Mostrar mensagens com a etiqueta guerra civil. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta guerra civil. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17065: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Em 1999, Publicações Dom Quixote davam à estampa uma obra ímpar da literatura de viagens, onde há um véu de romance e se sente desde a primeira página o poderoso artífice que nos introduz na guerra, nos revela todo um teatro de horrores como se estivesse a ver e se recusasse a sentir, todos aqueles figurantes e toda aquela classe de sofrimento parecem saídos de um bloco de notas de alguém que não quer tomar partido pelas demências que lhe são contadas. Em nenhum outro livro encontrei tantas semelhanças com "Kaputt", de Curzio Malaparte, outro viajante que anotou horrores num dado período da II Guerra Mundial, ouviu monstros deleitados com as suas doutrinas da supremacia racial e ouviu povo anónimo, agarrados às raízes da humanidade. De algum modo, são estes os cenários da "Baía dos Tigres", um livro extraordinário, irrecusável, uma paleta espantosa daquele pesadelo que deu pelo nome da guerra civil angolana.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (1)

Beja Santos

O escritor e jornalista Pedro Rosa Mendes, em 1997, propôs-se realizar a travessia do continente africano, por terra, “De Angola à Contracosta”. Queria afoitar-se a levar por diante o itinerário seguido por Capello e Ivens, como escreveu José Eduardo Águalusa, “um século depois, muitas guerras depois, através de estradas já mortas e campos semeados de minas”. O relato desta aventura é um livro esplêndido, uma pedra preciosa da literatura de viagens, um género literário em que damos cartas, seguindo a herança, ao melhor estilo, do que escreveu e viveu Fernão Mendes Pinto.
O que nos oferece esta “Baía dos Tigres” é um género de odisseia, voltando a José Eduardo Águalusa, com heróis anónimos, habitantes dos limites da vida, e também monstros, estranhos monstros reinventado o horror no seu vasto território de sombras. Portugal precisava de um livro como este. Um livro capaz de justificar todo um passado comum de errância pelo mundo e de renovar a chamada literatura de viagens.

O núcleo central da obra descreve situações da guerra civil angolana. Dentro da banalização do horror com que nos atrai do princípio ao fim, vamos começar exatamente perto do final na Pousada Número Um da Jamba:
“Tem 16 hóspedes que estão lá para sempre. Não tem iluminação porque é melhor assim para eles. Não se vê e a escuridão tem pudor do pesadelo que esconde, recortado contra um cheiro nauseabundo. Quando se entra os olhos ganham a vertigem do chão e o estômago quer voltar para trás. Os ocupantes são 6, quartos e um corredor de homens amontoados, quase todos cegos ou amputados e ainda outros que são surdos. Na verdade, o grupo maior é daqueles que estão cumulativamente imóveis em todas essas desgraças: não vêem, não ouvem, não mexem. Todos falam e mesmo os que não têm língua olham de uma maneira ensurdecedora.
A Pousada Número Um foi o primeiro centro de acolhimento de deficientes das FALA, criado no início da guerra quando Savimbi e um punhado de homens fizeram quartel-general no canto inferior direito da sua retirada de Luanda. Em Angola, a morte é um luxo barato. O preço maior é ficar vivo quando a vida é uma mercadoria insuportável. Em 1976, a Pousada era o exemplo Número Um do carinho que o Galo Negro dedicava aos heróis da luta: os homens que tinham pago esse preço exorbitante em lascas do próprio corpo. Têm minas na ponta das muletas, granadas onde faltam as mãos e bombas ao alcance das pestanas. Comércio de troca direta, a guerra deles: um pé por cada passo, um dedo por cada atraso, um homem por cada palmo, um grito por cada dor”.

Pedro Rosa Mendes não aterrou em Luanda à procura de uma reportagem de guerra, embora soubesse que a guerra aqui permanecia, tinha pela frente uma linha sinuosa que vai de Luanda a Quelimane. Uma odisseia, iria descobrir, cheia de campos de minas, o repórter vai descobrir aqueles azares da fortuna em que um guerrilheiro se desencantará, passando para o adversário, encontrará durante a viagem algumas dessas histórias em Angola e Moçambique. E logo descreve a batalha de Cuíto Cuanavale, onde combateram angolanos das FAPLA, guerrilheiros da SWAPO, tropas cubanas e aviões soviéticos contra angolanos da UNITA, comandos sul-africanos e aviões franceses:
“Milhares de homens morreram com bombas, morteiros, rockets, minas, tanques, metralhadoras, fome, pântanos, crocodilos. Com a loucura: é incontável o número de todos os outros que deixaram ali a vida e regressaram a Moscovo, Havana ou Joanesburgo contrabandeando a sua bagagem de pesadelos. O Cuíto Cuanavale é um epicentro do nada mas possui a única pista asfaltada da região preciosa para o transporte de tropas e material. O seu controlo podia decidir a guerra, como veio a acontecer”.
O repórter anda por perto, deambula por ruínas de alvenaria, ali não há eletricidade, água canalizada ou potável, é a desolação absoluta. As histórias sucedem-se, nenhuma é verdadeiramente feliz, Pedro Rosa Mendes prossegue viagem num doloroso anda-pára, tomas notas sobre vidas fantasmáticas e a descida aos infernos prossegue com minas à frente, atrás, à esquerda, à direita, mais dor parece impossível, como ele escreve:
“Andar de dia. Andar de noite. Comer fuba ou não comer nada. Poupar a última lata. Ferver chá colhido em arbustos. Cozinhar em panelas negras na terra lavrada pelos pneus. Comer a última lata. Comer à mão em pratos de esmalte esboroado. Imaginar água fresca. Salivar línguas de sal. Quebrar de frio uma hora depois da Lua. Abafar de calor uma hora depois do Sol. Sonhar com uma cama. Acordar com ratos. Adormecer com um susto. Desprezar as lágrimas. Evitar os cães. Defecar à frente dos outros. Tomar banho nos rios, nadar na sesta dos crocodilos, fugir das cobras, secar o corpo com as mãos. Colher os arrepios por fora dos ossos, vestir a pele da roupa imunda. Vomitar o próprio cheiro. Dormir ao relento, dormir em alerta, em trânsito, em casas abandonadas, em colchões de palha e piolhos, em cobertores com buracos e sarna”.

O repórter tem que atravessar a Jamba, é retido, ali passa horas intermináveis à espera de autorização para continuar. Sabe escutar, apercebe-se de dramas, daquelas guerras em que rapidamente se passa de herói a traidor, de quinta-essência a refugo. E vamos sendo atormentados com histórias macabras com a do Fogacho:
 “Fogacho estava condenado. Como oficial das FALA, foi integrado no exército único ao abrigo do Protocolo de Lusaca. Era uma das patentes da UNITA nas FAA; tenente-coronel. Há um ano que tinha trocado o mato pela cidade. Agora ia à Jamba, por terra, buscar a mulher, os filhos e duas viaturas que lá continuavam. Mas ninguém chega à Jamba por terra. Nem mesmo um tenente-coronel da casa. Ou talvez, melhor: muito menos um tenente-coronel que trocou de casa.
- Luanda é só traição. Esses ditadores se passeiam lá nos governos, comendo do nosso petróleo. Eles financiam o totalitarismo com o petróleo. Enquanto lhes bastar o petróleo não vamos ter cheiro de pluralismo. Devíamos ter estendido a guerrilha nas plataformas. Quando lhes estoirar nas mãos, aí eles percebem.
(…) Fogacho era estrangeiro. De Angola para Angola, do Bailundo para Luanda, mudara para sempre de país. Na UNITA, que sempre fanatizou a pureza, não há dupla nacionalidade. Fogacho foi para não voltar. Além disso, a cidade é uma sedução em si, depois de 20 anos no mato”.

A viagem prossegue, o escritor desorienta-nos com histórias e situações entre Angola, a Zâmbia e Moçambique, histórias de horror, de corrupção, daquela pura maldade que só é possível nas guerras insanas, onde foram esquecidos todos os princípios.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17055: Notas de leitura (930): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15410: Notas de leitura (779): "Combater duas vezes: as mulheres na luta armada em Angola", da antiga combatente do MPLA e hoje antropóloga Margarida Paredes (Vila do Conde: Verso da História, 2015)





Capa e contarcapa do livro de Margarida Paredes, antiga combatente do MPLA e hoje antropóloga, "Combater duas vezes: as mulheres na luta armada em Angola" (Vila do Conde: Verso da História, 2015)


1. Através do meu amigo Raul Feio, cidadão do mundo, angolano e lusófono, chegou-nos, em 15 do corrente, esta mensagem da autora do livro supra, a portuguesa Margarida Paredes.  Fica aqui este registo como primeira "nota de leitura"

Margarida Paredes, foto da editora,
Verso da História (com a devida vénia)


Car@s,

Foi editado em Portugal pela Verso da História o livro “COMBATER DUAS VEZES, MULHERES NA LUTA ARMADA EM ANGOLA” resultado da minha tese de doutoramento em Antropologia, no ISCTE-IUL e de um trabalho de quase seis anos dedicado às ex-combatentes angolanas. O prefácio é da antropóloga e historiadora Maria Paula Meneses, do CES, UC.

Além de ser um ARQUIVO DE MEMÓRIAS DE GUERRA NO FEMININO que cobre toda a história contemporânea de Angola sobre as Lutas de Libertação anticoloniais, MPLA, FNLA e UNITA, Revolta da Baixa do Kassange, 4 de Fevereiro, 15 de Março, prisioneiras do Campo de Concentração de São Nicolau e PIDE também se debruça sobre a Guerra Civil, nomeadamente sobre a Queima das Bruxas, Meninas Raptadas ou o Batalhão 89 (tropa feminina) da UNITA e ainda sobre o papel do Destacamento Feminino no 27 de Maio de 1977, entre outros capítulos, alguns dedicados a uma descrição etnográfica da pesquisa científica. 


Para refletir sobre a participação das mulheres angolanas nas guerras e nos conflitos utilizei um viés analítico ancorado na Antropologia Feminista e na Teoria Crítica Feminista.

Quem estiver interessado pode encomendar na FNAC, obrigada e aguardo o vosso feedback ao meu trabalho.

Margarida Paredes

Margarida Paredes (PhD)
Profª, UFBA, Universidade Federal da Bahia, Salvador
Investigadora, CRIA, Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Lisboa

_______________

Nota do editor:

Últumo poste da série > 23 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15398: Notas de leitura (778): Américo Estanqueiro, álbum fotográfico sobre Dulombi (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P13977: Notas de leitura (654): Reimpressão do livro “Crónica dos [Des]Feitos da Guiné" da autoria de Francisco Henriques da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
O nosso confrade Francisco Henriques da Silva tem a singularidade de ter combatido na Guiné entre 1968 e 1970 e foi embaixador da Guiné-Bissau entre 1997 e 1999, viveu o aceso da guerra civil em condições absolutamente dramáticas, enquanto os seus pares da diplomacia logo se puseram em segurança via barco ou helicóptero, ele e a mulher e alguns colaboradores aguentaram a pé firme a borrasca, tudo fizeram para que as evacuações dos refugiados corressem bem, como correram, a bandeira portuguesa nunca deixou de tremular na nossa embaixada. O que é um motivo de orgulho para todos nós e para mim, sou seu amigo há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário


Crónica dos [Des]feitos da Guiné

Beja Santos

Em boa hora as Edições Almedina acabam de proceder à reimpressão do livro do nosso confrade Francisco Henriques da Silva cuja edição de Setembro de 2012 estava esgotada. O acento tónico da obra é a guerra civil de 1998-1999, era a sua primeira experiência como embaixador, a Guiné caíra-lhe na rifa, a Guiné onde combatera entre Setembro de 1968 e Abril de 1970. Dá-nos um relato esclarecedor e singelo do que foi a vida da CCAÇ 2402, primeiro em Có, onde tiveram batismo de fogo em 29 de Agosto, e aí viveu a experiência de proteção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada Bula-Có-Pelundo, e depois em Mansabá, onde protegeram a construção da estrada Mansabá-K-3-Farim. Feito este trabalho de cantoneiros, foram lançados no Olossato, na região do Oio, mais um destacamento Ponte Maqué, que ele apresenta da seguinte forma:
“A 7 km do Olossato e a uns 11 ou 12 de Bissorã encontrava-se o destacamento de Ponte Maqué, um bunker em forma de quadrilátero, com um pátio central, na orla de uma bolanha, junto a um riacho, a maior parte do tempo seco ou quase, que albergava um grupo de combate. A ponte que, em tempos idos, foi de cimento e alvenaria, tinha sido dinamitada logo no início da guerra e havia sido reconstruída com toros de madeira, o que permitia a passagem de veículos pesados. Esta ponte era verdadeiramente vital pois permitia a conexão por estrada de Olossato com Bissorã e daí a Mansoa, Bissau e ao resto do território, por outras palavras, era a única ligação terrestre possível, porquanto as conexões com Mansabá e Farim estavam cortadas”.
E descreve seguidamente a vida em Ponte Maqué: 
“Sem energia elétrica, a proteção era-nos dada por umas duas ou três fiadas de arame-farpado, e por um campo de minas e armadilhas, delimitado pelas linhas de arame. A estrada nos dois sentidos, na direção de Bissorã e de Olossato era sempre armadilhada ao pôr-do-sol, sendo as granadas retiradas ao raiar de aurora, antes da população local se deslocar para a faina agrícola nas bolanhas vizinhas. Volta meia-volta os macacos saltitavam pelos campos de minas e rebentavam-nas, sendo invariavelmente saudados por rajadas de metralhadora e pelas imprecações dos soldados que acordavam estremunhados com os rebentamentos. Como oficial com a especialidade de explosivos, competia-me montar e desmontar as armadilhas em torno do destacamento de Ponte Maqué, bem como participar, juntamente com outros membros da minha equipa, na desminagem das picadas”.

Estamos em Outubro de 1997, [Francisco Henriques da Silva] chega a Bissau, apresenta credenciais ao presidente Nino Vieira e logo o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação inicia uma viagem oficial à Guiné-Bissau, Henriques da Silva regista com humor e muita coloquialidade a aparição de Kumba Ialá num jantar na embaixada em que está o secretário de Estado português e os ministros dos Estrangeiros e da Justiça, é uma descrição memorável:
 “- Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço… 
- Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse ele, sem desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que quer tomar? 
- Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu. 
- Bom, isso não há mas tenho algo de parecido. - Lá pedi ao Augusto que lhe servisse um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto, pois temia o que pudesse vir a passar-se e com Kumba Ialá o imprevisível era quase sempre o prato do dia – tudo podia acontecer. Entretanto, José Lamego aproximou-se também. 
- Ora cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. 
Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados. 
- Mas este ainda é pior – e vira-se, então, para o ministro da Justiça, Daniel Ferreira – este é que é um dos responsáveis pelos 20 mil votos que eu perdi nos Bijagós. Este agora é ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhes confiança…
Comecei a ver a vida a andar para trás. O primeiro jantar oficial que oferecia na residência a ministros locais e ao meu secretário de Estado, redundava num fiasco completo…”.

Henriques da Silva passa a escrito as impressões de Bissau, mas também as incongruências da cooperação, os sinais de instabilidade das Forças Armadas guineenses, o oportunismo da sua política externa, os equívocos do relacionamento luso-guineense, o caldeiro da questão Casamansa e em que medida a insurreição ali existente veio a contribuir para o detonar do levantamento militar chefiado por Ansumane Mané. O país está em polvorosa, abatido pelo défice e pelo gradual empobrecimento, onde chegara a hora de os combatentes da liberdade da pátria redigirem uma carta-panfleto, a pretexto do tráfico ilegal de armas, ali vinham acusações a Nino, o caderno reivindicativo apelando à dignidade dos antigos combatentes que beneficiavam de pensões miseráveis. Estão ali repertoriados dados significativos que nos vão fazer compreender a explosão desencadeada em 7 de Junho, o VI Congresso do PAIGC, realizado em Maio revelava que Nino era um senhor todo-poderoso e era apoiado por uma corte incondicional que não queria perder as suas regalias, aquele congresso saldou-se no impasse que deixava a ala renovadora do PAIGC desalentada. Tudo isto é descrito com episódios burlescos, situações por demais caricatas, pedinchice infindável.

E veio o levantamento militar que Henriques da Silva irá viver em toda a sua intensidade. Não existirá relato tão minucioso e esclarecedor dos acontecimentos, ali vêm as peripécias dos media, a Bissau bombardeada e as populações em fuga, gente a acorrer à embaixada, tudo em estado caótico:
“Alojados pelos corredores, nos sofás, nas banheiras, no chão, enfim, por tudo quanto era sítio, onde quer que houvesse espaço disponível, ali foram recebidos os nossos compatriotas, nos parâmetros típicos do nosso consabido desenrascanço lusitano”. O cargueiro “Ponta de Sagres” chega ao cais do Pidjiquiti e leva os refugiados enquanto troam os canhões, Henriques da Silva acompanha tudo, ocorre o milagre, a operação saldou-se num êxito. E a guerra continua por Junho fora, os senegaleses comportam-se como bárbaros e ocupantes, destroem património valioso. O êxodo continua, as populações de Bissau fogem para o interior. O alferes que vivera uma guerra contra o PAIGC assiste agora ao ódio dos guineenses favoráveis à Junta Militar a infligir perdas às tropas senegalesas e da Guiné Conacri, a nação dava a sua prova de vida humilhando os exércitos estrangeiros bem equipados. A guerra prossegue com Nino Vieira e os seus amigos circunscritos à península de Bissau e a algumas ilhas dos Bijagós. Há negociações, consegue-se um acordo mas a situação permanece explosiva. Em Maio seguinte, a Junta Militar entra em Bissau, Nino Vieira refugia-se na embaixada de Portugal. Renovava-se a esperança, mas foi tempo de pouca dura, os problemas de fundo iriam subsistir com novos equívocos nas Forças Armadas a querer decidir em nome do poder político. Equívocos atrás de equívocos que o autor comenta. Em Maio de 2000, o presidente Jorge Sampaio, por tudo o que se passou na Guiné-Bissau condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.

Para quem quer conhecer os dramas da Guiné-Bissau de todo este tempo, a leitura deste livro é indispensável, pela vivacidade dos estilo e pela quantidade de documentação trabalhada.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13937: Notas de leitura (653): “Navios com o nome Guiné”, da autoria do Capitão-de-Mar-e-Guerra Carlos Gomes de Amorim Loureiro (Mário Beja Santos)

domingo, 19 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13762: Viajando numa estrada em guerra (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

1. Mensagem do nosso amigo guineense, Nelson Herbert, que vive nos EUA, onde trabalha na VOA - Voice of America, Voz da América, com data de 9 de Outubro de 2014:

Traveling a Road Into War

Um dos marcantes momentos da minha experiência na cobertura do conflito de 1998/99, a guerra civil na Guiné-Bissau, retratada por uma publicação americana.

O episódio resume-se no seguinte.
Para evitar a entrada na Guiné-Bissau através da fronteira norte com o Senegal (eixo Zeguinchor /São Domingos), devido em parte a então intensa movimentação dos guerrilheiros independentistas do Casamance na região, numa mobilização que visava o eventual "estancamento" da infiltração de unidades militares das Forcas Armadas senegalesas através da fronteira norte da Guiné-Bissau em apoio as forças de Nino Vieira, foi-me na altura aconselhado por razões de segurança, a utilização da fronteira leste da Guine Bissau, no eixo Kolda /Pirada como ponto de entrada no pais. A inflexão mais ao interior da região senegalesa do Casamance, em direção à fronteira leste da Guiné-Bissau, mais concretamente Pirada, evitando consequentemente as zonas da operacionalidade da guerrilha independentista, acarretaria entretanto os seus contratempos.

Chegados a Kolda (Senegal) na sequência de uma viagem longa, desgastante e exposto a uma canícula infernal, momentos antes de cruzar a fronteira e em pleno "directo" ainda do lado senegalês da fronteira, com a emissão da VOA a partir de Washington DC., sou interpelado e conduzido à presença do comandante da região militar, por um grupo de soldados senegaleses fortemente armados.

Em causa o telefone satélite (nunca antes visto na região) usado no "directo" e que curiosamente os militares senegaleses insistiam em baptizar de telefone da Junta Militar.
Até à confiscação de todo o equipamento de reportagem, toda a cena foi sendo reportada através da emissão da VOA e por conseguinte acompanhada pela audiência na Guiné-Bissau.

Cumprido as formalidades e um período de detenção para "averiguação" dos propósitos da minha viagem a Guiné-Bissau em guerra, a minha devolução à liberdade seria motivo de notícia pelos colegas em Washington.

Resultado, cruzada a fronteira senegalo/guineense, à boleia de um camião de carga e à chegada a Pirada, sou surpreendentemente recebido em ovação por um grupo de ouvintes da Voice of América que ao longo da fronteira vinham seguindo através das ondas hertzianas a sorte madrasta minha, por terras senegalesas.

Desse momento ímpar da minha carreira jornalística, retenho a afabilidade do Dr. Xisto (será essa a grafia?) na foto, capitaneando de forma efusiva o "clube de ouvintes " à minha recepção.

E desse episódio nasceria uma forte relação de amizade e estima mútua, que entretanto a morte prematura deste medico guineense, ainda com a Guiné-Bissau em pleno conflito, entendeu abreviar.

A este amigo a minha eterna gratidão!

Nelson Herbert Lopes


____________

Notas do editor

- Título do poste da responsabilidade do editor

- Último poste de 11 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13718: Recuerdos de uma infância: a Nha Maria Barba, a avó Barba, cantadeira de mornas, da Boavista, minha viziinha de Bissau (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

domingo, 19 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11597: Notas de leitura (483): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 16 de Maio de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Na sequência do meu "post" anterior, junto segue a 2.ª parte da minha recensão sobre o número especial da revista "Soronda" relativo ao conflito armado de 1998-1999.

Afiguram-se particularmente interessantes os "cartoons" de Fernando Júlio, “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá”, de que reproduzo alguns, em que o desenhador compara, com humor, a guerra civil à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, há sempre a enorme vantagem de não se registarem mortos.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil de Infª
CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999


Soronda – um exercício a várias vozes sobre a guerra civil

(continuação)

Mamadu Jao faz uma “Leitura do Conflito Guineense” em que analisa as causas e consequências da guerra de 7 de Junho. No que concerne as causas, segundo ele, não existe, até à data, uma versão que se possa considerar consensual: para uns, designadamente para o Poder político em Bissau o conflito constituiu uma verdadeira surpresa; para outros, o país reunia todas as condições objectivas (políticas, económicas e sociais) e subjectivas para a eclosão das hostilidades em larga escala. Calcula o número de mortos em 6.000, o que se nos afigura exagerado, desconhecendo-se o rigor da cifra apresentada e como se atingiu tal valor. Considera ainda que a guerra colonial de 11 anos não atingiu a crueldade desta que, em contraste, durou apenas 11 meses. Em conclusão, para o autor, quando o conflito tem lugar, a Guiné-Bissau debatia-se com uma profunda crise económica e social, perfilhando por conseguinte a segunda tese. Adianta que a guerra não se traduziu em condições mais dramáticas para as populações devido ao espírito de solidariedade e de entreajuda, sobretudo no interior do país, mais tangível nas primeiras fases da guerra e menos na fase final, em que se geraram mesmo alguns focos de tensão.

“A tragédia de Junho de 1998 – factos e comentários” de Leonardo Cardoso é um texto em que, à parte um ou outro elemento novo eventualmente a reter, repete informação já conhecida e especula de forma infrene sobre o envolvimento de países exteriores à região (neste caso, a França e Portugal). A análise centra-se sobre as razões do conflito e as diferentes tomadas de posição sobre o mesmo, bem como, a variabilidade dessas mesmas tomadas de posição ao longo da contenda. Não primando pela inovação, nesta matéria, o autor repisa os habituais lugares comuns de todos os que escreveram sobre o conflito. Aponta como motivos para a guerra a crise generalizada política, económica e social com que se debatia a Guiné-Bissau culminando no levantamento de 7 de Junho. A deficiente democratização do país, a má governação, a gestão deficiente, a corrupção endémica, a degradação das condições de vida da população, os problemas nas áreas de maior impacto social (educação e saúde) são alguns dos temas glosados à exaustão ao longo de vários parágrafos. Para Leonardo Cardoso “começava a desenhar-se o início do fim da era do PAIGC enquanto partido no Poder e do autoritarismo do seu líder, Nino Vieira” (p. 132). Mais grave ainda era a situação no seio das FA’s com diferentes facções que se opunham entre si, num ambiente tenso e malsão. Quanto ao tráfico de armas (considerada por quase todos os autores como uma das causas do conflito), o autor alega que não está na origem, mas que foi apenas um acelerador do processo. Em seguida, L. Cardoso, depois de se referir à condenação internacional do levantamento militar, analisa as posições de Portugal e da França. As adesões à Francofonia e à UEMOA da Guiné-Bissau conduzem a uma “derrapagem da política linguística e cultural de Portugal nesse país “franco-luso-africano a favor da França que multiplica as suas ações e vê as suas relações com a Guiné-Bissau cada vez mais fortalecidas” (p. 144). Afigura-se-nos que, neste particular, apesar de Leonardo Cardoso ter parcialmente razão, está a analisar o problema de modo muito superficial, o desenrolar da guerra, designadamente a intervenção dos países vizinhos, e o seu desfecho vêm precisamente contrariar esta tese. Refere-se a uma alegada “intervenção francesa directa” (bombardeamentos por navios franceses, militares desta nacionalidade na linha da frente, morte de 2 militares, etc.). Trata-se, bem entendido, de pura especulação sem qualquer fundamento ou coerência. Em seguida, com base numa notícia publicada pelo “Observatório” da Liga Guineense dos Direitos Humanos (de Novembro de 1998) refere que o embaixador de Portugal em Bissau, na altura eu próprio, teria, supostamente, recebido um telefonema anónimo, cerca das 5 e 30 da manhã, de 7 de junho de 1998, a informar-me do levantamento militar, que eclodiria minutos depois, o que é totalmente falso. Afirma L. Cardoso: “É, no mínimo, questionável este telefonema. Que relações existiam entre o embaixador português e o levantamento militar? O levantamento representava. algo de importante para Portugal ao ponto de o seu embaixador ser informado em primeira mão ainda antes de começar, com todos os riscos que a chamada pudesse representar caso fosse interceptada?” (pp. 149-150). O delírio destas pretensas informações, sem qualquer credibilidade ou fundamento, é absoluto. É questão para nos interrogarmos quanto às razões que levaram à respetiva publicação. O autor vai ainda mais longe, considerando que a prontidão em evacuar os cidadãos portugueses , “permite concluir que Portugal estava na posse de informações sobre as disposições da Junta Militar” (p. 150), o que é um absurdo. Poder-se-á dizer que devido à situação de grande instabilidade político-militar na Guiné-Bissau, Portugal dispunha já de um plano secreto de evacuação (Operação Crocodilo) que foi acionado logo que se encetaram as hostilidades, o que, aliás, é hoje bem conhecido. O autor alude ainda ao “envolvimento de Portugal no conflito ou de uma grande simpatia para com a Junta Militar, à qual tinha sido prometido o apoio da marinha portuguesa caso se consumasse o envio das corvetas francesas” (ibid). Eis, Alice, resplandecente, no País das Maravilhas! Quaisquer comentários adicionais são inúteis.

“La guerre des mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modèle de résorption de crises” de Fafali Koudawo trata-se de um dos artigos mais interessantes desta edição especial da “Soronda”. Mandjua significa em crioulo pares, ou seja da mesma idade, da mesma geração. No sistema tradicional vigente na Guiné-Bissau, o termo refere-se à igualdade social e à identificação com o mesmo grupo etário. Para Koudawo estamos perante uma crise multidimensional. Se a razão imediata para a guerra consistiu no tráfico de armas para os rebeldes de Casamansa, as causas remotas são mais complexas, a saber: as marcas deixadas pelo processo de independência por um partido armado; os efeitos perversos do sistema de hegemonia politica do PAIGC; a insuficiente despolitização (leia-se, despartidarização) das FA’s, consideradas o braço armado do PAIGC; a incompleta conversão do PAIGC em partido civil; a difícil adaptação do partido único ao novo contexto politico pluralista; a questão mal resolvida da desmobilização dos antigos combatentes, abandonados pelo Poder; a cisão entre ex-combatentes privilegiados versus ex-combatentes proletarizados (lumpen), ou seja um sistema iníquo criado pelos antigos companheiros de luta; os obstáculos reais à criação de um verdadeiro estado de direito; a preeminência da má governação com problemas graves de administração e de gestão do Estado e dos recursos do país, a opacidade e a corrupção. Koudawo coloca o acento tónico na questão da má governação e na ruptura dos equilíbrios que engendrou.

Seguindo as teses de Fafali Koudawo, ao longo do tempo, a transferência de competências institucionais para círculos privados traduziu-se numa efetiva privatização das instituições e numa forte informalização do Estado. A suspensão de Ansumane Mané do cargo de CEMGFA em Janeiro de 1998 e o aumento das tensões entre fações militares, atinge, digamos, um ponto de não retorno quando a crise (designadamente a questão do tráfico de armas) sai dos círculos informais e passa para os circuitos formais. O Parlamento tenta reabsorver uma situação crítica, o que deveria ser considerado normal, mas, com efeito, acaba por gerar maior instabilidade. O autor conclui: “A guerra não é pois o simples resultado do fracasso duma saída da crise, é também a consequência fatal duma tentativa de saída do Estado informal. Posto noutros termos se a crise é resultado da má governação, a guerra é o resultado duma tentativa abortada de instrumentalização da boa governação numa situação de crise. É este aparente drama da boa governação que constitui o paradoxo Bissau-guineense.” (trad. pp. 157-158). Por conseguinte, a má governação constitui, por assim dizer, o elemento decisivo, o que engendra um sistema informal de resolução de gestão de conflitos nas diversas esferas de poder (económico, politico e militar) com ramificações por toda a sociedade, prevalecente na Guiné-Bissau desde a independência, mas que é posto em causa quando da abertura política em 1991 e sobretudo nas eleições de 1994. O PAIGC e o velho sistema informal de resolução de crises desorganizam-se e não podem funcionar, como no passado, porque as regras do jogo são outras. Os mandjuas (os pares, os iguais) que resolviam os problemas entre si deixam de o poder fazer e os diferendos passam para os circuitos formais e institucionais de eficácia precária ou inoperantes. Os actores sentem que a situação lhes escapa, mas concomitantemente sentem também que as questões permanecem todas em aberto e sem solução à vista. Esta manifesta incapacidade de gestão dos conflitos internos está na origem do levantamento militar, ou seja na expressão violenta do descontentamento, pela via das armas, com inevitáveis reflexos regionais e internacionais. Atente-se que Nino pensava ter resolvido o problema do partido no VI Congresso pela via informal e preparava-se para suprimir a resistência do CEMGFA suspenso, por processos semelhantes. A revolta de Mané é um elemento capital, mas só pôde ser concretizada porque – e não é demais sublinhá-lo - não foi um ato isolado. Tratava-se sobretudo da recusa na restauração da hegemonia pessoal e autoritária em torno do Presidente da República (v. p. 168). Nino procurava impor-se e conquistar o Poder absoluto. A mensagem dos mandjuas é simples: Nino não é mais que um primus inter pares e os pergaminhos do tempo de luta devem-se igualmente aos seus iguais.

“O impacto do conflito na reserva da biosfera do arquipélago Bolama-Bijagós” de Justino Biai, refere que as ações beligerantes levaram muitos milhares de cidadãos de Bissau a procurar refúgio em regiões menos afetadas pela guerra, como foi o caso do arquipélago Bolama-Bijagós. Para alem dos deslocados, as ilhas receberam também militares estrangeiros, senegaleses e conacri-guineenses que para ali foram destacados, uma vez que o aeródromo da ilha principal, Bubaque, era vital para os militares leais a “Nino” Vieira e para a tropa estrangeira, sobretudo após a queda do Leste (Bafatá e Gabu) a favor da Junta Militar. Todavia, o arquipélago é uma reserva da biosfera e possui um eco-sistema muito frágil. A população aumentou desmesuradamente o que veio a prejudicar os recursos naturais e as atividades da população local.

“O Impacto do conflito político-militar sobre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa” de Samba Sané é amplamente referenciado neste artigo. O INEP era uma instituições científicas e culturais de referência na Guiné-Bissau. Situado na linha da frente, entre a tropa de “Nino” Vieira e dos seus aliados e os rebeldes da Junta Militar, foi alvo de bombardeamentos, pilhado e saqueado. Serviu de caserna à tropa senegalesa. A maior parte da documentação e do material foi destruída ou roubada. “Todo um trabalho de mais de 15 anos de recolha de dados com vista à constituição da memória histórica do país desapareceu” (p. 211).

O antropólogo francês Gérald Gaillard, da Universidade de Lille, publica um extenso artigo intitulado “La guerre en son contexte: histoire d’une erreur politique” que se divide em quatro partes: na primeira, analisa a história da Guiné-Bissau, sobretudo a partir de 1980; na segunda, debruça-se sobre a guerra civil, com alguma minúcia; na terceira, em que predomina a especulação amiúde infundamentada, avalia a queda de “Nino” Vieira, as políticas divergentes da União Europeia, uma vez que Portugal e a França alinharam em campos opostos e, sobretudo, tenta compreender os erros desajeitados cometidos por Paris na análise da situação bissau-guineense, das realidades locais e dos jogos internos de relação de forças; finalmente, na quarta parte, examina a situação da Guiné-Bissau no rescaldo da guerra civil, o problema de Casamansa, a influência líbia na região, designadamente, na Guiné-Bissau e na Gâmbia e a situação neste último país. A primeira e segunda partes constituem uma narrativa descritiva relativamente extensa que nos vamos abster de comentar em geral, limitando-nos a referir quatro ou cinco questões pontuais. Para Gaillard não há uma cesura étnica na Guiné-Bissau o que, a seu ver, demonstraria uma grande maturidade por parte do povo bissau-guineense. Parece-nos uma conclusão apressada e superficial. Ao referir-se às eleições de 1994, alega que “Nino” não terá obtido votos junto dos veteranos de guerra, o que demonstraria que estes já não estariam maioritariamente com ele. Não se sabe até que ponto esta asserção é verdadeira. Apesar de todos os defeitos do regime, as agências de cooperação e assistência internacionais e as embaixadas estrangeiras teriam confiado em “Nino” na ausência de uma alternativa viável – i.e., não haveria ninguém para o substituir. Esta conclusão é presumivelmente verdadeira. Estamos em crer que Portugal, a França e os demais países apostaram sempre em Kabi, até porque estavam convictos que o regime, apesar das turbulências, estava de pedra e cal e o PR para ficar. Gaillard refere-se ao dossiê petrolífero e às reservas off-shore bem como às posições perdedoras da Guiné-Bissau nesta matéria, sem, porém, entrar em grande pormenores. Seria importante que o tivesse feito, mas trata-se, bem entendido, de matéria opaca. Afirma que a “luz verde” para o ataque final às posições ninistas em 6 de maio terá sido dada pelo presidente nigeriano Abdulsalami Abubakar a Ansumane Mané, o que se nos afigura totalmente especulativo e pouco crível. Para o autor, Portugal ao conceder o asilo político a Vieira, no fundo, “impôs” (?) uma solução que evitaria o respetivo julgamento em território da Guiné-Bissau. Desconheço que elementos de informação dispôs Gaillard para poder concluir desta forma. Ora bem, se se deparam com especulações na primeira e segunda partes aquelas continuam com uma intensidade quiçá reforçada na terceira e quarta, até por que aqui a matéria de facto já não é tão abundante e a imaginação não tem fronteiras. É claro que a ausência de uma política europeia comum em relação à Guiné-Bissau, como em relação a n outras regiões do mundo e a outros tópicos de politica externa, é no fundo uma tautologia. Considera que a França falhou ao acalentar uma aproximação da Guiné-Bissau ao Senegal e a integração do país no conjunto francófono. Todavia, Gérald Gaillard chega a advogar que a Guiné-Bissau se possa tornar uma província do Senegal (!). Finalmente, para além dos erros crassos cometidos pela França, duvida da capacidade de Portugal se impor como coordenador da politica externa europeia na Guiné-Bissau. Trata-se a meu ver de um problema geral de falta de confiança no nosso país, que, aliás e infelizmente, não é só apanágio de certos autores franceses.

Finalmente, Fafali Koudawo, analisa os “cartoons” da história em quadradinhos de Fernando Júlio no texto intitulado “A guerra desenhada – Lutu na Polón di Brá” em que compara, com humor, a guerra à luta livre tradicional, muito popular na população bissau-guineense, onde, todavia, não se registam mortos.


____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11591: Notas de leitura (482): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (1) (Francisco Henriques da Silva)

sábado, 18 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11591: Notas de leitura (482): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 14 de Maio de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
Apesar do pouco tempo transcorrido desde o termo da guerra civil de 1998-1999, é muito interessante a coletânea de textos que foi publicada pela “Soronda”, revista de Estudos Guineenses, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau em finais de 2000, num número especial dedicado ao conflito.
Muito embora os textos não sejam todos de igual valia e alguns primarem mesmo, pela especulação pura, vale a pena dedicar alguma atenção ao que escreveu, por exemplo, Fafali Koudawo ou Tcherno Djaló.
Os diferentes artigos traçam-nos uma panorâmica do que pensava (e, presumivelmente, ainda pensa) a elite culta bissau-guineense e alguns especialistas estrangeiros sobre aquele devastador conflito armado.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf Mil de Infª.
CCaç 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


Soronda – um exercício a várias vozes sobre a guerra civil

Em Dezembro de 2000, a revista “Soronda”, revista de estudos guineenses do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa de Bissau, publicou na sua nova série, um número especial totalmente dedicado à guerra civil de 1998-1999 (Soronda, 7 de Junho. Revista de Estudos Guineenses. Bissau: INEP, Nova Série, n° 2, dezembro 2000).

Trata-se do que podemos designar por um exercício a várias vozes, nem sempre concordantes entre si e de qualidade variável. Todavia, há que se louvar o esforço, pois trata-se do único documento – ou, se se quiser da única colectânea de documentos que se conhece - em que de uma forma séria e minimamente rigorosa se pretendem abordar as grandes questões suscitadas pela guerra civil. Há a acrescentar que, na altura da publicação, o tempo transcorrido, desde o termo do conflito ainda era muito curto e os diferentes participantes no exercício amiúde não escondem as suas simpatias por uma ou outra das fações beligerantes.

Como é bem sublinhado logo na introdução, o INEP, a cerca de um quilómetro da linha da frente, foi ocupado pela soldadesca durante 9 meses e aí estiveram aquartelados militares senegaleses que, como se soube na época, saquearam o edifício e serviram-se dos livros e de outro material como combustível para a confeção das suas refeições. O INEP foi milagrosamente reabilitado em pouco tempo, logo após a cessação de hostilidades, muito embora se tenha perdido uma parte importante do seu espólio.

A guerra é abordada em 3 grandes capítulos: (a) as origens remotas e imediatas do conflito; (b) os ângulos internos e externos do desenrolar das hostilidades ao longo de 11 meses de campanha; (c) o impacto do conflito em distintos aspectos da vida bissau-guineense.

No artigo “A crise no PAIGC: um prelúdio à guerra”, Caterina Gomes Viegas e Fafali Koudawo analisam a crise interna do partido então no Poder, designadamente entre as fações encabeçadas, por um lado, por “Nino” Vieira e pelos seus acólitos e, por outro, por Saturnino Costa/Malan Bacai Sanhá, com reflexos tribalistas e racistas (opondo-se os últimos, que se consideravam pretus nok – ou seja, guineenses puros - aos burmedjus – mestiços – que integravam as hostes ninistas). Estas rivalidades entre antigos companheiros de luta não prenunciavam nada de bom. As lutas internas que datavam do tempo da luta de libertação, mas que se agudizaram nos anos 80 e 90, os sucessivos adiamentos do congresso do PAIGC e o impasse que se gerou quando este teve lugar com a aparente, mas, como se veio a saber, pirrónica vitória de “Nino” conferiam à situação uma gravidade que não podia ser escamoteada. Por outro lado, o PAIGC – e o Congresso era disso prova cabal – ignorava, deliberadamente, os grandes problemas com que o país e a sociedade se debatiam: o tráfico de armas para Casamansa, a instabilidade nas Forças Armadas e a respetiva reforma, a situação dos antigos combatentes, etc. Para os autores, o impasse do VI Congresso do PAIGC constituiu o prelúdio para guerra.

Tcherno Djaló, em “Lições e legitimidade nos conflitos políticos na Guiné-Bissau”, considera que a “a história contemporânea da Guiné-Bissau tem sido uma sucessão de actos de violência política e institucional”(p. 25). Faz a análise dos processos de legitimação dos constantes atos de violência na Guiné-Bissau, desde o movimento de independência que é pela sua própria natureza violento, mas legítimo, ao 14 de novembro de 1980 e ao levantamento de 7 de junho de 1998, cuja legitimidade é menos clara, mas que se reclamam sempre, quer num caso, quer noutro, da herança de Cabral. O agravamento da situação económica e o crescente divórcio entre a classe dirigente e o povo, agravado por um forte sistema repressivo estarão na origem do 14 de novembro. Fatores étnicos que vinham de trás terão contribuído para o desfecho. Todavia, há que sublinhá-lo, os fatores pessoais também pesaram, com a supressão do cargo de Primeiro-ministro que “Nino” detinha e a sua consequente despromoção. Tratou-se, pois, de transformar uma racionalidade individual numa ação coletiva. Quanto ao 7 de Junho, Tcherno Djaló descarta os fatores etno-tribais como estando na origem do levantamento, encontra fundamentos pessoais, nas posições de Ansumane Mané e a primeira razão da sua legitimidade consiste na intervenção estrangeira: “a chegada do corpo expedicionário das tropas da Guiné-Conakri e do Senegal desencadeou de imediato uma onda de nacionalismo e patriotismo que há muito não se via na Guiné” (p. 31). A gestão “empresarial” dos negócios do Estado em proveito próprio e da “clique” de “Nino” Vieira terão contribuído para a imagem negativa do regime junto da opinião pública. A legitimidade do Chefe de Estado contrastava com a ilegalidade da intervenção militar estrangeira. Em termos de consequências, o 7 de Junho representa, em primeiro lugar, o fim do regime de “Nino” Vieira, em segundo lugar, a implosão do PAIGC, em terceiro, a reabilitação das Forças Armadas e dos antigos combatentes. Todavia – e este aspeto, na nossa opinião, é da maior relevância - , “doravante, conscientes da força que representam no seio da sociedade, os militares passam não a reivindicar, mas a exigir os seus direitos”. Do ponto de vista político, as regras do jogo são invertidas, permitindo o acesso ao poder de uma formação política maioritariamente balanta, em detrimento da elite luso-cristianizada e mestiço-crioula que havia desde sempre dominado o país. Outras consequências são, igualmente, analisadas, quer económicas, quer a nível da sub-região, quer ainda em termos da credibilidade externa da própria Guiné-Bissau. O autor conclui, repisando a mesma argumentação utilizada para o 14 de Novembro, a ação política violenta é motivada por uma dinâmica pessoal que “transforma a racionalidade individual numa ação coletiva.”

Roy van der Drift apresenta um relato de caráter quase jornalístico sobre o conlfito, intitulado “Democracy: Legitimate warfare in Guinea-Bissau”, em que entremeia descrições meramente factuais com muita especulação e algumas frases bombásticas da sua lavra. Entre estas últimas, destaca-se, por exemplo, o não ter havido qualquer guerra civil na Guiné-Bissau, o que é um contra senso, quando não uma inverdade, e que se está perante uma relação inter-étnica harmoniosa, o que contraria frontalmente o que nos diz a história e a antropologia. Para o autor, os diferentes episódios de beligerância, ao longo de 11 meses são uma espécie de escaramuças intermitentes (!). No que respeita às especulações, Van der Drift, alega que a França e o Senegal estariam por detrás da destituição do brigadeiro Ansumane Mané, o que nos parece descabido; que a rápida chegada do corpo expedicionário senegalês já estaria planeada desde há muito, uma vez que o primeiro contingente avançou para Bissau logo a 7 de Junho (aqui, a questão levantada afigura-se-nos pertinente); que os franceses terão posto à disposição de “Nino” Vieira e dos seus aliados, na fase final da guerra, canhões de 155 mm e que, segundo um padre italiano, cerca de 100 “conselheiros militares” franceses teriam estado envolvidos na ofensiva de Janeiro-Fevereiro de 1999, asserções que carecem totalmente de provas. O autor dá claramente a entender que a Guiné-Bissau sob “Nino” Vieira se integrava gradualmente na francofonia, o que, em nosso entender, é uma presunção, esta, sim, com algum fundamento, mas não era ainda um dado adquirido. Em suma, há que ler-se com algum distanciamento e as devidas cautelas este relato.

Fodé Abulai Mané apresenta-nos um artigo intitulado “O Conflito Político-militar de 7 de Junho de 1998: a Crise de Legitimação”. O autor começa por analisar a posição da Comunidade Internacional quando o pleito se iniciou para em seguida passar à análise jurídica da argumentação invocada pelas partes e pelos demais actores no decurso do conflito para fundamentar as diferentes posições. Tem como base de partida os documentos assinados antes da guerra – designadamente com o Senegal e com a Guiné-Conacri - e depois enumera e analisa os textos negociados durante o período de hostilidades. Vamos apenas aflorar os acordos subscritos com os países vizinhos, remetendo o leitor para o texto quanto aos demais documentos. Relativamente aos instrumentos internacionais subscritos com o Senegal, Abulai Mané refere-se ao Acordo em matéria de Segurança e Defesa de 1990 e ao respetivo Protocolo adicional, que precisa aquele, ambos invocados invariavelmente pela parte afeta a “Nino” Vieira para justificar a intervenção senegalesa. Para o autor, “no citado protocolo, não se encontrou disposição alguma que permitisse a entrada das forças armadas de um país no outro para resolução de um conflito interno” (p. 75). A. Mané conclui: “ Se o recurso à violência por parte dos próprios militares para a resolução de uma situação interna é ilegítimo, a resposta adoptada pelas autoridades também não foi a permitida pelo direito interno.” (p. 76). Quanto ao Tratado de Amizade e Cooperação com a Guiné-Conacri de 1994, trata-se de um texto mais político do que jurídico, com o emprego de expressões e frases vagas, abrindo porém a porta para outros textos mais precisos, que não terão chegado a ver a luz do dia. Mané refere: “percorrendo todas as disposições do Tratado, não se destaca nenhuma norma jurídica capaz de limitar o comportamento de um Estado na sua cooperação com o outro, o que nos leva a alinhar com os tratadistas internacionais que consideram textos desta natureza de menor importância jurídica.” (p. 77). Dada a amizade entre Lansana Conte, o presidente da Guiné-Conacri e “Nino” Vieira, bastou que este, num acto voluntarista, pedisse a intervenção do exército da Guiné-Conacri para que aquele anuísse, “sem a cobertura de qualquer suporte jurídico” (p.78).

Carlos Cardoso assina um texto intitulado “Compreendendo a crise de 7 de junho na Guiné-Bissau”. Sem descartar outras hipóteses, Cardoso “vê na crise de Estado a razão principal do levantamento popular conduzido por Ansumane Mané” (p. 89). São pelo menos curiosas as designações empregues relativamente à guerra civil, para além de conflito, fala em crise (o que é no mínimo vago), para depois mencionar “rebelião armada”. Parece que em inúmeros casos – este não é, como sabemos, único - há como que um medo irracional de chamar os bois pelos nomes. Ao procurar as causas remotas do conflito encontra duas ordens de fatores, por um lado, sociais – o descontentamento nas Forças Armadas e nas camadas mais desprotegidas da sociedade – e, por outro, políticos – a rejeição de um regime anti-popular centrado no Presidente da República, com a concomitante “erosão do Estado”, em que os dirigentes do PAIGC gravitavam em torno de interesses económicos próprios e do tráfico de influências. Carlos Cardoso fala também na “ausência de Estado”, com excepção do aparelho repressivo que se mantinha plenamente operacional. Menciona ainda a clivagem verificada nas Forças Armadas entre os antigos combatentes e os oficiais mais jovens. No seu entender regista-se um desvio em relação às linhas orientadoras do pensamento de Amílcar Cabral. Adianta ainda que o processo de democratização de 1991 nunca foi plenamente assumido em que se regista um desrespeito pelo princípio da separação de poderes. De certo modo, afasta as motivações pessoais que terão contribuído para Ansumane Mané pegar em armas contra o Chefe de Estado. A este respeito, refere: “ a sublevação militar levada a cabo por Ansumane Mané parece ter motivações pessoais, mas as razões que levaram à adesão esmagadora e à revolta da população prendem-se com a ausência de orgânica de Estado, em que os interesses do pais eram relegados para um plano inferior, onde as instituições funcionavam com muita debilidade, ou praticamente não existiam, porque tudo dependia do PAIGC e do seu presidente.” (p. 97).

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11581: Notas de leitura (481): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)


Lourinhã > Cemitério local > 1 de novembro de 2012 > O que é a morte ? "Sete palmas de terra e um caixão" !?... Lembremo-nos, hoje, dia 2 de novembro,  de todos os nossos  mortos na Guiné, em especial os que morreram durante a guerra colonial, entre 1961 e 1974, incluindo os insepultos, e ainda os nossos ex-camaradas guineenses que foram sumariamente executados a seguir à independência. Tenhamos também um pensamento de solidariedade para com todas as vítimas da violência na Guiné, as de hoje e as de ontem.

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados





Videoclipe de Anastácio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com videoclipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008).

O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento. O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consegui ouvi-lo e vê-lo, pela primeira vez, em 2007,  sem me emocionar. Anastácio de Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, era então uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical guineense. Na altura escrevi: "Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais". 

Daqui de Lisboa, em dia de  cristão e não.cristãos lembrarem os seus mortos,  vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio (de quem perdi o rasto), e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito, a malta da AD e todos os nossos amigos guineenses, grã-tabanqueiros ou (ainda) não... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné, os únicos que nos interessa conhecer... Os esbirros, os torcionários, os carrascos não são são guineenses, são apátridas, são iguais em toda a parte do mundo, em todos os tempos da história...

Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)


Na ka misti tchora mas, Guiné (*) (**)

por Luís Graça

[No dia dos mortos
dedicado a todos os mortos da guerra colonial na Guiné, 
entre 1961 e 1974, 
de um lado e do outro,
e a todas as demais vítimas da violência 
que se seguiu,
desde a independência da Guiné-Bissau até hoje]

Quem disse que tu, Guiné-Bissau,  não tens futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde-doença.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
por esta terra verde e vermelha,
amarela e preta ?
Quem é que assim pensa ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,

não tem cheta,
nem protecção social no desemprego,

muito menos na velhice.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão 

da Bairrada,
frio ou quente.
Nem o mandinga, 

bom negro e melhor crente,
tocador de Kora,

Braima Galissá,
que se foi embora, 

ou o virtuoso do balafon,
o Kimi Djabaté,
todos em busca de outro tchon
livre do som da Kalash,

longe do poilão de Brá.

Quem disse que Deus, Alá,

e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.

Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez,

que nunca tocaram o tambor da guerra.
Não foi o verde, o vermelho, o amarelo
da tua bandeira.
Não foi a estrela negra.

Não foi a Titina Silá
a guerrilheira.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga, 

nem foste tu 
nem fui eu.

Ah!, 

como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez, e outra vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas, Amílcar,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,

ou no inferno dos que morrem de morte matada,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos,

de filhos que matam os pais,
de netos que renegam os seus avós,
de bisnetos que cortam o cordão umbical com os avoengos...


Tudo isto, para te dizer, Cabral
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento Osvaldo Vieira (!),
nas matas do Cantanhez profundo,

(esse mesmo, o Vieira, 
que há quem diga que foi o teu Judas!),
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo.

Pelo menos os teus sabiam a letra,
a letra escrita por ti,
e até a música que foi composta, 

eu não sabia,
por um obscuro músico chinês,
o Sr. Xiao He,
no tempo do Livrinho Vermelho
que muitos de nós leram
uns com paixão,  
outros com um sorriso de desdém...

Quem disse, afinal, que tu, Guiné, 

não tens futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,

nem a cobra verde enroscada no cocuruto
da palmeira de dendê,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos,

os que te beijaram como Judas beijou Cristo,
para depois te trairem e assassinarem,
te matarem como a um cão,
em Conacri, 
no chão francês.
Os teus torcionários, 
os teus esbirros,
os teus carrascos,
esses e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti, Guiné,

os que te usam e abusam,
os que te violam,
os que te querem comprar
a preço de saldo,

os agiotas,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.

E que já nem tem soldados, rasos,
briosos e patriotas,
que te defendam até à última gota do seu sangue.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé, 

nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar

os teus filhos, e são tantos!, 
que já morreram por ti,
ou que morreram contigo.

Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor, 

Guiné.
E que tu, Cabral,  

pai fundador,
morreste como o Ché,
como o Cristo,
como o Luther King,
e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura,
ao lado de heróis e de traidores,
na promiscuidade da história.
Que amargura!

Os teus jovens,
os teus músicos,

os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,

os teus quadros na diáspora,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza,

e o parto da guerra e da violência,
monstruoso.
Do teu povo, Guiné,

virtuoso,
afável,
pobre mas nobre,
de Norte a sul,
dos Bijagós ao Quitafine,
de Iemberém ao Quelélé,

de Quinhamel ao Gabu,
de Lisboa a Paris.

Eu acredito em ti,
país-irmão,

povo-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar,

na minha frágil piroga de cidadão do mundo,
de europeu e de português,
de igual para igual, 
contra a maré do cinismo,
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo

ou o vibrião da cólera.

Eu acredito nas tuas mulheres,

que te levam às costas,
que suportam o teu céu,
e alimentam as tuas raízes,
essas mulheres empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e cozinham a tua galinha de chabéu.

E ainda têm tempo 

para ir à pesca e ao mercado,
e com os restos do dendê fazer o sabão.
Que têm tempo para cuidar dos teus meninos.
E para lavar os seus pobres panos.
Essas mulheres que no Cacheu travam o avanço do Sará,
com as suas mãos frágeis cheias de sonhos.
Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens e mulheres
que lutaram, por ti,
em Cassacá,
no Como,em Cadique,
no Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Sara Sarauol,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão,

com as ideias na cabeça
e com sonhos no coração.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,

os netos e os avós,
os fulas e os balantas,
os papéis e os bijagós,
os quatro pontos cardeais,
os homens grandes
e as mulheres grandes,

as tuas bajudas,
lindas como as as rosas das roseiras,
as tuas meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as tuas vaidosas cabaceiras.

Onde caibam todos os teus lugares de culto,
as tuas balobas, 
as tuas igrejas 
ou as tuas mesquitas apontadas para Meca.



Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,

todas as horas do dia e da noite,
a liberdade,
a justiça,

a tolerância,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome

e se sonha, acordado, 
e se dança,
de Farim a Bandim.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, 

a paz, 
a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,

a água potável que não chega,
a escola que não há,
o medicamento por desalfandegar,
o petróleo por jorrar,
... ou que é tão lento, 
tão desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro,

sem pátria, 
sem cor, 
sem rosto...

Mas para isso, Guiné. 

terás que fazer a ponte
com o passado,

a fonte 
da tua identidade.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Carreiro do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade,

de Buruntuma a Fulacunda.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã dos nalus, 

te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.

E o Deus dos cristãos, 
dos grumetes do Geba e da Amura, 
E o Alá dos fulas, mandingas e beafadas.
E os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem 
e te protejam!


(*) Não queiras chorar mais, Guiné: Título pedido emprestado ao cantor Anastácio de Djens

(**) Sucessivamente revisto, aumentado e melhorado:

Iemberém, 1/2 de março de 2008 (visita ao Cantanhez)
Bissau, 28 de fevereiro e 3/7 de março de 2008 (Seminário Internacional de Guiledje)
Lisboa, 12/13 de abril de 2012 (Golpe de estado na Guiné-Bissau)
Alfragide, 10 de outubro de 2012
[a seguir ao episódio nº 25 da série "A Guerra",
realizado por Joaquim Furtado,
e que passou na RTP1],
Alfragide, 2 de novembro de 2012, dia (cristão) dos Fiéis Defuntos

_____________

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

1. Apresentação da última parte do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 3/3

Para além de todos os bloqueamentos referenciados e que caracterizavam a situação da Guiné-Bissau antes de 7 de Junho de 1998, o país – um minúsculo território lusófono numa região francófona - e o povo – mal ultrapassando um milhão de habitantes, mas orgulhoso da sua língua de comunicação veicular – o crioulo (ou “kriol”) – e também da sua cultura crioula, criada nas praças de Cacheu, de Bolama e de Bissau, sujeito a uma administração pública e ao direito, cuja matrizes foram impostas pelo colonizador português, tinha a clara noção da diferença com os seus primos do Senegal e da Guiné-Conakry. Todavia, a entrada na União Económica e Monetária Oeste-Africana (UEMOA), a adopção do franco CFA, a pertença à Francofonia faziam diluir as características mais vincadamente guineenses, crioulas ou de inspiração lusa. E a prazo, porventura, a esbatê-las de vez. Prevalecia também a ideia de que “Nino” Vieira e os seus governos tinham conduzido a Guiné-Bissau a essa situação (o que era genericamente verdadeiro). Tal rumo – porventura inevitável em termos de integração económica regional – não o era, porém, em termos de integração linguística e cultural e esta questão era assim percebida pelo povo de Bissau e das principais cidades. A afirmação da identidade nacional bissau-guineense, ainda em fase embrionária de gestação, que não era na base anti-francófona, mas que queria apenas marcar distâncias em relação a esse universo alienígeno, acabou por vir a sê-lo, quando se sentiu ameaçada de dissolução.

Há, pois, a meu ver, um factor muito importante de afirmação patriótica, incipiente, rudimentar e difusa, perante uma ameaça externa, não só económica e militar (a presença e constante pressão do Senegal na fronteira Norte), mas creio que, principalmente, cultural que, em última análise, destruiria, inclusive, os laços afectivos com Portugal e com o mundo lusófono e que constitui uma causa profunda (numa fase inicial, quiçá, apenas assumida subconscientemente) do levantamento. Aliás, a evolução do conflito e o reforço dos laços a Lisboa e à CPLP, por parte da Junta Militar (JM), do Governo de Unidade Nacional (GUN) e do Povo em geral viriam a ilustrar eloquentemente este ponto.

A confluência das causas imediatas com factores profundos da própria sociedade guineense explicam o 7 de Junho que é no fundo uma revolta popular e patriótica, em todos os domínios: militar, político, social e económico, contra o “status quo”, a procura de uma saída – ou de saídas – para um sistema bloqueado.

O problema pessoal tem sido amiúde citado, como uma das causas próximas, senão como a causa imediata do conflito, ou seja a rivalidade entre velhos companheiros de armas: “Nino” Vieira e Ansumane Mané, em que o primeiro, enquanto Chefe do Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, demite o segundo de CEMGFA, acusando-o de negligência no tráfego de armas para os rebeldes de Casamansa, o que teria sido a verdadeira chispa para o acender do conflito. A acusação ia mais longe, na medida em que, de forma deturpada, se dava a entender, como se deu, para o exterior, de um envolvimento directo de Mané no comércio de armas para os rebeldes de Casamansa – o que era absolutamente falso e “Nino” Vieira sabia-o - , mas que calou fundo junto do ex-Presidente Abdou Diouf e da hierarquia militar senegalesa e que está na razão directa da celeridade da intervenção armada de Dakar. A meu ver, o factor pessoal terá desempenhado um papel na revolta de Ansumane Mané contra “Kabi”, mas não um papel determinante, porque, como parece estar demonstrado, o movimento era bastante mais vasto e complexo e as causas menos superficiais do que pareciam ser numa primeira leitura.
____________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)
e
18 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Continuação da publicação do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 2/3

Bloqueamento social porque, sem prejuízo das diferentes fases da evolução histórica da Guiné-Bissau, no período pós-independência, mesmo tendo em conta a substituição da pequena elite burmedja (cabo-verdiana e mestiça) na sequência do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 por uma élite autóctone de fidjus di tchon (filhos da terra, ou seja guinéus supostamente puros) ou pretus-nok , o poder político, económico e social circunscreveu-se sempre a um grupo muito restrito, inibindo a mobilidade ascendente das demais camadas sociais e reduzindo-as a condições de mera subsistência. Este fenómeno é agravado pela explosão demográfica do país e pela concentração urbana em Bissau.

Por outro lado, as gerações mais novas, que cresceram ou nasceram após a independência e que constituem, hoje, a maioria da população bissau-guineense, já não se reviam na chamada “geração da luta”: os seus anseios eram outros, o desejo de mudança evidente. Todavia, o establishment não o permitia, porque tal poria em causa a sua própria sobrevivência. Uma minoria que viveu ou ainda vivia emigrada no estrangeiro, numa primeira fase, nos países limítrofes e do Leste europeu, numa segunda, em Portugal e nalguns países ocidentais (Brasil, França, EUA), culta ou, pelo menos, alfabetizada, com outra vivência e, principalmente, com outros objectivos, quer pessoais, quer nacionais, constatava que, à parte umas raras excepções pontuais, o bloqueamento era quase total.

Paradoxalmente a este movimento no sentido do desencravamento e do aggiornamento da sociedade bissau-guineense, conscientemente sentido por um sector, ainda que diminuto, das gerações mais novas (os demais pretendiam pura e simplesmente melhorar o quotidiano), acresce-se a deterioração acelerada da situação económica e social dos antigos combatentes da guerra colonial (os chamados combatentes da Liberdade da Pátria). E este é um dado fundamental do problema porque se trata a um tempo de uma causa remota e próxima do conflito. Remota, porque o problema, que vem de longe, nunca encontrou qualquer esboço de solução no passado. As tentativas goradas quando da governação inábil (inepta é o termo exacto) do antigo Primeiro-Ministro, Coronel Manuel Saturnino da Costa – ele próprio um homem da luta – demonstravam bem que a questão era candente e a sua resolução urgente, mas que o Poder patenteava total impotência para o resolver, por falta de meios, por falta de imaginação, ou por ambas as razões. Próxima porque a situação dos combatentes da Liberdade da Pátria (verdadeiros “descamisados”) não cessava de se agravar nos meses que antecederam o levantamento de Brá e aqueles iriam não só engrossar a legião de descontentes, mas, pior do que isso, anunciavam publicamente, poucas semanas antes do 7 de Junho de 1998, que iriam defender de armas na mão os seus direitos.

Bloqueamento económico porque a República da Guiné-Bissau era – e é - um país desesperadamente pobre, com efeito, um dos mais pobres do planeta. Não dispunha, nem dispõe, de quaisquer recursos naturais dignos de menção. Possuía, antes da guerra civil, de um rendimento per capita de 250,6 dólares americanos (dados de 1997, do Fundo Monetário Internacional), ou seja menos de 1 dólar por dia e por habitante[1] . Dispondo de uma agricultura de subsistência, praticamente sem indústria, sem recursos energéticos, com o sector dos serviços circunscrito, em larga medida, à capital, tratava-se de um dos países do mundo mais altamente endividados do mundo (918,8 milhões de dólares em 1997, por outras palavras: quase 4 vezes o PNB, também segundo dados do FMI). O seu subdesenvolvimento era endémico e sem solução à vista. Para além dos problemas estruturais com que se confrontava, o malbaratar de fundos e da própria ajuda externa, a corrupção, a má governação, constituíam outros tantos factores impeditivos a que a Guiné-Bissau pudesse emergir do fosso em que se encontrava. A principal cultura de rendimento – o cajú – na mão de intermediários e da elite local de Bissau era exportada na sua quase totalidade para o estado de Kerala na Índia. Uma exploração abjecta da mão-de-obra camponesa guineense que não foi praticada nem nos piores tempos da era colonial e agora aplicada por um país do 3º. Mundo, com o beneplácito (e os consequentes benefícios) da clique de “Nino” Vieira e acolitada pelos comerciantes de Bissau.
__________

[1] “O PNB por habitante era de 223 dólares norte-americanos em 1997, e caíu para 181,8 dólares por habitante em 1999, devido ao conflito militar”, Memorando do Banco Africano de Desenvolvimento/ Fundo Africano de Desenvolvimento, de 21 de Março de 2001, doc. ADB/BD/WP/2001/35
____________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)