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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23991: Antologia (88): estereótipos coloniais: os balantas de Bambadinca, vistos pelas NT (BCAÇ 2852 e BART 2917)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > 
Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nhabijões, Mero e Santa Helena, três tabancas consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no "mato" (zona controlada pelo PAIGC)... 

Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos das NT. Entre Bambadinca e Fá Mandinga ficava Ponta Brandão. Havia aqui uma destilaria, de cana de acúcar... Bambadinca era sede de posto administrativo e tinha correios, telégrafo e telefone, além de um posto sanitário ("missão do Sono")... Era, além disso, um importante porto fluvial. Era banhado pelo caprichoso Rio Geba (ou Xaianga). Até 1968 as LDG da Marinha chegavam até lá... Depois, já em 1969, ficavam-se pelo Xime que passou a ter "porto fluvial" (na realidade, um cais acostável)... De Bambadinca a Bafatá (cerca de 30 km) a estrada era já alcatroada...no tempo da CCAÇ 12  (1969/71). (LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).



Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > A parada do quartel de Bambadinca, a capela (que servia também de casa mortuária...) e, à direita, a secretaria da CCAÇ 12 (1969/74). Com a política "Por uma Guiné Melhro", a população balanda do setor (Nhabijões ou Nha Bidjon, Mero, Santa Helena, Enxalé, etc.) começou a aproximar-se mais do posto administrativo de Bambadinca e sede de batalhão, onde havia escola, posto médico, correios  e lojas.

Foto (e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
]


1. Todas as Histórias de Unidade, em geral,  refletem a visão "etnocêntrica" que os portugueses, civis e militares, tinham dos povos da Guiné nas décadas de 1960/70. O termo "etnocentrismo" não é fácil de definir.

et·no·cen·tris·mo
(grego ethnós, -eos, raça, povo + centrismo)

nome masculino

Visão ou forma de pensamento de quem crê na supremacia do seu grupo étnico ou da sua nacionalidade.

"etnocentrismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/etnocentrismo [consultado em 17-01-2023].

Especificando: 

(i) atitude, existente dentro de um dado grupo social, face aos outros que estão fora, e que se pode caracterizar em termos de preconceito, condescendência, desconfiança e/ou hostilidade; 

(ii) a maneira própria de ver a 'minha' cultura, a do meu povo ou etnia, por oposição à cultura do 'outro'... (Os primeiros portuguese que chegaram ao Japão em meados do séc. XVI foram chamados Nanban, 南蛮, “bárbaros do Sul”.)

Tanto nós (os comandos militares) (*) como o próprio PAIGC pecámos por etnocentrismo... Afinal de contas, tanto Amílcar Cabral (**) como a nossa 'inteligentsia' político-militar leu o António Carreira, o Manuel Belchior, o Fernando Rogado Quintino e outros etnógrafos/etnólogos da Guiné... A única sensibilidade sócio-antropológica que nos incutiram, a nós, tropas metropolitnas,  à chegada à Bissau, foram meia dúzia de "clichés" ou estereótipos  sobre os fulas, os mandingas, os balantas, os felupes, e por aí fora...

É interessante, em todo o caso, ir vendo como evoluiu a atitude das chefias militares em relação àqueles grupos étnicos e sociais que, no início da "guerra subversiva", escolheram o "campo do inimigo", aliciados pela "subversão"... A aliança dos fulas com as NT sempre foi incensada, até ao consulado de Spínola e à 'psico': a necessidade de concorrer com o PAIGC, não só com as armas de fogo, mas também e sobretudo com as da "sedução", levou os comandos militares a passar a "namorar" os balantas, os biafadas e os mandingas, e a criticar certas facetas do modo de vida e de pensar dos fulas...

Era  o caso, por exemplo, do Comando do BART 2917 que tinha, em Nhabijões, em 1970/72, um dos maiores reordenamentos da Guiné: cerca de 300/350 casas... Em contrapartida, esta abordagem "etnográfica"  estava práticamente ausente da História da Unidade anterior, o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), podendo ler-se na pag. 1 do Cap II este delicioso naco de prosa :

(...) "No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Biafada.

"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero.

"Com o início do reordenamento da população em auto-defessa, num futuro próximo o IN se verá com sérias dificuldades, pois deixará de ter apoio e de ter a possibilidade de roubar para deste modo poder sobreviver" (...)


O roubo (e nomeadamente de gado) estava associado aos balantas... Este estereótipo mantinha-se no tempo da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71),

Uma advertência final: a transcrição de documentos político-militares, tanto de um lado como do outro, não implica qualquer concordância, aval ou aceitação do seu conteúdo... São documentos de trabalho, para leitura e análise 'desapaixonadas'... Partimos do princípio que o nosso leitor é soberano... E os nossos leitores são, fundamentalmente, os antigos combatentes desta guerra (colonial, para uns; do ultramar, para outros; de libertação, ainda para alguns...).


2. Vamos aqui voltar reproduir alguns excertos do Cap II da História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, pp. 17-21 (Documento na altura classificado como "reservado", hoje desclassificado; versão policopiada gentilmente cedida ao nosso blogue pelo ex-fur mil trms inf, José Armando Ferreira de Almeida, CCS/ BART 2917, Bambadinca, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande; comparada igualmente com a versão, em suporte digital, corrigida e melhorada pelo Benjamim Durães, outro grã-tabanqueiro (*)
 

(...) Sector L1 (Bambadinca) > População > Aspecto político (...)

3 – O BALANTA

(i) Nesta apreciação incluímos todos os balantas, incluindo os mansoancas, por não se conhecerem, no Sector [L1], problemas específicos para cada ramo balanta;

(ii) Aguerridos, alegres e folgazões, desconfiados mas demasiados ingénuos, depois de quebrada a sua desconfiança atávica, são o povo mais trabalhador da Guiné e só a ele se deve a transformação da lalas em produtivas bolanhas;

(iii) O Chefe Político é o Chefe de Família e por isso o Chefe de Povoação tem funções limitadíssimas, não podendo decidir sobre qualquer assunto sem que haja um total consentimento por parte dos Chefes de Família;

(iv) A figura de Régulo ou Chefe de Tabanca, é de criação portuguesa e, como é óbvio, não se integra na estrutura deste povo e, por conseguinte, nada representa para eles;

(v) A sua economia assenta na exploração do arroz alagado, aparecendo as culturas de milho, mandioca e arroz de sequeiro como complemento mas em muita pequena escala;

(vi) Vive sempre junto da bolanha pois desta necessita, para as suas necessidades imediatas, o barro para os seus potes, a palha para as suas casas;

(vii) Povo agrícola, pouco gado cria e este mesmo reserva-o quase só para rituais;

(viii) Praticando o roubo de gado como modo de aumentar a sua importância social, visto tal roubo ser uma verdadeira instituição social sem o significado desonrado que tem para as outras sociedades, evita-o, dividindo o seu gado pela guarda dos seus vizinhos e amigos e guardando em contrapartida o desses vizinhos;

(ix) A subversão apanhou os balantas na altura em que o seu dinamismo demográfico se fazia sentir no Sector ao longo das lalas dos rios Corubal e Geba, tendo penetrado neste praticamente até à área de Bissaque-Canchicamo e naquela até Jargavida;

(x) Ao mesmo tempo que se expandia, introduzia novos métodos de cultura junto das populações;

(xi) Entretanto a ingenuidade e imprevidência do balanta e o seu gosto pelo álcool são aproveitados não só pelos comerciantes pouco escrupulosos, que de um momento para o outro os colocaram na sua dependência mercê de juros elevados, mas também pelos mandingas e fulas, especialmente estes, que os sujeitaram a uma dependência económica tal que chegaram ao ponto de colherem os próprios frutos do trabalho dos balantas, dando-lhe somente o terreno para cultivo;

(xii) Encontrando-se enquadrados em sistemas políticos mas vastos, em que os chefes eram quase todos de etnia fula ou mandinga, eles com o seu conceito de grupo social apenas estendido à família não podiam fazer nada para evitar a sua desorganização social e defenderem-se das prepotências sofridas;

(xiii) É neste contexto que se deve compreender a fácil adesão do balanta à subversão, as promessas de libertação dos povos que os subjugavam económica, política e socialmente, induziram-nos a ver no PAIGC um meio de serem realizadas as suas aspirações;

(xiv) A inclusão sistemática de balantas nos grupos de guerrilheiros, a obrigação de darem grande parte da sua produção agrícola para alimentação desse mesmos grupos, a necessidade de, em virtude da acção das NT, se afastar cada vez mais das suas bolanhas, obrigá-los a abandonar a cultura do arroz alagado, a constatação de que os que ficaram nas zonas dominadas pelas NT têm uma vida fácil e progressiva, sendo cada vez menor, embora ainda existindo, a exploração que sobre eles exercem os outros grupos étnicos, exerceram a sua nostalgia da bolanha e criaram as condições quase ideais para uma viragem da sua atitude perante a subversão;

(xv) Contudo os que estão junto do IN sabem que aqueles que se apresentaram em Bambadinca e que não possuem bolanhas na área, são explorados apenas como mão-de-obra pelos donos da terra – alguns mesmo seus irmãos de raça – e continuam a ter a nostalgia das suas próprias bolanhas;

(xvi) Tal não sucede ainda aos que se têm apresentado no Enxalé (subsector do Xime) porque aí a bolanha é vasta e encontra-se ainda desocupada, especialmente em locais bastante longe da povoação, mas, se não nos preocuparmos em pôr cultivável toda aquela imensa bolanha, a curto prazo veremos acontecer também ali a exploração do balanta pelo balanta e estancar-se-ão as apresentações quase semanais que ali se vêm realizando;

(xvii) Julgamos que o único modo de conseguir retirar ao controlo IN um substancial número de balantas, será criar condições de segurança das ricas bolanhas que se encontram abandonadas

(xviii) De entre todas essas está a de Samba Silate em virtude de ser uma bolanha rica e muito grande, encontrar-se completamente deserta, ser a sua população recenseada antes do início do terrorismo superior a 1200 pessoas, saber-se que os seus antigos ocupantes se encontram sobre controlo IN, na área de Incala, e desejarem para ali voltar.

Dos Balantas existentes no Sector os seguintes núcleos:

ENXALÉ (carta do Xime, 1961, escala 1/50 mil) > Francamente colaborante com as NT.

NHABIJÕES > Colaboram com as NT mas possuindo muita família no mato têm assíduos contactos com pessoal, especialmente da região de Incala que ali vai vender arroz e, através de Bambadinca, abastecer-se de artigos de primeira necessidade. Sempre negam tais contactos embora sejam de todos conhecidos. (***)

SANTA HELENA > Colaboram com as NT mas possuindo muita família no mato, especialmente pessoal do Regulado do Cuor, mantêm frequentes contactos com esses familiares que ali se deslocam, mas negam esses contactos e raramente os denunciam.

MERO > Colaboram com as NT. Mantêm intensos contactos com pessoal desarmado sob controlo IN que na maioria são seus familiares. Negam sempre tais contactos. 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos: LG] (****)

_________________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3000: Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

 (...) A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.

Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.

Estranha-se, não haver aqui uma referência ao fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema. (...) .

(...) Tenho ideia que Cabral se movimentava (e pensava) melhor no campo do que na cidade, já que ele trabalhou como engenheiro agrónomo, na Guiné e depois em Angola, ao longo da década de 1950. Entre 1953 e 1956 fez o recenseamento agrícola da Guiné (…), e julgo que lhe veio daí a sua admiração pelos povos animistas, e em especial os balantas, os magníficos camponeses da Guiné, os grandes cultivadores de arroz. (...)

(...) Falando das gentes do mato, Cabral dá uma lição sobre os balantas, grupo que ele não só conhece, como agricultores, como admira, enquanto povo, que foi historicamente um povo resistente (tal como os oincas, ms estes mandingas, islamizados). Chama-lhes uma “sociedade horizontal”, isto, é, “que não tem classes por cima umas das outras”. Entre eles não há hierarquias. Os chefes foram uma invenção dos tugas, que lhe impuseram régulos fulas ou mandingas, nalguns casos antigos cipaios, leais aos portugueses:

“Cada família, cada morança tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselhos dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda gente”. 

A sociedade balanta seria uma sociedade tendencialmente igualitária, que Cabral descreve nestes termos singelos : 

“A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o outro”… Explicitando melhor: “Quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se lavrou muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar" (...).

(***) Vd. poste de 28 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

(...) Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969

Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus)...

(...) Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1962 ou 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poidon (regada a napalm, dizia-se,  pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (..)-.

Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

 A justificação era simples, segundo os meus soldados fulas: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…
 
(...) Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme…

Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação…

(...) Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha só pelas armas. (...).

(****) Último poste da série > 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23990: Fotos à procura de uma legenda (168): "Cabeças grandes" ou... uma questão de pudor feminino ? (Padre José Torres Neves / Cherno Baldé / Luís Graça)



Foto nº 5 > Guiné > Região do Oio > Sector de Mansoa > Bissá > c. 1970 > Há festa na aldeia ... e "cabeças grandes" (em consequência do excesso de "vinho de palma")... Foto do álbum do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71).

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Vamos passar a valorizar mais os comentários dos nossos leitores. O ano passado tivemos uma média de 3,9 comentários por poste (*). Atingimos um total de 4180 comentários (limpos de mensagens Spam), num total de 1068 postes. O que é muito bom. 

Mas também lembrámos que este valor médio não nos deve deixar enganar; "há postes sem um único comentário, a maior parte tem um, dois ou três... Às vezes podem ter meia dúzia, ou até 10... Outros podem ter, excecionalmente, algumas dezenas: 20, 30, ou até mais... Tudo depende do tema, do conteúdo, do interesse, do autor, da ilustração fotográfica, etc."Na realidade, aparecem ao longo da semana "postes mais 'polémicos' ou mais 'interessantes' ou até mais 'apaixonantes' do que outros. Tudo depende do assunto e da sua abordagem. Ou até do autor",,, Enfim, os postes, com pontos de vista menos 'consensuais' ou mais 'fracturantes' , podem originar mais comentários, às vezes 'marginais' (há uma tendência para a malta ver mais a árvore do que a floresta).

Por fim, há que não esquecer esta realidade: "ler e escrever comentar dá muito trabalho"... Mais no blogue do que no facebook onde o comentário, se bem que também "instantâneo", não fica visível na "montra grande"... Por outro lado, sofremos, nestes últimos anos, de uma "dupla fadiga": uma "bloguística" (vamos fazer 19 anos), e outra "pandémica"...

Dito isto, temos que passar a "premiar" mais quem nos lê e comenta... Um deles é o nosso Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, a viver em Bissau, um "jovem" de sessenta e poucos anos, que elegemos como nosso assessor para as questões etno-linguísticas... Mas ele é mais do que isso: é a nossa "Guinipédia"...


(i) Tabanca Grande Luís Graça (**)


A foto nº 5 (poste P23488) (**) é "ambígua": Há festa na aldeia ... e "cabeças grandes" (em consequência do excesso de "vinho de palma")...

A legenda original, do nosso capelão José Torres Neves, era/é mais lacónica: "cabeças grandes", no plural... E o leitor pode perguntar: "cabeças grandes" deles, os rapazes, talvez milícias ou militares (um deles, pelo menos, enverga uma camisa camuflada do exército...), ou deles e dela ?

Não sei se as bajudas balantas também bebiam/bebem vinho de palma... Eram, em matéria de costumes, aparentemente mais "livres" do que as fulas, muçulmanas... ou pelo menos viviam em comunidades mais igualitárias, segundo o Amílcar Cabral que adorava os balantas, comunitaristas, e detestava os fulas, semifeudais...

Trocado por miúdos, a mulher balanta, "de jure et de facto", teria "mais direitos, liberdades e garantias" do que a mulher fula, no nosso tempo... (Segundo os usos e costumes jurídicos de cada etnia.).

Mas o nosso assessor, amigo e irmãozinho Cherno Baldé (que parece estar de férias...) logo dirá o que bem lhe aprouver... sobre este assunto sempre algo melindroso (quando mete as "filhas de Eva" e os "filhos do Adão")...

3 de agosto de 2022 às 19:40



(ii) Cherno Baldé (**)


Em África não existiam sociedades igualitárias, este conceito só pode ter surgido na cabeça de pessoas como o Amílcar Cabral que não conheciam bem a África profunda, porque em todos os casos a mulher sempre se encontrava em baixo na escala das hierarquias sociais e políticas, à semelhança do que acontecia pelo mundo fora até meados do século XX, incluindo nos países do Ocidente.

Direitos, liberdades e garantias, o tema é vasto e impossivel de apreciar cabalmente num simples comentário, abarcando a tradição, a religião e as influências internas/externas sobre as práticas culturais de diferentes grupos étnicos ao longo de um percurso histórico recente ou antigo.

Depois precisariamos fazer uma análise por faixas etárias, pois o usufruto de direitos, liberdades e garantias em África no sentido tradicional não é a mesma dependendo da idade dos grupos et+arios em presença e da mulher em particular.

Assim, na minha opinião, o comportamento das Bajudas (meninas) e das noivas (mulheres da idade de procriar) entre os Balantas parece ser, relativamente, mais livre nas suas atitudes e escolhas sexuais, mas a partir de uma certa idade (maiores de 49/50 anos) já os estatutos sociais em termos de direitos, liberdades e garantias são identicas, no geral, pois é nesta fase que começa a decadência masculina e a ascenção, de facto, do poder feminino tanto a nivel do agregado como da comunidade, mas sempre mantendo as devidas aparências do respeito pelo marido, pelo mais velho, pelas regras da tradição vs religião e diversos tabus que servem de base ao funcionamento da comunidade.

Resumindo, podemos dizer que, de forma geral, a mulher africana era muita controlada e limitada em termos de direitos sociais, designadamente da herança, dos direitos patrimoniais, nomeadamente a posse de terram assim como as garantias de seu usufruto fora do quadro familiar.

Embora tudo isso fosse mais do dominio teórico do que real, porque, actuando na sombra dos homens, as mulheres sempre conseguiram atingir os seus objectivos à revelia dos tabus discriminat+orios, das tradições patriarcais, dos dogmas religiosos e dos critérios socialmente estabelecidos para privilegiar o homem em detrimento da mulher, isto porque, a mulher africana sempre soube ser inteligente, perseverante e o pilar principal na construção e sobrevivência do agregado familiar e das comunidades rurais africanas sem, todavia, procurar humilhar ou ferir o orgulho masculino, conscientes de que sem os homens também não pode existir uma sociedade socialmente harmoniosa e equilibrada. O contrário de tudo o que o Ocidente está a promover hoje em dia nos países africanos e no mundo. A minha humilde opinião.

Tudo o resto tem a ver com teorias e conspirações mal justificadas.

4 de agosto de 2022 às 19:03


(iii) Luís Graça, em tempo: 

Cherno,  o autor da foto (um então jovem padre cristão, na altura com 34 anos, dez, onze ou doze anos mais velho do que a generalidade dos militares metropolitanos ali presentes em Bissá) legendou-a com uma frase lacónica: "cabeças grandes"... (***)

Mas no caso da bajuda, ela pode estar apenas a manifestar uma atitude de respeito e de pudor... Nem todos os balantas gosta(va)m de ser fotografados pelos "tugas"... E para mais este  fotógrafo era padre, capelão da tropa... Os rapazes (um deles parece ser militar) tentam, muito simplesmente, convencê-la a mostrar o rosto... 

Enfim, mais uma possível "leitura"... Mas, é verdade, o ambiente na aldeia, Bissá,  é de festa e terá havido quem tenha, nesse dia, bebido um pouco de vinho de palma a mais... Até nas "barracas" do PAIGC o vinho de palma não podia faltar... Tal como não podia faltar nos quartéis da tropa... Afinal, "mas ainda melhor que as mulheres, é o vinho que faz esquecer as mulheres" (terá dito o Luís Pacheco, o nosso escritor maldito; claro que o fígado e elas não lhe perdoaram.)

(***) Último poste da série > 30 d dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23929: Fotos à procura de uma legenda (167): "Apanhado" na Guiné, "apanhado" no PREC, "apanhado" por viver 287 km dentro (!) do Círculo Polar Ártico!... (J. Belo, Suécia)

sábado, 26 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"


Rui Alexandrino Ferreira (Angola, Sá da Bandeira, 
h0je Lubango, 1943 - Viseu, 2022) (*)





Guiné > Região de Tombali Aldeia Formosa > CCAÇ 18 (jan 197/set 72) > 1971 > Os primeiros foguetões 122 a serem capturados aos guerrilheiros do PAIGC. No foto, ao centro Cap Mil Rui Ferreira, comandante da CCAÇ 18, com dois dos seus homens, guineenses: o furriel mil Aristóteles Tomé Pires Nunes  e o furriel  mil Carlos Solai Só. Foto, com a devida vénia, reproduzida de "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra, Palimage, 2014, pág. 107. 




Capa do livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).
Um exemplar deste segundo livro do Eui Alexandrino Ferreira, foi-me gentilmente ofertado pelo Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), Reproduzo aqui a sua dedicatória: "Tendo estado em Aldeia Formosa com o autor, quero partilhar com o meu ilustríssimo amigo Luís Graça alguma dessa vivência. Manuel Gonçalves, s/d  [2022] ".



1. Em homenagem ao nosso ten cor inf ref Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022), deixamos aqui a sua versão sobre os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971,  sob a forma de confrontos armados, opondo militares, guineenses, da CCAÇ 18, a camaradas, metropolitanos da CCS e da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, jul 1971 / set 1973).  O Rui Alexandrino Ferreira estava então na sua segunda comissão no CTIG, desta vez a comandar a CCAÇ 18 (de janeiro de 1971 e setembro de 1972).

Trata-se de um excerto do seu livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014). Com a devida vénia aos herdeiros do autor e à editora, a Palimage. É também uma homenagem à sua esposa, a quem dedica (a ela e às filhas) este livro, com palavras  de enorme ternura e humanidade que merecem ficar aqui registadas no nosso blogue:

"Este livro  (...) é principamente dedicado à minha esposa, que continua a ser dos meus sonhos o mais lindo, pro quem tive a ousadia de pedir a Deus: "Senhor! Cuida bem dela. Dá-lhe uma velhice calma e sem abrolhos, que a compense da imensidão de sacrifícios que por mim temfeito. Quando a tiveres de a chamar a Ti, não o faças sem primeiro o teres feito a mim, pois  sem ela nem o mundo seria o mesmo, nem a  minha vida teria qualquer sentido" (pág. 19).

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos a seguir relatados: vd. por exemplo, o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estva a altura em Aldeia Formosa, Joaquim dos Reis Martins ("Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335); ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**). 



Capítulo décimo primeiro – A noite dos horrores, ou o conflito armado entre metropolitanos e africanos e ainda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer (pp. 197 – 202)


Por Rui Alexandrino Ferreira 



(...) Se durante a permanência do [BCAÇ] 2892, a coexistência entre brancos e africanos decorreu de forma natural, (…) dentro do aquartelamento e da povoação [de Aldeia Formosa] (…), com a chegada do [BCAÇ] 3852 tudo se tinha modificado.

(…) Sucedia que entre os fulas, para publicamemte mostrarem a grande amizade que os unia, estes se passeavam de mão dada. Tal facto foi originando alguns piropos da parte dos soldados metropolitanos, que foram agravando com o correr do tempo.

Longe de qualquer prática homossexual, que aliás não foi detetada nenhuma, na CCAÇ 18, durante todo o tempo em que lá estive (…). Os militares do [BCAÇ] 3852 pareciam, a este respeito, estar desinformados, pouco mentalizados, como se fosse coisa de que nunca tivessem ouvido falar.

Foram-se assim agravando as relações. E, se não me custa aceitar que havia alguns militares da [CCAÇ] 18, que estariam mais perto dos ideais do PAIGC, e atentos a uma oportunidade para lançar uma confusão, tal não me parece ter sido esse o presente caso.

Confusão que acabou por acontecer na noite da consoada de 1971. Foi seguramente, se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida.

E tudo começou por uma violenta discussão entre africanos e metropolitanos no bar do Cabo Verdiano, envolvendo o campeonato de futebol da primeira divisão. Do Benfica ao Sporting (…), foi subindo de tom e passou para o futebol de Aldeia Formosa, onde tinha recentemente terminado o campeonato inter-unidades.

E assim, normalmente, acabava por vir a lume a minha própria pessoa. Não sendo efetivamente um elemento muito disciplinado, usando e abusando da força que então tinha, era extremamente corajoso, lutador e, sem ser violento, impunha o físico, nunca tirava o pé do sítio onde metia e raramente perdia um confronto a dois.

Tendo sido injustamente expulso durante um desafio por um furriel árbitro que, na busca de protagonismo, não encontrara melhor solução que me pôr fora de campo, ordenei então à equipa da 18 que abandonasse o terreno, pois o futebol para nós tinha acabado naquele momento.

Foi um alvoroço. Chamado às preces
 [ou à pressa ?]    o comandante [ten cor inf António Afonso Fernandes Barata], [este ] ordenou-me que fizesse reentrar o pessoal no campo, ao que lhe respondi que nem pensar.

− Então mando-os eu entrar – retorquiu.

−Essa é que eu gostava de ver, entrar um que fosse, depois de eu ter dito para o não fazerem.

− Então, eu prego-lhe uma porrada.

− E eu preocupado com isso, seguramente viu daqui para melhor, porque não há nada mais perigoso em matéria operacional do que uma companhia africana. E venha quem os ature.

− Mau…, então vamos conversar. O que é o senhor quer ?

− Mande substituir o árbitro.

E assim foi feito (…).

Do futebol se passaram às malévolas insinuações, se julgaram ações, se estabeleceram suposições, numa alusão a eventuais práticas homossexuais, metendo pelo meio o uso dos balandraus, alguns ricamente costurados, que os fulas usavam em ocasiões especiais, mas que efetivamente mais pareciam vestimenta de mulher.

E tudo acabou num confronto físico, quando um soldado africano enfiou pela cabeça abaixo de um soldado africano uma cadeira. Criadas fixaram assim as condições para o pandemónio que se seguiu.

Impotente para reagir fisicamente, dada a diferença de arcaboiço, o soldado africano foi a casa buscar a arma. Os soldados metropolitanos refugiaram-se no quartel e os africanos instalaram-se numa casa fronteiriça a este, de onde desencadearam o ataque.

A notícia chegou como uma bomba à tabanca da [CCAÇ ] 18 [fora do quartel, onde ficavam o comandante e os demais graduados da companhia].

− Nosso capitão, o pessoal está todo aos tiros uns aos outros.

(…) Desatmado, usando, tal como me encontrava, as calças do camuflado e uma t-shirt branca, dirigi-me rapidamente ao local do conflito.

Já então o tiroteio era verdadeiramente infernal. Os soldados metropolitanos tinham começado a responder de dentro para fora do quartel. Tendo feito rapidamente um balanço à situação, só havia um solução: terminar imediatamente com a troca de tiros, antes que a situação ficasse incontrolável.

Identificando-me e ordenando, tão alto quanto consegui, que pusessem fim ao tiroteio, avancei direto à casa onde se encontravam entrincheirados os soldados da 18.

Os tiros passaram por mim zumbindo, dilagramas iam rebentando um pouco por todo o lado. E fosse por intervenção divina, por interferência de Nossa Senhora de Fátima que protege os portugueses quando estes se encontram em más situações, ou pela intervenção que era conferida pelo amuleto que me fora dado pelo Cherno Rachid Jaló, não sofri nem a mais ligeira beliscadura.

Continuando a avançar em direção à casa, consegui que os meus soldados a abandonassem e assim se findou o tiroteio. No rescaldo, e num balanço final, tinha um dos majores um dos lados da cara completamente esfacelado, por se ter mandado abaixo do jipe que estava a ser atacado.

Mais grave, estava o Virgolino Ribeiro Spencer, um dois furriéis da 18, que transitava de boleia na motorizada do Ganga, outro furriel da mesma 18, que era avançado de centro da seleção da Guiné (…)[com família no Pilão]… [E a propósito do Pilão], ainda estava bem presente na mente de todos a morte de quatro elementos da polícia militar, vítimas de uma granada que lhes meteram dentro do jipe.

Virgolino Ribeiro Spencer foi inacreditavelmente atingido por uma bala que, tendo feito ricochete no farolim, o foi apanhar naquele exíguo pedaço do seu corpo, que não estava protegido pelo corpo do Ganga. (…)

Evacuado para Bissau, na madrugado do dia seguinte, morreu um dia depois [na realidade, umas três semanas depois, em 15 de janeiro de 1972]. Para o seu velório e enterro, Spínola mandou-me buscar a Aldeia Formosa.

Foi mais uma noite de profundo desgaste psíquico, físico e mental. Com o calor que se fazia sentir, o corpo já tinha começado a decompor-se. A família, num cantochão, misto de prece e oração, lamentava em conjunto a sua morte. Toda a noite, sem descanso, sem tréguas, sem intervalos. De madrugada, [eu] tinha os nervos arrasados. O enterro constituiu mais uma provação.

Mas voltando a Aldeia Formosa e à noite das facas longas, findo o tiroteio e após ter passado pela enfermaria, dirige-me à sala de operações onde se encontrava reunido o comando do batalhão. O comandante propôs-me então que se esquecesse o que se tinha passado, não informando Bissau do sucedido.

Ao que lhe respondi que não precisava ele de se preocupar em prestar qualquer esclarecimento, pois a essa hora já por toda a cidade de Bissau se sabia o que se tinha passado, com base no agente da PIDE, em Aldeia Formosa.

− E mais, temos de nos preparar para amanhã receber a visita de Spínola.

E assim foi. Formadas as unidades, Spínola determinou que os comandantes das companhias fizessem sair os cabecilhas. E quando viu que os elementos da 18, que tinha mandado sair, estava um cabo com uma cruz de guerra (que ostensivamente colocara), dirigiu-se-me dizendo que não era forma de tratar um herói nacional. Ao que eu respondi:

−Que em matéria de cruzes de guerra, ele ainda ficava a perder comigo.

A verdade é que Spínola estava absolutamente determinado a arranjar alguém que arcasse com as culpas e, se eu não lhe tenho respondido com a mesma arrogância, ele tinha-me passado por cima.

Embarcados os elementos que tinham sido dados como cabecilhas, Spínola regressou a Bissau.

De seguida, mandou quês e apresentasse em Bissau o comandante do [BCAÇ] 3852 e enviou, para Aldeia Formosa, o brigadeiro Ramires, comandante do CTIG, que, tendo como escrivão o major Carlos Azeredo, elaborou o auto respetivo. (Aliás, Carlos Azeredo conhecia muito bem Aldeia Formosa, pois tinha aí comandado um COP).

Ouvidos exaustivamente todos os possíveis intervenientes, foi o comandante punido. Salvo erro, com 12 dias de prisão disciplinar, findos os quais, foi mandado regressar à Metrópole.

No rescaldo, a vida regressou a uma efetiva normalidade, melhoram as relações entre militares, e eu sentia que o grosso que tinha que fazer naquela comissão já estava feito.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos , para efeitos de publicação deste poste:  LG]

2. Comentário adicional do editor LG:

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos acima relatados, que podem divergir, nalguns aspetos circunstanciais ou até essenciais, da versão do Rui Alexandrino Ferreira. Costuma dizer-se que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. Neste caso, ver por exemplo:

(i)  o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estava a altura em Aldeia Formosa, fotógrafo amador, e amigo do coamndante da CCAÇ 18, de seu nome Joaquim dos Reis Martins: ele próprio doou sangue para fazer uma transfusão ao furriel Spencer, assistido de imediato pelos quatro médicos do batalhão, por sorte todos reunidos nesse dia festivo em Aldeia Formosa: levado de helicóptero para o HM 241, logo no dia seguinte de manhã,   foi recuperando dos ferimentos de bala; mas terá morrido de uma hepatite no hospital (in "Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335).

(ii) ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**):. 

(...) Oficialmente, o exército considerou a  (...) morte   [do furriel mil Spencer] como "acidente". Na realidade, ele terá sido assassinado, quando circulava pela tabanca com a sua motorizada. Era um guineense, de origem cabo-verdiana,  sendo natural de Nª Sra. Natividade, Pecixe, Cacheu.

Era o único militar, ao que parece, que possuía uma motorizada  [o alf mil João Marcelino, da CCS, também tinha uma Honda, não sei se nessa altura, se mais tarde... LG] . 

Para o Manuel Gonçalves, terá sido morto mais provavelmnete morto por alguém da sua própria companhia. a CCAÇ 18,  As praças da CCAÇ 18 viviam na tabanca, estando por isso armados.

A haver crime. não se apurou o móbil do crime, nem se identificou o autor do disparo.. Pode-se pôr a hipótese de vingança ou racismo. Esta história acabou por ser um "pretexto" para uma "insubordinação militar", com o pessoal da CCAÇ 18,  a revoltar-se e virar as suas armas contra os "tugas" da CCS/BCAÇ 3852.

Foi preciso mandar avançar uma Panhard para serenar os ânimos... Isto passa-se na véspera de Natal, na noite de Consoada, 24/12/1971. O Spencer, evacuado para o HM 241, em Bissau, acabou por não resistir aos ferimentos, três semanas depois. (...)

Há outras referêcncias a estes acontecimentos da noite de Natal de 1971 em depoimentos prestados no livro do Rui Ferreira por militares que o conheceram e que com ele conviveram em Aldeia Formosa, quer pertencentes à CCAÇ 18 quer ao BCAÇ 3852. Não vamos, por ora, citá-los. Os seus depoimentos são importantes para se melhor conhecer o homem e o militar que foi o Rui Alexandrino Ferreira.

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Notas do editor:

(*) Último poste da sérue > 24 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19006: (De) Caras (120): A morte do fur mil, da CCAÇ 18, Virgolino Ribeiro Spencer, em Aldeia Formosa, em 15 de janeiro de 1972... Acidente ou homicídio na Consoada de Natal de 1971 ? A versão do Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73).

domingo, 30 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

1. Comentário de Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23736  (*):

Caros amigos,
Este testemunho de um guerrilheiro que participou na batalha de Como ajuda-nos a compreender um pouco como as coisas se passaram, visto do outro lado, mesmo se ainda continua coberto com uma pequena áurea da mitologia de glorificação das suas acções com que o PAIGC quis cobrir estes acontecimentos do início da guerra na Guiné que foi, de facto, nada mais nada menos que uma das maiores operações militares da chamada guerra do Ultramar português.

De certa forma está pequena crónica simboliza uma justa e sentida homenagem ao enorme sacrifício consentido pelo povo Balanta (Brassa) que, de forma insensata foi quase que empurrada para os braços do PAIGC pelo comportamento pouco prudente das chefias militares portuguesas presentes no terreno nos primeiros anos da guerra aqui contados pelo veterano CMD Amadú Bailo Djaló no seu livro aquando da sua passagem por Bedanda que não souberam gerir da melhor forma os dilemas e as relutâncias em que viviam estas comunidades, apanhadas entre dois fogos.

No mesmo período, no Norte e Nordeste, também acontecia a mesma coisa, com a diferença de que, também os guerrilheiros, perante a recusa de adesão da população à sua causa, sobretudo do povo Fula, estando posicionados maioritariamente do lado português, eram vítimas de actos semelhantes, quando não era a tropa a roubar e matar o gado encontrado no mato.

Quanto ao termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu. Ao império mandinga de Kaabu ou Gabú correspondiam duas províncias ou Farinados governados por um Farim (donde vem a designação da cidade de mesmo nome no rio Cacheu): A de Gabú (Farin-Kabu) e a de (Farin-B'rassu). Dito isso, não é de estranhar que hajam outros povos que viviam na mesma área geográfica também se considerarem como sendo de "B'rassu" ou, como dizem os nossos irmãos Balanta "Brassa". Assim, durante muito tempo, no império mandinga de Gabú, os residentes da província de Gabú eram os chamados "Kaabunkês" e da outra província de "B'rassunkês", termo que assim designava não um grupo étnico em si, mas todos os grupos ali residentes sem excepção, de tal maneira que dentro dos grandes grupos étnicos existiam estas divisões consagradas inclusive numa certa forma de falar (sotaque) que se distinguia claramente da outra província (línguas regionais). No caso do grupo Fula essa distinção ainda hoje é vivida em forma gracejos. Portanto, para dizer aos nossos irmãos Balanta, também nós somos "B'rassa" no sentido geográfico e étno-linguistico.

E eu, toda a nossa família assim como o regulado de Sancorla que constitui a herança de muitas gerações dos nossos antepassados que conviveram e trabalharam sob a dominação imperial dos Farinados mandingas do histórico Braço ou B'rassu, território que se estendia desde o rio Cacheu até às margens do rio Gâmbia, são B'rassunkês ou se quiserem "Brassas".

O nome do meu pai é Tambá que ele herdou do passado e que hoje, na Guiné-Bissau, é reconhecido como um nome tipicamente Balanta, mas que, na verdade, é de raízes mais profundas ou seja do grupo Banhum (em francês Baynunk) que, antes dos mandingas, dominava toda esta área geográfica e grande parte do espaço territorial entre a actual GBissau, a região de Casamansa no Senegal e a Gâmbia.

Tudo isso para dizer que na África Ocidental, a mestiçagem era uma prática corrente e tudo girava a volta do poder e de quem a controlava em benefício de todas as comunidades. No grande Braço ou B'rassu conviviam diferentes comunidades. A par dos mandingas que, na altura, detinham o poder, viviam Banhuns, Padjadincas, Kocolis, Balantas, Biafadas, Fulas, entre outros que, necessariamente, interagiam em diferentes domínios, inclusive no das relações matrimoniais e de consanguinidade.

Convinha a eles e a todos nós guineenses, que pesquisássemos mais ao fundo e assim trazer ao de cima os aspectos que nos uniam no passado e desta forma melhorarmos a nossa convivência actual a fim de construirmos um país onde todos possam viver e trabalhar em paz em vez de criarmos guetos tribais que perpetuam as nossas diferenças e as nossas querelas nos períodos mais recentes.

A este propósito e nesta mesma senda, propunha a mudança da designação do Blogue "Intelectuais Balantas na diáspora..." Para Blogue dos "Intelectuais Guineenses na diáspora..." que, no fundo, é a mesma coisa, mas seria mais abrangente, podendo incluir outras visões e ideários sobre o mesmo país e outras verdades que, também, não deixam de o ser.

Bem hajam
Cherno Baldé


********************

A quem se interessar uma leitura ou pesquisa mais profunda e bem elaborada sobre este assunto da mestiçagem no espaço da Senegâmbia, pode procurar as obras do investigador guineense de Conacry e especialista sobre o império mandinga de Kaabu (Gabau), Djibril Tamsir Niane de quem tenho várias citações e referências na monografia que estou a preparar, há bastane tempo, sobre a minha terra (Fajonquito), donde vos extraio este pequeno excerto para dar uma amostra:

ORIGEM E SIGNIFICADO DO NOME SANCORLA

"(...) Tudo leva a pensar que o nome Sancorla (da grafia portuguesa) vem da palavra Soncoya ou Sonkoya que significa terra dos Sonco ou Sonko. Segundo Djibril Tamsir Niane (Guiné-Concri), investigador e especialista do império mandinga de Gabu, na origem, Sancorla podia ser Sonkolla, quer dizer, terra ou território pertencente à dinastia dos “Sonco/Sonko”, príncipes de origem diversa mas assimilados à cultura mandinga que governavam esta Província mestiça de Birassu/ B’rassu (para mandingas e fulas), Brassá/Brazza (para os balantas) no período áureo do império de Gabú ou Káabu. Ainda, segundo Djibril Tamsir Niane a Provincia de Sonkolla era o domínio do clã Sonko, originários de uma miscigenação de autóctones Banhuns mandiguizados com grupos de fulas pastores vindos de Mali (Macina) e de Boundu (Senegal) que, em ligação com as províncias mandingas iniciais de Gabu - (províncias Nanthiôs de Pathiana/Propana, Djimara e Sama/Manna), formaram as províncias designadas pelo termo mandinga de Kôring (ou seja de origem não mandinga) de Birassu/Brassu (Farin-Ba) de que a região de Sonkolla seria parte integrante, se não mesmo o seu centro. Ainda segundo Tamsir Niane (citando Sekéné Mody Cissoko), o nome de “Farinsangul” na historiografia portuguesa (reinado de D. Joao I), seria a deformação de Farin-Sonkolla, em referência ao poderoso governador de Soncolla em Berécolon.

No séc. XV, os chefes (Farins) de Sonkolla, província habitada por uma população mista e belicosa, se extenderam a Oeste e fundaram muitas aldeias entre as quais Salikénie (situado na fronteira entre o Sénégal e a Guiné-Bissau perto de Cambaju) , Solikoo (em português Solucocum, também na linha da fronteira entre Cambaju e Sitatô), Bantadjam (Bantandjan) e Kagnamina (Canhámina, actual capital do Régulado de Sancorla).**

A capital da província, Bérécolong (Berecolón), situada a norte da actual vila de Fajonquito, onde residiam os chefes da província (Farim) e que desempenhavam um papel preponderante nas relações entre o poder central do império de Mali e o reino de Portugal em meados dos séc. XIV/XV, é uma localidade tão antiga como a velha Kansala, capital do império mandinga de Kaabu, diz-nos Tamsir Niane."


Com um braço amigo,
Cherno Baldé

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(*) - Vd poste de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

sábado, 22 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 17h543 > Um das nossas conhecidas ruas de Bafatá, já ao entardecer... Foto do João Graça, músico e médico, 40 anos depois do foto da mesma artéria tirada pelo Jorge Tavares, a seguir reproduzida.

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados    [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Bafatá > 1968 > Guiné > Bafatá > 1968> Foto do ex-furriel mil radiomontador Jorge Tavares, CCS/ BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70). (No livro, a foto é erradamente atribuída ao Humberto Reis, pág. 17).

Reconstituição feita pelo ex-fur mil op esp Humberto Reis, da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71): "Esta é (era) rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial; ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina; na primeira à direita, ficava o restaurante A Transmontana; do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT; a meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba".

Legenda do Amadu Bailo Jaló: "Rua de Bafatá. Do lado direito, junto ao carro estacionado, era a casa do Chico Paulo, um comerciante europeu; a casa a seguir, pintada de branco, era de um libanês, Assad, one trabalhava o meu pai (in: Amadu Bailo Jaló -  - p. 17)

Foto: © Jorge Tavares (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


 

Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)


1. Continuamos a reproduzir, aqui no nosso blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk".

Como temos sublinhado, o livro, publicado em 2010, está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações.  Basta ler alguns comentários recentes dos nossos leitores.


(i) Carlos Silva:

(...) Convivi muito de perto com o Amadu Djaló, pois encontrava-o quase diariamente em Bissau II / Rossio onde sempre trocávamos uns "dedos de conversa ". O Amadu era um homem calmo, honesto, bom conversador. Contribuí para o seu livro com várias fotos a pedido do nosso amigo e camarada Virgínio Briote que estão publicadas no seu interior e a contracapa é de um slide meu que o Virgínio gostou muito. Estive no lançamento do livro que foi nas caves do Museu Militar. Paz à sua alma. (...) 

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)
 
(ii) António Graça de Abreu:

(...) Maravilhas estes textos do Amadu Djaló (...) Que nos valha, falar a sério, perto do coração, o Amadu Djaló, na sua e nossa, tão precária e inesquecível Guiné.(...)  

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)

(...) Palavras justas e sentidas do Amadu Djaló. Ainda tive o gosto de o conhecer e de lhe dar um grande abraço. Homem superior. Não o esqueço. (...) 

23 de setembro de 2022 às 01:59 (***)


(iii) Lucinda Aranha:

(...) Pelos vistos, o nosso Amadu, que conheceu o meu pai em Farim,  era muito namoradeiro. Não perdia tempo. (...)

20 de outubro de 2022 às 20:31 (*)

(iv) José Botelho Colaço: 

(...) Conheci o Amadu,  tenho o livro com autógrafo do prórprio, encontrei-me com ele algumas vezes, mas havia um inicio de um novo trabalho do Virgínio   [o II volume],só que o Amadu deixou de ter condições  [de saúde ].para o prosseguir. Pergunto ao amigo Virgínio será que esse pequeno esboço não tem algo de interesse principalmente para a nossa geração que possa ser publicado?  (...)  

5 de outubro de 2022 às 16:53 (**)

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Sim, o Virgínio começou a trabalhar com o Amadu no II Volume (memórias do "exílio": Senegal, Portugal)...Só ele pode esclarecer em que ponto ficou o trabalho... Em princípio havia um manuscrito, original, sobre o qual os dois trabalharam em conjunto. Foi uma feliz parceria!... Nunca teríamos o livro publicado (o Volume I) sem a infinita paciência, generosidade e competência do Virgínio. (...)

6 de outubro de 2022 às 11:05 (**)

 (...) O que o nosso Amadu Djaló deve ter consultado em 1961, em Catió, foi um "mouro" ou "muru", um vidente... O seu antigo colega de escola Djá (que o tentou aliciar para o PAIGC) seria um vidente, alguém com "poderes mágicos" capaz de adivinhar o futuro e dar conselhos em matéria de saúde, amores, dinheiro, profissão... Proliferam em todos os tempos e sociedades... Em Portugal, há muitos de origem africana e brasileira... Parece que hoje na Guiné-Bissau se usa mais o termo "pauteiro" (do crioulo, "pautéru") para designar  vidente ou mágico. (...)
 
23 de setembro de 2022 às 12:08  (***)


2. Vamos reproduzir um excerto (ou melhor, dois) em que o Amadu fala dos seus primeiros anos de vida, entre 1940 (o ano em que nasceu) e meados dos anos 50 (em que empreendeu a sua primeira grande viagem, até ao país vizinho, a Guiné Conacri, terra dos seus pais, e onde se inicia no comércio ambulante). E depois até a idade, 21 anos, 1962, em que foi para a tropa, fazendo a recruta no CIM de Bolama (**).

Neste primeiro excerto, que publicamos hoje,  podemos ler a notável  descrição, em estilo oral africano,  que ele faz das suas andanças pelo território vizinho, ainda colónia francesa (até 1958), longe dos pais e em plena adolescência, com os seus 13/14 anos. Andou um ano e tal fora de casa, trabalhando com o irmão mais velho. Não tivemos coragem de cortar nada desta prosa saborosa...

Embora nos interesse sobretudo a história da sua vida militar, é importante conhecer  alguma coisa da infância, adolescência e juventudade do Amadu Djaló, para se perceber melhor a sua decisão de se alistar na tropa portuguesa, antes de completar os 22 anos (**). 

Futa-fula, muçulmano praticante, frequentou também, além da escola corânica, a escola católica de Bafatá onde conheceu o missionário italiano do PIME, Arturo Biasutti, e aprendeu a gostar de jogar à bola. Esta experiência, digamos ecuménica, teve seguramenet reflexos positivos na sua formação como homem e na sua conduta na guerra.

Neste primeiro excerto, vamos ver o jovem Amadau, com apenas 13 anos, em princípios de 1954, partir com o irmão mais velho para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe; viagem de nove dias, a pé, que o marcou na sua adolescência; o irmão levava uma série de carregadores com mercadorias (roupas) para vender em Boké.

Um ano e tal depois (!), em novembro de 1955, regressa à terra natal,  Bafatá, numa viagem longa, novamente a pé. Aos 16 anos vai conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.

Verenos depois como, desde muito jovem, ele  luta para  ganhar algum dinheiro e ser independente:  organiza, por exemplo,  bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobra as entradas; as meninas de então chamavam ao Amadu o Mari Velo (ou Mari Belo, como me parece mais lógico, podendo haver aqui uma gralha de transcrição do parte do "copydesk": o Amadu tricava os b pelos v...)..

Mas seguindo o resumo curricular que o Virgínio Briote (foto à direita)  fez do seu amigo e camarada (vd. anexos do livro, pp. 287/288), o  Amadu, enquanto não é incorporado, vai trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá; estávamos em 1958. 

Nos princípios de janeiro do ano seguinte, regressa a Bafatá; como sabe ler e escrever, é chamado para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quer dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente, e consegue abrir uma banca para vender srtigos no mercado de Bafatá.

Mas a incorporação está à porta, como já vimos (**):  recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, é alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama...

Já agora, ficam suamariamente, mais alguns factos relevantes da sua vida militar: depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim... Vai regressar à CCS/QG, depois vem os Comandos de 1964 a 1966, volta à CCS/QG, depois o BCav 757, BCaç 1877, BCav 1905 e BCaç 2856, todos sediados em Bafatá...

Em meados de julho de 1969, é transferido para a 15ª CCmds, seguindo-se então a 1ª CCmds Africanos, o BCmds da Guiné e a CCaç 21 (sediada em Bambadinca) até ao 25 de Abril de 1974.

E promovido a 1º cabo em 1 de janeiro de 1966 e louvado pelas atuações em operações nesse ano. É novamente louvado, em 1967, em Ordem de Serviço (OS) do BCaç 1877, de 30 de setembro de 1967, pelo seu comportamento em ações de combate  no período de 7 de janeiro a 24 de setembro de 1967.

É, entretanto, graduado em furriel em 6 de fevereiro de 1970 e em 2º sargento em 7 de novembro de 1971, tendo sido louvado pelas ações em que participou durante o ano de 1972. É ondecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973.

Segue-se a sua graduação  em alferes em 28 de junho de 1973. Pela sua atuação nas operações do ano de 1973 recebe novo louvor. Passa à disponibilidade em 1 de janeiro de 1975, devido à independência do território da Guiné: Mas aí começam os sobressaltos...

Em 1986 veio para Lisboa (depois de  se ter refugiado no Senegal, onde se estabelecera como comerciante). Em 2015 publica  o seu livro de memórias, gracas ao apoio do Virgínio Briote e da Associação de Comandos (capa  à direita). Morre em 15 de fevereiro de 2015, em Lisboa, no hospital militar,  aos 74 anos. (****)


Os primeiros anos da minha vida - Parte I: 
infância e adolescência (pp. 16-24)

por Amadu Bailo Djaló

Chamo-me Amadu Bailo Djaló, nasci em 10 de Novembro de 1940, em Bafatá, na freguesia da Nossa Senhora da Graça.

A minha família era da Guiné Francesa [1]. O meu pai, Tcherno Iaia Tata Djaló, nasceu em 1895, em Tata Fulamori, a meia dúzia de quilómetros de Piche, e a minha mãe, Ana Condé, que nasceu em 1904, era da vila de Boké.

O meu pai amava muito os seus filhos, era um homem que estou sempre a recordar. Trabalhou muitos anos como empregado de balcão numa loja de um libanês, de nome Assad.



Guiné-Bissau > s/l > s/d > Cerimónia do fanado. Fotos cedidas pelo autor, Ernst Schade [2] , reproduzidas no livro, nas pp. 18 e 19.

Os meus pais matricularam-nos, a mim e ao meu irmão mais velho,  na escola do Alcorão [3], que frequentei durante três anos. 

Em 1948 fui para o mato, com três irmãos e mais sete rapazitos para a circuncisão [4]. Ficámos num grande acampamento com um homem mais velho, que tomava conta de nós e que nos dava aulas de moral, lições de comportamento e como respeitar os mais velhos.

Dois meses depois regressámos a casa e passei a frequentar uma escola católica, mesmo em frente à nossa casa, onde jogávamos futebol com as bolas que os padres italianos nos emprestavam.

Havia lá um padre italiano, de nome [Arturo] Biazutti [e não Viazutti..., pág. 19] (*****), que gostava muito de mim, talvez por eu ter grande facilidade em decorar as orações. Hoje tenho pena de a ter frequentado só dois anos. O meu pai não me obrigava a ir e eu acabei por abandonar a escola.

Foi uma época que foi correndo feliz até 1954, quando o meu pai me deixou ir com o meu irmão mais velho a Boké, onde a minha mãe tinha família. (...)

Numa manhã desse ano  [de 1954],  parti de Bafatá, a pé, acompanhando o meu irmão Baba Galé Djaló, que levava três carregadores e as respectivas mulheres. Ia também connosco o nosso primo – irmão, Ussumane Indjai, a mulher dele e mais três carregadores, com grandes quantidades de camisolas pretas, então com muita procura na Guiné Francesa.

Em direcção à fronteira, a corta mato, a olhar para trás e a chorar, é assim que me lembro do início da viagem. Uma viagem muito longa, demorámos nove dias a chegar a Boké 
[hoje 5 horas, de carro, pela N3, cerca de 223 km. LG]- 

Durante o dia caminhávamos, à noite dormíamos em tabancas, onde nos deixavam passar a noite.

Em Boké tínhamos lá um tio, um irmão da nossa mãe, que não conhecíamos. Chegámos num dia à noite e passámo-la em casa de um homem que tinha uma mulher em Bafatá. De manhã, fomos para a praça, à procura do meu tio.

No passeio avistámos um homem, que fixou o olhar no meu irmão. Quando nos encontrámos deu a mão ao meu irmão e perguntou:

− Fula, de onde é?

− Da Guiné Portuguesa.

− De que parte?

− De Bafatá.

− Eu tenho uma irmã em Bafatá, chamada Ana Condé.

− É a nossa mãe  
− respondeu o meu irmão.

Era o meu tio, um homem alto, bonito, de cor clara. Agarrou-me na mão e levou-nos a casa dele. Apresentou-nos à família e aos vizinhos, que ficaram muito contentes por nos verem e terem notícias da família de Bafatá.

Os carregadores do meu irmão transportaram cerca de duas mil e quinhentas camisolas pretas. Levámo-las para Bofa, Doupurou, Colom, Mancunta, Colabui, Tamarance e Boké. Vendemos tudo o que levámos.

Eu estava na altura com cerca de 14 anos. Passado um mês, o meu irmão foi à Serra Leoa, comprar panos, lenços e contas, que passámos a vender nas ruas. Mas estes artigos não se vendiam como as camisolas e o meu irmão mandou-me com a mercadoria para a vender em Bintomodiá.

Dias depois fomos para a ilha de Baga e em fevereiro de 1954 regressámos a Bintomodiá. O meu irmão, que já estava em Boké, telefonou ao homem pedindo-lhe para comprar cola. Com o dinheiro que eu tinha juntado comprou 550 quilos de noz de cola e depois segui para Boké.

Acompanhado de Coto Bobo, três ou quatro quilómetros andados chegámos à estrada que ligava Conackry a Boké. Ficámos ali à espera de transporte e encontrámos um militar, que estava de férias, acompanhado de outro homem que lhe transportava a mala. Pouco tempo depois apareceu um jipe, com duas pessoas, um africano e um branco, que vinha a conduzir e que vim a saber depois que era americano. Pedimos boleia, o jipe parou e nós corremos para entrar. 

O americano disse logo que não podia levar três pessoas. O militar olhou para mim mas eu não quis saber de que assunto estavam a falar. Então, ele e o homem que o acompanhava saíram do jipe e fui só eu. Se soubesse não tinha ido, porque a boleia era só até Tamarance, que ficava a cerca de doze quilómetros de Boké. Eu não podia andar sozinho esses quilómetros todos, de noite, a pé, era ainda muito rapazito para uma viagem tão comprida.

Quando atingimos Tamarance, o americano parou o jipe e fez-me sinal para sair. E agora, onde é que eu estou? O sol estava a pôr-se, a noite ia cair não faltava muito. Condoído, talvez, por me deixar ali, o americano olhou para o relógio e fez um gesto para eu me sentar outra vez. Na minha ideia ele ia-me levar a Boké.

Pôs o jipe a andar e, passado pouco tempo, chegados a um monte, mandou-me descer e apontou com a mão uma tabanca ali em baixo. Agradeci-lhe e fiquei a ver o jipe desaparecer no meio do pó. Dirigi-me para a tabanca, onde à entrada das casas encontrei um homem com uma lata de mel.

− Mano, para onde vais 
  perguntei.

− Boké 
  respondeu.

− Eu também quero ir para lá, vamos juntos?

Disse que ficava essa noite na tabanca e que só ia para Boké na manhã do outro dia. Então, eu respondi-lhe que ia com ele.

Segui-o até uma grande morança, vedada com lascas de cana de bambu, com quatro palhotas, entrámos, vi as pessoas a cumprimentá-lo. Era muito conhecido ali, pensei. A certa altura, ouvi alguém perguntar-lhe para onde levava ele o rapazito.

 
−  Não sei de onde ele vem, disse que vai a Boké  − respondeu.

Aproveitei para dizer que vinha de Bintomodiá, que tinha apanhado boleia num jipe e pedi-lhes para me deixarem passar a noite com eles. O homem disse logo que não tinha vindo comigo, que só nos tínhamos encontrado na estrada.

O homem da tabanca mandou-me ir embora o mais depressa possível. Implorei-lhe, mas ele ameaçou-me com porrada, sempre a dizer alto, "vai-te embora, vai-te embora". Mantive-me sentado e quando o vi levantar a mão para me bater, levantei-me, abandonei a casa e fui para a estrada. Era noite, já estava muito escuro.

Fui a outra casa pedir para me deixarem dormir na varanda, mas responderam que fosse a casa do chefe da tabanca, que era o homem que tinha ameaçado bater-me. De casa em casa, a resposta foi sempre a mesma.

Atravessei uma ponte de ferro, para o outro lado, e dei com outra tabanca, onde só falavam sosso. Havia uma casa, um pouco afastada das outras, e, como não vi ninguém, entrei na varanda, que tinha uma maca. Pensei logo em aproveitá-la para dormir. Quando me sentei nela, a maca fez barulho e ouvi uma voz de homem a perguntar quem estava ali. Voltei a levantar-me, o barulho voltou a ouvir-se, a voz do homem também e eu saí dali sem dizer nada.

Vi a luz de um candeeiro a chegar, alumiou-me a cara, e uma voz perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer. Que queria descansar um pouco, respondi. Era um velhote, que também me mandou ir embora, a gritar alto que fosse para a estrada, que era lá que se pedia boleia, na casa dele não.

Agora o único plano que eu tinha era chorar alto, para as pessoas ouvirem e ficarem incomodadas. Eu chamava alto pela minha mãe, mas ninguém se aproximou ou quis saber de mim. Estive ali a chorar até já não ter mais lágrimas.

De um momento para o outro, ouvi o ruído de um carro a aproximar-se, corri para a ponte e pus-me no meio. O condutor teve que parar e eu pedi-lhe boleia para Boké. Reparou que eu tinha a camisa toda molhada e mandou-me entrar e sentar-me na cabine, entre ele e o outro homem que o acompanhava. Contei-lhes o que se tinha passado nessa noite, enquanto rumávamos para Boké. Deixou-me perto da casa do meu tio, onde encontrei o meu irmão.


Guiné > Bafatá > Mercado local > c. 1968/70 > Foto de Fernando Gouveia (publicado a preto e branco no livro, pág. 32)


Em novembro de 1955 regressámos a Bafatá, também a pé, com os carregadores, outra viagem que nunca mais tinha fim. Às dez horas de uma manhã, entrei na minha casa. 

Depois de matar as saudades dos meus pais e da minha família, fui ter com um santomense, o Carlos Espírito Santo Rafael, que tinha um negócio de venda de fruta e uma taberna ao lado. Trabalhava lá um irmão meu, numa grande horta, com cana-de-açúcar, goiaba, limoeiros, mangos, bananeiras e ananases.

Na altura, com cerca de 15 anos, comecei a trabalhar lá também. Carregava a cana para os carros e levava-a para a destilaria onde se fazia aguardente de cana. Entrava às sete da manhã, fazia um intervalo ao meio-dia para almoçar e retomava o trabalho das 14 até às 17h00 
 [nove horas e meia de trabalho por dia... LG]  

Ganhava 4 escudos por dia [1,94 euros a preços atuais... LG] , que recebia ao mês. Mas raramente recebia o mês inteiro. Quando nos via a urinar ou a mastigar um pedaço de cana, o patrão descontava-nos cinco dias ou 20 escudos [9,68 euros a preços atuais... LG] , por isso raramente recebíamos o mês inteiro. Trabalhei lá, na horta do Rafael, durante um ano, ou nem tanto.

Num dia em que fui visitar o meu pai na loja do Assad, na praça de Bafatá, encontrei um sobrinho do patrão do meu pai, chamado Salimo, que me convidou a ir com ele, trabalhar como capataz, numa obra que estavam a fazer no Gabu [5]. 

De junho de 1957 a janeiro de 1958 fui o capataz da obra, o meu trabalho era contar, ao princípio da manhã e da tarde, os trabalhadores que estavam presentes e entregar a lista do pessoal ao Salimo, para ele fazer os pagamentos todos os sábados.

A seguir ao regresso a Bafatá 
[, no início de 1958], o Salimo encarregou-me de entrar na campanha da mancarra [6]. Nesse tempo, era costume adiantar dinheiro aos agricultores e eu passei a ir numa camioneta, às tabancas cobrar as dívidas, receber a mancarra correspondente ao dinheiro ou ao arroz que tinha sido adiantado. A seguir pesávamos a mancarra e procedíamos aos acertos. 

Depois da campanha da mancarra começámos com a do óleo de palma e depois a do mel e da cera, trabalho este que durou até Junho de 1958.  Salimo queria que eu continuasse a trabalhar com ele mas decidi não ir. O dinheiro que estava a ganhar neste trabalho não compensava, qualquer jila [7] ganhava muito mais.

Voltei para casa e, em julho 
[de 1958],  fui trabalhar com o meu primo, Ussumane, que se dedicava ao negócio do gado. Comprava em Piche, Canquelifá, Buruntuma, Pirada e Paunca e depois levávamos o gado, a pé, para o vendermos em Bissau.

Para o que estava habituado ganhava muito dinheiro mas era um trabalho muito árduo. De Bafatá a Bissau, nunca demorávamos menos de dez dias.

__________

Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Os Fulas da região do Gabú são originários da antiga Guiné Francesa. Os Futa-Fulas vieram do Futa-Djalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Toro, Futa-Quebo…)

[2] Nota do editor: Ernst Schade (1949, Holanda), especialista em agricultura tropical, trabalhou durante cerca de 16 anos na Zâmbia, Zimbabué e Moçambique, com instituições governamentais e não-governamentais em programas de desenvolvimento rural. De 1989 até 1995 foi o representante em Moçambique da Organização Norueguesa “Save the Children”. Ernst é um amante da fotografia, agora a sua principal actividade. É representado pelas agências de fotografia Hollandse Hoogte (Holanda) e Panos Pictures (UK).

[3] Nota do editor: a religião seguida pelos Futa-Fulas é o Islamismo, herdado dos árabes, segundo as tradições escritas.

[4] Nota do editor: é aproximadamente entre os onze e os quinze anos que os rapazes Fulas vão ao “fanado”. No dia combinado entre as famílias e o “operador”, os jovens dirigem-se para o mato, onde são aguardados junto a uma árvore. Cada um leva uma pessoa, um amigo ou familiar (um irmão já circuncidado), para o segurar no momento da intervenção. Tiram as roupas e os corpos são cobertos com cinza. Os jovens dispõem-se numa grande roda, voltados para nascente e o “operador”, munido de uma navalha bem afiada, procede à circuncisão do prepúcio. O familiar ou amigo do jovem faz-lhe um penso, cuspindo um pouco da cola (que esteve a mastigar) sobre a ferida ou espalhando uma mistura de ervas e cola moída, após o que liga a ferida com uma tira de pano, em volta dos rins de forma a manter o pénis em posição horizontal. O penso é mudado ao fim de três dias e as lavagens são feitas com água a cair de uma determinada altura. 

Depois da cerimónia os jovens recolhem a uma barraca, onde permanecem trinta dias, sob a vigilância dos responsáveis. Durante este período recebem ensinamentos destinados a orientar-lhes o comportamento futuro, como membros da comunidade familiar ou da etnia. Dormem de costas enquanto a ferida não cicatriza e não lhes é permitido olhar para as mulheres ou raparigas nem tão pouco falar com pessoas estranhas à cerimónia. Durante o tempo que permanecem na barraca do “fanado”, a família prepara uma túnica de pano de cor branca ou azul e uns calções do mesmo tecido. No fim dos trinta dias regressam às suas casas, após o que se segue a festa da saída do “fanado”, aberta a toda a gente.

[5] Nova Lamego.

[
6] Amendoim.

[7] Vendedor ambulante.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

(**) Vd. poste de 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

(ªªª) Vd. poste de 22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

(****) Vd. poste de 22 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)

(*****) Deve tratar-se de Arturo Biasutti, que esteve vinte anos na Guiné, entre 1946 e 1966. Pertencia ao PIME (Instituto Pontifício para as Missões no Exterior). Vd. aqui algumas das suas publicações sobre a Guiné-Bissau:

BIASUTTI (Arturo), Venti anni in Guinea Portoghese (1946-1966). Ricordi personali e privati del padre Arturo Biasutti del PIME. Marino, Villa Scozzese (Italia), 1967. Policopiado.

BIASUTTI (Arturo), Vokabulari kriol-purtguîs (Esboço -. Proposta de Vocabulário).
Bafatá (Guiné-Bissau), 1982. (1ª edição). Segunda edição, com o mesmo título, Bubaque (Guiné-Bissau), 1987.

BIASUTTI (Arturo), Jisus nô Salbadur. Esta obra foi escrita com o pseudónimo de PA BIÀS. Bubaque (Missão Católica), 1972.

Fonte:  Vd. Dioceses da Guiné-Buissau > O que diferentes Missionários da Guiné-Bissau escreveram sobre a própria Guiné-Bissau, Por Fr. João Vicente, ofm