade avançada, a altura mais alta (1ª), parecia a intermédia (2ª) e a intermédia, devido ao desgaste, estava quase alinhada com a baixa (3ª). Um paraíso portanto. E como eu gostava de lá estar …

Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de cerca de três semanas de exercícios, chega uma ordem de dissolução da companhia e redistribuição dos militares. Para mim saiu-me na rifa a rendição individual de um aspirante de uma companhia em preparação na Amadora que iria seguir para a Guiné, a CCAÇ 2402.

Qual pára-quedista, fui cair no meio de um barril de pólvora, que outro nome não se pode dar à composição do quadro de oficiais da companhia em formação. Inicialmente o quadro de oficiais era constituído pelos membros abaixo indicados e eu vi-os, na altura, da seguinte forma:

(i) Capitão Vargas Cardoso

Militar de carreira, de perfil autoritário, muito organizado, com tendência para controlar tudo e todos. Gostava de ser considerado como um pai para todos os seus militares;

(ii) Aspirante Francisco Silva

Formação académica no sector das Letras, politizado tanto quanto a vida académica o permitia, parecia ser um militar apostado em cumprir a sua comissão sem hostilizar ninguém. Para melhor o identificar, ele foi, há poucos anos atrás, Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, além de outros cargos diplomáticos;

(iii) Aspirante Medeiros Ferreira

Formação académica no sector das Letras, altamente politizado, parecia querer levar a comissão até ao fim, mas, se assim era, depressa compreendeu que essa pretensão não era fácil de concretizar. Creio que todos se recordam dele, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;

(iv) Aspirante Beja Santos

Também oriundo do sector das Letras, politizado, este elemento dispensa apresentação, pois todos o conhecem, pelo menos, como um dos nossos tertulianos mais versáteis na arte de bem escrever, como o Tigre de Missirá, ou pela sua cruzada em defesa do consumidor;

(v) Aspirante Raul Albino

Resto eu, com formação Contabilística e não politizado. Esta minha formação permitiu-me ser inicialmente seleccionado para o CSM [, Curso de Sargentos Milicianos], a especialidade de Contabilidade e Pagadoria, o que me tornou no mais feliz dos militares ao cimo da terra. 

Mais uma vez a sorte me foi madrasta, pois acabei – não sei como – por ser reclassificado para o COM [, Curso de Oficiais Milicianos], nas especialidades de Atirador Especial e Minas e Armadilhas. Será que viram em mim a capacidade de disparar números e armadilhar escritas?

Viria a crescer posteriormente com a Informática, ao longo de 30 anos na IBM, na especialização de grandes e médios sistemas. Os micro sistemas têm sido para mim um hóbi de velho, que tem a virtude de me manter afectiva e minimamente ligado aos tempos do pioneirismo informático da minha juventude.

– Mas – dirão vocês – onde está o barril de pólvora?

Pois, o barril consistia no clima explosivo que se tinha criado no relacionamento entre o Capitão e os seus Aspirantes.

Quando eu chego ao grupo, vejo o Capitão preocupado com a circunstância de levar para a Guiné a dupla Medeiros Ferreira/Beja Santos, sobre os quais não conseguia ter o controlo pretendido e com a perspectiva do relacionamento vir a degradar-se ainda mais com o passar do tempo.

Quanto ao Francisco Silva, não o vi preocupado em sua relação, talvez pensando que ele seria mais fácil de controlar. Algum tempo após a minha chegada, confidencia-me ele (por estas palavras ou semelhantes):

- Sabes? Creio que temos letrados a mais na companhia! – ao que eu lhe retorqui:

- Bem, para compensar, agora tem-me a mim que não sou de Letras, sou de Números!

Depressa me apercebi ao longo desta conversa, por sinal bastante infeliz, que não era mais que uma tentativa de aliciamento da minha pessoa para a sua causa. Tentativa semelhante ter-me-á feito o Medeiros Ferreira. Tentativas inúteis, porque eu era um indivíduo convictamente independente, avesso a alinhamentos e não politizado. Além disto era ingénuo, porque julgava que me podia manter neutral, com o equilíbrio existente a manter-se ao longo da comissão.

Ainda hoje uma dúvida me afecta a alma. Terá a minha resistência a alinhamentos, – comunicada ao Medeiros Ferreira – influenciado de algum modo o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram no seio do grupo?

Duas a três semanas antes da partida da companhia, eu era enviado com um sargento, em avião militar, para a Guiné, com a missão de preparar a chegada da companhia em termos de material e equipamento. O que se terá passado durante esse período de tempo, escapou-me, na altura, ao meu conhecimento pessoal, razão pelo qual não o abordo aqui (...).

A minha surpresa não teve descrição, ao constatar que a companhia chegava à Guiné com duas baixas no quadro de Oficiais: o Medeiros Ferreira (**) e o Beja Santos. 

O capitão tinha ganho a primeira batalha (pessoal), mesmo antes de chegar ao teatro de guerra. Senti a minha cruz começar a ficar mais pesada...

Raul Albino

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue:  LG]
___________

Notas do editor:



(**) Vd. postes de:


19 de setembro de  2010 Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014) destacou-se na crise estudantil de 1962, foi desertor da guerra colonial (1968), vuiveu na Suiça, onde se licenciou em História, pela Universidade de Genebra (1972). Depois do 25 de abril,   foi eleito deputado à Assembleia Constituinte (1975), pelo Partido Socialista, e exerceu o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional (1976–1978), chefido por Mário Soares. Foi professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade NOVA de Lisboa).

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


Foto: © Gerald Bloncourt (1926 - 2018) > Travessia dos Pirinéus por imigrados portugueses. Maio de 1965. Foto: cortesia de Le Blog de Gerald Bloncourt  > L'immigration portugaise. 

[O grande fotógrafo da imigração portuguesa foi condecorado em 19 de novembro de 2015 pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Ordem do Infante Dom Henrique, grau Comendador. Na página oficial da Presidência da República pode ler-se, por ocasião da sua morte, a seguinte mensagem, com data de 30/10/2018: 

"Ao tomar conhecimento da morte de Gérald Bloncourt há um dever de memória em evocar o seu trabalho, que imortalizou a história da emigração portuguesa em França nas décadas de 60 e 70.

O fotógrafo francês foi uma das testemunhas do duro quotidiano dos compatriotas que viveram os primeiros anos da maior vaga de emigração para França, sendo simultaneamente amigo e companheiro de tantos portugueses que ali construíram o seu futuro.

Isso mesmo testemunhei em Champigny-sur-Marne, por altura das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2016, reconhecendo o seu espírito de missão pela defesa da dignidade humana junto da comunidade portuguesa, com o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique. "]


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
Parte III (Luís Graça) *

 

(Continuação)



A Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos.

Em Cascais, estava longe da família e da terra, que já não era Cabeceiras de Basto, mas Resende…Tinha um dia de folga, que aproveitava para conhecer Lisboa e os arredores. Metia-se no comboio e desaguava no Cais do Sodré, cujas “luzes de néon” a atraíam, como à borboleta, mas onde nunca entrou em nenhum bar.

No máximo, à meia-noite, o mais tardar, tinha que estar de volta a casa no dia de folga. E, depois, aquele era um mundo estranho e perigoso para uma rapariga de província, que fora parar a Cascais com cartas de recomendação.

Ainda se aventurou a ir, um dia, ao Bairro Alto dos fadistas, onde se dizia que se cantava o fado castiço, mas sentiu-se intimidada, com todo aquele corropio de gente, a sair e entrar de tipografias, redações de jornais, casas de pasto, tabernas, oficinas, lojecas e casas que pareciam de bonecas, com mulheres a assomar à janela, ou vagabundear pelas ruas.

Havia prostituição de rua, mas nada no entanto parecido com a que irá conhecer, uns anos mais tarde, na Rue de Saint Denis, em Paris, quando um dia lá for com o "seu" Antoine, só para ver aquelas pobres mulheres trajando ricos casacos de vison, umas, outras quase nuas...

Raramente via os patrões, lá no palecete de Cascais. Tinha uma “chefa" que era de "gancho” (sic), e que mantinha a criadagem na linha. O seu dia a dia era passado no meio de tachos e panelas, no rés do chão. A senhora, “que era do Norte”, apreciava o seu “arroz de anho no forno”, uma das suas coroas de glória culinárias… Mas a cozinheira-chefe, francesa, tinha ciúmes dela e não a deixava fazer grandes pratos, apenas o trivial, o pequeno almoço, o lanche, coisas ligeiras. Mas acabou por aprender, à socapa, uns pratos da cuisine française e começou a arranhar o francês… (Falava-se francês lá em casa, o patrão era de origem francesa.)

Já não se lembrava sequer do nome dos patrões, que eram gente muito rica e muito fina, de famílias tradicionais, católicos, mas liberais e respeitadores do pessoal menor… Cultivavam, no entanto, muita distância. Nunca se lembra, por exemplo, de ter entrado na sala de jantar, a não ser pelo Natal, em que senhores e criados consoavam juntos.

Os tempos que passou em Cascais, cerca de dois anos, eram sobretudo lembrados pela Rosemarie pela sua iniciação ao fado de Lisboa. Na escola de adultos, onde tirou a quarta classe, conheceu uma jovem fadista amadora que tinha ambições de concorrer à Grande Noite do Fado, no Coliseu dos Recreios.

À noite as duas cantarolavam uns fados no regresso a casa, já que moravam perto Ficaram amigas mas a Rosemarie perdeu o seu contacto quando foi para França, no verão de 1967. Tinha para com ela uma dívida de gratidão, arranjou-lhe alguns discos e letras, da Amália, e da Maria da Fé, de quem a Rosemarie também era fã, até por ser uma mulher do Norte.

Logo no início, em meados de 1965, teve autorização de ir ao Cais da Rocha Conde Óbidos abraçar um dos irmãos que chegava da Guiné, depois de cumprido o serviço militar. Vinha “mais maduro, mais homem”, e confidenciou-lhe que tinha intenções de emigrar, talvez para a Alemanha, de comboio. Era só tratar do passaporte, que agora, com a tropa feita, não precisava de ir “a salto”. Tinham-lhe prometido um emprego numa fábrica de automóveis, mas precisava de “aprender a língua alemã, que era tramada”. E na realidade conseguiu ir para a Alemanha, em meados de 1966, mas teve de começar por trabalhar nas obras. Durante alguns anos, não se viram até que ele foi passar o Natal, com ela e o Antoine, em 1973.

Foi também por essa altura, por volta de 1966, que a Rosemarie começou a congeminar a ideia de ir para França viver e trabalhar. Mas só podia ir “a salto”. Sendo oficialmente casada, precisava de autorização do "cabrão do marido", o "chefe de família", ausente em parte incerta...

Por outro lado,  as suas fracas economias não davam para “comprar a passagem”…Precisava de ter pelo menos uns 15 contos, para a passagem e para os primeiros tempos. Nessa época, era uma fortuna, quase 6 mil euros, a preços atuais. 

E foi também por essa altura que umas antigas colegas e amigas das Caldas de Aregos, em Resende,  lhe deram notícias do Antoine Ben Oliel.  Um dia conseguiu o seu contacto. Escreveu-lhe uma carta, com letra muito bonita, e com algumas palavras simpáticas em francês (desculpando-se dos "erros de ortografia"), e mandou-lhe uma foto tipo passe. 

Ele não lhe respondeu logo, mas na carta que ela recebeu, passadas umas largas semanas, disse-lhe que, "sim, senhora,  se lembrava dela, de Chaves, em  1957, e que ia ver o que podia fazer por ela"... Mas acrescentava logo a seguir: " Sem papéis era mais arriscado, para mais sendo mulher. Mas prometia lembrar-se do seu caso e do seu pedido"...  

Determinada a sair do círculo vicioso da pobreza e da solidão, a Rosemarie começou a preparar a "mala de cartão" e, um dia, com a desculpa de ir visitar a mãe “muito doente”, obteve autorização para gozar uns dias de licença, na terra.

Nunca mais voltou a casa dos patrões em Cascais. E uma semana depois estava a atravessar os Pirinéus, escondida na mala do carro do Antoine.

Não lhe fez desconto nenhum, “o gajo” (como ela o tratava)!... E sabiam pouco um do outro. Mas deu conta que o Antoine se sentia atraído por ela... Na viagem, partilhada com mais gente (“rapazes novos, um deles fugido à tropa”), foram pondo, lenta e discretamente, a conversa em dia. Ela, sempre muito faladora, “um livro aberto”, ele sempre muito calado, de óculos escuros, a cigarrilha ao canto da boca, do lado da cicatriz…E usava um chapéu à cobói, que puxava para a cara, a tapar-lhe os olhos…

Na presença de terceiros, evitava ter com ela conversas mais pessoais. Respondia-lhe, quase sempre com monossílabos, os olhos postos na estrada, enquanto o Peugeot ia devorando quilómetros.

A cena mais caricata foi a passagem da Rosemarie num posto fronteiriço pirinaico, em Hendaia, que era pressuposto ser “da confiança do Antoine”.


Como era habitual, os homens que seguiam na viagem, ape
avam-se uns quilómetros antes, ainda em território espanhol, e seguiam por um trilho, seguro,  atrás do guia basco que trabalhava habitualmente com (ou para) o Antoine, que por sua vez os voltava a apanhar mais à frente, já em França. Tratava-se apenas de salvar as aparências,  não fosse algum chefão aparecer por aquelas bandas sem avisar.

A Rosemarie foi poupada ao incómodo da travessia a pé, seguindo, deitada e tapada com um cobertor,  na mala do carro do Antoine. À frente seguia um empregado do Antoine, com a carrinha de nove lugares, vazia. Cada passageiro transportava na mão as valises en carton, no trajeto a pé. Traziam o mínimo, uma ou duas mudas de roupa, calçado, farnel…

Habitualmente era o Antoine que conduzia a carrinha e naturalmente, era conhecido, e mais do que isso, “amigo dos guardas fronteiriços”.  Há muito que fazia os postos fronteiriços de Hendaia  e Irun, sendo conhecido como marchand d’art. Na realidade, também comprava e vendia velharias, antiguidades e móveis de estilo, abastecendo algumas lojas no Norte de Portugal e na Galiza. Rentabilizava assim a viagem. Trazia tralha. E no regresso levava viande à canon, carne para canhão (como ele dizia, na galhofa, lembrando-se porventura dos seus duros tempos de legionário). 

Mas daquela vez estava de serviço o  “novato” de um agente que não  conhecia o Antoine ou, pelo menos,  não o reconheceu "tout court"... Mandou parar o carro e abrir a mala…

A Rosemarie não ganhou para o susto, mas de acordo com as instruções do Antoine, “não tugiu nem mugiu”… Tudo se resolveu num ápice quando o Antoine “puxou dos galões”, e falou no nome do “chefe”,  seu velho conhecido do tempo da Legião…

Aliviados, seguiram a viagem, pela route nationale 10 (desgraçadamente também conhecida como cemitério dos portugueses),   sem mais sobressaltos, até ao destino, que era… o famigerado bidonvillhe de Champigny.

A Rosemarie, ingénua (quando lhe convinha), nunca soube, ao fim destes anos todos, quais foram les frais de transport...  Mas, nesse troço da viagem, já em território francês,  ficou então a saber que o Antoine era viúvo e vivia num château, nos arredores da petite ville de A.... no Val-de-Marne.

Simpático, cavalheiro, ofereceu à Rosemarie uma cama num duplex, grande demais para um homem que vivia sozinho, e que era a única parte habitável do casarão,  que em tempos devia ter feito parte de uma quinta, sacrificada à expansão urbanística…  O chateau não era, afinal, o "castelo dos contos de fadas"  que ela imaginava... 

Passada uma semana, já dormiam os dois na mesma cama. E ela arranjou, também por convite do Antoine,  um primeiro emprego no bistrot, “O Cantinho da Saudade”.

Como sabia cozinhar, e "até cozinhava bem", foi uma boa aquisição para o tasco do Antoine. À noite, o bistrot enchia-se de clientes, a maior parte portugueses com saudade do "caldo verde"  e de umas boas bifanas no "casqueiro".

Com o seu trabalho, a Rosemarie pagava a “renda da casa” e ia descontando um xis por mês para as despesas da passagem. Trabalhou um ano para o Antoine,  sobravam-lhe uns trocos para os “alfinetes”… Saía de uma escravatura para se meter noutra, receava ela. 

Arranjou, por isso, um part-time na limpeza de um consultório médico e depois numa clínica. Vinha a tempo de fazer o almoço para os dois. À tarde e à noite trabalhava no bistrot, era pau para toda a obra, estava na cozinha mas também dava um jeito nas mesas e ao balcão. E ao fim de semana havia fado…

Ao fim de alguns meses, lá pelo volta do Nöel de 1967, já se “desemerdava” (sic)  com o francês. "A vida rolava bem". Estreou-se tempos depois no bistrot a cantar, em caraoque,  a Amália e a Maria da Fé,  que também começava a estar na moda…

Ainda não havia guitarrista, só viola. Alguém desencantou um tipo fugido à tropa que em tempos tinha acompanhado, à guitarra, fadistas amadores em tascos do Bairro Alto. Trabalhava como operário numa fábrica da Citröen. Dois ou três meses depois, com muitos ensaios, a Rosemarie apresentou-se, de xaile preto e rosa vermelha ao peito, a cantar o fado no bistrot, acompanhada à guitarra e à viola…

Comme il faut!

  Antoine não escondia o seu orgulho. Apresentava-a já como sua copine, não escondia o seu afeto por ela e elogiava o seu talento.

Une deuxième Amalia! garantia ele aos seus amigos franceses.

Foi a altura em que os nossos anfitriões da Casa de Óbidos a conheceram. Foi também o melhor período da vida da Rosemarie, não só da sua vida em França, como de toda a sua vida!

Ah!, oui, j’ ai été três heureuse à cette époque-là!  − garantiu-me ela.

A Rosemarie, aux yeux verts,  "de olhos verdes", começou a ser notada. E o bistrot do Antoine duplicou a faturação. Mas o seu principal negócio continuava a ser o “ilegal”, o transporte de imigrantes clandestinos, de carro e de comboio… Como fachada legal e fiscal, tinha o bistrot e uma loja de antiguidades, no próprio château, na prática, um depósito de velharias… Com os negócios a prosperar, também comprou um licença de táxi e arranjou um motorista, luso-francês de confiança.

Mas era  a atividade de passador que lhe garantia mais proveitos. Terá ajudado centenas de portugueses e até magrebinos,  a instalarem-se e legalizarem-se em França. E dizia-se até que explorava os desgraçados dos imigrantes com o aluguer de algumas "barracas" em Champigny. Coisa que a Rosemarie nunca soube (ou nunca quis saber). Nisso era notável a sua habilidade em ignorar, escamotear ou "branquear" algumas partes mais desagradáveis da sua vida em comum com o Antoine Ben Oliel.

Tudo corria bem,  para o Antoine (e para a sua companheira), até à crise económica de 1973 e sobretudo até ao 25 de Abril… Meteu-se depois la merdre de la politique, lamentou-se a Rosemarie. A partir de 1974, começou a baixar a clientela do bistrot e as viagens a Portugal tornaram-se mais espaçadas…

Et le fado devient… réactionnaire! indignava-se ela.

− Reacionário... como assim ?  perguntei-lhe eu, fazendo-me ingénuo,

Não soube ou não me quis responder. Repetia apenas que o fado se tornara  "reacionário", e que os baladeiros haviam destronado os fadistas... 

Em suma, a Rosemarie “perdeu o pio”, deixou de cantar por uns tempos, aproveitando a má maré  para  dedicar mais tempo à sua atividade principal,  de femme de ménage.  Criou uma empresa de limpezas, com o Antoine como sócio minoritário… E que foi um sucesso. Começava assim a ganhar independência em relação ao “seu homem”… 

− Há males que vèm por bem! − contemporizava eu.


Cantava, mais esporadicamente, em festas de portugueses, até meados dos anos 80… "Sempre em portugês"... Naturalmente que nessa altura a estrela da canção luso-francesa era a Linda de Susa... que a Rosemarie nunca conheceu pessoalmente, mas de cuja voz e canções também gostava muito. Viu-a apenas uma vez num concerto em Paris, já vedeta internacional.

Começou a fazer amigos franceses. E integrou-se muito bem naquela pequena cidade de província, na "banlieue" de Paris. Durante muitos anos não veio a Portugal, nem mesmo quando o pai faleceu. E por volta de 1987 ou 1988 consegue finalmente obter o divórcio do seu primeiro casamento. Nunca chegou a saber o destino que teve o seu primeiro marido, desaparecido para sempre, talvez assassinado numa lixeira de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

No início dos anos 90, o Antoine Ben Oliel, já sexagenário, terá tido uma depressão, começou a beber mais ido que o habitual, e os negócios ressentiram-se. Ela ajudou-o a reequilibrar-se com "apoio psiquátrico". Mas em 1995 ele tem uma nova recaída e faz um tentativa de suicídio. Puxou do revólver e apontou à cabeça. In extremis, ela salvou-o, mesmo com risco da sua própria vida... Na luta corpo a corpo, a arma ainda disparou dois ou três tiros para o ar... Talvez por gratidão o Antoine aceitaria, mais tarde, casar-se com ela, já no ocaso da vida.

(Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:


(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire. Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia não aos paraquedistas mas a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá seriam massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses,  em  13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phu, ser ferido gravemente por um estilhaço de obus.  Teve a sorte de ainda poder set evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em 7 de maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)

(Continua)

© Luís Graça (202o)