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terça-feira, 11 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Virgílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Vergílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > A rabeca chuleira: fabricante Guilherme Almeida & Sousa Sarmento (Baião, 1873); proveniência: Santo Tirso (1962). Nº Inventário: NME BB 405


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Candoz, Quinta de Candoz  >  20 de outubro de 2012 >  Festa das bodas de ouro da Rosa (Carneiro) e do Quim (Barbosa) > Baile mandado > Tuna Rural de Candoz: Músicos: Júlio e João (violinos), Nelo, Luis Filipe, Miguel e Tiago (violas). Mandador: Joaquim Barbosa (Quim). O baile mandado é uma tradição que se está a perder... E que só os mais velhos sabem dançar. Neste caso, o mandador também participa na coreografia. Clicar aqui para ver o vídeo, alojado em  You Tube / Luís Graça


Vídeo (4' 08''): Luís Graça (2012).

Galeria dos meus heróis > A Rosemarie e os seus dois maridos... 

 Parte I

por Luís Graça


  Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie começou o seu relato de vida: um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como se dizia então em francês ?!... Le saute, até há um filme que passou na televisão de cá…

Ah!, oui?!... Nunca vi.

− E no entanto a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille

Une balzacienne, uma mulher de 30 anos já feitos!...Nasci em 1937, mon chérie.

− Ah!, sim, uma balzaquiana, como dizemos nós…

Morto o Antoine [lê-se: "antu-ane"], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á libertado de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro… Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros. os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma estranha relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou remediada em França… Enfim, tenho o meu pé-de-meia. 

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido. Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com humor, sem azedume, quase sem rancor. E, no entanto, foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela.

Foi uma vida passada entre o Portugal dos sombrios anos 30, 40, 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal, para morrer… mas só aos 100 anos. E agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido  materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve na guerras da Indochina e da Argélio,  como légionnaire

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor,  fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França.  O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu "accent": não carregava suficientemente os "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Eu havia-a conhecido, há já uns bons anos, quando ela  andava perto dos 75,  conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri,  eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente, tendo-me autorizado a publicar a sua história de vida que "até dava um filme” (sic), com uma única ressalva:

− Só depois de ser chamada ao Reino dos Céus!... (Como ela queria viver até aos 100, perdi a esperança de poder publicar a sua história em tempo útil!... Charmosa, tratava-me por mon chéri.)

Era “crente sem ser beata”… E agora que “Deus a chamou ao seu reino”, fica o caminho aberto para partilhar as suas confidências. De facto, acabou de morrer, estupidamente,  de Covid-19, logo no início da pandemia. Constou-me que foi por infeção hospitalar… Ia fazer 83 anos.

Sinto-me, de qualquer modo, à vontade para evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconheço se deixou herdeiros, mas deve ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Resta-me dizer onde a conheci. Foi na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão. Agora, professores reformados,  passavam cá mais tempo. A Rosemarie era  visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos. 

Nunca soube exatamente quais eram as suas afinidades mas, pelo que me apercebi das nossas conversas, haviam-se tornado amigos  desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezassete anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos  verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...Ah!, o Francisco José,. um rapaz do meu tempo...

Estes nossos amigos franceses adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido,  em vida, e aclamado no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado,  em que conheci a Rosemarie, rapidamente ganhei a sua confiança e até afeição. Falávamos ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos nossos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras.  Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só comigo.

Disse-lhe que estava muito interessado em conhecer a  histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabámos por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade. Ainda nos encontrámos três ou quatro vezes e falámos ao telefone. Com tristeza soube da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-me, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal. Nunca teve filhos, ao que eu saiba.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto,  sendo os seus pais  oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas,  uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou  para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto,  para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie,  já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em 1952,  como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indaguei eu, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada ou muito pouco.

Eu sabia que tinha casado, já depois de atingida a maioridade, que naquela época era aos 21 anos.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves,  casou com "o primeiro fils de putain, o primeiro filho da puta", que conheceu num baile, já em Resende, em 1961.  E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine,  de quem voltaremos a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor. Para mim, era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais, obrigando-me a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1937, a Rosemarie casou aos 24, "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época.

E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é  que percebi o sentido que os padres, no confessionário,  davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 7 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a  casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida”. Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda,  que tivessem a desdita de  ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa,  Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pêlo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a  inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não me deixavam todavia de surpreender, talvez por sermos de gerações diferentes, eu já filho do pós-guerra e criado em ambiente urbano, ela bem mais velha do que eu.

Afinal, isto passava-se no meu país, ainda nos anos 50 e 60. E eu não podia deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem  duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas,  ou fugiam  para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre  cara!... Não nos é dada, conquista-se  − avancei eu, usando  um chavão que é, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, veja o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora percebo por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos,  para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-me ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador',  no meio,  a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras…

Mas os feitios de ambos,  e  sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a  maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quis eu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de  meia e quis celebrar… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do  Marão e Montemuro,  de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa,  dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio,  mas pouca gente tinha rádio e telefone…  E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos umas atrasadas… 

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou-me a tutoyer, a tratar por tu, a que eu não respondi do mesmo modo, continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela,  até como estratégia defensiva enquanto entrevistador…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de granito, tosca,  o interior com paredes de tabique, um quarto para os  pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné. Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à pequena nobreza rural, decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo. 

− E porquê Resende, Rosemarie ? – perguntei-lhe eu.

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego,   numa empresa encarregue, já em 1964,  dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria  ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E,  também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.  

Depois da separação (de facto mas não de jure), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-me tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia bailes, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 15 anos,  ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens…Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. ´

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, que eu já estou perdido... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época  eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar…E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Um amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!...Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo  em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?,  'desavergonhada'!...Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio…

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!...  Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque,  era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele  fosse mais  velho do que eu… E deixa-me dizer-te  que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?... – perguntei-lhe eu.

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto,  o caldo entornado – comentei eu.

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

− Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!... Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso, estúpido… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar  a vizinhança... Eu desculpava-me,  que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim,  uma vergonha para a minha família...  Até um dia em que bati com a porta e voltei para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… 

− E depois ?...

− Lá conseguiu arranjar um passaporte, meteu-se um barco e fugiu para o Brasil… Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, com mais de 50 anos…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

 (Continua)

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20488: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (35): Canção de Natal

1. Mensagem do nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Dezembro de 2019:


Caros amigos e camaradas d’Armas,

Para nós, sobretudo os que cumpriram a sua comissão de serviço militar no Ultramar, a quadra de Natal traz-nos recordações mil. As saudades das famílias dispersas pelas aldeias de Portugal, pelos confins da Califórnia e terras frias do Canadá, pela França, a dor da partida prematura de um camarada-de-armas, a desilusão da carta que não chegou. Tudo isso contrastava com a alegria daquele “Querido filho que ao fazer esta que te encontres de saúde…" ou o encher dos pulmões com aquele “Recebe um beijo desta que te ama...”, ou ainda aquele “Abraço apertado da tua madrinha de guerra...”, de um rancho nem sempre melhorado mas muito bem molhado, do contar dos dias para o fim da comissão, da alegria do companheirismo no seio uma família diferente, grande lição de vida.

Recordar tudo isso e muito mais é legítimo. Faz parte das nossas vidas, das muitas lições que nos ajudaram a crescer como homens. Mas o Natal é muito mais que recordações. O Menino Jesus vai nascer, Senhor da Vida, da Esperança, do Amor. Que o Seu exemplo continue a produzir frutos, bons frutos. Saibamos segui-Lo na produção, Hoje e sempre, porque o Natal não é de um dia, mas de todos os dias, de uma Vida que é a nossa. Cheia de surpresas. Que vale a pena viver e partilhar.

Pela manhã, sempre que a vida me permite, debruço-me nesta janela da internet. Recebo os bons dias dos amigos. Do JERO, do Juvenal, do Valério, do Magalhães, do Briote, do Fontinha, do Picado, do Carlos Silva, do JD, do meu mano Carlos Vinhal e de muitos outros. O Miguel sabe que eu gosto de ler as notícias da minha terra mãe e não falta com elas. Confesso que sinto a falta do Jorge, do Faria, do Rebola e de mais uns quantos que da lei da morte se libertaram. Dou um passeio pela Tabanca, que desentorpecer as pernas também faz bem.

Foi num daqueles debruçares matinais que senti uma pancada no peito, uma enorme surpresa. Onde se podia ler: - “Ainda vives em Stoughton? É que no próximo dia 20 vou a Dartmouth MA, e lembrei-me que, se entretanto não te tiveres mudado para a Flórida ou coisa semelhante, eu podia dar aí um salto para nos conhecermos pessoalmente. Se bem que quase te conheço já, graças ao blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné" onde te encontrei, especialmente no post 13528, de 23 de Agosto de 2014).

As tuas palavras - "Concordo que a Guiné nos pregou ao corpo e as recordações, umas bem melhores que outras, trazem-nos emoções que só quem por lá andou compreende a sua extensão. Não sinto nostalgia daqueles tempos, mas tenho saudades da minha juventude de então, dos muitos amigos que criei. Conservo boas recordações daquelas gentes, sobretudo das crianças de olhos esbugalhados e sorridentes, dos meus soldados africanos." - fazem-me crer que temos muito em comum. Faz bem lembrar, partilhar…
Se me permitem, num abraço amigo, os meus votos para que tenhais Festas Felizes e Bons Anos no seio dos vossos familiares e amigos."

João Crisóstomo (na esquerda) e eu na minha casa em Raynham, Massachusetts.

Caros amigos, dias depois, o João Crisóstomo e a esposa entravam com esta simplicidade na minha humilde casa, em Raynham. Eu e a minha esposa demos-lhes o melhor tínhamos para eles, um abraço sincero de respeito, amizade e agradecimento. E, claro, um café e uns doces, que aquele simpático não nos permitiu mais e melhor. E duas horas de um bom e são convívio e camaradagem. Deixámos sair a alma.

Enquanto as senhoras se embrenharam nas suas conversas, o João deu-me a conhecer parte da sua obra. Timor e as suas gentes, sobretudo as crianças, é um dos seus grandes amores. Confesso que ao seu lado me senti muito pequeno, tal a sua força de vontade, da sua franqueza, do tamanho do seu coração no bem querer fazer.

Sim, João, valeu a pena recebido a vossa visita. Que Deus abençoe na vossa obra e a vossa vida.

Sim, o Menino Jesus também tem destes presentes. Depositado que foi numa árvore de Natal, um poilão, na Tabanca Grande.

O Natal é uma canção. Sim, eu continuo criança e acredito que o Menino Jesus nasce todos os dias.

Festas Felizes e Bons Anos para vós e vossos familiares.

Bem hajam.

José Câmara
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17024: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (34): Correspondência do Ultramar: Ressurreição nas Matas da Guiné

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15437: Os manuais escolares que nos forma(ta)ram (3): Geografia, Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, de A. de Vasconcelos, c. 1940 - Parte III: "Amemos o Brasil, nação irmã muito amiga, onde temos muitos e muitos milhares de compatriotas que a essa abençoada terra foram procurar meios de viver com honra para nossa linda e querida pátria " (p. 34)



VASCONCELOS. A[ugusto Pinto Duarte] de - Geografia Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, nova edição. Porto: Editorial Domingos Barreira, [1940], 118 + 1 pp., ilustrado, 18 cm.






Geografia..., op cit., pp. 31-34. O Brasil era dado na 3ª classe... Em três páginas, num manual com, um total de 118 páginas... 



Para além de saber ler, escrever e contar, o português dos anos 30 do séc. XX deveria ter um mínimo de literacia geográfica, para poder e saber... emigrar. No início da década de 40, Portugal tinha 7,7 milhões de habitantes, e o Brasil... mais de 40 milhões. Hoje tem mais de 200 milhões e uma megacidade como São Paulo com quase 45 milhões (!)...

Informação histórica do supracitado manual: o Brasil foi "colónia portuguesa" (sic), leia-se: "pertenceu" a Portugal desde 1500 até 1822, ano "em que se tornou independente" ... Enfim, é o destino preferido dos "portugueses que emigram", leia-se: "que vão procurar fortuna ou os meios de viver fora da Pátria, por nesta os não poderem adquirir" (sic).

E a curta lição acaba com uma exortação patriótica: "Amemos o Brasil, nação irmã muito amiga, onde temos muitos e muitos milhares de compatriotas que a essa abençoada terra foram procurar meios de viver com honra para nossa linda e querida pátria" (p. 34)...

Na realidade, o Brasil foi durante um século o principal destino da emigração transcontinental portuguesa... Segundo o grande geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997), entre 1890 e 1940, terão saído de Portugal 1,2 milhões de emigrantes, 92% originários do norte, 83% destinados ao Brasil...

Nos dois primeiros séculos da colonização do Brasil (de 1500 a 1700), a emigração é baixa: estima-se que tenham "emigrado" para aquele território 100 mil portugueses (uma média anual de 500).  É uma imigração restrita. Este número contrasta com os que, neste período, saíram do pís, dirigindo-se para as possessões portuguesas na África e Ásia: cerca de 700 mil emigrantes, aproximadamente:

280 mil (entre 1500 e 1580) (média anual: 3500);
300 mil (entre 1581 e 1640) (idem, 5000):
120 mil (entre 1641 e 1700) (idem, 200).

 Há um salto muito significativo entre 1701 e 1760, na emigração para o Brasil: somam-se mais 600 mil portugueses, atraídos pela descoberta de ouro (em  1696) e pedras preciosas... Uma média anual de 10 mil...  O período entre 1701 e 1850 é considerado como o transição da imigração (Venâncio, 2000):

A imigração de massa vai de 1850 a 1930. A partir de 1960, há claramente um declínio.

Entre 1881 e 1967, calcula-se que mais de 1 milhão e meio o número de portugueses que terá emigrado para o Brasil, assim distribuídos por período:

1881/1900 > 316.204 (média anual; 15.810)

1901/1930 > 754.147 (idem, 25.138) (o maior pico da emigração portuguesa para o Brasil)

1931/1950 > 148.699 (idem, 7.434)

1951/1960 > 235.635 (idem, 23.563)

1961/1967 > 54.767 (idem, 7.823)


Fonte: Venâncio, R. P. - Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes. In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000.


Já agora, e para completar esta informação sobre a demográfica histórica brasileira, cite-se o IBGE (2000):

"No continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro. Uma contabilidade que não é exatamente para ser comemorada [, nos 500 anos do Brasil]".

O maior contributo para a formação da população brasileira, em 500 anos, foi portanto a imigração portuguesa,  imediatamenhte a seguir ao dos negros de África, levados como escravos.

Fonte: In: Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000.


Nos manuais do Estado Novo, de história e de geografia, em que estudámos (a geração que orá fazer a guerra colonial), havia uma clara tendência para ignorar ou escamotear o problema da escravatura africana...e o "colapso" da população indígena no Brasil  (que em 1500 podia ser estimada entre 2,5 e 6 milhões, variando muito as estimativas conforme as fontes).

(...) "No primeiro censo demográfico realizado no Brasil, em 1872, a população brasileira atingia 9.930.478 habitantes, dos quais 3.787.289 brancos, 1.954.452 pretos, 3.380.172 pardos e 386.955 'caboclos'. 'Pardos', na época, era o termo utilizado sobretudo para mulatos; de fato, enquanto o censo classificava a população livre em quatro categorias, a população escrava se dividia apenas em pretos e pardos. 'Caboclos' é o termo tradicional para mestiços de índio e branco; contudo, incluía, neste censo, a população indígena aculturada (...) . A população indígena não aculturada não foi contada, mas sabemos que era bastante reduzida. No censo de 2000, 128 anos depois, a população total havia crescido para 169.872.856, dos quais 91.298.042 brancos, 10.554.336 pretos, 65.318.092 pardos, 761.583 'amarelos' e 734.127 indígenas." (..:) 

Fonte: Modelo de Evolução da População no Brasil Colonial. [Em linha]. Ideias. Wikidot.com. 2011. [Consultado em 2/12/2015]. Disponível em  http://ideias.wikidot.com/modelo-de-evolucao-da-populacao-no-brasil-colonial

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15329: (Ex)citações (299): A tripla vacinação que tínhamos de fazer, antes de embarcar para o CTIG: febre-amarela, cólera e varíola (António M. Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74)













Cópias dos certificados internacionais de vacinação contra a febre-amarela, cólera e varíola, emitidos pela Direção do Serviço de Saúde do Ministério do Exército. 


Fotos: © Sousa de Castro (2015). Todos os direitos reservados. (Edição: LG]




1. Mensagem, de 1 do corrente, do [António M. ] Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), na sequência do poste P15307 (*):


Caros amigos,

Não foi só a vacinação contra a febre-amarela (*), foi também contra a varíola e a cólera, conforme se pode constatar no meu certificado de vacinas internacional, passada na Província da Guiné.

Este certificado foi pedido por mim, creio que em Bissau antes de vir embora,  no sentido de poder emigrar. 

Para além disso, tenho os três certificados individuais aquando da vacinação obrigatória antes de embarcar, passado pela Direcção do Serviço de Saúde do Ministério do Exército. (**)

Ao dispor,

A. Castro




2. Comentário do editor:

Segundo o Portal da Saúde  [, Consulta da Saúde do Viajante],  "o Regulamento Sanitário Internacional em vigor estipula que a única vacina que poderá ser exigida aos viajantes na travessia das fronteiras é a vacina contra a febre amarela. Nesse sentido, todos os Centros de Vacinação Internacional devem administrar a vacina contra a febre amarela a todos os utentes que a eles se dirijam, desde que portadores de prescrição médica."

Há, no entanto,  alguns países não autorizam a entrada no seu território sem o comprovativo de vacinação contra outras doenças. "É o que acontece com a vacina contra a doença meningocócica, imposta pela Arábia Saudita aos peregrinos que se dirigem a Meca. A Arábia Saudita exige ainda, como outros países, a vacina contra a poliomielite, a quem é proveniente de um dos quatro países onde o vírus é endémico (Afeganistão, Nigéria, Paquistão e Índia)."

Na época da guerra colonial, havia ainda o risco de cólera e varíola em territórios como a Guiné. O último caso de varíola ocorreu em 1977, na Somália. Foi uma das mais devastadoras doenças infetocontagiosas que os seres humanos conheceram, Foi considerada erradicad pela OMS em 1980. A cólera é uma doença endémica, havendo de tempos a tempos surtos epidémicos em países onde a saúde pública ainda é defiociente (como é o caso da Guiné-Bissau, Angola ou Brasil). A doença é de notificação obrigatória mas a vacinação já não o é, de acordo com o  Regulamento Sanitário Interncional (RSI).

A vacina contra a cólera é recomendada pela OMS para aplicação em viajantes com destino às áreas onde ocorrem casos de cólera, e possa haver contacto com doentes,  mas não é disponibilizada pelo  nosso Programa Nacional Vacinaçãom, não garantindo de resto imunidade duradoura. As únicas vacinas obrigatórias em Portyfgal, hoje em dia, é a do tétano e difteria. Em, setembro de 1971 houve surto de cólera na área metropolitana de Lisboa. Em 1969, o pessoal militar era apenas vacinado contra a febre-amarela, a crer no depoimento do nosso camarada António Tavares.

O atual Regulamento Sanitário Interncional (RSI) está em vigor nos 193 Estados membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 15 de Junho de 2007. É um acordo internacional juridicamente vinculativo. Tem por objectivo a prevenção e o combate às ameaças de saúde pública mundial. (Ver versão em português do RSI, disponível no sítio do INSA).




"Uma caderneta que todo o militar teve no dia da vacinação [contra a febre-amarela]. É de notar que a vacina era dada quase no fim da recruta talvez por hipotéticas reacções negativas do organismo dos militares. Recruta dispendiosa para a Fazenda Pública e a necessidade, maior ou menor, consoante a época do ano, do 'despacho' dos Homens para a guerra. Assim, uma recruta não podia ser perdida nem repetida. Seria tempo perdido para os militares. Os governantes da época pensavam nos 'Prós e Contras' "... Repare-se que o certificado é emitido, em 1969, pela Escola Nacional de Saúde Pública de de Medicina Tropical, criada em 1966.

Foto (e legenda) : © António Tavares  (2014). Todos os direitos reservados. (Edição: LG]

_______________



(...) Cumpridos os procedimentos administrativos que antecederam o embarque para o CTIG, como seja a vacinação obrigatória efectuada no Hospital do Ultramar, sito na Junqueira, Freguesia de Alcântara [Lisboa], uma unidade de saúde que, a par do Instituto de Medicina Tropical [IMT], funcionavam na dependência do Ministério da Marinha e Ultramar e que se destinavam a dar assistência médica aos funcionários civis e militares em trânsito, de e para o Ultramar Português, incluindo os casos com doenças tropicais e infecciosas. (,,,) 

(...) Concluído o processo de vacinação sem efeitos secundários e expirados os dias de férias atribuídos no processo de mobilização, eis que é chegado o dia «D» – o da despedida – e, concomitantemente, o da partida aprazada para 23 de Março de 1972, uma 5.ª feira. (...)


(**) Último poste da série > 3 de novembro de 2015 >  Guiné 63/74 - P15319: (Ex)citações (298): Um peso era manga de patacão... para a bajuda de Mansoa (César Dias, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2885, 1969/71)

sábado, 8 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14985: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (38): é possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau...

1. Mensagem do Antº Rosinha:

[Foto à direita, o Antº Rosinha , ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar ...]:

Data: 3 de agosto de 2015 às 19:46


Assunto: É possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens Africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau.


Como é possível fechar a Europa aos jovens de toda a África, se não foi possível fechar as entradas de jovens de toda a Guiné-Bissau dentro de Bissau que é uma ilha?

Em 1980 eram tantos milhares de jovens na cidade de Bissau, vagabundeando na Praça, que Luís Cabral tentou fechar na Chapa Bissau, na estrada de Antula e na estrada que vinha de Bor, com polícias e camiões para recolher, registar os sem emprego e recambiá-los para as suas tabancas.

Eu já escrevi isto, mas agora serve para comparar exactamente tudo, mas tudo mesmo, aquilo que se passa hoje com toda, mas toda mesmo, a juventude africana, com aquilo que se passava nos anos a seguir à independência da Guiné para as mãos do PAIGC.

Isto é, toda a juventude Bissau-guineense, viu a demora em aparecerem os resultados prometidos e apregoados pelo Regime e pelos heróis da Independência e o instinto de defesa muito presente no povo africano não demorou, de uma maneira passiva, mas bem vincada, manifestou-se com uma autêntica invasão maciça da capital, vagabundeando o dia inteiro pela praça, sem qualquer preparação, sem discursos e sem armas, apenas com a sua presença, sempre em movimento, e isto diariamente até que o governo reagiu.

Luís Cabral, reagiu e caíu.

Mas já em 1980, milhares de guineenses sabiam que era preciso "fugir" mesmo da cidade de Bissau porque tal como hoje assistimos, todas as capitais africanas ficaram literalmente inabitáveis.

Não havia perspectiva de uma independência africana à «maneira europeia» sem se ter feito uma colonização europeia real em toda a África Subsariana.

Como tal aquela áfrica vai recorrer à colonização selvagem de árabes e de chineses.

A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta.

Em Portugal há muitas reclamações há muitos anos, principalmente na freguesia de São Sebastião da Pedreira.

O primeiro ministro inglês e o presidente francês, estão na situação em que Luís Cabral estava em 1980, sem saber o que fazer com tantos «pretos».

Mas que porra, quem diria?

Havia pessoas que tinham a razão do seu lado, mas não tinham a força das armas.

Seria pior? Seria melhor? Pelo menos seria diferente.

Cumprimentos

Antº Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14583: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (37): Sempre houve emigrantes europeus para África, agora dá-se o inverso

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14583: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (37): Sempre houve emigrantes europeus para África, agora dá-se o inverso

1. Texto enviado, em 4 do corrente,  pelo nosso amigo e camarada António Rosinha:


[Foto à esquerda,  Antº Rosinha, ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de um mais velho, ou seja, de quem tem vidas e estórias de vidas para contar]

Data: 4 de maio de 2015 às 23:36
Assunto: Sempre houve emigrantes europeus para África, agora dá-se o inverso


Um fula guineense dentro de um contentor no Pijiquiti...Foi um caso real, que se passou há 30 anos, 1985, um guineense que trabalhava na minha empresa [, TECNIL], entrou para dentro de um contentor no porto de Pijiquiti em  Bissau, juntamente com um primo,  e só passado quase um mês é que nos apareceu novamente no trabalho.

E contou-nos a aventura e o perigo que correu para emigrar clandestinamente.

Era fácil, pois o nosso trabalho era dentro do cais, e com ajuda de estivadores amigos, lá embarcou escondido no contentor num barco espanhol para Cadis, que era o destino final.

Só que se prepararam com alimentos e água para uma semana, mas com várias acostagens a viagem demorou muitos mais dias.

E ficaram sem alimentos e água alguns dias e foram retirados em muito mau estado de saúde de dentro contentor e não tiveram saúde nem cabeça para preparar uma fuga de dentro do porto de Cádis e ir para Portugal, que era a ideia deles.

Como entre a Espanha e a Guiné já havia uma grande tradição de clandestinos, principalmente com Canárias, já havia uma rotina de recâmbio entre os dois países, e foi só seguir a rotina diplomática

Emigra-se por aventura, para fugir à miséria, para fugir a perseguições políticas, para procurar fortuna, para jogar futebol, ou por prazer de viajar…para bem longe de tudo o que nos cerca.

Nós, portugueses,  e todos os europeus do sul e ingleses sempre emigrámos, principalmente para as Américas e África. E, em alguns casos,  não foi simples  emigração. Foram mais êxodos, evasões, invasões e ocupações coloniais, e em muitos casos não houve regresso.

Mas emigrar, para fugir à guerra e à fome,  é em parte o que se passa hoje, em sentido contrário de África para a Europa.

Quem tenha acompanhado de perto o que se passa nos diversos países africanos desde as suas independências há 4 ou 5 dezenas de anos, houve sempre uma emigração maciça para a Europa, principalmente para as suas antigas metrópoles.

Desde o simples povo até aos dirigentes e empresários africanos, aproveitaram todas as hipóteses para eles próprios ou parte de suas famílias, emigrarem, ou simplesmente afastarem-se das suas problemáticas pátrias.

Embora só recentemente a Europa se esteja preocupando com a afluência maciça de africanos ( e asiáticos) entrando clandestinamente na Europa, na realidade sempre existiu uma «atracção» irresistível dos jovens africanos pela Europa e há mais de 40 anos que existe um grande afluxo de clandestinos daqueles países africanos.

Só que a Europa até há pouco tempo não se queria «preocupar», com um problema cuja solução ultrapassa toda a sua capacidade. Para a Europa está a tornar-se um grave problema, principalmente por ser uma emigração clandestina, descontrolada e imprevisível.

Dizia o jovem guineense que sobreviveu no contentor espanhol, que falhou aquela tentativa, mas com a experiência que teve, isso iria permitir-lhe não falhar na próxima..

Há uma realidade africana tão complicada , que a Europa ajudou a criar com independências extemporâneas e mal estudadas, que os povos não as entendem, que para os jovens africanos até se poderão considerar úteis e capazes  na Europa, mas na sua terra consideram-se incapacitados e sem hipóteses de integração social, étnica e profissional.

Embora os políticos até convençam o povo que só com guerras é que a Europa se fez, e África também é natural guerrear-se, a desordem e a violência são demasiado grandes para os jovens não tentarem a «fuga» .

Parece que a Europa foi "abandonada"  pelos EUA e pela Rússia nesta solução que devia ser de todos, e a China ajuda pouco, antes deita umas achas para a fogueira.

Amigo Luís, com os meus cumprimentos e, se achares exagerado,,manda para o cesto.

Antº Rosinha



Guiné > Bissau > c. 1964 > O cais do Pidjiguiti visto do Fortaleza da Amura..  Foto do álbum de Durval Faria (ex-fur mil,  CCAÇ 274, Fulacunda, 1962/64), que vive na ilha de São Miguel, Açores.

Foto: © Durval Faria  (2011). Todos os direitos reservados.

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Nota do editor:

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


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Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)