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sexta-feira, 29 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

Guiné > Bissau > 1968 > Fotos Falantes III (de 48 a 54) > A chegada do Ana Mafalda, o porto de Bissau, uma rua da cidade, navios da marinha, uma LDG a caminho do Xime... Pedaços do puzzle da(s) nossa(s) memória(s)... Fotos do riquíssimo álbum do nosso querido camarada e amigo do Fundão, Torcato Mendonça, que tem já, neste blogue, o estatuto de senador... Espero reencontrá-lo um dias destes, talvez na festa da cereja do Fundão... e dar-lhe um abraço. (LG) Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados. 1. Mensagem, de 21 do corrente, do Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/69 Meus Caros Editores: Como disse tenho tentado arrumar o que por aqui escrevi. Acontece que no último envio foram 'As estórias do José II, parte A', incompleta. Já tinha sido enviada e segue novamente. Ainda bem que tudo passou a 'Estórias de Manssambo'. A partir de agora não há confusões. Que chato que eu sou...mas devia ter arrumado ou tido mais cuidado com o arquivo do que escrevi. Abraços do Torcato (É pesado, se não der trabalho.... Acusem, não me importo e agradeço). A ansiedade fizera erguer-me mais cedo naquela madrugada. Assistia ao primeiro, e rápido, nascer do Sol naquelas latitudes. Ao longe, muito ao fundo, na linha do horizonte por entre a neblina já se avistava terra. O barco navegava em mar chão. Seguia o rumo das Caravelas. Rumo de impérios do passado, de desencantos e desamores. O Ana Mafalda segue o mesmo destino levando militares, não os de quinhentos para o início mas, isso sim, militares do século vinte para o fim do império. Ontem ou anteontem tínhamos passado pelo porto de Pedra Lume, Ilha do Sal, em Cabo Verde. Hoje aí estava o Continente Africano a vir ter connosco rapidamente. Fiquei encostado à amurada de bombordo, mil pensamentos a irem e virem, num falso isolamento. Àquela hora, já o convés estava a ficar cheio de militares, tão ou mais ansiosos que eu. Os velhos militares como o 1º Sargento ou o Sargento Moura Gomes, com mais de uma Comissão naquela terra, iam dando indicações apontando a terra a aproximar-se, cada vez mais por entre a neblina tropical. Quase na linha do horizonte, ao longe avistava-se um ponto negro. Aumenta de tamanho e começa a tomar forma de barco. Aproxima-se de nós um zebro, três ou quatro fuzileiros lá dentro, camuflados gastos, pele curtida por mil sóis da Guiné, acenam em saudação de boas vindas aos camaradas periquitos. Volteiam, duas ou três vezes e afastam-se acenando. Vão para a Ilha de Jeta, dizem-nos os velhos militares. O estuário do Geba e Bissau estão perto. De facto o tempo passa rápido e a terra está logo ali, verde em vegetação luxuriante. Estuário do Geba acima, pouco depois, vê-se uma ilha a estibordo e, a bombordo, apareciam os contornos da cidade. Recordação difusa, tal como a bruma que dificultava a visibilidade. A manhã já ia alta quando chegamos ao porto de Bissau e aí estava a cidade. (F Falantes III, 52). Fundeou o barco, atrás uma ilhota, à frente o cais a vir rio adentro, a marginal da cidade e um edifício grande com letras já meio apagadas – NOSOCO. Há poucos dias li um escrito e recordei esta imagem. - O que é aquilo? – perguntei. Eram os armazéns de uma Companhia francesa, hoje é tudo CUF (até o navio onde íamos) mas com nome de Ultramarina ou de Casa Gouveia. Vai ver e compreender. Resposta clara pois, para bom entendedor era suficiente. Enquanto esperávamos o desembarque, lembro-me de ter feito promessa a mim mesmo: tenho que sair daqui vivo e inteiro. Partido ou morto é igual e têm que voltar todos. Enganei-me. No regresso a Évora faltavam demasiados… demasiados… Não me lembro do desembarque. Sei que fomos para Santa Luzia. Ficamos num barracão enorme, aberto na fachada principal, um montão de colchões a um canto e pouco mais. Para dar as boas vindas, no largo fronteiro umas quantas viaturas destroçadas pelas minas esperavam para serem transformadas em peças… de três ou quatro nascia uma. Para melhor recepção fiquei de serviço á Companhia. A noite chegou rápida como a madrugada. Crepúsculo breve. Terra diferente onde até o Sol ia e vinha com pressa. Só o tempo, aquelas horas naquele barracão eram lentos a desandar. Pouco me lembro daquela noite a não ser uma partida ou brincadeira que me fizeram. Talvez, por volta da meia-noite, vieram chamar-me: - Está a chover. - O quê? Então que não chovia agora, respondi. Vim ver e senti a água a cair, aos poucos, pelas goteiras do telhado zincado. Saí. Não estava a chover. Riam-se os que me tinham chamado. Pois é, pois é, pensem quando dormirmos com as estrelas como manta…bom clima…fortifica o esqueleto. Ficamos cerca de três dias em Bissau. Vi a cidade por alto. Provei algumas comidas, fiz compras com indicação dos velhos, senti o pulsar de uma cidade com vida dada pelos militares e pouco mais (Fotos Falantes III, 48, 54). Na madrugada do dia 25 embarcamos num barco enorme, disseram-me ser uma LDG. O destino já o sabia – o Leste, quartel de Fá, de barco até ao Xime, depois em coluna auto. Simpáticos… Íamos, segundo as informações recebidas, ser a Companhia de Intervenção ao Batalhão (BART 1904), sedeado em Bambadinca. E, então sim, a comissão e a dança ia começar. Hoje, passados tantos anos, ao reler o que atrás foi escrito tenho que parar. Vêm-me à memória, em catadupa um conjunto de recordações. Paro. Nem sei quanto tempo, recostado no cadeirão fiquei, mais lá do que cá ou praticamente todo lá, naquela terra vermelha e ardente…nesse tempo, um jovem militar de empréstimo e vida interrompida. Tento então, antes de continuar, seguindo a metodologia da escrita referida no início, inserir algumas dessas recordações ou estórias dispersas. Continuarei depois, saindo de Bissau até Fá e, a partir daí 'continuar a comissão'. (*) _________ Nota de L.G.: (*) Vd. poste anteriore desta série de 18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4368: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (6): Raízes...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4368: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (6): Raízes...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O nosso Alf Mil Torcato Mendonça, de peito feito às balas dos guerrilheiros do PAIGC (instalados ao longo da margem direita do Rio Corubal), em cima do capô de um burrinho, qual exímio equilibrista, na estrada Mansambo-Bambadinca (?). Nunca sei qual deles é o verdadeiro herói, o Torcato ou o José (à esquerda). (LG) Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados. 1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 15 de Maio último: Olá, Camaradas Editores Com a tourada ao lado, fui escrevendo e vendo as pegas a não darem. Este escrito pouco tem a ver com o que costumo enviar. É para aliviar tensões e aquilo a que dizem ser "polémicas". Tenho disso escrito por aqui. Falta teclar. Há por aí textos vários. Um dia teclo e vai tudo. Estou a apanhar ritmo e a "acalmia" para a escrita. Mais uma pega falhada... Pois vai este escrito para ser diferente... Abraços do, Torcato 2. Mensagem de 16 de Maio: Amigos Editores. Ontem, depois de há muito nada mandar de escritos, enviei um com o Titulo - Passado e Presente. Estava "encrensado" com a tourada...e reli hoje. Se publicarem mudem ao menos o titulo para - Raízes. Estou com tentos na "forja": Musa Iéro; O Sexo em Tempo de Guerra; Pensamento Alterado (título a ser mudado) e etc. (...) Abraços e até ao meu regresso...Torcato 3. Comentário do L.G.: Há dias provoquei o nosso amigo e camarada José, alentejano-algarvio a viver no Fundão, a terra da melhor cereja do mundo (conselho de amigo: não venhas já a correr, Luís, que a primeira é para os pardais, os turistas e os apressados,; a melhor é a de Junho)... José: Vamos lá sair dessa morrinha... Daqui a um bocado tens aí o teu neto a querer jogar à bola contigo... Tens de ficar em forma... Vamos desenguiçar esses teus escritos... (...) Parece que a provocação resultou... O nosso camarada Torcato (re)começou a mandar-nos os seus textos, qu vamos publicar para contentamento dos seus admiradores (onde eu me incluo)... Alguns ficaram no limbo. Vamos recuperá-los. Combinei com ele que vai tudo para a série Estórias de Mansambo... tanto as de ontem como as das de hoje, tanto as histórias como as estórias, tanto o Torcato como o José... Simplex, bloguex... Obrigado, camarada. (LG) 2. Estórias de Mansambo (17)> Raízes por Torcato Mendonça Deixei a Auto-estrada, volteei pelo nó de ligação e preferi entrar na estrada secundária, procurando caminhos de infância ou, talvez melhor, de juventude. Tarde quente em Verão já, nesse ano, meio gasto mas aquecendo ainda forte os montes ligados uns aos outros, cobertos pela vegetação típica de estevas, medronheiros e sobreiros. A estrada serpenteava entre eles na fronteira entre Algarve e Alentejo reflectindo o calor. Conduzia devagar, com tempo só para mim e deliciando-me com a paisagem, sabendo que, alguns quilómetros à frente, a estrada seria mais larga e recta, correndo pela planície e charneca arenosa adentro. Mais uma curva e, antes de um cruzamento, aparecem umas quantas casas brancas, com as características barras azuis a debruarem portas e janelas, além das barras a subirem, menos de um metro, do solo xistoso do pequeno largo. Numa delas, à porta estava dependurado o característico garrafão já meio desfeito mas o suficiente para nos indicar a taberna ou a loja de tudo. Uma breve paragem, carro estacionado de traseira para o sol pois sombras eram falha da natureza e dispensável para os homens. Saí respirando o ar puro, sentindo o silêncio do calor, os cheiros daquela terra, o barulho das cigarras e a deixar entrar as recordações de um passado não tão distante assim. Devagar, como aquela terra nos exige, atravessei o largo em direcção à porta com o garrafão e entrei afastando as fitas de plástico da cortina. O fresco veio ao meu encontro e a penumbra obrigou-me a meter os óculos ao bolso. Dois velhos jogavam damas numa mesa a um canto. Ao balcão um homenzarrão, barriga proeminente, mãos apoiadas no balcão de madeira escura e usada, mangas da camisa aforradas e colete escuro. - Boa tarde a todos. - Boa tarde. - Resposta calma com olhares de interrogação. - Bebia uma cerveja preta se tiver e fresca, claro. - Cerveja só das ‘loiras’, grandes ou minis. - Mini, para já. Para não beber sozinho convido-os a beberem qualquer coisa. Agradeceram e recusaram. Bebi devagar, encostado ao balcão. Abri mais o colarinho do pólo e, sem dar por isso, deixei aparecer a tatuagem de um dos braços e disso me apercebi ao ver o olhar do taberneiro. - Isto parece ter cada vez menos gente. - Vai-se tudo. Uns para baixo para o Algarve e outros para cima para Lisboa e outros sítios. Só ficam os velhos e os que estão fartos do reboliço. -Vossemecê tem isso aí escrito no braço e, pela cara, se calhar andou por África. -Andei. Abanou um pouco e lentamente a cabeça. Depois devagar arregaçou um pouco a manga da camisa. Lá estava desenhado um coração com amor de mãe. Rápido baixou a manga. Não consegui ler o resto. - Então o senhor também para lá foi. - Andei pela Guiné. - Porra, que foi lá que eu estive. A cara abriu-se mais, o sorriso apareceu, os olhos ficaram mais vivos. Parecia outro. - Então, por onde? - Pelo Leste; Bambadinca e outros lados. - Eu, primeiro, fui para o Norte, Bigene e depois para Catió, lá pelo Sul. Quase não vi Bissau. Porrada e mais porrada, fome e febres e um calor de um cabrão. O tempo, esse, passava devagar demais. -Mais uma mini, loira e fresca. Riu-se. Tirou outra para ele e de um trago bebeu metade. Depois falou sobre a Guiné, as saudades ainda hoje dos camaradas e o regresso. Sentia-se a necessidade de falar, desabafar, mandar para fora as memórias retidas. Parou, bebeu o resto da mini e mais calmo, mais pensativo, voltou a falar: -Quando regressei, foi difícil fazer-me à vida. Andava por aí sem saber o que fazer. Andava inquieto. Um dia abalei até Setúbal. Estive lá uns anos bem bons mas tive que voltar. Não dava. Tomei conta aqui da loja do meu pai. Voltou a calar-se. Senti que regressara lá ou a alguma memória recalcada. Quanto dele lá teria ficado? Deu uma pequena palmada no balcão, olhou-me e com uma voz mais funda, mais grossa e pastosa, perguntou: - E vossemecê, deu-se bem com aquilo? - Ninguém se deu bem naquilo camarada. Vim e lembro aquilo como você. Pega-se á pele, entra cá dentro e fica para sempre. - Não tenha dúvidas. São lembranças fortes. - Tenho que ir. Quanto devo? - Porra. Nada, porra que até ofende. Então um homem está aqui a falar daquelas vidas e ia receber dinheiro ?! Quando passar aqui outra vez vem ao castigo’ e falamos melhor. Agora é de amigos… - Obrigado´, camarada. A malta que esteve na Guiné parece que tem uma união diferente, mais forte. - Não tenha dúvidas; não tenha dúvidas. Saí para o calor da tarde e senti-o atrás de mim. Voltei a apertar-lhe a mão forte e uma palmada correspondida no ombro. - Belo carro. Correu-lhe bem a vida não? - Nada disso. O carro é do patrão. Fui condutor na tropa e depois continuei na vida civil. Vou entregar o carro a Lisboa. - Pois…por aqui. Vai no caminho certo. Apareça um dia. E ria-se. - Até á próxima, camarada. - Até…lá. ____________ Nota de L.G.: (*) Vd. último poste da série > 10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4171: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Emboscada na Fonte de Mansambo

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4171: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Emboscada na Fonte de Mansambo

1. Mensagem de Torcato Mendonça (*), ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 8 de Abril de 2009: Meu Caro Carlos Vinhal: Depois de cortes e aligeirar o texto, aí vai o meu relato da emboscada onde morreu o Humberto Vieira, amigo do nosso Camarada Ribeiro Agostinho (**). É assunto que procurei aligeirar porque foi o pior desastre da minha Companhia. A morte de dois Camaradas, saber que alguns dos feridos ainda hoje sofrem e outras recordações revoltam-me. Agradeço que lhe faças chegar o texto, conforme combinado. Quanto a publicação transcende-me. Um abração e Boa Páscoa Torcato de Mansambo ESTÓRIAS DE MANSAMBO PARTE II – (FORA DE ORDEM) EMBOSCADA NA FONTE DE MANSAMBO – 19 de Setembro de 1968) Regressou, ia Setembro a meio. A chuva caía fraca na tarde cinzenta e baça. Tarde tristonha a não destoar assim do aquartelamento, com os seus charcos de água esverdeada, a lama, o capim a sair da mata, logo ali, e a entrar, atrevido ou consentido, a afagar uma fiada e a encaminhar-se para a outra fiada de arame farpado. Nem tão pouco destoava, dos rostos cansados e tristes e de olhares vazios dos jovens que, indiferentes à chuva, olhavam a coluna acabada de chegar. Não por mera curiosidade pois, certamente, o motivo principal era o correio. Desceu do Unimog, depois de ter olhado à volta. Cumprimentou os camaradas que o olhavam como o sortudo que veio de férias. Um Furriel, do seu Grupo, indicou-lhe um local diferente do de outrora onde ia agora ficar, num outro abrigo de construção acabada depois da saída dele. Ajudaram-no a levar a pouca bagagem. Já haviam arrumado todos os seus haveres, por de baixo e ao lado da cama. Sobre a mesa-de-cabeceira, uma novidade, o telefone de campanha e um ou dois objectos pessoais. Luxo para quem vivia meio enterrado e, apesar das paredes de blocos e da austeridade do lugar, das seteiras a toda a volta, da Breda montada a um canto e do armamento bem arrumado e pronto a usar, gostou e sentiu-se em casa. Não havia, ali, diferença entre oficiais, sargentos e praças, quer no alojamento quer na alimentação. Excepções para o comando, secretaria e cripto. Depois de arrumar tudo deitou-se em cima da cama e quedou-se um pouco a pensar. De facto, encontrara mesmo sem ainda ter falado muito com eles, os militares do grupo a mostrarem quebra física e anímica. Viver naquelas condições era desgastante. Má alimentação, falta de quase tudo – da elementar luz eléctrica, água potável para beber ou tomar banho – um sem fim de carências. Acrescia ainda o esforço de construir aquele aquartelamento no meio de quase nada. Oito casernas abrigo e anexos meio enterradas. Cavar, cortar cibes, abrir bidões, erguer paredes de blocos. Como se não bastasse, ainda a actividade operacional pois eram companhia de intervenção. Assim faziam operações, colunas, montavam e sofriam emboscadas, rebentavam minas a um ou dois contos a peça, sofriam flagelações ou ataques fortes ao aquartelamento. Jovens a perderem a juventude, a normal alegria de viver, a sofrerem os efeitos de uma contenda que pouco ou nada lhes dizia. Assim iam endurecendo e precocemente envelhecendo. Meninos há menos de um ano; homens endurecidos agora. Acendeu mais um cigarro e foi tentar falar com o seu grupo. Até nisso a vida naquele lugar tinha regras diferentes. O seu grupo estava em dois abrigos, como o resto do pessoal da companhia. Por prudência não se juntavam todos. Vivia-se partido ou repartido, cerca de vinte ou vinte e cinco homens por abrigo. Reuniram-se e ouviu mais do que falou. Anotou o que para ele tinha interesse. Homens a merecerem muito, muito mesmo. Assim não e havia volta a dar. Havia. Era grupo unido. Com um pouco de tempo dar-se-ia a volta. Dias depois, após o jantar, recebeu a ordem. - Amanhã vais à Moricanhe. Vê como estão por lá os milícias e a população. De madrugada, com o Sol no seu rápido espreguiçar próprio daquelas Latitudes, ouvia-se o reboliço do pessoal na preparação de mais uma saída. Abandonaram o aquartelamento abrindo a cancela – cavalo de frisa – do lado da fonte, circundaram o arame e foram direitos à estrada. Mil olhos a entrarem mata dentro, os picadores à frente a fazerem o seu trabalho e eles, devagar, propositadamente devagar, a manterem distâncias, a não pôr a arma ao ombro, a tentarem ser eles novamente, caminhavam estrada fora até ao alto, já depois do pontão do Almami, o local das emboscadas. A partir daí foram por um trilho, conhecido dos picadores, directos à tabanca da Moricanhe. Muito perto desta, inesperadamente um ou uns centos de rebentamentos e tiros para os lados de Mansambo. - Liga o rádio. Pede informações que é Mansambo a embrulhar. - Não dá nada. A mata é fechada. Não dá. - Vamos depressa, depressa, ali perto está a Moricanhe e antes há clareiras. Estabeleceram contacto rádio. Era um ataque a Mansambo. Ordem para continuar e esperar. O ataque era forte e durou bastante. Já na Moricanhe receberam nova ordem. - Vão para a estrada e façam segurança à coluna vinda de Bambadinca. Quase em passo de corrida, acompanhados do Sargento Milícia Mádia e de uns quantos milícias, rápido estavam na estrada. De repente sentiram o barulho da aviação e pararam. Vindos dos lados de Bambadinca, seguindo a estrada, passou um e logo mais dois helicópteros. Sentem os T6. Mau, mau, há grossa bronca. - Liga para o quartel. - A resposta foi: esperem a coluna. Esperam e desesperam. Nova ordem. Venham imediato este. O mais rápido possível regressam. Entram agora pela porta principal. Sentia-se o alvoroço e a tragédia no ar. Olhando em redor parecia que um ciclone tinha passado por Mansambo. Tentou saber o que se passava. Contaram-lhe de forma sintética, olhar de desespero, voz embargada pela raiva: - O grupo que foi buscar água à fonte caiu numa emboscada forte. Montaram metralhadoras e varriam tudo de modo a não prestarmos auxílio. Os gajos atiraram nos garrafões de vidro e os estilhaços atingiram alguns da malta. Iam dezasseis homens. Tivemos onze feridos, alguns graves, um morto e um desaparecido. Foi o maior desastre da Companhia. Deu ordem para o pessoal regressar aos abrigos e foi até à saída para a fonte. Horas antes, poucas, tinha por lá passado. A fonte estava a menos de cem metros, menos. Olha em redor e tentou perceber. Passou, nada viu e já lá estavam. Ora isso indiciava que sabiam qual o objectivo, tinham disciplina táctica e de fogo, conheciam bem o local. Tentou tirar conclusões e talvez tenha tirado. Certo é que o que viu e sentiu foi determinante para o resto da comissão. Fez sinal a alguns militares que ainda limpavam o trilho e regressou. Quem antes regressara era o desaparecido. Contou que ao tentar abrigar-se numa árvore, tentaram agarrá-lo e falaram em língua estrangeira. Socou o sujeito que parecia branco e fugiu. Quando lhe disseram disse logo: - cubanos. Por isso o modo como a emboscada foi montada. Cabrões! Teve a confirmação cerca de um ano depois. Ao interrogar um prisioneiro – Malan Mané – este confirmou que viram o grupo dele sair, não atiraram e eram comandados por um ou mais cubanos. NOTA: - A emboscada na fonte de Mansambo foi a 19 de Setembro de 1968. O In causou nas NT um morto (Soldado Trms Humberto P. Vieira), cinco feridos graves e seis ligeiros. Um dos feridos graves (1.º Cabo Condutor João M.J. Figueiras veio a falecer a 25 de Setembro) e outros vieram para o Hospital Militar Principal – Lisboa. Passados meses foi aberto um poço dentro de quartel; construíram-se duches e vieram dois obuses 10.5. Num ataque ao Poidom estava um cubano. Perdeu o boné com a foto de mulher e filhos mas, infelizmente, conseguiu abandonar o local com cabeça… __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 18 de Janeiro de 2009 Guiné 63/74 - P3757: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Férias em Janeiro de 1969... (**) Vd. poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4098: Tabanca Grande (129): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Sold Radiotelefonista, Condutor Auto e Escriturário, QG/Bissau, 1968/70

domingo, 18 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3757: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Férias em Janeiro de 1969...

Mensagem do Torcato Mendonça: Queridos Camaradas e Amigos Cheguei a casa, desvio aqui e acolá, uma ou outra arrumação e o Blogue pronto a ser lido. Fui lendo. Guileje...e Guerra e Guerra e Guileje e as "nossas mulheres" e um texto ou outro giro. Todos giros de umbigos a macacos, de guerras a vidas tramadas...e de repente lembrei-me: - Eu disse ao Virgínio Briote que em Janeiro lhe mandava um texto. Porquê? Não me recordo... É preocupante... a senilidade começa pelo esquecimento do facto próximo ou até o simples esquecimento de fechar a braguilha e...aí está...instala-se mansamente a velhice...mas, como vos dizia aí vai um escrito. Bem é um escrito pronto há muito e não revisto. Um escrito demasiado pessoal, intimista, "volteado" e, a merecer cuidado...é de paz...mas a guerra e a morte, se bem me lembro, estão bem presentes. São daqueles escritos que escrevemos em recordação de desabafo ou em loucura num intervalo de algo que nos aconteceu....Se tiverem paciência, é difícil..., leiam...depois...bem depois saiu-me das mãos e ofereço a três amigos...por vezes as recordações doem e aquela estúpida guerra volteou-nos a vida. Não leio o que acabei de escrever e, menos ainda, os escritos...vidas...tantas vidas. FÉRIAS por Torcato Mendonça ex-Alf Mil CART 2339 (Mansambo, 1968/69) 1 - Chegada Acidentadas as férias nesse Janeiro. Férias de Inverno. Ainda na Guiné tivemos, no 2º Grupo, o primeiro morto em combate. Vim para Bissau, esperei uns dias e embarquei rumo a Lisboa. Na véspera cortei as barbas com imensa pena minha. Não queria problemas no aeroporto. Havia um pequeno papel branco a preencher e a entregar a um "fiscal de vidas e afins". Melhor dizendo, à PIDE/DGS, controladores de “tudo”, para quase todos. Levantou-se a hipótese de haver uma certa diferença, com aquela organização, lá e cá. Haveria? Claro que não. Fica em suspenso… À chegada a Lisboa, com catorze graus, mais grau menos grau, de temperatura, tive a sorte de ter à espera meus pais com uma camisola de lã grossa e um casacão. Passámos pelos Adidos e jantámos não muito longe. Tive um pequeno problema no restaurante. Nada de importância. A minha mãe lançou-me um olhar de reprovação. O meu pai sorriu e deu-me um toque no braço. Era o “clima” a mostrar os efeitos. O empregado, mostrou a tatuagem, sorriu também e, disfarçadamente, perguntou: - Onde? - Guiné - foi a resposta. Satisfeito, teve o cuidado de dizer algo aos visados. Olharam-me como se olha uma personagem perigosa. Terminada a refeição, saímos pois tinha pressa em chegar a casa. Entrei no carro, para o lado do condutor, como pendura. Sentia-me incomodado. As luzes dos carros, vindos em sentido contrário, o ruído do rolar pela ponte, então Salazar, deixavam-me confuso. Pouco depois pedi: quando puderes pára que eu prefiro ir lá atrás, as luzes, das viaturas vindas em sentido contrário confundem-me. Em Setúbal voltámos a parar numa festa ou feira, não sei ao certo. Pior porque o barulho perturbava-me. Pouca a demora, talvez só para entrega de uma encomenda ou algo parecido. A viagem decorreu sem problemas e, algumas horas depois, já em casa, rapidamente procurei um copo e bebi água. Tinha saudades de beber água tirada de uma torneira. Francamente. Hoje ao recordar parece ridículo. Mas passei demasiado tempo no mato, em Mansambo e nas Tabancas. A água boa era um bem raro. Bem, a boa só engarrafada ("Vichy" ou "Perrier"), a normal…enfim… O pouco conforto ou, simplesmente puder beber água, era nas passagens, curtas, por Bambadinca ou, mais raramente, por Bafatá. Os dois ou três dias de passagem por Bissau de pouco serviram. Recordo que, possivelmente nessa curta estadia, a raiva contida por ver tanto militar gozando o conforto de Santa Luzia me desagradou. Aquele mundo, pouco ou nada tinha a ver com o que eu vivia, lá para o leste. E se tivesse no lugar deles ou não fosse operacional?! Malhas do Império! 2 – Do café à PJ No dia seguinte, depois da chegada, juntei-me com dois amigos após o jantar. Um tinha estado no início da guerra na Guiné, integrado numa Companhia de Caçadores Especiais. O outro tinha vindo, pouco tempo antes de Cabinda. Conversámos e combinámos dar um pequeno passeio. As distâncias no Alentejo são logo ali, por isso uma voltinha de quase duzentos quilómetros era logo ali. Ficámos pelos cento e cinquenta…logo ali o Algarve. Partimos, o Zeca ao volante, a conversa a fluir e a viagem a ficar curta. Demos a volta, não a combinada, da cervejaria ao hotel – dancing do dito…ficámos só pela cervejaria e rumámos de novo ao local da partida, em regresso de acelera. Por isso, pelo azar ou porque até dava mais gozo, o cabo do acelerador partiu-se. - E agora? - Acende o isqueiro e dá à luz – disse o Zeca. Habituado à mecânica, aos carros, aos peões e eteceteras, lá atou um cabo e ficou com a aceleração, não de pé mas de fio de aço. - Aguentem que quando o puser a trabalhar até salta. Vai parecer um potro a escoicear. Não saltou. Escoiceou um pouco e veio rápido. Parámos uma ou duas vezes pois o quatro rodas aquecia. Finalmente chegámos. Parámos, à esquina de uma das cinco ruas que saíam de uma Praça, bem no centro da vila. Arrefecia assim o motor do automóvel e nós continuamos a conversar. Madrugada já entrada, resolvemos regressar aos lares. Um morava perto, eu e o Zeca morávamos na mesma rua mas, para o carro não parar, preferi ir a pé. Emprestaram-me um boné, cabelo curto e frio de Janeiro não era agradável à cuca e até amanhã companheiros. Logicamente no dia seguinte levantei-me tarde. Depois do almoço, falei um pouco com meu pai e viemos até ao café. Ele, devido ao adiantado da hora, nem entrou. Comprei [o jornal] O Século, juntei-o a um livro e ao boné e entrei no Derby. Saltei para um banco do balcão e pedi um café duplo. Estava a acabar a bebida, quando aparece o Zeca e diz: - Anda comigo ali ao Tribunal. - Falava baixo por hábito, e, por vezes, pouco abria a boca. Ou nervos ou feitio “prendiam-lhe” os dentes… Percebi mal e pensei que íamos ver um amigo que lá trabalhava. Saí calmamente. Depressa: dizia ele e acelerava o passo. Calma, dizia eu. Era perto o nosso destino, nem cem metros. Entrou ele e, pouco depois entrei eu. Escadas subidas, vejo-o entrar numa sala. Fui atrás dele. Numa secretária estava um sujeito de fato escuro, cara magra e macilenta ou úlcera no estômago, a olhar-me. De pé um outro, alto e forte. Fiquei a olhar e, antes de perguntar algo, ouvi o mais magro olhar-me e dizer: - Descoberto! - Só isso percebi. Tirei o boné, pu-lo junto ao jornal e ao livro e perguntei: - Descobriu o quê? - O sujeito disparou: - O boné, o boné, quando se entra numa sala destas é falta de respeito manter o boné. Nem o deixei continuar. Voltei-me para o Zeca e disse: - O que é isto? - Ele tentou responder mas gaguejou. O sujeito alto respondeu por ele: - Policia Judiciária e o Senhor Inspector (qualquer coisa) quer fazer-lhe umas perguntas. Retorqui de pronto, tirando o Cartão Militar do bolso. - Vim, há dois ou três dias de férias, da Guiné. Está aqui a minha identificação e ouvem-me por deprecada. Olharam-se e olharam-me. Falou o tal inspector, em tom mais comedido. - Já conversámos com o seu amigo, ainda falta um outro e o senhor. Sabemos que, na madrugada de ontem estavam estacionados a uma das esquinas desta Praça. Houve um problema no banco situado mais abaixo; só lhe queremos perguntar se viu ou ouviu algo. Se não se importa pode responder? Pensei um pouco e disse: - Não ouvi ou vi nada, falávamos e o que se passava fora do carro não me interessava. Ainda perguntei: - Roubaram muito? - Senti o sorriso em ambos e a resposta: - Não se tratou de dinheiro, foi nos arquivos. - Ficaram com o meu nome e saí dali com o Zeca. Ria dele e da figura que tinha feito. Quando entrei, à noite, no café voltei a ver de relance os homens da Judiciária. As férias continuaram e além de curtas, ainda tiveram pequenos incidentes. Um ano depois, talvez um pouco mais, já regressado da Guiné, cruzei-me na rua com um sujeito. Parou. Olhou para mim e tratando-me pelo antigo posto militar e pelo nome disse: - Já acabou a sua comissão ou volta a estar de férias? Olhei-o e disse: - Não estou a ver quem é. Judiciária – foi a resposta. - Lembra-se do meu nome? – perguntei-lhe. - Completo - respondeu. Falámos breves minutos. Se tinha boa impressão daquela polícia, a partir daí fiquei a respeitá-la mais. 3 - Viagem com Amores, Desamores ou Sonhos? (Já não na primeira pessoa. Porquê? Nem sei. É preferível: - Quem será o viajante ou o personagem desta estória? Um fulano qualquer; um fulano que passou pelo hotel e pelo bordel; um fulano que teve a donzela e a meretriz; um fulano que… ah…e… um dia, ou, em quantos dias se sentiu vazio, perdido, por vezes cambaleante, em balanço provocado por uísque, “1920”, “Carvalho Ribeiro & Ferreira” ou, simplesmente medronho. Só queria encontrar a “picada da vida”…mas esta tardava, tardava…um dia pensou tê-la encontrado…correu mundo, assentou…mas nunca se aquietou, no entanto, em eterno desassossego… qualquer dia… ou num dia qualquer, sorrirá, como outrora…se a encontrar, dir-lhe-á: olá; Tu outra vez? Vamos ou não…báh, ah, ah… tem cuidado estás em frente de um imortal….báh… mas é encontro certo… o mais certo…penso tê-la visto, vocês certamente também…se dela não gostamos, porque dela nos recordamos?...talvez porque este sitio fala demasiado disso… ou dela…certamente quanto menos se conhece mais se fala…. Vamos à estória: Desceu do comboio. Atravessou em passadas largas a velha estação. Caminhou, já cá fora, em direcção a um táxi. O motorista, certamente por o ver com um saco numa mão e um pequeno embrulho na outra, lesto, abriu-lhe a porta da bagageira. Entrou no táxi e, só então, desabotoou os botões do casacão. Adaptava-se lentamente ao frio, quase primaveril para muitos, mas, frio de Inverno para ele. Disse ao taxista: - Costumo ficar no Hotel XX. Desta vez preferia ficar num local mais central, calmo e discreto. Como resposta, além do olhar avaliador pelo retrovisor, recebeu um lacónico: - Devo ter o que precisa. Atravessaram parte da cidade. O pensamento dele voou até à fonte de Mansambo, à estúpida emboscada onde um antigo taxista, seu amigo, tinha falecido. Sentia o tormento a instalar-se. Felizmente, pouco depois, o táxi parou numa pequena praceta sua conhecida. O motorista saiu e não tardou muito a regressar. - Deve gostar – disse. Pagou. Esqueceu a nota pequena. Em troca, recebeu um sorriso cúmplice e um cartão: - Se precisar e estiver livre… Atravessou a rua e entrou na residencial. As formalidades habituais na recepção, deixou os documentos e, acompanhado por um empregado, subiu ao quarto. Pequeno hall, saleta e quarto. Gostou da boa recuperação do edifício, quer no exterior, quer no interior. Deixou o saco, o pequeno embrulho e desceu. Ao passar pela recepção devolveram os documentos, confirmaram os dias previsíveis da estadia e indicaram-lhe o bar. Pediu um café duplo, água e uísque simples. Bebeu lentamente e foi tirando notas para um pequeno bloco e uma agenda. Nem meia hora demorou em regressar ao quarto. Olhou o relógio, tirou o casacão, pequena arrumadela na roupa, abriu o rádio e recostou-se no sofá. Faltava mais de uma hora para o encontro combinado. Relaxava sentindo o calor suave a vir do aquecimento central. Tentava desviar, o mais possível, o pensamento no regresso à Guiné, mas era inevitável. Estava de férias e queria deixá-las decorrer sem o espectro da guerra, mas voltava sempre lá. Há pouco pensava no que iria fazer após o regresso daquela guerra. Saberia adaptar-se? Iria fazer outra e outra? Tinha tempo, muito tempo ainda para gastar desta comissão. Teria que voltar e viver…ou tentar voltar, o mais possível, ao seu passado. Sentia estar diferente! Passou rápido o tempo. Levantou-se e vestiu o casacão. Agarrou no embrulho e saiu para a rua. A noite de Inverno já descia, naquela luz suave da partida de mais um dia e os candeeiros, a custo, acendiam as suas luzes. Como conhecia bem as ruas, rápido as atravessou. De longe viu a pastelaria onde a namorada o esperava. Efectivamente lá estava ela, cabelo louro, caído pelo ombro, olhos verde-mar e um sorriso aberto. Abraçaram-se, beijo leve – à anos sessenta – sentaram-se mãos a apertarem mãos. Sentia a emoção no rosto dela e, apesar disso, tentava sorrir voltando a um passado, não tão longínquo assim. Talvez três ou quatro anos, nem tanto, quando começaram a andar juntos. Jovens, livres e alegres até à separação imposta. Mantiveram a relação, meio oficial, meio platónica, meio tudo e nada mas, sempre, isso sim, sempre sujeita à vida militar dele. Até nisso os militares, o serviço por eles imposto se intrometera e, o homem ora em frente daquela mulher, era significativamente diferente desse jovem de outrora. Ela sentia-o mudado, o olhar endurecido e inquieto. Disse-lho. Questionou-o porque não lhe contava o que por lá passava. Ele sorriu, ainda sabia – ao menos isso – sorrir. Bateu, no seu habitual gesto “maquinal”, com os dedos na mesa e olhou-a para, logo, baixar o olhar. - Estás nervoso? Tu? Vou sabendo o que por lá se passa, por amigas, mulheres de militares e o até madrinhas de guerra. Ele franziu a cara, respirou fundo e, olhando-a bem, disse: - Falemos de nós, deste momento, pois, de certeza que “daquilo” não falo. Permaneceram a conversar, longa e alegremente de outros assuntos. Saíram para jantarem juntos e prolongaram deliciosamente o momento. Deram um pequeno passeio e ele acompanhou-a a casa. Entrou, cumprimentou a família e demorou-se pouco. Regressou rápido á residencial. Sentia, ao atravessar aquelas ruas suas conhecidas, a insegurança das sombras. Que diabo de vida. Porquê? Entrou, dirigiu-se ao bar e pediu um uísque. Bebeu rápido e pediu um segundo. Agora, mais calmo, rodando o copo entre os dedos, bebia lentamente. Sentiu alguém a aproximar-se dele. Já o tinha visto anteriormente. Talvez sentado a um canto do bar aquando da sua primeira chegada. Possivelmente. O sujeito dirigiu-se a ele sorrindo e cumprimentou-o num fraquíssimo português. - Sou o dono da residencial e falo muito mal a vossa língua. Riram-se e tentaram falar bilingue. Numa algaraviada que, pouco depois sem disso se aperceberem, estava a ser escutada pela esposa do proprietário. O marido apresentou-a. Alta, elegante, olhar azul penetrante e bonita, muito bonita. Falava pausadamente, ligeiro sotaque, sorriso franco. Gostou. Talvez por isso, ou por necessitar estar só, retirou-se para o quarto. Deitou-se devagar e calmamente adormeceu, embalado pelo ligeiro calor do aquecimento e por algum pensamento. Acordou tarde e, sem pressas, foi-se preparando para a saída. Já na rua sentiu uma ligeira brisa, vinda do lado do mar, a tocar-lhe agradavelmente a cara. Dirigiu-se na direcção da brisa, sentou-se numa esplanada, abriu o jornal, antes comprado e beberricou um café, enquanto dava pequenas dentadas num bolo de amêndoa. Fazia horas para o almoço com a namorada e gozava a paz dos deuses. De quando em vez parava, vagueava o pensamento para junto dos camaradas em país longínquo, acendia mais um cigarro e voltava, por vezes com dificuldade à leitura do jornal. Noticias de gente feliz…com ou sem lágrimas…felizes… Almoçou com a namorada. Passou talvez mais dois dias sempre iguais. Mas começou a sentir a diferença, a adaptação, por vezes havia um misto de acomodação e inquietação. Não recorda já. Possivelmente ao terceiro ou quarto dia, de tarde, teve que regressar á residencial. Junto á recepção estava o proprietário em conversa com uma mulher. Cumprimentaram-se e simpaticamente a mulher foi-lhe apresentada. Falou em inglês e recebeu a resposta em português. Riram-se. Acabou por se sentar só para beber um café. A jovem, mais de trinta e menos de quarenta, irradiava simpatia. Olharam-se, fundindo um olhar a não esconder a empatia mútua. Demorou-se pouco. Subiu ao quarto e telefonou tratando de vários assuntos. Á noite, depois do jantar e do habitual, no regresso à residencial manteve também a rotina: entrou no bar. Sentou-se e viu-a sozinha. Cumprimentou-a com uma vénia e disfarçou o sobressalto. Ela, pouco depois aproximou-se e sorrindo começaram a conversar. O dono e a esposa juntaram-se na conversa. Jogou um pouco á defesa e não tardou a despedir-se. Na tarde do dia seguinte vagueando pela marginal, viu-a. Sentiu aquele click de ter sido seguido. Desconfiança ou coincidência? Esperou-a e cumprimentaram-se. Depois falaram de banalidades durante algum tempo. Pouco. De repente ela disse: - Tenho que sair, antes do jantar, em trabalho. Quer vir comigo? Olhou-a, sorriu e, antes de responder ela voltou a falar; - Por acaso vi-o esta tarde a despedir-se de uma jovem, não quero que tenha qualquer problema. Estou habituada a andar só. Além disso é perto daqui. Olá…temos gente que sabe puxar o anzol…esperou e sorrindo respondeu: - Aceito. Antes tenho que voltar á residencial. Necessita de um bodyguard… - Nada disso. Sei que é militar. Queria somente companhia. Penso que conhece o Algarve e lembrei-me de o convidar pois penso estar em férias. Nada respondeu e regressaram á residencial. Ele telefonou em desculpa de súbita indisposição e não tardou a descer. Estranhou a demora mas, quando ela apareceu não deu o tempo por perdido. Vinha vestida em tom cinza, camisa branca, lenço de cor mais alegre, casaco comprido num braço, mala e pasta no outro e cabelo solto. Linda mulher! Saíram. O carro dela estava perto. Entraram, o rádio debitava música suave a condizer com o tipo de condução dela. Olhava-a pelo canto do olho, a camisa não tão solta que não deixasse imaginar um peito firme, a saia a subir um pouco. Conversaram de futilidades na curta viagem. Quando chegaram, depois dela arrumar o carro, ainda deram um curto passeio olhando o mar a entrar na noite e regressaram devagar. Deixou-se guiar. Sentiu o braço dela a entrar no seu. Talvez tenha estremecido. Olhou-a e sorrindo apertou um pouco, sentia-a mais próximo e o perfume suave a provocar-lhe um desejo difícil de conter. Entraram no restaurante. O gerente esperava-a. Ele foi até ao bar tomar um aperitivo. Pouco depois, já acompanhado por ela esperaram a chamada para o jantar. Finalmente vieram chamá-los. Comeu pouco e menos bebeu. Conversaram mais. Ela, com um entusiasmo contagiante, falava de turismo e das fortes possibilidades do Algarve. Ele ouvia, contradizia aqui ou acolá ou concordava. Quase a terminarem o café com o sempre apetecível, adorado por ele, bolo de amêndoa, o gerente veio entregar um pequeno dossier. Trocou breves palavras com ela e afastou-se. Saíram e ela pediu: - Guie-me você agora. Onde me quer levar? - Onde você quiser. Terá que conduzir porque não tenho carta de condução. Caminhavam afastando-se do carro e a brisa fresca levou-os a regressarem. Voltaram em curta corrida e ela, encostada ao carro, esperou-o abrindo os braços. Entrou neles, beijou-a levemente na testa e ouviu a pergunta: - Diz-me quem és. É melhor o tratamento por tu. Eu sou a Beatriz…e… Olhou-a e foi demasiado brusco na resposta. Sentiu isso no olhar dela. - Sou um homem em férias. Chamo-me José. Só isso e é muito. Entraram no carro e ele pediu para ela ir a uma cidade próximo dali. Viagem breve e conversa quase sem sentido. A desculpa foi a música. Chegaram, saíram mas sentiram demasiado frio. Férias de Janeiro… - Regressamos? - disse ela. - Tudo bem. O regresso foi lento e a conversa calma, mais intimista ou mais sentida. Pareciam dois velhos conhecidos. Chegaram e ele tocou-lhe no braço. - Já vou, não tenho cigarros. - Há no bar - disse ela. - Espera então um pouco por mim. Ela compreendeu. Demorou pouco. Ao entrar no bar viu-a com o casal habitual e para lá se dirigiu. Falaram, em boa disposição, durante algum tempo. Alegando necessidade de dormir retirou-se. Deixou a porta encostada, a luz mais fraca acesa e esperou. Virá? Calmamente fumava e, de quando em vez “voava” até Mansambo. Era a sua eterna viagem, o seu eterno sentimento de culpa de algo que não sabendo exprimir, o deixava triste, o levava a pensar nos camaradas…a porta de entrada não se mexia e pensou que ela não vinha. Mas veio. Entrou como um visão etérea, roupão claro, cabelos soltos e riso aberto. Olhava-a sorrindo e sem nada dizer. Afastou-se um pouco no sofá e ela sentou-se. Conversaram então, quase em sussurro, em aumento de desejo e continuaram, adultos que eram, a fundirem-se num só…com o sol de Inverno a chegar sentiu um beijo e observou-a, novamente envolta no roupão, a sair. Levantou-se, bebeu um pouco de água e acendeu um cigarro para, logo de seguida o apagar e voltar á cama. O dia seguinte foi igual aos outros. Não estava de bem com ele. Partira-se algo. Á noite, quando regressava à residencial, encontrou uns amigos e beberam bastante. Quando entrou, o bar ainda estava aberto. Bebeu um uísque. Pediu segundo e sentiu a mão do dono no braço: - Why? Regressou ao quarto. Sentada no sofá, ela ainda o esperava. Olhou-o, abanou a cabeça, levantou-se e saiu. Esteve, não se lembra quanto tempo ali. No dia seguinte telefonou para um amigo e disse-lhe: - Vais buscar-me ao final da tarde ao comboio do Algarve? - Porrada, não? Safa-te ou fala com quem sabes, aí. - Nada disso. Antes de entrar no comboio, despediu-se da namorada em promessa de regresso rápido. Viu-a acidentalmente anos depois. Quase dois desconhecidos. Da Beatriz nunca mais soube nada. Ainda regressou, talvez três anos depois á residencial…outras vidas… Quando desceu do comboio, contou ao amigo uma versão muito aligeirada de um arrufo de namorados. - Sabes como curas isso? A Francine perguntou por ti... Vamos… - Não! Conduz esta droga e vamos beber um copo... Mulheres…. (Qualquer relação com a realidade é pura coincidência… mas se e alterarem os nomes…isso é a vida) ___________
Notas de vb:
Último artigo da série em 15 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3741: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Porra, meu alferes, sou cabrão, eu mato-a...

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3741: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Porra, meu alferes, sou cabrão, eu mato-a...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça... duas facetas do quotidiano.

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça:

Caros Editores: Já estamos em 2009. Nunca mais enviei nada.
Comentário aqui ou acolá, vontade de outros fazer...por vezes é preferível ficarem no 'tinteiro'.

Andam por aqui uns escritos... coisas do passado e outras a merecerem revisão. Falta-me garra e, por outro lado, estava muito visível.

Posso vir a escrever sobre os macacos cães...posso..., pois: deram-me cabo de uma emboscada...Seguiam-nos, à devida distância, nas colunas. Berravam se fossem incomodados... Fui fazer uma operação na zona de Nova Lamego, caminhando pela rua tres ou quatro militares velhos e um macaco cão. Diz um Major: "Ora aí está. O militar mais apresentável é o macaco"... Sacana, o macaco, claro.

No Leste haviam muitos. Que me lembre nunca comi. Era e sou de boa boca. Comi javali, gazela, vaca de mato, etc. Cá já comi cobra, lagarto, rã (pernas). Ora com as fomes que por lá passei, nunca me faria rogado a um bom naco de macaco....até uns peixes (quatro címetross o máximo) os putos apanhavam-nos, esfregavam na areia para sair a viscosidade e eram fritos em azeite e piri-piri. Proteínas e deliciosos se engolidos com vinho e coca-cola....Era melhor que feijão frade ao pequeno almoço, almoço e jantar...Vida de mato...
Torcato Mendonça

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça e o seu grupo de combate, no regresso a casa...

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


2. Estórias de Mansambo (14) > Frio de Inverno (*)

por Torcato Mendonaça


Quase chocaram ao dobrar a esquina. A culpa seria do vento frio, pois ambos iam de cabeça baixa. Fizeram rápido desvio. Nas suas caras, dois sorrisos foram um cumprimento.

Ele olhou-a, sorrindo ainda e desejou-lhe:
- Tudo de bom.

Ela agradeceu. Olhou-o a mostrar a felicidade que só uma mulher grávida de muitos meses consegue deixar transparecer.

Entrou na Praça, sentindo o ar gelado descendo da Estrela. Apressou o passo na direcção do Café logo ali e enrolou-se mais no cachecol.

Sentou-se junto à vidraça olhando o movimento da rua cá em baixo. Ao mesmo tempo, interrogava-se:
- Porque teriam as mulheres grávidas uma feminilidade tão grande e uma beleza infinita? Era a vida a vir… não … coisas de deusas…

- Aí está o café curto e quente - disse-lhe o dono do café. - Parece estar muito bem disposto hoje e não ter frio.

Mas tinha. O frio vai passando… e a disposição é da crise…

Sem querer, olhando através da vidraça, regrediu cerca de quarenta anos. A memória… a memória… tem razão o Professor, tem razão quando, logo no início O eco silencioso” diz:
- De todas as funções cognitivas, de todas as armas do intelecto, aquela cuja perda mais assusta a vítima... é sem dúvida a memória…
- Bolas, de facto a memória.

Quase instantaneamente regredia quarenta anos e lá voltava. Quase se sentia lá. O mesmo ambiente a envolvê-lo. Quase... e tão longe no tempo e no espaço. Recordava-se bem de tudo. Diacho, diacho, porque correlacionava certos acontecimentos do seu quotidiano com esse longínquo passado? Com vivências tão díspares? A case study ou uma parte dele teria lá ficado...louco.

Partilho, então, esta recordação. Se quiserem ouçam:

Estavam naquela tabanca enorme, talvez a servir de tampão ao avanço da guerrilha, aí pelo décimo sexto mês da comissão. Foram reabastecidos nesse dia logo a seguir ao almoço e, finalmente, veio correio. Veio também um envelope “oficial”.

Deu uma vista de olhos pelo correio pessoal e abriu a sua escrivaninha pessoal – uma velha caixa de granadas 60 – leu então o correio oficial, tirou uma velha carta e esticou-a no chão. Olhou-a demoradamente, escreveu meia dúzia de linhas no bloco e berrou cá para fora:
- Chamem os nossos furriéis…

Pouco depois aí estavam eles, um ainda a esfregar os olhos e olhavam-no com cara de caso. Devia vir aí borrasca.
- Vamos sair daqui amanhã. Mandaram-me apresentar no Batalhão. Os sacanas atacaram Candamã, Afiá e querem saber qualquer coisa… ou onde eles estão… Merda para isto. Leiam a mensagem e.. - não continuou.

Espavorido, olhar meio tresloucado, entrou um soldado e, de pronto, berrou apontando para um aerograma:
- Meu alferes, recebi carta da sujeita com quem vivia. Diz que está prenha…
- Pára com essa merda. Entras aqui, não pedes licença, berras e falas do quê?

O soldado começou a falar e ele, virando-se para um furriel fez-lhe um sinal. Este saiu e voltou logo.
- Não há ninguém.
- Conta lá então.
- Recebi o correio e agora, ao fim deste tempo todo, diz-me estar grávida? Desde que viemos que não a vejo. Quanto tempo está uma mulher grávida? O meu alferes sabe ou não? E os nossos furriéis?
- Sou solteiro. Somos solteiros. Mas é capaz de ser tempo demais. Não falas disto a ninguém. Como amanhã vamos embora, falo com o médico.
- Porra meu alferes, sou cabrão, eu mato-a…eu…
- Não és casado e pode ter havido qualquer problema. Não matas nada. Vamos tentar resolver o assunto. Não dizes a ninguém. A ninguém. Logo falamos depois os dois ou com os nossos furriéis.

Depois do soldado sair, acendeu um cigarro e esperou alguma palavra dos furriéis. Nada.
- Temos um problema. Além da saída de amanhã e o raio que parta. Qual a vossa opinião? - disse, cortando o silêncio.
- Ele mata-a… mas deixe-me ir falar com ele antes do jantar.
- Tirem informações e falamos depois. Aqui está longe mas olho nele. E agora? Esta agora…que chatice. Há cada uma…

Ia sabendo o que se passava pelo furriel e mais tarde por um soldado. Tratou-o sempre normalmente. Um dia, talvez quase um mês depois, falaram, sentados noutra tabanca com duas cervejas a balizarem terrenos.
- Então? Mais calmo, tudo está mais esclarecido e a vida …continua…

Nem o deixou acabar. Numa voz calma e grossa disse:
- Meu alferes, já a deixei. Mas mato-a. Isto não parece conversa do meu alferes. Esta conversa não é de si.

Calaram-se e foram bebendo em silêncio. Acendeu um cigarro, estendeu-lhe o maço e só depois falou.
- Não quero falar mais disto. Aqui há dois homens. Eu não quero que estragues a tua vida. Cada um é como cada qual e a vida por vezes é uma merda.

Calou-se. Que mais havia a dizer?

O outro abanou a cabeça, cuspiu para o chão, agarrou a garrafa. Num gesto fez o alferes agarrar na garrafa e, batendo uma na outra, beberam longos tragos. Esboçaram sorrisos. Por algum tempo foram bebendo e fumando em silêncio.

Passados meses, muitos meses, numa noite fria apertaram as mãos e com os olhos disseram tudo.

Palavras para quê... uma despedida.

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste desta série de 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País


Estórias de Mansambo






Torcato Mendonça
ex-Alf Mil
CArt 2339
Mansambo, 1968/69





2 - Instrução, embarque e viagem até á GUINÉ da CArt 2339

2 -1 - O 2º GrComb

Concentração em Évora

RAL 3, Setembro de 1967, local de concentração dos graduados da Companhia Independente 2339.
Dias depois chegariam os soldados, a maioria saída da recruta, para receberem a especialidade de atiradores. As outras especialidades seriam dadas noutras Unidades Militares e mesmo no RAL.
Nos primeiros dias as habituais reuniões de graduados, a constituição de grupos para ministrar a instrução e outros assuntos.
Os Cabos Milicianos escolhiam os aspirantes para a formação dos quatro pelotões de instrução. O meu era, devido á classificação, o 2º Grupo. Fui escolhido pelos futuros Furriéis – Rei, Rodrigues e Sousa. Todos tínhamos tirado, na mesma altura e local, Vendas Novas, a especialidade: Atirador de Artilharia.
O Comandante de instrução fora um Capitão, a puxar forte por nós pensando, talvez assim, preparar “melhor” os graduados para a defesa do Império. Certo é que ficamos a perceber mais de equipas de cinco, sentido de punho fechado e “coisas de comando” do que secções de nove elementos, pelotões e outras. Misturaram-se, durante a instrução dada á Companhia, os conhecimentos adquiridos e saiu algo de jeito.
Vieram os soldados, foram integrados nos vários grupos, creio que de forma aleatória, ou mais pelo conhecimento, que tinham entre eles, da recruta ou vida civil.
Eram quase todos homens do Norte. O meu grupo tinha só dois alentejanos. Todos os outros eram do Porto, Póvoa, Lousada, etc.
Com os graduados era metade, metade: O Alferes era algarvio, criado no Alentejo e um Furriel natural de Vila do Bispo, algarvio portanto. Os outros dois Furriéis eram da zona do Porto.

Já na Guiné houve mudanças. O Sousa (Fernando Luís, desportista e professor conhecido) foi ao segundo ou terceiro mês para a 3ª ou 5ª de Comandos. Ficou nos Comandos, mudando de Companhia, até ao fim da comissão. Não perdeu o contacto connosco e regressamos juntos. Foi substituído pelo Sérgio, natural de Angola. Estudou e trabalhava na zona do Porto. O Rei, ficou sempre, felizmente, no grupo a corrermos Guiné fora.
O Rodrigues, algarvio, foi ferido com alguma gravidade na Lança Afiada. Evacuado para Bissau, teve que ficar a tirar estilhaços até ao fim da comissão. Nunca foi substituído por razões óbvias. Regressou connosco. Parece viver no Algarve a tentar esquecer aquele tempo. Óptimo se o conseguir.
Infelizmente não regressaram três militares do 2º Grupo. Dois porque morreram e outro por ferimentos e doença, o Pimenta. O Bessa morreu em combate e o Casadinho por acidente, em Bissau, já no fim da comissão.
Um outro devia ter sido evacuado mas nunca o foi.
Ainda em Évora, o grupo adoptou o nome de "Panteras Negras". No fim da instrução diária, ao destroçar, havia sempre o grito: Panteras e batimento forte com o pé esquerdo. Hoje, penso nisso e interrogo-me: Porquê?
Mas estes relatos, estas estórias para reproduzirem, o mais fielmente possível o que se passou têm, tanto quanto possível, ser vistas com os “olhos” de outrora. Era um grupo, a procurar união, a mais ou a melhor preparação para “ a guerra colonial”, um espírito próprio e coeso. Não procurava ser melhor, pior ou diferente dos outros. Tinha, isso sim a auto estima, a vontade de contribuir para uma Companhia unida, onde todos fossem solidários com todos e os Viriatos fossem um conjunto forte e coeso. Parece-me que isso foi conseguido. Creio mesmo que se mantém até hoje.

Ordem de embarque

Terminada a instrução, depois de curtas férias aparece a ordem de embarque. Numa gélida manhã de Janeiro, que certamente ninguém esquece devido aos gritos, choros e ao dramatismo de uma despedida, para muitos a ser vivida como final, embarcámos no Ana Mafalda, rumo á Guiné.
Ao quinto dia aportámos, por horas, em Cabo Verde. No dia seguinte, aí estava a Guiné.
Fizémos o treino operacional no Xime. A 1ª operação ao Galo Corubal.
Caímos em emboscadas e montámos outras; flagelaram e tentaram assaltar o nosso aquartelamento muitas vezes, assaltámos e destruímos alguns do IN; detectámos e rebentámos minas, deixámos outras para os adversários; apreendemos material ao IN, construímos tabancas em autodefesa, sentimos a vida a esfumar-se e a voltar, vimos morrerem camaradas nossos – brancos e negros ou, se preferirem, metropolitanos e guineenses – deixámos um dos nossos ser apanhado. Matámos e apanhámos adversários nossos. Foi uma campanha dura, violenta, desgastante e demasiado longa.
Nunca o Grupo ou a Companhia sentiu o peso da derrota.
No fim éramos homens bem diferentes, amadurecidos ou precocemente envelhecidos. Em tão pouco tempo amámos e odiámos, fomos humilhados e ofendidos, trataram-nos e tratamos outros, justa e injustamente, vimos, sentimos e vivemos situações dispensáveis, para gentes civilizadas.
Regressámos. Despedimo-nos, aos poucos, num fim de tarde e princípio de noite de Dezembro, novamente, de onde, cerca de dois anos antes havíamos saído: Évora.
Partimos por esse País fora, á procura da Vida interrompida. Só que antes já tinha partido o melhor da nossa juventude, o tempo perdido, as transformações em nós operadas, a visão da violência sofrida. Aos poucos recuperamos, talvez ou certamente nem todos o tenham conseguido. Mas certamente tentámos esquecer e viver outras vidas.
Voltámos a encontrar-nos, creio que em 1991, num restaurante da cidade de Aveiro no habitual almoço convívio. Emocionámo-nos. Todos os anos se repetiram os almoços em convívio-terapia. Só voltei, há dois anos a Évora. Julgava ser uma despedida. Ainda por cá estou e talvez volte um dia. Gosto demasiado da malta.
Mas sinto muito a despedida, a falta de brancos e negros que já partiram…e algo de “raiva surda” por certo passado… aos poucos passa…aos poucos encontrarei certamente a paz ou o saber esquecer e perdoar… talvez não…talvez sim…talvez alguém leve os meus fantasmas…

2 – 2 - Breve síntese, desde a formação e instrução em Évora, á Comissão na Guiné e finalmente o regresso. Parece estar tudo dito. Mas não está. Só focar mais dois ou três pontos: a instrução, a preparação e o embarque, a viagem.

Assim:

- A instrução foi em Évora e arredores, tendo o RAL3 por base. Procurou ser a mais consentânea com a guerra que nos esperava, com os conhecimentos adquiridos e com os homens que formavam cada pelotão. A Guiné, o destino não desejado, estava sempre presente. Era muito pouco tempo para ministrar uma instrução adequada.
Carência de meios postos á disposição, alguma falta de conhecimentos dos graduados (excepto dois ou três Sargentos do Q.P., com anteriores comissões) e os militares, os instruendos da especialidade que, uma breve recruta, não tinha sido suficiente para lhes dar a devida preparação para a especialidade.
Tínhamos a vantagem, muitas vezes isso é esquecido, da qualidade do homem português. A origem, da maioria daqueles homens era camponesa, trabalhadora da construção civil ou dos têxteis, a darem duro desde tenra idade. A rusticidade deles, o hábito á dureza da vida era uma enorme vantagem. Alguns eram homens que nunca tinham sido crianças. Outros já eram casados e pais de filhos. Muitos não eram bons ginastas, devido á dureza dos músculos travar a flexibilidade ou a dificuldade na coordenação motora. Relembro três casos: um que não era capaz de saltar o muro de terceira. Não me atrevo, dizia ele. Foi excelente combatente. Outro, casado e camponês, foi o “ bazokeiro” do Grupo. Ao segundo mês de comissão recebeu a noticia que era pai de uma menina. Nunca a conheceu. Faleceu pouco antes do embarque e num acidente em Bissau. Era a brutalidade daquela guerra. O terceiro caso é sobre a dignidade de um homem. Já na Guiné recebeu a noticia que ia ser pai, só que não tinha casado com a mulher a quem prometera, certamente depois do regresso, casar. Assim que pode, não eram permitidas férias ao segundo ou terceiro mês, veio para casar. Era esta, felizmente, a massa humana do segundo Grupo. Estes três casos podemos estendê-los a todo o grupo ou à Companhia.
Com a determinação de todos decorreu bem a especialidade, para alguns um pouco dura mas foi útil em combate. Não sei se ensinei mais ou se aprendi mais. As duas certamente e, volvidos estes anos recordo-os todos como amigos e camaradas.
Terminou a especialidade depois de uma semana de campo.
Antes de um merecido período de férias, veio a notícia do destino: Guiné.

Preparação para o embarque

- A preparação e o embarque tinham que ser feitas com certo cuidado. A notícia da ida para a Guiné, não foi recebida com entusiasmo pela maioria. Até os Militares do Q.P., estranharam nova ida para lá, pois a última fora lá passada.
As praças receberam o fardamento, meteram-no em dois sacos cilíndricos, também fornecidos, puseram-nos ás costas e foram de férias. Passaram o Natal e o Ano Novo em casa e apresentaram-se nos primeiros dias de Janeiro. Os graduados receberam um subsídio, creio que foi isso, e foram ao Casão Militar comprar o fardamento apropriado. Se bem me lembro, o 1º Sargento Clemente ou outro, Silva ou Moura Gomes, fizeram uma listagem e fui com ela ao Casão. Comprei a mala mais feia que encontrei – cinzenta e de plástico duro – e meti lá todo o material constante da lista. Mais tarde em minha casa foi, tanta e esquisita roupagem, posta á medida. Curiosamente até certos pormenores os Profissionais nos indicaram.

Embarque

Passaram rápidas as férias e, no dia indicado, parti para Évora. Não tinha a certeza do dia de embarque. Para a Guiné partiram antes de nós um Oficial e um Sargento. Nós iríamos depois. Não me recordo o dia da apresentação ao certo. Sei que tivemos duas baixas; um alferes que espatifou um pé e o furriel mecânico que, talvez devido ao calor e excesso de humidade guineenses, preferiu a Europa ou a América. Gostos…Os restantes apresentaram-se todos.
Esperámos pelo embarque, adiado pelo menos uma vez. Um dia soubemos: embarque a 14 de Janeiro. Telefonei para casa e pedi a meu pai para ninguém ir a Lisboa. Despedidas não.
No dia 12 recebi a ordem de ir, no dia seguinte para Lisboa tratar do embarque. O resto da Companhia iria depois.
Vestido á civil, roupa militar num saco, a restante entregue para me levarem para Lisboa, na madrugada de um sábado dia treze, aí estou eu a embarcar no comboio em Évora para, poucas horas depois estar em Lisboa. Ida á residencial habitual, telefonar ao Furriel Whanon, que já estava em Lisboa, combinar encontro, vestir a farda e aí vamos nós ver o barco. Lembro-me, a cara de espanto do dono e pessoal conhecido da residencial. Eram meus conhecidos pois, essa e menos outra ali na Braamcamp, eram os meus poisos habituais. Não sabiam que eu era militar. Figurava nos arquivos como estudante. Que é isto? Dizia o Senhor Manuel. Vou para a Guiné amanhã de madrugada. Fiquemos por aqui. Fui e vim, o meu poiso continuou, por muitos anos, a ser lá. Boa gente. Já desapareceu a residencial e o Parque…
Lá fui, com o Furriel Whanon ver o barco. Ou por estar maré vazia, ou porque o barco era pequeno, quando olhei para o "Ana Mafalda" pensei ser uma traineira. Papéis tratados e o resto do dia e noite por minha conta. Passou-se. Às cinco ou seis da madrugada estava eu na Estação Sul Sueste á espera do resto da Companhia. Chegaram, entraram rapidamente nos camiões militares e rumámos ao Cais da Rocha. De noite todos os gatos são pardos ou não dão nas vistas…
Embarque: o reboliço da carga do material, a formatura para um estúpido desfile, os cumprimentos de um membro do Governo (?), não recordo bem, e uma pausa antes do embarque, para as despedidas dos familiares.
Assisti então a uma situação incrível pelo seu dramatismo. Não descrevo pois não seria capaz. As famílias em atroz sofrimento, os militares igualmente, o choro, o grito, que, de tantos que eram, pareciam um só e deixaram-me arrasado. Foi dada ordem de embarque e muitos tiveram que ser “empurrados” até ao barco. Perto do meio-dia afastava-se o barco lentamente e os acenos, de ambos os lados, os gritos e choros mantiveram-se. Indescritível. Penso que só quem embarcou assim consegue recordar todo aquele dramatismo.


Viagem

Deixei as malas no camarote e vim até à amurada. Ali estive, não sei quanto tempo a pensar, a ver o meu País a afastar-se. Ainda o Cabo São Vicente se via ao longe, senti o Rodrigues, Furriel do meu Grupo, ao pé de mim. Disse-me: será que voltamos a ver o nosso Algarve? (lembras-te camarada? Não me deves ler… tentas esquecer…tens esse direito). Respondi-lhe: eu vejo e você também. Com “ganas”e a raiva do não querer estar ali. Porquê? Porque não devia estar ali! Não era guerra minha e devia acabar o curso. Além disso tinha 22 anos e queria viver…mas já estava transformado…
Continuou a viagem, com enjoos de alguns e os dias a escorrerem devagar. Na terça dia 16, ao longe as luzes das Canárias e na madrugada de sexta dia 19, aí estavam o porto de Pedra Lume, Ilha do Sal, Cabo Verde. Carga e descarga de material e nova largada rumo a Bissau.

cont.

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Notas de vb:

1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.

2. Artigo anterior em

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): De Évora a Mansambo...

Estórias de Mansambo
Torcato Mendonça

ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo

1968/69

O Torcato Mendonça nos dias de hoje.

E nos tempos de Mansambo A – De Évora a Bissau Não tinha combinado com o José, a continuidade da segunda parte das suas Estórias da Guiné, prometidas, sem compromisso como era hábito nele, meses antes. Um dia, ao final da tarde, voltou, calmo e sorridente, menos cabelo e mais rugas, com o “eterno” saco a tiracolo.Depois dos cumprimentos, apontou, o José, para o saco e disse: - Tenho as estórias da Guiné aqui. A fase A, a que chamei de Évora a Bissau e parte da Fase B, que será sobre a comissão ou os dois anos que por lá andei. Procurei não me repetir. Eu sorri e esperei o que dali sairia. Abriu a sacola, sacou de umas quantas mini-cassetes e de um bloco. - Olha - disse-me - Ouves as cassetes, seguindo as indicações escritas no bloco. Passas à tecla e dás-me depois uma cópia. Podes cortar à vontade. Não podes é desvirtuar o texto. Se alguns, achares estarem repetidos ou não terem interesse eliminas. Vou ler e passar a limpo. Falaremos depois, disse-lhe. O resultado é este, negando-se ele a ler o que foi passado a limpo e os cortes. 1 – Évora Na primeira parte, das estórias do José, falei da recruta e especialidade. Procurando não me repetir, volto a Vendas Novas.

Cadetes em Vendas Novas limpando as G3. Pouco tempo antes de terminar a especialidade, foi-nos dada a hipótese de “escolher” o quartel para onde queríamos ir. Escolhi Évora e nada mais. Não acreditava que os cadetes, quase aspirantes – fora os que iam chumbar – pudessem escolher algo. Certo é que deu. Terminada a especialidade, galão ou risca num ombro, guia de marcha e um papel na mão para, depois de curto período de férias, me apresentar em Évora.

Conhecia bem a velha cidade. No quartel, que não conhecia, o meu pai tinha estado cerca de trinta anos antes, a cumprir o serviço militar sob a ameaça da II Guerra.

Parada do antigo RAL 3 aqui, nos anos quarenta (RAL1). A Parada mantinha, cerca de trinta anos depois, o mesmo aspecto. Boas recordações dos meses que lá estive. Sempre que por lá passo, se puder, paro e dou uma volta pela cidade… e volto atrás no tempo… até ao dia, há muitos anos atrás em que lá casei… Recordações de outras vidas! No dia determinado apresentei-me um dia no RAL 3. Nada tinha a ver com Artilharia, pois era atirador. Especialidade igual em qualquer Arma. Havia, e apresentaram-se no mesmo dia em Évora, os aspirantes das especialidades de Artilharia. Creio que éramos dez ou doze. Não sei ao certo e também não me recordo como lá cheguei. Lembro-me, isso sim, da velha mala do tempo de estudante, cheia de autocolantes de cidades e hotéis, a maioria fruto de sonhos adiados e do velho saco de cabedal. Saco mais, muito mais velho do que eu, estou hoje já sexagenário. Comprei-o em Portimão a um velho correeiro e acompanhou-me durante muito tempo. Apresentaram-se os novinhos aspirantes, hirtos na postura, continência pronta, sentido de mão fechada. Riam-se os outros oficiais, principalmente os do QP, conhecedores de quem tinha sido o nosso comandante de especialidade. Olhem os pupilos do Capitão Comando Oliveira e Artilheiro anteriormente, se a memória me não atraiçoa. Fomos praxados, como mandam as regras, seguindo-se um lanche, comido nessa tarde ou na seguinte, com pagamento a ser feito por nós, quando o primeiro soldo estivesse a pagamento. Antes do toque do fim da tarde fomos apresentados ao Comandante. Era um Coronel de estatura baixa e olhar manhoso que, depois do toque da saída virava censor. Tempos depois ainda cheguei a acompanhar um dos jornalistas, de um Jornal de Évora, quando estava de Oficial de dia, ao Comandante. Iam os escritos ao lápis… geralmente era o jornalista obrigado a esperar em excesso para gozo do censor… eu tentava, geralmente sem sucesso, abreviar… Na apresentação dos novos aspirantes, o Comandante com mais galões do que ombros, apartou logo artilheiros e atiradores. Distribuiu tarefas. Lembro-me de duas: o Zé Maria virou responsável pela messe de oficiais, eu fui enviado para a PJ Militar. Logo eu?! Nada disse claro. Ouvi a sentença em sentido e toca a encaixar. No dia seguinte fui apresentar-me, a um velho Capitão do Serviço Geral e o principal mentor da organização da praxe e do lanche. Descansou-me o velho militar dizendo: -Escolha um escrivão, furriel ou cabo miliciano seu conhecido, passa depois pelo Quartel-General, aprende as bases e pouco terá que fazer. Se tiver problemas fala comigo. Pus a boina na cabeça, sentido, continência bem puxada e pedido para me retirar. Levantou-se o Capitão, olhou-me e disse: - Aqui não se faz isso pois a disciplina militar não passa por aí. Vá aprendendo essas diferenças. Cumpri as instruções e pouco tive que fazer. Mantinha-me ocupadíssimo e o escrivão, meu antigo colega de estudo também. Ainda tive que dar aplicação militar a uma Bataria e uma ou outra instrução a militares de passagem. E aprendi, isso sim, muito, sobre a vida militar dos oficiais, sargentos e praças. Os milicianos, os profissionais, os nem uma coisa nem outra, os obrigados, os voluntários e tantos outros a gravitarem à volta daquele quartel. Que gentes e que vidas vividas, passadas, bem passadas à pala do tropa… Outras vidas. À tarde, depois do toque, uma ida até a cidade, geralmente ao Fialho ou lugar semelhante com petisco ajantarado, cinema quando havia, uma volta ou outro mata tempo, isso também pois era uma questão de equilíbrio psicológico e, nas terras com militares, há sempre isso. Abreviando, com tanta recordação a ficar no tinteiro. Um dia… conto. Um dia…depois… Corria o tempo de feição, na paz do Senhor, civil ou militar, com fugas em fim-de-semana alargado, trocas de serviço, coberturas para proteger e Beja, Lisboa, a minha casa ou o Algarve ali tão perto… Não há bem que sempre dure... Um dia veio a noticia: - Está mobilizado e apresente-se, daqui a - já não recordo quando -, em Lamego (CIOE). Depois vai para Penafiel formar Companhia. - Creio que, quando fui para Lamego, já sabia ir depois para Penafiel. Lá fui eu e o Zé Maria, no carocha dele, até Lamego. Por lá andamos, em cambalhotas e eteceteras, comendo presunto bom, um peixe desconhecido para mim, trutas, e bebendo branco, tinto ou Raposeira. No regresso, rumo a Lisboa, trocamos, antes, de Companhia com dois camaradas. Eles foram ou ficaram em Penafiel e nós regressamos a Évora, para formar Companhia. Fintámos o destino aqui, mas, mais tarde, eles foram para Moçambique e nós para a Guiné. Era o papão temido… ainda bem, daí… quem sabe? Começou então em Évora, pouco tempo depois, a formação e instrução da CART 2339 __________ Notas de vb:

1. Continuação e reescrita das Estórias de Mansambo.

2. Artigos do Torcato Mendonça em

13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3310: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Encontro em Bissau: o nosso homem de Missirá...