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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois de percorrer longamente a região Sul, o tenente da Armada Real identificou a nova porção de território da Guiné portuguesa, a península de Cacine, voltou a Bolama, aproveitou para fazer inventário, seguiu para o Casamansa, região que descreve primorosamente, mesmo recorrendo a documentação do colega francês, naquela data é hasteada a bandeira francesa, Portugal perde qualquer influência na região do Casamansa. Mas o tenente Costa Oliveira não se irá despedir de qualquer maneira, refere a importância de Bolor, está em ruínas, fará imensas considerações sobre o modo de desenvolver a Guiné, escreve com elegância, revela-se um observador atentíssimo. Pena é que este registo histórico não seja alvo de revisitação, que um estudioso procedesse a comentários à luz da atualidade, o mínimo que se pode dizer de tão precioso relatório é que ele faz parte do bilhete de identidade tanto da Guiné portuguesa como da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: Viagem à Guiné Portugueza, por Costa Oliveira (6)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesa da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

É um relato quase em forma de diário, percorre-se toda esta zona do Sul, no fundo a comissão francesa faz a entrega histórica à comissão portuguesa da região de Cacine e percorrem-se territórios da fronteira do lado ocidental. Regressa-se a Bolama e o relato agora é sobre o Casamansa, é a vez da comissão francesa ir tomar formalmente conta da região. Costa Oliveira cita o seu colega francês M. Brosselard, ele começa por enaltecer a importância de Ziguinchor, e temos depois comentários da descida do rio Casamansa e Zinguichor, aqui se deixa o registo dado o seu inegável interesse:

“Acima de Sedhiou (Selho, em português) pode subir-se a algumas milhas além de Dianah. Deste porto às origens a distância não pode ser vencida senão por canoas ou pirogas de fundo chato. De Adeane a Dianah as duas margens são revestidas de uma luxuriante vegetação e árvores gigantescas, principalmente em Yatacounda, onde as únicas clareiras que se encontram são ocupadas pelas aldeias. A enchente vai até Selho e facilita a navegação de cúteres e goletas da ilha de Gorée. Um vapor vai em doze horas da embocadura do rio a Selho, as embarcações de vela gastam três dias.”

A missão francesa voltou a 24 de abril no aviso Goëland a Ziguinchor e tomou posse da aldeia portuguesa que tinha sido evacuada alguns dias antes. O pavilhão francês foi arvorado no dia seguinte de manhã na presença dos principais habitantes e saudado com 21 tiros de peça regulamentares. Mas voltemos às observações do tenente da Armada Real.

Em Ziguinchor as habitações confortáveis são raras, o mais que se pode encontrar são três ou quatro casas de negociantes construídas à europeia, as outras habitações são cubatas bastante elevadas. A ocupação de Ziguinchor regula a questão da posse do Casamansa, que se tornou de facto num rio francês. Antes de tomar posse da aldeia portuguesa, os vapores vindos da Europa descarregavam em Gorée, onde recebia os produtos do Casamansa. Doravante, estes vapores virão diretamente às pontes de Ziguinchor, esta é uma pequena colónia que parece ser destinada a capital do distrito de Casamansa; Selho conservará a sua importância militar e Carabane será o posto aduaneiro do rio. Costa Oliveira continua a invocar dados de M. Brosselard e há aqui uma observação bastante curiosa:

“A população muitas vezes mostrou a respeito do seu governador uma antipatia que se traduzia por atos de revolta. Entretanto, os portugueses manifestavam grande tolerância, haviam mesmo deixado subsistir costumes e usos pouco admissíveis sob a proteção da bandeiro de uma nação civilizada; também um dos meus primeiros atos foi suprimi-los.”

Voltemos agora ao discurso direito do Costa Oliveira, ele também se deu ao trabalho de se pronunciar sobre o Casamansa:

“A barra do Casamansa é desabrigada, cheia de escolhos, de difícil acesso a todas as embarcações, particularmente às da vela. É por isso que toda a navegação de cabotagem é feita pelos rios Cajinolle e Elinkin, e principalmente por este, mais profundo e largo do que aquele. É também por este rio, o Elinkin, que facilmente se consegue introduzir contrabando na Guiné portuguesa, como vamos explicar. Nenhum português, desconhecido daquelas tribos, se atreve a desembarcar em Bolor, e com maior razão as autoridades aduaneiras, militares ou civis. Sendo assim, como é, qualquer negociante, de Cacheu, por exemplo, pode estabelecer os seus depósitos ou armazéns, na certeza de que o fisco não o irá perturbar com as suas exigências legais! Estabelecidos os depósitos longe da ação fiscal, o resto é simples e pertence às canoas que de noite, ocultas pelas sombras dos mangais, vão rio acima descarregar os artigos que pretendem furtar aos direitos, nas pequenas sucursais espalhadas pelas margens dos rios e esteiros.”

Ocupada Ziguinchor, reunidas as comissões, e depois de longos debates, assina-se finalmente o processo verbal, Costa Oliveira regressa a Bolama e fica à espera de um paquete que o conduza a Lisboa. É neste compasso de espera que ele vai omitir opiniões e apresenta propostas, é talvez um dos pontos altos em que se revela o seu poder descritivo:

“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangais que tapam as margens, sotopostas às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo aonde prendem. A perspetiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.

É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba, do Corubal, o Grande de Bolola, o Tomboli (certamente o rio Tombali), o Cubac (?), o Combilham (Cumbijã) e o Cassini (Cacine).

Na embocadura do rio S. Domingos, em Chão de Felupes e no extremo de uma extensa praia de areia que para ali se estende desde a aldeia Jefunco, veem-se ainda hoje as ruínas do presídio de Bolor, que era formado por dois meios redutos horizontais e céspede e fachina sobre estacaria… miseravelmente tem caído em ruína pelo completo abandono em que tem estado aquele ponto, e, contudo, não merece tal desprezo: de toda a nossa Guiné é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às virações frescas do mar; pela sua situação já indicada é ali que deveria estar a alfândega de Cacheu e talvez a força, como queria Gonçalo de Gamboa; embora ficasse Cacheu como está, uma feitoria fortificada, os habitantes aqui viveriam em perfeito sossego e livres dos contínuos rebates a que em Cacheu estão sujeitos, nada tendo a recear do gentio Felupe, que adora os brancos; além do muito arroz que se faz anualmente neste chão e de que se sustenta a praça de Cacheu (a qual morreria de fome se lhe faltasse o arroz de Bolor), concorre a este ponto todo o trato de cera e couros da grande região dos Felupes, e o da mata de Putama, o comércio de Ziguinchor por aqui passa forçosamente para ir a Cacheu e também é aqui a escala entre Bissau e Cacheu.”


O relato do tenente da Armada Real vai agora prosseguir com uma descrição muito rápida das lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, seguir-se-ão ainda mais observações e, por fim, as conclusões, está praticamente no seu termo o relato admirável de alguém que foi assistir à chegada de uma porção de território, a região de Cacine, e ao fim da presença portuguesa no Casamansa.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Demorou a descobrir este precioso texto redigido pelo tenente da Armada Real que esteve à frente da demarcação das fronteiras da Guiné portuguesa, trabalho conjunto com a comissão francesa, a quem por vezes dispara ásperos reparos, não por falta de galhardia das pessoas mas por saberem que as autoridades de Paris tudo estão a fazer para enfraquecer a posição portuguesa, bloqueando as vias comerciais para o Futa, estrangulando o comércio português no Casamansa ou no rio Nuno. O Tenente Costa Oliveira devia ser metódico, o que ajudava muito à sua capacidade de observação, o seu documento é praticamente relatório, faz uma análise rigorosa da guerra do Forreá, impedido durante alguns dias de viajar para o Casamansa aproveita para trabalhar no inventário das povoações de Bolama. Mouzinho de Albuquerque escreveu um dia que a Pátria é uma obra de soldados, mas incontestavelmente (direi eu) a Guiné é obra de marinheiros e soldados, foram os primeiros que fizeram levantamentos científicos inultrapassáveis para garantir a presença portuguesa, deram alguns dos melhores governadores, desde Pedro Inácio de Gouveia a Sarmento Rodrigues.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A comissão luso-francesa está de regresso a Buba, seguirá depois para Bolama e daqui para o Norte, até ao Casamansa. Depois de ter observado os resultados dramáticos do sanguinário conflito que avassalava o Forreá, o tenente da Armada Real faz a sua análise quanto às consequências das guerras entre Fulas e Biafadas e ao abandono do rio Grande, outrora pujante de feitorias e de comércio:
“Vamos explicar este nosso modo de dizer, talvez nebuloso para quem não conhece a História da Guiné.
É facto sabido que os Fulas pretos vergaram sob o peso da escravidão dos Fulas forros, seus diretos senhores, e que o território circunvizinho a Buba, povoado por Biafadas, era ardentemente cobiçado por aquelas tribos.
Um dia rompem-se as hostilidades entre Fulas e Biafadas, e estes têm de recuar e evacuar quase todo o seu território naquela região. Receosos de serem vencidos em novo conflito, conformam-se com este estado de coisas e continuaram a agricultar os terrenos, enquanto que os Fulas forros fortificam primeiramente os pontos conquistados, e depois é que se entregam à lavora e criação de gado bovino, a sua principal riqueza.
Estavam as coisas neste pé e Buba via entrar quotidianamente as caravanas, vindas do Futa, carregadas de produtos indígenas e aumentar consideravelmente os seus réditos, quando o país, sempre pronto a sacrificar-se pelos princípios humanitários, insiste na abolição da escravidão!
A propaganda invade todo o sertão habitado pelos Fulas pretos, e estes desejosos da sua liberdade, correm a Buba em grandes massas e agarram-se à bandeira! Os Fulas forros, espantados com a fuga dos seus melhores auxiliares, e vendo a proteção que o governo da praça lhes dava, declaram-lhes a guerra, causa primordial da decadência de Buba!
Vencidos, como não podia deixa de ser, faz-se a paz geral e os Fulas pretos alcançam a sua independência relativa.
Os Biafadas, antigos possuidores daqueles territórios, vendo as tribos inimigas enfraquecidas pela independência de uma delas, aproveitam tão bela ocasião e declaram a guerra, e ora vencidos ora vencedores, desde 1880 até esta data ainda não cessaram as guerras mortíferas e prejudicialíssimas ao nosso bom nome e desenvolvimento comercial.
Um outro erro importante da administração colonial foi consentir a expulsão dos Biafadas do sertão de Buba, porque ficaram ipso facto nossos inimigos, e se não nos declararam positivamente a guerra atacaram as feitorias do rio Grande, exigindo grandes tributações aos agricultores e negociantes ali estabelecidos, que não podendo satisfazê-las, por exageradas, nem tendo força para repelir os indígenas, viram-se na dura necessidade de abandonar as suas propriedades.
Este abandono, porém, foi parcial. Algumas feitorias puderam resistir a estes contratempos, e somente o diminuto valor da mancarra nos mercados da Europa e a derivação do comércio sertanejo para território francês (como não podia deixar de acontecer, visto que os Fulas forros e Futa fulas ficaram nossos inimigos, por termos imprudentemente auxiliado a independência dos Fulas pretos), determinaram ultimamente o desamparo completo das fazendas agrícolas e feitorias.”


De Buba viajam até Bolama, onde fundeiam na noite de 27 de março. Enquanto aguarda transporte para o Norte, o autor enceta uma série de pequenas explorações no interior da ilha de Bolama, visitou doze povoações, deu-se ao trabalho de as numerar e marcar. Chega, entretanto, uma visita, o Fula Mahmadi, que viera expressamente de Kadé cumprimentar o governador da parte de Mudi-Yaiá e trazia-lhe presentes. Foi Mahmadi que conseguiu que se assinasse em Buba o tratado de paz de 1886.

Viajam para o Norte até à ilha de Carabane: “É pequena e pantanosa. Ao NE, e sob areia fina e branca, edificaram os franceses, em 1836, a povoação, que pouco tem prosperado. Apenas se notam uns três edifícios construídos à europeia, o posto ou residência do administrador, as casas Blanchard, Maurel Frères & Co., e a residência do missionário. Na retaguarda do posto estende-se um vasto pântano, exalando continuamente miasmas paludosos. Os navios têm que ancorar longe da praia por causa da natureza do fundo, e, como há quase sempre grossa mareta, as cargas e descargas fazem-se com dificuldade.”

E prossegue as suas observações:
"A barra do Casamansa é mal dividida em dois canais por numerosos baixos de pedra, cita M. Brosselard que fez o reconhecimento da importância estratégica de Ziguinchor: “No percurso do rio os grandes navios não encontram senão um ancoradouro digno desse nome. É o de Ziguinchor. Ali encontram um fundo de sete metros junto à praia. Com um calado de água de dois metros pode atingir Sédhiou (em português, Selho) a 170 quilómetros da embocadura.”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 31 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Confesso que me rendo a este espantoso espírito de observação do Tenente Costa Oliveira, certo e seguro ele faria diários dos itinerários, dos acidentes, das emoções que a natureza lhe provocava; não se existe um outro testemunho ao vivo de tal valia como o dele quanto à guerra do Forreá, veremos adiante que ele estava bem informado sobre todas estas vicissitudes; é igualmente um diário histórico, não encontrei até agora ninguém que tenha descrito a demarcação de fronteiras, com especial ênfase no sul, como ele; e mostra-se profundamente crítico pela incúria em que deixámos a Senegâmbia portuguesa, tecerá comentários ácidos à decisão de termos ofertado em bandeja o Casamansa à França, se havia ponto, depois de Cacheu e Bissau, onde a nossa presença tinha algum relevo era em Ziguinchor. É um observador contumaz: a natureza das tabancas, a importância do Corubal e do Geba, não esconde o seu entusiasmo com as belezas guineenses e não deixa de lastimar como a colónia está num prático abandono. E que o leitor se prepare, o tenente Costa Oliveira ainda tem muito por contar.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

Estamos no início de março de 1888, a comissão luso-francesa tem permissão de marcar as fronteiras, visitou o rio Cogon, depois disso levantou-se o acampamento e abalaram para Kumataly, uma povoação importante e fortificada. Observa o tenente da Armada Real:

“As fortificações do gentio na Guiné são extremamente curiosas. As habitações ou cubatas são dispostas circularmente. Em torno delas constroem uma espécie de muralhas com altos e grossos troncos de árvores das espécies mais resistentes, pau-carvão, pau-ferro, sibes, etc. e a dois metros pouco mais ou menos de distância pela parte de fora uma segunda estacaria de troncos mais delgados e menos humildes, mas coberta de ramos de plantas espinhosas. Grossos portões de madeira fecham estas tabancas, e os caminhos que dão serventia ao interior da praça são tão complicados e cheios de óbices que se um estranho atrevido ousar entrar por algum deles, sem perfeito conhecimento daqueles labirintos, jamais sairá do espaço compreendido entre as duas paliçadas, por mais esforços que faça.”

Relata a passagem por uma povoação destruída e incendiada pelos Biafadas. É o momento propício para o autor tecer observações sobre gente importante da região:

“Já que falámos dos Biafadas ou Biafares, vem talvez a propósito dizer o que sabemos acerca de Mahmad-Jolá, o chefe de uma tribo que tanto concorreu para o abandono das feitorias do rio Grande. Conta-se que em certa ocasião, Mudi-Yaiá, fazendo guerra aos Biafadas, aprisionara bastante gente, e entre elas uma criança dos seus nove aos dez anos, viva, inteligente, simpática.
Mudi-Yaiá afeiçoou-se a esta criança, e levou-a para a sua companhia, dando-lhe mais tarde um lugar importante nos seus exércitos. Anos depois, esta criança, já um homem feito, quando entrava em qualquer conflito gentílico, tinha sempre o ensejo de se distinguir, já pelo seu valor pessoal, já pela perícia com que dirigia as suas hostes; e Mudi-Yaiá, satisfeitíssimo com o seu pupilo, enchia-o de presentes e até de mimos.

"Um dia os Biafadas atacaram os Fulas. Fizeram-se grandes combates, arrasaram-se muitas tabancas e fizeram numerosos prisioneiros de parte a parte. A sorte desta vez foi favorável aos fulas, e Mahmad-Jolá havia-se distinguido nos recontes em que entrara. Mudi-Yaiá, exultante de alegria, elogia-o publicamente, e conta-se que nessa ocasião solene lhe dissera:
- Bateste-te como um valente, é pena que sejas um Biafada!

"Mahmad-Jolá ouviu a sua triste história e a dos seus, silencioso e com as lágrimas a marejar-lhe os olhos, foi, dizem, nessa ocasião, que concebeu o arrojado plano de fujir e apresentar-se ao régulo dos Biafadas, seu legítimo rei e senhor!

"Apresentou-se ao chefe dos Biafadas e ofereceu-lhe a sua perícia na arte da guerra, jurando morrer ou exterminar a maldita raça Fula!”


O que importa saber é que Mahmad-Jolá passou a partir de então a atacar feitorias do rio Grande, com o fim exclusivo de roubar e até matar.

Costa Oliveira vai agora descrever o itinerário para Damdum, e dirá adiante que nesta povoação ainda lá estava a comissão francesa, emprestou-se dinheiro Monsieur Brosselard para contratar alguns carregadores para a sua viagem de regresso a Buba. E de novo este espantoso espírito observador do oficial da Armada vem ao de cima:

“De Chequeúel para Mahmed-Djimi o aspeto do país começa a modificar-se. Já tivemos que subir um monte de 160 metros de altura acima do planalto em que caminhávamos, monte conhecido com o nome de Deballara. Do cume deste monte percebem-se os rios Cogon e Kolibá. Pegadas de elefantes e grandes antílopes abundam nestas paragens. A água é magnífica e a temperatura média menos elevada 21ºC. Nas margens das ribeiras abundam árvores, e nas colinas e planícies o pau-carvão, o pau-ferro, o pau-sangue, o bambu e o algodoeiro-silvestre. Os seus habitantes são todos, ou quase todos, escravos de Mudi-Yaiá, e aproveitam sempre as ocasiões favoráveis para fugirem ao jugo daquele poderoso tirano. No caminho encontrámos depois algumas destas desgraçadas famílias, que se dirigiam também para as bandas de Contabane.”

Abasteceram-se em Damdum de mantimentos a troco de contas de coral, missanga e dinheiro. No dia 15, estiveram a determinar as posições geográficas do Cogon e no dia seguinte o Kolibá. Agora um aspeto curioso que ele escreve:

“Corubal, Kolibá, Kokoli e Koli são diferentes nomes do mesmo rio, dados nas diversas zonas por onde corre. É sempre um grande rio de 200 ou 300 metros de largura. Passa por Kadé, e dizem nascer nas altas montanhas do Futa-Djalon; é fundo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de 4 metros de altura próximo de Consinto (não será Cusselinta?).
De Mahmed-Djimi para o Kolibá, observa o oficial, não há vereda trilhada pelo pé do homem, caminha-se através do mato que, facto notável, pode considerar-se divido em três zonas distintas, atenta a natureza da vegetação que nelas predomina, sendo a primeira de gramíneas, a segunda de bambus e a terceira uma floresta virgem cheia de plantas espinhosas, nas quais rasgámos as carnes e deixámos pedaços de fato!”


Não menos interessante é a observação que ele faz sobre o rio Geba:

“Para mim é ponto de fé que o futuro da Senegâmbia portuguesa está ligado a este rio. Geba e Damdum são pontos estratégicos e importantes do Sertão e, se fossem convenientemente guarnecidos e defendidos, assim como Sambel-Nhantá, S. Belchior e mais alguns no Corubal, o comércio, à sombra desta proteção havia de desenvolver-se rapidamente e Bissau poderia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região.”

Julga importante dar-nos uma outra informação: Mamadu Paté, irmão de Bacari Guidali, mandado assassinar em 1886 por Mudi-Yaiá, domina todo o território ente Geba e Damdum e não consente que os Fulas de Yaiá, seu inimigo, viagem neste seu território. E aproveita para tecer outra consideração:

“Se nós tivéssemos a habilidade de promover a paz entre aqueles dois potentados, e conseguíssemos estabelecer um posto militar em Damdum, o comércio que por ali passa não poderia derivar-se para Geba, principalmente no tempo seco?”

E volta a tecer considerações sobre a presença portuguesa, propõe pontos a fortificar: Farim, Geba, Buba, Damdum, Bolor, Bissau e a colónia do rio Grande de Bolola, e pontos intermédios tais como S. Belchior, Sambel-Nhatá, no rio Geba, e Gampará, no Cacheu. Às duas horas da tarde do dia 18 abalava a comissão portuguesa de Damdum. 

“Na vanguarda da extrema linha de carregadores, levada por um cabo de caçadores, tremulava a bandeira nacional, respeitada por todos e testemunha insuspeita de que nunca se praticara um ato indigno!”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecido
Atual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
Imagem do antigo quartel de Bolama, retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Notas do editor:

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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25098: Historiografia da presença portuguesa em África (405): voyeurismo, exotismo, sexismo e racismo na exposição colonial do Porto de 1934: uma reportagem do jornalista de "O Comércio do Porto", Hugo Rocha (1907-1993), publicada no "Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro"


Porto > Exposição Colonial Portuguesa > 1934 > O Palácio de Cristal renomeado Palácio das Colónias.


(Cortesia da Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa)

Título da reportagem de Hugo Rocha, sobre a Exposição Colonial do Porto, publicada possivelmente  no "Ultramar . Órgão Oficial d I Exposição Colonail", e depois reproduzida no Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, n.º 9, Abril a Julho de 1934. Número Especial comemorativo da Primeira Exposição Colonial realizada no Porto, 1934, pp. 153-155


1. A Exposição Colonial Portuguesa, que decorreu no Porto, no  Palácio de Cristal (renomeado para o efeito "Palácio das Colónias"), no verão de 1934 (de 16 de junho de a 30 de setembro). Teve como comissário Henrique Galvão. E foi talvez a primeira grande realização mediática do Estado Novo, com a apologia do império colonial português. (*)

Teve grande destaque a "representação" da Guiné: a figura de régulo Mamadu Sissé, "um dos heróis das campanhas de pacificação", colaborador próximo do capitão Teixeira Pinto (o "capitão-diabo") (de que o pintor Eduardo Malta fez um soberbo retrato, a ele e ao seu filho, Abdullah); e a figura da Rosinha, balanta, imortalizada pelo fotógrafo Domingos Alvão.

Temos no nosso blogue dez referências a este evento que, de resto,  seguiu o paradigma de outras exposições congéneres, realizadas  por outras potências coloniais da época, em cidades como  Marselha (1922), Antuérpia (1930) e Paris (1931).

(...) "No recinto da exposição reproduziram-se aldeias indígenas das várias colónias, construiu-se um parque zoológico com animais exóticos, edificaram-se réplicas de monumentos ultramarinos, divulgou-se a gastronomia, enquanto centenas de expositores da metrópole e das colónias atestavam o dinamismo empresarial do Império." (...) (Fonte: Hemeroteca Municipal de Lisboa >  Exposição Colonial Portuguesa).

2. Sobre a peça, que selecionámos hoje, assinada por Hugo Rocha (**)... O título e subtítulo, extensíssimos, dizem tudo: "Antes de abrir a Exposição...Da Guiné a Timor, sem sair do Palácio de Cristal: sessenta e três pretos e pretas da mais próxima e nove pardos da mais afastada das colónias de Portugal já dão ao recinto do grande certame o tom colorido e exótico da vida tropical"

Hugo Rocha (1907-1993)  foi um jornalista e escritor do Porto: entrou aos 18 anos para a redação de  "O Comércio do Porto" (fundado em 1854, extinto em 2005), e do o qual será diretor durante muitos anos. Já antes, em 1933, escrevera uams crónicas sobre o ultramar português. 

Fez parte do corpo redatorial do quinzenário "Ultrarmar - Ógão Oficial da I Exposição Colonial", de que se publicaram 18 números,entre 1 de fevereiro e 15 de outubro de 1934, números1 , O direteor da publiação era o Henrique Galvão.

Teve, talvez por isso,  o privilégio de ser um dos primeiros a visitar a exposição, na fase ainda do seu "making of", antes da sua abertura oficial. O texto que escreveu, há 90 anos merece ser lido ou relido com atenção e precaução. Tem observações e expressões que hoje nos chocam. Tem de ser contextualizado. Estamos nos anos 20/30,  a época da consagração do racismo nas suas diversas vertentes (biológico, cultural, etc.) e da subida ao poder dos nazifascismos e demais ditaduras. (Em boa verdade também não sabemos  como daqui a 90 anos os nossos vindouros irão  ler o que aqui escrevemos, e olhar para as nossas fotos...)

Repescámos, da reportagem do Hugo Rocha, alguns destes "estereótipos sociais" de que é feito o racismo, de ontem  e de hoje, e o desconhecimento do outro, da sua cultura, da sua história, da sua terra. (Estranhamente o jornalista não chegou a pôr os olhos na Rosinha, balanta, "o  animal mais belo daquele zoo humano"... e que se virá   a tornar a coqueluche da exposição. )

  • Ontem, a meio da tarde, para matar saudades, fui ao Palácio para ver os pretos (...)
  • A aldeia da Guiné, que é a mais típica do certame , porque é lacustre, como grande  parte das aldeias da Guiné (...)
  • Vinte negros - dezoito homens e duas mulheres . da raça fula (..:)
  • Arde  uma fogueira no centro da sanzala (..:)
  • Não sabe o que é ciúme, sior (...)
  • Algarávia gentílica em todas as bocas (...)
  • O cheiro é perfeitmente colonial (...)
  • A preguiça equatorial domina todos os repentes (...)
  • Henrique Galvão (...) não quer que os indígenas da Guiné estejam ociosos (...)
  • (...) aqueles corpos nus e besuntados (...)
  • Olha, aquilo é o cheiro da carne preta
  • E o leão, enquanto as negras não lhe desaparecem da vista, parece devorá-las com os olhos (...)
  • Pretos da Guiné. Pardos de Timor. Portugueses de outras cores e doutras raças (...)  (Citações de Hugo Rocha)

 





(Seleção, recortes,  introdução: LG)


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Notas do editor:


(**) Hugo Rocha, de seu nome completo Hugo Amílcar de Freitas Rocha (Porto, 11 de novembro de 1906 - Porto, 24 de fevereiro de 1993) foi  jornalista e escritor (e também espirita).

(...) Fez os estudos na sua cidade-natal. Empregou-se numa firma comercial, ao mesmo tempo que exercia o professorado no ensino livre. A sua vocação, porém, havia de orientá-lo para o jornalismo e assim, aos 18 anos de idade, principia a colaborar na edição de "O Comércio do Porto" (1924).

Em 1929 ingressou definitivamente para o quadro redactorial daquele diário portuense, e anos depois foi escolhido para chefe de redacção, lugar que ocupava em 1952.

Em paralelo ao trabalho absorvente no jornal, desenvolve projetos próprios, como o demonstram as diversas obras literárias que deixou, tendo ganho vários prémios literários e jornalísticos.

De 1949 a 1951 foi o diretor do "Actualidade", jornal semanal cultural e associativo, de propriedade da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. (...)

Apaixonado pela Música, dirigiu durante anos o mensário de canto coral "Orfeu" e foi crítico musical de "O Comércio do Porto". (...) (Fonte: Wikipedia)

(...) Em 1933 publicou seu primeiro livro, de crónicas africanas, intitulado Bayete,  e um volume de poemas intitulado Rapsódia Africana. Logo no ano seguinte publicou um ensaio intitulado Espiritualismo e a novela O homem que morreu no deserto.

Ao longo das décadas seguintes publicou numerosas obras, incluindo relatos de viagens de carácter impressionista aos Açores, à ilha da Madeira, à Índia Portuguesa e à Galiza. Também publicou alguns romances e várias obres sobre temas do esoterismo (...)  e do espiritismo.

A sua obra de viagens mais notável é um relato de um périplo pela Galiza, intituladas Itinerário na Galiza, obra complementada em 1961 e 1963 com os dois volumes intitulados Encontros da Galiza. A obra mereceu excelente colhimento à época. (...) (Fonte: Wikipedia)

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25080: Historiografia da presença portuguesa em África (404): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente da Armada Real que está à frente da comissão delimitadora das fronteiras luso-francesas é um homem culto, aberto a sentir-se surpreendido pelas belezas africanas, profundamente magoado com as velhacarias perpetradas pelos franceses, foram hábeis a barrar-nos o caminho para o Futa-Djalon, continuando a beneficiar de poderem comerciar no Forreá. Descreve tudo quanto observa, nem vai faltar um ataque de abelhas, já estiveram no Cantanhez, apercebe-se que Dandum não oferece qualquer saída para chegar ao Futa, continuam em território francês onde igualmente se observam devastações a cargo dos Biafadas contra Fulas, ali o ódio não tem fronteiras entre território português ou francês. A missão prossegue, um dos delegados franceses já foi a Bissau fazer partir o material e os abastecimentos que têm a povoação de Geba como destino.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (2)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

Logo um dado sobre a hospitalidade: “Na Guiné, como todos sabem, a nenhum estranho é permitida a entradas nas tabancas ou praças sem prévia autorização dos chefes; por isso, quando o régulo Sayon soube da nossa chegada aos seus domínios, enviou uma enorme embaixada para nos cumprimentar e introduzir na povoação, onde nos esperava com a sua corte.” Descreve a receção que se pautou pela pompa e circunstância, fala-se do Cantanhez que o oficial da armada irá visitar e apresenta-se o rio Cacine: “É como o rio Grande de Bolola, um enorme esteiro ou braço de mar aonde vão desaguar numerosos ribeiros. A borracha é principalmente o produto indígena que ali se permuta por bertanjil (pano azul de algodão), armas de fogo, etc.”

Chegou a hora de fazer um comentário bastante crítico ao comportamento dos negociadores franceses que nos quisera vedar as saídas para o Futa-Djalon:
“Cortada a Guiné portuguesa na fronteira Este do Futa-Djalon pelo meridiano dos 16º O de Paris, cercada pelos outros dois lados pelos franceses ou tribo da sua proteção, e cumprindo-se o Tratado de 1881 com almami do Futa, a quem Mudi-Yaiá obedece, devemos ter a certeza que o comércio em grande escala deriva para todo o território francês, se não fizermos imediatamente um esforço inaudito para obstar à corrente apenas começada.”

E não deixa de comentar que Mamadu Paté obedece a Mudi-Yaiá. Partiu a expedição para Kandiafará. Foram acompanhados o primeiro-ministro do rei Talibé, o bom Ciré e pelo marabu Abakari abalaram de Amadu-Bubu no dia 24 ao amanhecer e depois de uma penosa marcha devido a inúmeros esteiros e pequenos regatos que tiveram de vadear, de vaza mole e por povoados de crocodilos, alcançaram Kakondo e ali pernoitaram. Observa que saindo do Kakondo o país começa a elevar-se suavemente para Este, a vegetação é mais robusta e variada, anuncia a feracidade do solo, os campos estão trabalhados pela mão do homem e veem-se grandes pilhas de maçaroca de milho miúdo defendidas do cacimbe da noite por coberturas de palha, e não deixa de comentar que esta abundância e bem-estar pode ser alterada a qualquer momento pelas correrias dos Biafadas que não deixam os Fulas em descanso.

Veja-se agora esta descrição de Costa Oliveira:
“Anseio inexcedível, principalmente em Kandembel – a povoação mais bonita que atravessámos – a originalidade dos vestuários das raparigas Fulas, abundância de magnífica água, gado vacum e outros animais domésticos, campos imensos cobertos de lindíssimas flores, centenares de rolas e outras aves de penas brilhantes e de variadas cores, voando de árvore para árvore em bandos enormes, um céu azul puríssimo, iluminado por um sol de fogo e uma brisa fresca e embalsamada, tornam esta região a mais formosa que percorremos em toda a nossa viagem no sertão. Embevecidos nesta paisagem ridente e encantadora, caminhámos até ao pôr do sol e, descendo uma ladeira bastante íngreme, avistámos de repente e a pouca distância as primeiras cubatas de Simbely.
Simbely está situada em território francês e na margem esquerda de um ribeiro que vai desaguar ao Cogon, perto de Kandiafará. Fulas e Biafadas tinham reunido os seus homens de guerra para mutuamente se desagravarem de ofensas por eles reputadas graves, mas realmente sem nenhuma importância. Era o ódio de raça, a mira no roubo e nada mais que impelia Mamadu Paté, rei do Forreá, e Mamadu Jolá, chefe dos Biafadas, a marchar à frente dos seus exércitos, a caminho de Buba, aonde se havia de decidir o pleito, que aparentemente tanto os magoava.”


Refere que pernoitaram em Simbely, o acolhimento foi corretíssimo. Nada mais consta desta viagem até Kandiafará que demorou 14 dias, foram respeitados pelos chefes das povoações por onde transitaram; encontram os membros da comissão francesa antes de entrar em Kandiafará que ele descreverá deste modo:
“Kandiafará, situada na margem direita do Cogon ou Compony, deve ser um lugar insalubre por causa dos pântanos que o rodeiam. Todos, à exceção de M. Galibert, sofriam de febres paludosas, a ponto de M. Noury ter de se recolher à cama com uma espécie de perniciosa. Foi carinhosamente assistido por todos e pelo nosso enfermeiro que recebeu ordem de pôr à sua disposição a nossa ambulância.” Depois de apresentar Dandum, hoje povoação portuguesa, volta a criticar o comportamento dos franceses que guardaram para si apenas a estrada de Kadé, mais uma outra forma de impedir o acesso dos portugueses ao Futa-Djalon e tece o seguinte comentário: “Eis aqui os estupendos resultados de se fazerem tratados de delimitação sem o conhecimento prévio do que se pretende delimitar!” E aproveita a circunstância para também denunciar o comportamento dos régulos do Futa-Djalon que estabeleceram acordos de exclusividade com os franceses, para efeitos comerciais. E volta a tecer as suas críticas: “Que diferença de procedimentos! Uns, os franceses, estabelecem que é proibido a qualquer súbdito de outros países o viajar e comerciar livremente no território Futa; nós, abrimos o Forreá a todo o comércio e garantimos até a segurança dos agentes e suas mercadorias!”

Os membros da comissão francesa continuavam doentes, resolveu-se partir numa pequena caravana.

A 1 de março de 1888 as duas comissões delimitadoras partiram de Kandiafará para o interior a fim de determinarem o curso médio dos rios Cogon e Kolibá, M. Galibert partiu para Bissau para fazer conduzir a Geba a carga de mantimentos pertencentes à expedição francesa.

Inevitavelmente iria aparecer um ataque de abelhas: “As abelhas tinham atacado a caravana, e era forçoso ceder-lhes o acampamento, que elas disputavam com pertinácia! De repente desapareceram e julgando eu o incidente acabado atravesso a ponte. Ainda não tinha chegado perto de M. Brosselard e já as abelhas voltavam a atacar-nos com mais fúria e em enxames mais numerosos! O burro, completamente coberto daqueles terríveis himenópteros, saltava, corria, deitava-se no chão, espojava-se, levantava-se para se tornar a deitar, coitado, parecia doido! Nós todos corríamos em diversas direções, fugindo para longe.” Lá se fizeram algumas fogueiras e o fumo afugentou as abelhas. Após o almoço, Costa Oliveira e M. Brosselard foram visitar o rio Cogon que distava do acampamento cerca de 2 km: “É um formoso rio, o Cogon! As suas margens altas de mais de 3 metros são tapadas por densa vegetação e árvores seculares. Deve ter, neste lugar, uns 200 metros de largo e ser bastante profundo, pois mesmo na margem não teria menos de 2 a 3 metros.”

Levantaram acampamento e abalaram para Kumataly, uma importante povoação fortificada.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25054: Historiografia da presença portuguesa em África (403): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (1) (Mário Beja Santos)