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quarta-feira, 8 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25496: Historiografia da presença portuguesa em África (422): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Curioso pelo convite feito para comparecer na Casa de Goa numa sessão de apresentação de uma obra sobre João Barreto, injustamente esquecida em Portugal e na Guiné-Bissau, resolvi revisitá-la, dou o meu tempo por bem cumprido, este médico goês viveu 12 anos na Guiné onde prestou relevantes serviços na Saúde Pública e na Medicina Tropical deu-lhe para escrever aquela que é a única história da Guiné portuguesa. Como é evidente, as investigações nos últimos 90 anos têm permitido descobertas estimulantes de relatos que valorizavam a literatura de viagem, um conhecimento mais aprofundado quer do período do domínio filipino quer da Restauração, e sobretudo têm saído dos arquivos documentos a que seguramente João Barreto sobre eventos da maior importância, caso da guerra do Forreá, da demarcação de fronteiras, da polémica sobre os procedimentos de João Teixeira Pinto sobre a Liga Guineense, por exemplo. João Barreto dá a Guiné como pacificada em 1918, sabe-se que foi preciso esperar até 1936 para se considerar que tinham acabado as sublevações e hostilidades, isto depois da rendição do régulo de Canhabaque.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Justifica a sua investigação pela ausência de trabalhos congéneres, tudo parcelar, focado em pequenos períodos, assim nasceu a História da Guiné que, deploravelmente, não tem concorrente. Ora, como ele observa, “Quem quiser seguir a evolução histórica dessa pequena parcela, que nos ficou do extenso domínio antigo, não pode circunscrever-se aos factos ocorridos dentro das fronteiras atuais da colónia, mas tem de lançar um golpe de vista retrospetivo sobre uma zona mais larga da África Ocidental, desde o Cabo Branco até à Serra Leoa.” Nunca se apurará se andou pelos arquivos, mesmo os existentes em Bolama, mas que consultou bibliografia não há dúvida, fala dos Subsídios para história de Cabo Verde e Guiné, por Sena Barcelos, do Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal, pelo Visconde de Santarém e por Rebelo da Silva; leu em profundidade o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Álvares de Almada, como também a Guiné portuguesa, por Ernesto Vasconcelos, e mesmo o Anuário da Província da Guiné, por Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro, editado em 1925, entre outros. Estudou a doença do sono, foi diretor do laboratório central de análises do hospital civil e militar de Bolama, e deu-se a outros cometimentos, deles se fará referência.
A sua História, que não resistiu às rugas do tempo e à multiplicidade das investigações posteriores, tem, contudo, uma estruturação e um cuidado na investigação que, só por si, justificaria esta revisitação – isto para já não deixar de sugerir uma reedição comentada, também a pensar na Guiné-Bissau que tem no seu ADN cinco séculos de presença portuguesa.

No primeiro capítulo, o autor esboça as primeiras tentativas de atingir a Costa da Guiné até 1462, quando Pedro de Sintra atingiu a Serra Leoa; fala-se do arrendamento da Costa da Guiné feito a Fernão Gomes, este enviou os seus navios para além da Serra Leoa e, em 1471, João de Santarém e Pedro Escobar descobriram a Costa da Mina. No segundo capítulo, aborda-se a decisão papal de conferir aos reis de Portugal a posse das terras descobertas e conquistadas aos infiéis; fora tomada a decisão da anexação do território da Guiné à Capitania de Cabo Verde, houve mesmo uma tentativa de fundação de uma capitania no rio Senegal em 1490; faz-se referência à presença dos lançados, há evangelização falhada, mas, a par disso, dá-se a concessão a Portugal dos direitos do Padroado na costa africana, criou-se o bispado da Ribeira Grande. Passa-se em revista as políticas comerciais de D. Afonso V e D. João II, com D. Manuel I dão-se mudanças radicais, este monarca proíbe totalmente aos cabo-verdianos de enviar navios ao Rios da Guiné, determina impostos aos lançados como, mais tarde, ordenou que todas as fazendas dos cristãos que fossem apanhadas no trato comercial com os negros seriam perdidas para a Coroa.

Barreto, ainda quando está a analisar o período das viagens lança uma explicação para a palavra Guiné, dizendo que deriva do nome de uma povoação indígena fundada por volta do ano 1040, nas margens do Alto Níger, reproduz-se aqui o que ele escreve a tal propósito, não deixa de ser bem interessante:
“Pela sua situação geográfica tornou-se um ponto de passagem concorrido das caravanas que faziam o comércio do Sudão e da África Meridional com os mandingas e árabes do Norte. Conquistou por este facto certa prosperidade e fama. O seu renome propagou-se, por intermédio dos mercadores árabes, para o Norte da África e dali para os países europeus. Tem-se escrito sobre várias formas o nome desta aldeia: Genna, Ghenea, Ginea, Jenni, Genni, Djienné, etc. Em Portugal o vocábulo sofreu pequenas alterações. Na primeira edição da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Zurara, referem em 1841, por cópia fiel do original existente em Paris, encontramos umas vezes a forma Guinee, com duplo E final, e outras vezes Guinea, Guynea. Na Ásia, de João de Barros, lemos: “(…) Região de Guiné, a que os mesmos mouros chamavam Guinauhá.” No Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco, encontramos períodos como este: “(…) e esta Etiópia corre e se estende a costa do dito rio de Çanaguá até ao Cabo de Boa Esperança (…) e do dito rio até este Cabo são 1340 léguas, a qual por outro nome Guinee chamamos.”

Nos primeiros anos do Descobrimentos portugueses a designação de Guiné compreendia toda a região situada ao Sul do Cabo Bojador; mas depois da descoberta do rio Senegal e confirmadas as distinções geográficas e étnicas marcadas por este rio entre os azenegues e os negros, o vocábulo Guiné serviu para designar especialmente a costa situada ao Sul do Rio.
Veio depois a descoberta da Costa da Mina, que pelas suas vantagens comerciais relegou a um plano secundário a zona da Senegâmbia. Foi então que os reis de Portugal acrescentaram o título de Senhores de Guiné, passando a estabelecer-se uma vaga distinção entre a Guiné Superior e Inferior. Com o tempo cada uma das zonas costeiras foi adquirindo a sua autonomia geográfica e administrativa, perdendo-se a pouco e pouco o sentido do vocábulo Guiné, até que chegámos à situação presente com o golfo da Guiné na zona equatorial e as colónias da Guiné portuguesa e francesa situadas mais ao Norte. Em resumo, a palavra Guiné não chegou a ter um valor geográfico rigorosamente definido. Em Portugal, atribuiu-se ao termo quase sempre o género feminino, mas também se encontra a palavra Guiné com o género masculino. Assim, André Álvares de Almada fala no nosso Guiné e do Guiné. Em geral, o nome próprio Guiné foi empregado desde os primeiros tempos sem ser precedido do artigo definido. A fórmula - a Guiné – com artigo começou a ser empregado com mais frequência no século XIX, e hoje está quase generalizada.”


O autor, ainda neste segundo capítulo, alude a um conjunto de temas, só se quer mencionar que pela sua Bula de 31 de janeiro de 1533, o Papa Clemente VII separou da diocese do Funchal a área de Cabo Verde e Guiné que constituiu um novo bispado. Estamos agora já no terceiro capítulo, a que o autor designa por “Interregno dos monarcas castelhanos”. Ele vai explanar sobre a decadência do império ultramarino português e a perda de toda a Costa da Guiné, com exceção da pequena zona que constitui a atual colónia. É um período de decadência do império ultramarino português em geral e da Costa da Guiné em particular. Não esconde a sua profunda admiração pela descrição da Guiné feita por André Álvares de Almada, em 1594, no Tratado Breve. Desde 1585, os rendimentos reais de África e ilhas adjacentes estavam arrendados por moradores particulares, que pagavam as prestações vencidas diretamente na metrópole, esta situação criou graves dificuldades aos governos das colónias. Deixaram de se fazer reparações nos fortes e de renovar o material de guerra. Segundo o relatório feito por Nicolau de Castilho, governador de Cabo Verde e Guiné, os vencimentos atrasados e as dívidas por pagar em 1614 importavam em 30 mil cruzados, importância astronómica na época.

Ao entrar em Portugal, Filipe II de Espanha ofereceu às Cortes diversos capítulos dando inteira satisfação aos desejos e exigências dos portugueses, mas logo depois da aclamação começou a faltar abertamente às suas promessas. Os alvarás relativos ao comércio da Guiné foram considerados como letra morta. A Grã-Bretanha e a Holanda, como mais adiante França, procuraram firmar a sua influência na África Ocidental.

(continua)

S. Domingos - Tipos de mulheres Felupes
S. Domingos - Tipos de Felupes
Cacine - Tipos de Nalus
Guiné - Tipos de Mancanhas
Cacine - Feiticeiro Nalu

Cinco imagens retiradas do Boletim da Agência Geral das Colónias, fevereiro de 1929, ano 5.º, n.º 44, dedicado à Guiné
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Nota do editor

Último post da série de 1 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25467: Historiografia da presença portuguesa em África (421): A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25467: Historiografia da presença portuguesa em África (421): A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
O Coronel Leite Magalhães deixou um apontamento escorreito neste trabalho coletivo intitulado "A Restauração e o Império Colonial Português", que a Agência Geral das Colónias editou em 1940, no âmbito das comemorações do centenário. Ainda hoje se pode ler com agrado o que Damião Peres escreve sobre o império português na hora da Restauração ou a reconquista em terras brasileiras, trabalhos de Pedro Calmon e Hélio Viana. O antigo governador da Guiné entendeu espraiar-se pelos acontecimentos de Alcácer Quibir e as consequências decorrentes do desastre, descreve depois a Costa da Guiné até à dominação filipina, retrocede até ao programa do Infante D. Henrique, deixa-nos um esboço do que representou a fragilidade da presença portuguesa durante o período do domínio filipino na Costa da Guiné e a resposta dos Bragança para procurar reconquistar o Império, no caso da Costa da Guiné era já muitíssimo tarde, tínhamos ficado confinados entre o Casamansa e a Península de Cacine, escusado é dizer que foi presença ténue até às exigências impostas pela Conferência de Berlim.

Um abraço do
Mário



A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães

Mário Beja Santos

Em 1940, a Comissão Executiva dos Centenários/Agência Geral das Colónias editou o volume A Restauração e o Império Colonial Português, nele colaboraram personalidades como Damião Peres, Pedro Calmon, Hélio Viana, António Leite de Magalhães e o general Ferreira Martins. A comunicação do coronel Leite de Magalhães prende-se com a costa da Guiné, introduz as consequências do desastre de Alcácer Quibir, aludes às Cortes de Almeirim e depois às Cortes de Tomar que consagram Filipe II de Espanha rei de Portugal, começa agora a sua extensa leitura dos acontecimentos da dominação filipina na costa de África. Inevitavelmente, retrocede ao plano henriquino, às viagens posteriores à passagem do Cabo Bojador, aos relatos que Zurara faz na sua Crónica da Guiné quanto à expedição de Lançarote de Lagos, Gonçalo de Sintra, Diogo Gomes e o mapeamento da costa, porque as viagens sucedem-se. Pouco antes da morte do Infante D. Henrique, Álvaro Fernandes, sobrinho de Gonçalves Zarco alargara os reconhecimentos chegando à ilha de Arguim. E depois da morte do Infante, escreve o antigo governador da Guiné, a Costa da Guiné estendeu-se na viagem de Rui Sequeira, em 1475, até ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores, que nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V fizeram o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado – onde havia chegado Pedro de Sintra, após a morte do Infante, até ao extremo do golfo de Biafra. O autor passa naturalmente em revista a natureza do comércio e o tipo de presença que os portugueses iam estabelecendo em feitorias. Nada de especial vai acontecer nesta região até à ocupação de Lisboa pelas tropas do Duque de Alba, em 1580. As jurisdições da capitania de Arguim, para norte do rio Senegal, e a de Santiago de Cabo Verde, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, e a da capitania de S. Jorge da Mina, desde a Serra Leoa até ao Rio Real, mantinham-se inalteradas.

Se era facto que Portugal já não tinha condições para impedir a concorrência estrangeira na região, a União Ibérica agravou, e muitíssimo, a situação. Os franceses intentavam uma expedição ao Castelo da Mina, os navios normandos desciam com cada vez mais frequência até à Costa da Guiné. É o próprio André Álvares de Almada que refere no Tratado Breve que ingleses e franceses são uma presença constante na região. Estes franceses e ingleses faziam comércio na Goreia, hoje Senegal, entendiam-se muito bem com os lançados portugueses. E, por isso, Almada escreve no seu Tratado Breve que os resgates na Costa do Cabo Verde até ao rio de Gâmbia estavam perdidos.

A derrocada do poderio português e do império sofre um rude golpe com as destruições da Invencível Armada, perderam-se 77 navios e cerca de 10 mil homens e mais de 100 milhões de ducados. Com o enfraquecimento da posição portuguesa intensificou-se o curso e é dado assente que a penetração inglesa na Costa da Guiné ganhou forma desde 1588. Os inimigos de Espanha eram os inimigos de Portugal. Filipe II obrigou Portugal a participar na luta que se tratava nos Países-Baixos, isto numa altura em que se formava a Companhia das Índias Orientais que passavam a ter um monopólio de comércio para além do Cabo da Boa Esperança. Tudo se vai tornando cada vez mais difícil para a presença portuguesa, assaltos ao Castelo de S. Jorge da Mina, a audácia da pirataria holandesa nas ilhas de Cabo Verde. Os franceses não ficaram atrás. Os traficantes de Dieppe e Ruão associaram-se em 1626 para a fundação da Compagnie Normande que passou a ter o privilégio de dez anos entre o Senegal e o rio Gâmbia. Na Goreia, os holandeses fizeram da ilha a sua base de operações. Os três fortes portugueses que havia ao longo da costa – Arguim, Axem e S. Jorge da Mina – tornaram-se o alvo da sua cupidez. Os holandeses movem-se por toda a parte, chegam ao Brasil, ali se implantam, o mesmo acontecerá com a fortaleza de S. Paulo de Luanda, em 1648.

Com a Restauração, apenas Axem ficara de pé, e o no cômputo geral do que fora a nossa presença na Costa da Guiné nada mais nos ficara de que um pequeno bocado compreendido entre o rio de Casamansa e Cacine. D. João IV tinha muito que acudir, desde a presença espanhola, a salvar o Brasil, a reconquistar a região de Angola. Para lutar contra a Espanha, o rei de Portugal firmou tratados de aliança com a França, a Holanda e a Inglaterra; no Brasil os holandeses vão conhecer reveses fatais, em África reconquista-se Angola. Faz-se um tratado de paz com Holanda, perde-se posição no Oriente. E de forma mitigada regressa-se a Cacheu, faz-se fortaleza, retomam-se outras feitorias, tudo modestamente.

Como observa no seu texto o coronel António Leite de Magalhães a presença portuguesa nessa velha Costa da Guiné ainda se ia mantendo e mantém-se as designações geográficas das terras que a pilhagem arrebatou; e nas populações cristãs que os seus missionários, tantas vezes ingloriamente, catequizaram; e até nas citrinas se deixou nome, mais tarde Teixeira da Mota e outros investigadores farão inventário dos nomes portugueses que constam na topografia da Costa da Guiné por onde cirandámos durante séculos, até se ter diluído a nossa presença.

É este em síntese o documento que Leite Magalhães, que foi governador da Guiné de 1924 a 1931 (afastado depois dos acontecimentos da Revolta Triunfante, pois na Guiné houve um golpe republicano que foi rapidamente jugulado, o governador é preso, afastado, regressará a Bolama por pouco tempo, até ser substituído) nos deixou no trabalho coletivo sobre a Restauração e o império colonial português.

Clicar na imagem para ler o texto
População de Cacheu buscando água numa fonte, 1900
Padrão português que Cacheu conserva
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Nota do editor

Último post da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
A questão é muito interessante mas não vislumbro documentação que sustente a existência de Bissau como capital da Guiné portuguesa, será efetivamente capital em 1941. A colónia não dispunha de superfície antes da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, como colónia era uma ficção territorial, tinha praças, feitorias e presídios, nunca encontrei qualquer documento que tratasse Bissau como capital. E depois temos toda aquela documentação da segunda metade do século XIX, caso de Travassos Valdez, onde se mostra Bissau como uma praça e uma povoação entregue a degredados, muitas vezes revoltando-se contra o governador e prendendo-o, sujeita a uma permanente hostilidade. Que capital era esta, podem ajudar-me a esclarecer a questão?

Um abraço do
Mário



Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão

Mário Beja Santos

Tenho como dado assente que a Guiné portuguesa jamais teve capital até 1879. É uma questão de lógica, a região dependia do governador de Cabo Verde e da Guiné, com a monarquia constitucional, a referência à Guiné como território não existe na Constituição, somente se menciona a existência da povoação de Cacheu e da Praça de Guerra de S. José de Bissau. É nisto que ao ler os cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, resultado da sua viagem à Guiné em 1947, que considero documento científico de leitura obrigatória, a edição foi coordenada por Philip J. Havik e Suzanne Daveau, investigadores experimentados, Edições Húmus, 2010, encontro na página 60 a seguinte nota:
“As origens de Bissau remontam ao século XVI, mas somente em 1692 é elevada a capitania. Com a construção da fortaleza no último quartel do século XVIII, Bissau começa a ultrapassar Cacheu – que foi um dos primeiros e principais portos na costa da Guiné – como entreposto comercial. A partir de 1835, Bissau obtém o estatuto de capital (em 1855 é criado o município) até 1879.”

Comecei a pesquisar no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, número especial de outubro de 1947, há um título Efemérides da Guiné portuguesa, que tem por autores Teixeira da Mota, Fausto Duarte e outros, e procurei o que tinha acontecido em 1835. Em 30 de agosto é promulgado um decreto pelo Governo de Lisboa criando a Comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, sujeita à prefeitura de Cabo Verde, nada mais. Consultei depois o n.º 32 da revista Ultramar, 1968, todo ele dedicado à Guiné e onde consta do historiador António Alberto Banha de Andrade um longo artigo intitulado História breve da Guiné portuguesa. O autor menciona a remodelação administrativa de 16 de maio de 1832. Na Guiné passou a haver uma subprefeitura em Bissau, ficando o Subprefeito com funções de intermediário entre a população e o Prefeito, colocando-se em 1834 a sede da administração em Bissau, nesse ano Honório Pereira Barreto foi nomeado provedor de Cacheu, não há qualquer referência a Bissau como capital.

Bom, o melhor era dirigir-me a um alfobre de documentação, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Comecei por ler a obra Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas, por José Joaquim Lopes de Lima, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844. Sendo obra de referência e dedicada à Rainha, seria inevitável aludir a elementos essenciais. Pois o que encontrei no capítulo X, dedicado à Guiné de Cabo Verde, são digressões históricas da nossa presença na região e menção aos estabelecimentos existentes: praça de Cacheu, presídio de Farim, presídio de Ziguinchor, presídio de Bolor, praça de guerra de S. José de Bissau (esta apresentada como reduto quadrangular de boa cantaria, flanqueada por quatro baluartes, dentro da praça havia quartel para o governador), Ilhéu do Rei, Geba, ilha de Bolama e ilha das Galinhas. Estranhíssimo não se falar em capital, havia somente governador em Bissau como responsável da praça, desde finais do século XVIII.

Outra fonte consultada foi a História de Portugal, de Joaquim Veríssimo Serrão, Editorial Verbo, 1986, dois volumes. No volume VIII, referente a 1832-1851, refere o autor: “A reforma de 1832 mantinha a Comarca da Guiné na dependência ultramarina de Cabo Verde, criando uma Subprefeitura em Bissau e uma provedoria em Cacheu. O governador Manuel António Martins tomou medidas de proteção para com a Guiné, fazendo um novo regulamento para a alfândega e criando um hospital militar dirigido por uma comissão a que presidiu Honório Pereira Barreto.” No volume IX, alusivo ao período 1851-1890, observa o historiador: “Uma das primeiras medidas da Regeneração, no tocante à Guiné, foi a de criar um lugar de governador para todas as parcelas da mesma região, o qual ficaria sujeito ao governador-geral de Cabo Verde. Aquele funcionário teria residência em Bissau, cabendo-lhe também visitar a praça de Cacheu duas vezes por ano. O governador tinha igualmente poderes militares.” E depois faz-se uma alusão ao Visconde Sá da Bandeira: “A Sá da Bandeira se deve a elevação de Bissau a vila por considerar que a povoação tinha já um número suficiente de habitantes para dispor de instituições municipais. Justificava-se ainda a medida por ser a capital da Guiné portuguesa e a residência do respetivo governador.” Aonde o Visconde de Sá da Bandeira foi encontrar a capital da Guiné não se sabe, mas que o visconde refere a capital vem no Diário do Governo de 2 de maio de 1858.

A primeira referência a uma capital em documento autenticado com o nome do rei vem no suplemento ao n.º 15 do Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Cabo Verde, de 17 de abril de 1879, que reza o seguinte: “Dom Luíz, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc., fazemos saber a todos os nosso subditos, que as côrtes gerais decretaram e nós queremos a lei seguinte: art.1. – o território da Guiné portuguesa formará uma província independente de outra qualquer província portuguesa, terá a sua séde na ilha de Bolama.”

Isto o que consegui apurar na Biblioteca da Sociedade de Geografia, graças à total disponibilidade da sua bibliotecária. Mantém-se o mistério da data de 1835 para a capital de Bissau que os historiadores daquela época e posteriores jamais mencionam. Os coordenadores do trabalho de Orlando Ribeiro também não invocam a fonte. Chegou a vez de se submeter a questão a historiadores que possam ajudar a desenvencilhar este enigma de Bissau como capital como Bolama. Desconheço a fonte informativa do Visconde Sá da Bandeira, não será de estranhar que ele confunda o governador da Praça de S. José de Bissau como instalado numa capital. Acresce que nós temos relatos como o do governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado com a implantação da República, que alude ao completo estado de degradação em que se encontrava a fortaleza e o povoado até ao Pidjiquiti, tudo numa imundície e desmazelo intoleráveis, uma estranhíssima capital permanentemente fustigada pelas hostilidades dos régulos da ilha, o quadro de Bissau estava cercado de muros altos para se proteger de permanentes agressões. Como é que era possível falar-se de Bissau como capital, somente mencionada esta como existente em 1835 e invocada com tal título em 1858, sem nenhum documento comprovativo, e, em completo contradição com o facto de que só perto da sua desvinculação de Cabo Verde nem o estatuto de distrito autónomo tinha.

É a questão que deixamos aos historiadores, oxalá possam clarificar este imbróglio, já que documentos históricos comprovativos de Bissau como capital só temos estas duas referências sem alusão a fontes. Vamos esperar.


Carta hidrográfica da Guiné portuguesa, 1844, anexo da importantíssima obra de Lopes de Lima
Referência de Sá da Bandeira a Bissau como capital da Guiné portuguesa, 1858
Fortaleza de Cacheu, imagem do século XIX
Imagem ao monumento do esforço da raça, havia quem lhe chamasse monumento à Maria da Fonte
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Nota do editor

Último post da série de 10 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25365: Historiografia da presença portuguesa em África (418): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25365: Historiografia da presença portuguesa em África (418): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Um dos mais importantes investigadores desta obra de Duarte Pacheco Pereira, Joaquim Barradas de Carvalho, escreveu no prefácio da edição da Gulbenkian de 1991 o seguinte: "Acerca da obra Esmeraldo de Situ Orbis, três factos parecem estar definitivamente estabelecidos: o manuscrito original e autógrafo de Duarte Pacheco Pereira perdeu-se; existem tão-só duas cópias tardias, uma da Biblioteca Pública de Évora, e outra da Biblioteca Nacional de Portugal; a mais antiga, a de Évora, data da primeira metade do século XVIII. A mais recente, a de Lisboa, teve origem na segunda metade desse mesmo século." O que pode dar pasto a que o documento foi sempre tratado como altamente sigiloso, a dar fé à política de sigilo, logo no reinado de D. Manuel I vedava-se o conhecimento aos estrangeiros das viagens dos portugueses, tanto para afugentar a concorrência como para alargar todo o espaço que o Tratado de Tordesilhas permitia. Há que reconhecer que este documento, tal como nos chegou às mãos, dá nota dos conhecimentos da época, logo as Etiópias da Guiné, o pendor para a homenagem às navegações henriquinas, mesmo dizendo que Deus revelara ao Infante esta missão; seguem-se cronologicamente as navegações operadas, a viagem de Gil Eanes, as rotas do Cabo Branco até ao Cabo Verde, o encontro com o rio Senegal, e aqui o cosmógrafo usa a palavra Guiné, a descrição dos povos (muitas décadas mais tarde, André Álvares de Almada irá confirmar o registo de Duarte Pacheco); a passagem pelo Rio de Gâmbia e depois o Rio Grande ou Geba, com descrições pormenorizadas de quem ali habita e informações sobre o resgate de escravos e o comércio possível com estas populações. Aqui se dá por findo o registo, o que havia por dizer sobre a Senegâmbia é o que se deixa no texto anotado.

Um abraço do
Mário



O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (2)

Mário Beja Santos

Agora, que estou a preparar os primeiros relatos fundamentais da presença portuguesa nesta região da África Ocidental que é tratada como Etiópia Menor, Rios de Guiné, Senegâmbia, entre outras designações, fiquei de boca à banda quando descobri que ao longo destes anos de colaboração no blogue privei o leitor das referências que Duarte Pacheco Pereira teceu à Terra dos Negros.

No texto anterior deixei as indicações curriculares deste cabo de guerra em terra e no mar, alguém que se encheu de glória por feitos militares na Índia, incumbido pela Coroa de grandes ou graves incumbências, figura de algum modo envolta em mistério, põem-se várias hipóteses de se ter antecipado a Pedro Álvares Cabral no conhecimento das terras brasileiras; para o caso em apreço, Duarte Pacheco recebe a incumbência em 1505 para escrever o livro a que se chamou "Esmeraldo de Situ Orbis", permanece o mistério da palavra Esmeraldo, há diferentes opiniões não coincidentes, mas que o título é lindo, é. Este cosmógrafo, convém insistir, tinha uma visão limitada das fronteiras do continente africano, detinha uma visão ptolemaica, o rio Nilo parecia constituir o caudal de água de onde derivavam os rios que os portugueses iam achando. O autor presta homenagem aos empreendimentos henriquinos, vai descrevendo as rotas em direção ao Cabo Verde, dá como certo e seguro haver duas Etiópias, a Inferior que se estenderia até ao Cabo da Boa Esperança. Pormenoriza quem habita na região do rio Senegal e faz agora uma referência ao reino de Tambuctu (obviamente Tombuctu), “e ali está a cidade de Jani, povoada de negros, a qual cidade é cercada de muros de taipa e nela há grandessíssima riqueza de ouro. E ali vale muito o latão e cobre e panos vermelhos e azuis e sal”; e, mais adiante: “E este rio é muito doentio de febres. E o inverno desta terra é de julho meado até quinze dias de outubro. E outras muitas coisas se poderão dizer do rio Sanaga, as quais deixamos de escrever para não fazer longo sermão”.

Segue-se uma prosa descritiva das ilhas do arquipélago de Cabo Verde, e voltamos ao continente com o título Rotas e conhecenças do Rio de Gâmbio para o Cabo Roxo e Rio Grande. Informa que no Rio de Gâmbia os seus habitantes são Jalofos e Mandingas, e escreve o seguinte: “Jaz o Rio de Gâmbia com o Cabo Roxo, norte e sul, e tem na rota vinte e cinco léguas. E no meio deste caminho está um rio que se chama Casamansa, a gente do qual são Mandingas. Neste rio vale muito o ferro; e aqui há resgate de escravos por cavalos e por lenços e por pano vermelho. E adiante de Casamansa, doze léguas, está o Cabo Roxo.”

Entramos agora no Rio Grande, o Geba: “e não lhe foi posto este nome por ser maior no tamanho com os rios Sanaga ou Gâmbia, mas porque tem a boca muito grande”. E deixa uma referência ao fenómeno do macaréu.

O capítulo 31.º intitula-se "Do Rio Grande e no que nele há", assume uma enorme importância pelo detalhe que pela primeira vez se dá às regiões circunvizinhas e pelas notas geográficas que se irão revelar de grande significado para futuros navegadores que aqui aportem. E faz menção dos povos em torno de Geba:
“E a gente que nesta terra habita são Gogolis e Beafares e são sujeitos a el-rei dos Mandingas e estes são muito negros de cor, e muitos deles andam nus e outros vestidos de panos de algodão. Aqui se resgatam escravos, seis e sete por um cavalo, ainda que não seja bom, e algum ouro (ainda que é pouco) por pano vermelho e por lenço e por umas pedras a que chamam alaquecas e também lhe chamamos de estancar sangue. Esta gente tem muita abastança de arroz, milho e inhames e galinhas e vacas e cabras. E quase todos estes são muçulmanos e a Mafamede adoram e são circuncisos; é gente que não há vergonha nem medo de Deus”.

Estamos agora no capítulo 32.º, assim intitulado "Dos rios que vão adiante do Rio Grande" e alguns que são dentro dele, e assim das rotas e conhecenças até à Serra Leoa. Dá seguinte informação: “Deste Rio Grande se podem fazer dois caminhos para a Serra Leoa: um deles é por dentro das ilhas que à boca deles estão; outro caminho é por fora, pelo pego, segundo adiante diremos”. E faz referências a vários rios até chegar ao Rio Nuno e mais à frente ao Cabo da Verga: “A terra entre o Rio Grande e o Cabo da Verga é terra muito baixa e má de conhecer, e o fundo sujo e de grandes recifes de pedra, e muito perigosa, que se não deve navegar senão de dia e pousar de noite; e para mais segurança seja navio pequeno de 25 até 30 tonéis, porque sendo maior correrá risco de se perder.” E volta às referências de quem ali habita: “E todos os negros desta terra são idólatras, e em caso que não conhecem lei, são circuncisos e esta circuncisão tomou causa de vizinhança que têm com os Mandingas e outros que são muçulmanos.” E, mais adiante: “em toda esta terra, na costa do mar há ouro, ainda que é em pouca quantidade, o qual costumamos resgatar por alaquecas e por contas amarelas e verdes e por estanho, e lenço e manilhas de latão e pano vermelho e por bacias como de barbeiro; e por estas mercadorias resgatamos aqui muitos escravos. Nesta terra não há edifícios senão casas palhaças; e esta gente toda é metida em guerras, que poucas vezes têm paz, possuidores de elefantes e onças e outros muito desvairados animais e aves de estranhas feições; e se mantêm de arroz e milho de outros legumes e, assim, carne e peixe que há aqui muito.”

E damos por aqui terminado o registo, a seguir o autor passa a comentar tudo o que viajou a partir do Cabo da Verga, estamos assim fora da pequena Senegâmbia, cada vez mais longe das Etiópias das quais hoje se formata a Guiné-Bissau.


A imagem mais conhecida do autor, a quem Luís de Camões chamou o Aquiles Lusitano
Duarte Pacheco Pereira na filatelia
Carta de Stefano Bonsignori, de 1580, mostrando parte de África Ocidental, incluindo os atuais países do Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Serra Leoa, Libéria, Costa de Marfim e Burquina Fasso
A casa dos escravos na ilha de Goreia, hoje Património da Humanidade
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 27 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25311: Historiografia da presença portuguesa em África (416): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 9 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25361: Historiografia da Presença Portuguesa em África (417): "Desastre de Bolor ou Bolol" [Carlos Cordeiro, 1946-2018) / Patrício Ribeiro]

terça-feira, 9 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25361: Historiografia da Presença Portuguesa em África (417): "Desastre de Bolor ou Bolol" [Carlos Cordeiro, 1946-2018) / Patrício Ribeiro]


Antiga Província Portuguesa da Guiné > Carta Geral (Escala: 1/500 mil) (1961) > Posição relativa de Bolor (1), Bolola (2), Jufunco (3), Varela (4) e Cacheu (5). No Google Map, o topónimo uado é "Bolor" (mas os guineenses hoje dizem "Bolol"... e o povo é quem faz a língua)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Comentário de Carlos Cordeiro (1946-2018) ao poste P8622 (*)

[O desstre de Bolor ou Bolol] aconteceu em finais (talvez mesmo em dezembro) de 1878. A Guiné era governada por um governador, dependente do governador-geral de Cabo Verde.

Foi uma grande mortandade: falou-se mesmo em cerca de duas centenas de mortos. 

Tudo aconteceu por incompetência das autoridades portuguesas, em especial, do governador, que mandou sair tropas com armas descarregadas e ficou num barco a ver o desenrolar dos acontecimentos. Depois, o barco onde estava,  disparou o canhão (que me desculpe o C. Martins), que, mal assente, tombou e foi parar ao mar, etc.. 

A Câmara dos Deputados tem debates acalorados sobre os acontecimentos, ao longo de várias sessões, bem como sobre a legislação que, em 1879, criou a "província da Guiné portuguesa", tornando o seu governo independente do de Cabo Verde. 

Administrativamente ficou dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. (**)

Três aspectos sempre em destaque nos debates (além de outros, naturalmente):

(i) Que fazer? Expedição punitiva ou reconhecimento da incompetência das autoridades ao terem intervindo numa rixa que não tinha propriamente a ver com os interesses portugueses?

(ii) A falta de informações sobre as realidades ultramarinas e o problema da dificuldade das comunicações.

(iii)  As insuficiências das guarnições militares em todas as "possessões ultramarinas".

Não resisto a transcrever esta passagem de um discurso do deputado Freitas Oliveira, na sessão de 11 de Março de 1879 

(...) "Ouvi fallar das fortalezas da Guiné, como se ali houvesse alguma fortaleza! O que se chamou fortaleza da-Guiné, consiste em um paredão sobre o qual estão dez peças do artilheria, collocadas em sarilhos de madeira, que em dias de grande galla, por occasião das salvas, se voltam de traz para diante, quando disparam, como aconteceu ao rodizio da canhoneira que ultimamente aggravou com o ridículo o desastre dè Bolor". (...)

Só mais uma coisa: fala-se sempre em "Bolor" e não Bolol. No mapa aqui publicado também tem a indicação "Bolor". Deve ter havido alteração do nome.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

1 de agosto de 2011 às 03:28


2. Comentário do editor LG:
 
O nosso "correspondente em Bissau" Patrício Ribeiro já em tempos nos tinha mandado fotos destas terras do chão felupe, que poucos de nós conheceram... Chama "Bolor" ao lugar que hoje outros chamam "Bolol"... E lá está o canhão... e vestígios (correntes de ferro) provavelmente do tempo ainda do tráfico de escravos... A rever. (***)



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Bolor ou Bolo, na foz do rio Cacheu > Velhos canhões... e correntes de ferr

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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(***) Vd. poste de 2 de setemnro de 2015 > Guiné 63/74 - P15065: Memória dos lugares (318): em terra dos felupes: Bolor, Rio Cacheu, Djufunco, Varela... (Patrício Ribeiro)

(...) Envio, para recordarem, algumas fotos tiradas no mês de maio [de 2015],  de visita por terra à Tabanca, do antigo Fortim da Ponta de Bolor (...).

Como sabemos, esta tabanca [Bolor, no estuário do Rio Cacheu, na margem direita, e vizinha de Jufunco ou Djufunco e de Bolol,] está cheia de histórias:

(i) afundamento de um barco inglês e morte dos tripulantes;

(ii) morte de mais de 30 militares portugueses, envenenados por flechas e lanças;

(iii) queda de avioneta com dois franceses, que desapareceram; após muitas buscas em terra e nos rios, nunca foram encontrados...

A quem pertencem estas correntes ? 
[vd. foto acima] (...) Foi a pergunta que o nosso amigo Pepito (Carlos Shwarz) fez aos Homens Grandes da tabanca, nunca teve resposta … aquando do almoço nesta tabanca de dezenas de brasileiros descendentes de escravos, em 2010, em Cacheu.

Será que alguém sabe a quem pertence? (...) Fotografei, nesta festa, mais ou menos 5 canhões , do tempo das caravelas, que só neste dia estavam nos largos da tabanca. (...)

(...) [Falta-nos a carta, de 1/50 mil, de Jufunco, lapso nosso ou do nosso "cartógrafo" Humberto Reis...Esta região faz parte do Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu, "considerado o 5º maior parque com mancha contínua do ecossistema do mangal em África"...]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25356: Blogues da nossa blogosfera (190): Recuperando parte dos conteúdos do antigo sítio da AD Bissau - Parte III: Foto da semana, 19 de dezembro de 2010, o canhão do fortim de Bolol (ou Bolor), memória silenciosa do desastre de 1870


Guiné-Bissau > AD-Acção Para o Desemvolvimento > Foto da Semana >  Título da foto: Canhão do Fortim de Bolol | Data de Publicação: 19 de Dezembro de 2010 | Data da foto: | 21 de Novembro de 2010 | Palavras-chave: história (*)

Legenda:

Durante o período colonial, no final do século XIX, os portugueses estabelecem um fortim em Bolol para controlar o movimento marítimo na embocadura do Rio Cacheu, já próximo do oceano Atlântico.

A tabanca felupe de Djufunco, situada a pouca distância de Bolol, não aceita a presença desse Fortim e faz uma investida que acaba por destruí-lo e impedir de vez o seu funcionamento.

Ofendido, o governador da Guiné, sediado em Cabo Verde, organiza uma expedição punitiva a Djufunco, que acaba por se traduzir na morte de quase todos os soldados portugueses envolvidos nesta operação.

Passará a ficar conhecido na história como o Desastre de Bolol, vindo a ter como consequência imediata a afectação de um governador na Guiné, em vez de continuar a estar em Cabo Verde.

Fonte: Arquivo.pt > ADBissau.org (com  devida vénuia...)


Antiga Província Portuguesa da Guiné > Carta Geral (Escala: 1/500 mil) (1961) > Posição relativa de Bolol (ou Bolor(, Bolola, Jufunco, Varela e Cacheu.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guimné (2024)


2. Sobre o desastre de Bolol (ou Bolor, como ainda se escrevia na carta de 1961), pode ler-se na Wikipedia (com a devida vénia...)

(...) Desastre de Bolol é a designação por que ficou conhecida na historiografia colonial portuguesa o resultado da expedição militar portuguesa enviada em finais de 1878 para recuperar o fortim de Bolor (era assim que se escrevia na época ao) na foz do rio Cacheu, na então Guiné Portuguesa.

A expedição, enviada pelo governador de Cabo Verde, que à época tinha jurisdição sobre a costa da Guiné, resultou na morte de quase todo o contingente envolvido na operação, o que determinou a alteração da estratégia portuguesa na região, nomeadamente a criação de um governo específico na Guiné, sedeado em Bolama e separado do de Cabo Verde.

(...) No contexto da corrida à ocupação efectiva do território africano, que culminaria na Conferência de Berlim (1884-1885), forças britânicas da colónia da Serra Leoa instalaram-se na ilha de Bolama, iniciando uma disputa pelo controlo da foz do Cacheu que culminou em 1870 com a decisão arbitral do presidente norte-americano Ulysses S. Grant que reconheceu a soberania portuguesa na região.

Em consequência, o Governo português ordenou a ocupação efectiva daquela região, visando a consolidação do seu estatuto como possessão portuguesa. 

Entre os postos criados, foi estabelecido um fortim na tabanca de Bolol (ao tempo referida como Bolor), em território do grupo étnico dos felupes, na margem direita do rio Cacheu.

O objetivo do fortim de Bolor/Bolol era albergar uma pequena força portuguesa à qual caberia controlo do movimento marítimo na embocadura do rio Cacheu, estabelecendo assim a posse efectiva do território em antecipação a novos conflitos pela posse daquela estratégica porção da costa africana e das ilhas fronteiras, nomeadamente a posse de Bolama e da parte mais interna do arquipélago dos Bijagós.

Aparentemente com o apoio britânico, cujos mercadores na região terão fornecido armamento, o povo da tabanca felupe de Jufunco (lê-se: Djufunco),  situada a pouca distância de Bolor/Bolol, não aceitou a presença militar portuguesa, atacando e destruindo o fortim.

Em resposta ao ataque, o governador da Cabo Verde, então com jurisdição sobre a costa africana fronteira ao arquipélago de Cabo Verde, na qual se incluía a actual Guiné-Bissau, enviou em 1878 uma expedição punitiva a Jufunco. 

A resistência do povo felupe foi inesperadamente dura e a expedição foi um desastre militar, resultando na morte da maioria do efetivo português envolvido na operação.

O incidente, apelidado de 'desastre de Bolol' (na época dizia-se Bolor), foi uma das maiores derrotas do Exército Português na luta pelo controlo das populações africanas das colónias portuguesa no contexto das campanhas de pacificação.

Como consequência imediata foi determinado a criação de um governador autónomo na Guiné, separado de Cabo Verde, sendo escolhida como sede a vila de Bolama, estabelecendo assim uma efectiva presença portuguesa no território que havia sido disputado com os britânicos.

 Seguiram-se múltiplas acções militares visando a submissão dos diversos povos da região, nomeadamente contra os biafadas em Jabadá (1882), os papéis em Bissau e no Biombo (1882-1884), os balantas em Nhacra (1882-1884) e os manjacos em Caió (1883).(...)

No local do fortim, agora parte do Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu, apenas resta uma pequena peça de artilharia em ferro, de alma lisa.(...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG) 
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quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25311: Historiografia da presença portuguesa em África (416): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Estava eu em doce remanso a alinhavar a sequência cronológica dos primeiros textos fundamentais sobre a presença portuguesa na Guiné quando dei, atónito, pela lacuna de Esmeraldo de Situ Orbis, relato de cosmografia de primeiríssima água não só como documento para o que então se sabia como descrição dos habitantes da região. Houve que reler o Esmeraldo, ter em conta o que sobre ele investigou Joaquim Barradas de Carvalho e selecionar os textos mais relevantes sobre as Etiópias da Guiné. Bem curiosa é a biografia de Duarte Pacheco Pereira, tem um palmarés bem singular como cabo de guerra em terra e no mar, geógrafo, cosmógrafo e roteirista, lendo o Esmeraldo fica claramente visto o que se conhecia, de acordo com relatos de navegações anteriores sobre o continente, o autor chega mesmo a dizer que o rio Senegal era o braço que o rio Nilo lançava pela Etiópia inferior (região correspondente ao que iremos mais tarde chamar por Senegâmbia). Isto para dizer que a narrativa deste herói da Índia é uma peça indispensável em qualquer antologia da história alusiva à presença portuguesa na Guiné, pois não esqueçamos que ele foi encarregado pelo rei D. Manuel I, em finais de 1505, de escrever este relato, ao que parece que se manteve secreto, tratado como segredo de Estado, não convinha que outras potências conhecessem a geografia e a cosmografia das navegações portuguesas.

Um abraço do
Mário



O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (1)

Mário Beja Santos

Agora, que estou a preparar os primeiros relatos fundamentais da presença portuguesa nesta região da África Ocidental que é tratada como Etiópia Menor, Rios de Guiné, Senegâmbia, entre outras designações, fiquei de boca à banda quando descobri que ao longo destes anos de colaboração privei o leitor das referências que Duarte Pacheco Pereira teceu à Terra dos Negros.

Este cabo de guerra em terra e no mar, como refere o historiador Damião Peres, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista, é o autor do célebre roteiro circum-africano cujo título é Esmeraldo de Situ Orbis, atenho-me à terceira edição editada pela Academia Portuguesa de História em 1954, com a introdução e notas do já referido Damião Peres. Duarte Pacheco, a quem Camões cognominou como Aquiles Lusitano, distinguiu-se pelos feitos militares na Guiné, assistiu à tomada de Arzila e à consequente ocupação de Tanger, estes sucessos de 1471; participou na fundação da feitoria-fortaleza de S. Jorge da Mina, em 1482, e na exploração dos litorais e do interior das terras que hoje apelidamos como guineenses; dada a craveira dos seus conhecimentos na geografia e cosmografia, D. João II incluiu-o no grupo de técnicos que acompanharam os emissários da negociação do Tratado de Tordesilhas; embora com muitas interrogações e o profundo ceticismo de muitos investigadores, admite-se que tenha percorrido a costa brasileira a mando de D. Manuel I, em 1498, está tudo no campo das hipóteses ou conjeturas, há mesmo quem admita que tenha chegado à Florida.

Também não se sabe se tomou parte na segunda armada da Índia, a de Pedro Álvares Cabral, e no Esmeraldo não se fala da viagem de Cabral. Acompanhou Afonso d’Albuquerque, distinguiu-se pela sua bravura e cobriu-se de glória na defesa de Cochim contra o samorim de Calecute; recebeu, no regresso da Índia, em 1505, o convite de D. Manuel I para escrever o livro a que se chamou Esmeraldo de Situ Orbis; em finais de 1508, foi encarregado de comandar uma frota para procurar e combater o corsário francês Mondragon, o encontro das duas frotas deu-se no cabo Finisterra, em janeiro de 1509, Duarte Pacheco saiu novamente vitorioso; em 1519, obteve o cargo de capitão do estabelecimento de S. Jorge da Mina, que desempenhou até 1522; veio trazido a ferros por ação disciplinar, sairá ilibado; morrerá, segundo a lenda, em extrema pobreza, mas há historiadores que contraditam esta informação.

Vamos agora às referências que Duarte Pacheco tece às Etiópias da Guiné. No prólogo, deixa uma lembrança do Infante D. Henrique, que “mandou descobrir a ilha da Madeira e a mandou povoar; e assim descobriu mais por Guiné, que antigamente se chamava Etiópia, começando dos promontórios de Não e Bojador até à Serra Leoa”.

É no capítulo 5.º do primeiro livro que alude às quatro bocas que o Nilo faz e refere textualmente o grande braço que corre por meio da Etiópia Inferior, o rio Sanaga (Senegal). Recorda-se ao leitor que a exploração das partes em que ele divide a África resulta dos conhecimentos limitados que se possuíam da geografia do continente.

No capítulo 22.º, intitulado Como Deus revelou ao virtuoso Infante D. Anrique que descobrisse as Etiópias a Guiné por seu serviço e daqui por diante comece o seu descobrimento. Sem margem para dúvida que Duarte Pacheco descreveu a glorificação do terceiro filho de D. João I. E, seguidamente, descreve a causa que moveu o Infante a descobrir estas Etiópias de Guiné. “Jazendo o Infante uma noite em sua casa, lhe veio a revelação como faria muito serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do tempo deste descobrimento até agora temos sabido e praticado; e que destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do santo Batismo; sendo-lhe mais dito que nestas terras se acharia tanto ouro como outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se manteriam os reis e povos destes reinos de Portugal, e se poderia fazer guerra aos infiéis inimigos da nossa santa fé católica.” E pormenoriza a viagem de Gil Eanes e a passagem do Cabo Bojador.

Estamos agora no capítulo 24.º, intitulado Das rotas e conhecenças de Cabo Branco em diante para o Cabo Verde. Vejamos o que ele diz: “Do Cabo Branco em diante começas os baixos de Arguim, os quais duram trinta léguas de longo e vinte de largo. E quem houver de vir para cada um dos Rios de Guiné, estando junto com o Cabo Branco, faça o caminho do Sul e da quarta do Sueste, e irá ter na angra das Almadias que está sete léguas aquém do Cabo Verde; e ali, indo para Sudoeste, haverá o dito cabo. E este caminho deve fazer-se fora dos baixos de Arguim, que são muito perigosos.” E faz a alusão de que o Cabo Branco confina com esta ilha de Arguim, pelo caminho estão muitos baixos de pedra e areia, “e quem por aqui for, deve ir sobreaviso que não dê em seco”.

Estamos agora no capítulo 26.º, intitulado Do caminho que se deve fazer de Arguim para Cabo Verde até ao rio Senegal e dali até ao Cabo Verde por dentro, pela enseada. Então lê-se no capítulo 27.º De onde vem o rio Senegal e das coisas que nele há e das duas Etiópias. Escreve assim: “Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio das Etiópias e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, na qual é certo e sabido que nunca nele em algum tempo morressem de pestilência. E esta primeira Etiópia corre e se estende, por costa, do dito rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, 34 graus e meio de ladeza (latitude). E do dito rio até este cabo são 1340 léguas. A qual, por outro nome, Guiné chamamos.” Agora a narrativa aproxima-se da região que foi conhecida até ao século XIX por Senegâmbia: “No rio de Sanaga (Senegal) são os primeiros negros que aqui é o princípio do reino de Jalofo. E da parte do Norte, pelo rio de Sanaga, parte (confina) com os Azenegues, e da parte do meio-dia ou do Sul se demarca com Mandinga.”

E tece considerações sobre este reino de Jalofo: “Porá em campo o rei de Jalofo dez mil de cavalo e cem mil de pé. E toda esta gente anda nua, senão os fidalgos e homens honrados e se vestem de camisas de pano de algodão, azuis, e ceroulas do mesmo pano de algodão; são circuncisos e macometas (muçulmanos).” E não esconde que há muita coisa ainda por saber: “É incógnito onde nasce o Sanaga, parece que é o braço que o Nilo lança pela Etiópia inferior.”

A imagem mais conhecida do autor, a quem Luís de Camões chamou o Aquiles Lusitano
Duarte Pacheco Pereira na filatelia
Carta de Stefano Bonsignori, de 1580, mostrando parte de África Ocidental, incluindo os atuais países do Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Serra Leoa, Libéria, Costa de Marfim e Burquina Fasso
A casa dos escravos na ilha de Goreia, hoje Património da Humanidade

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)