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terça-feira, 23 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19129: (D)o outro lado do combate (37): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: As intervenções cirúrgicas na base do Sará: fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)


Foto nº 3

Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar]. [P18848].



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, 
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > 
A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE >  AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS NA BASE DO SARÁ (FOTOS DO MÉDICO HOLANDÊS ROEL COUTINHO)


(Parte II – Resposta ao P18848) (*)


1. INTRODUÇÃO


Ainda que com algum atraso, o que lamento, a presente narrativa surge na sequência de uma outra relacionada com a temática em título – P18848 – com o objectivo de alargar um pouco mais a reflexão sobre os conteúdos então apresentados. Pretende-se, assim, dar cumprimento à promessa feita no fórum, no sentido de melhor esclarecer as dúvidas suscitadas em cada um dos comentários elaborados pelo auditório, e foram muitos, o que naturalmente agradeço.

São relevante neste caso, por exemplo, os cometários do C. Martins, que aproveito para citar:

"CONFUSÕES… PROPAGANDA [Vd. foto nº 1]

É sabido da grande dificuldade na evacuação de feridos do PAIGC, no interior do território da Guiné. Analisando as fotos nomeadamente a da dita intervenção cirúrgica verifica-se que o cirurgião [médico cubano Dr. António] tem bata cirúrgica e tem luvas, mas não tem máscara facial. O doente está coberto com um lençol do qual se encontra material cirúrgico, supostamente já utilizado.

Suponho que esteja a suturar um ferimento no abdómen. O doente foi anestesiado com anestesia local ou geral? Ninguém em redor tem qualquer preocupação com a assepsia, no mínimo colocarem máscaras faciais, e estarem afastados. Não se vêm quaisquer insectos, sendo a intervenção cirúrgica ao ar livre e no meio da mata, é de estranhar. Não se vê qualquer aparelho para avaliar os sinais vitais, nomeadamente um esfigmomanómetro (medidor de tensão arterial).

Julgo que se o doente não morreu do ferimento… morreu da cura. Como foi esterilizado o material? Segundo as informações que tenho… tentavam evacuar os feridos… só que a esmagadora maioria morria durante o trajecto. O PAIGC tinha hospitais de rectaguarda em Boké, na Guiné Conacri, e em Ziguinchor, no Senegal. Foram efectivamente ajudados por médicos cubanos, e provavelmente alguns estiveram no interior da Guiné, mas a grande maioria só estiveram nos respectivos hospitais já referidos.

É preciso analisar se são factos reais ou se é mera propaganda". AB. C. Martins.


Antes de mais, considero as questões acima identificadas como pertinentes. Aliás, a mesma opinião já a tinha manifestado no comentário escrito a este propósito.(*)

Chegados aqui, convém recordar que a narrativa anterior, tendo por base uma dimensão histórica específica, foi estruturada a partir da triangulação das fontes consultadas, em que grande parte do espaço foi ocupado com imagens seleccionadas de um universo de algumas centenas, do álbum do médico holandês Roel Coutinho, clínico que durante os anos de 1973/1974 cooperou com a estrutura militar do PAIGC no apoio aos actos médicos, quer de combatentes, quer da população sob o seu controlo.

Por isso, acredito que as imagens apresentadas correspondam a "factos reais", todas elas obtidas num contexto de "reportagem fotográfica" de dimensão deontológica, para mais tarde recordar como experiência vivida naquela região e naquela época, e como valor sociocultural e profissional a partilhar ao longo da vida. Adiciona-se, também, o facto do médico Roel Coutinho ter percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, nomeadamente as bases de Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Para além das imagens (fotos) terem sido obtidas há quarenta e cinco anos, não entendo o conceito "propaganda" como perspectiva enganosa, mas sim "propaganda" como conjunto de acções específicas para dar a conhecer algo. Estou nesta… por ser este o objectivo das minhas narrativas.


2. TESTEMUNHOS DO MÉDICO DOMINGO DIAZ DELGADO (1966)


Como suporte historiográfico, recordo alguns dos testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n-1936-), referentes à sua passagem pela base do Sará, durante o segundo semestre de 1966, ou seja, sete anos antes das imagens do médico Roel Coutinho.


Diz ele: […] "A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. 

De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo [NT]. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dezembro de 1966] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]


Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as principais bases do PAIGC existentes nessa região e os possíveis itinerários até à fronteira com o Senegal de modo a proceder à evacuação dos feridos para o Hospital do PAIGC, em Ziguinchor.


3. TESTEMUNHOS DO MÉDICO ROEL COUTINHO (1973-1974)


Aos depoimentos do médico cubano Domingo Diaz Delgado reportados ao ano de 1966, e referidos no ponto anterior, apresentamos abaixo uma sequência de imagens do espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho] obtido durante os anos de 1973/1974.

Na ordem estabelecida, independentemente da omissão de explicações sobre cada detalhe, creio ser possível encontrar respostas às questões pertinentes apresentadas pelo camarada C. Martins. No global, com a divulgação destas imagens, procura-se satisfazer, igualmente, a curiosidade de todos.

Por último, é justo agradecer ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG, contributos importantes para o esclarecimento possível sobre a prática dos actos médicos em contexto de conflito bélico e como uma visão «do outro lado do combate».




Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974 
[fotos  de 3 a 13]



Foto nº 4

ASC_Leiden_-_Coutinho_Collection_-_18_05_-_Medical_consultation_in_Sara,_Guinea-Bissau_by_a_Cuban_doctor. [Mesa improvisada com medicamentos, …].


Foto nº 5

ASC Leiden - Coutinho Collection - A 01 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Washing hands before operation. [O médico cubano, Dr. António, lavando as mãos antes de uma operação cirúrgica].


Foto nº 6
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 02 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Putting on a surgical gown. [O médico cubano, Dr. António, vestindo a bata cirúrgica].



Foto nº 7
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Preparation of local anesthesia. [O Dr. António preparando a anestesia local].



Foto nº 8
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 05 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Surgical instruments table. [Mesa com instrumentos de cirurgia].


Foto nº 9
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 09 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Local anesthesia. [O Dr. António introduzindo a anestesia local].



Foto nº 10
ASC Leiden - Coutinho Collection - A 35 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Cuban nurse checks blood pressure. [O enfermeiro cubano Gustavo medindo a pressão sanguínea durante uma operação cirúrgica].


Foto nº 11
ASC Leiden - Coutinho Collection - B 04 - Surgery in Sara, Guinea-Bissau - Operation from distance. [Operação cirúrgica observada à distância].


Foto nº 12

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 18 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - Cuban doctor Antonio checking up heartbeat. [O médico cubano, Dr. António, durante uma consulta].



Foto nº 13

ASC Leiden - Coutinho Collection - B 19 - Infirmary in Sara, Guinea-Bissau - "Waiting room". [População do Sará aguardando pela sua consulta médica].



Nota Final:

Para concluir este texto, quero relevar as preocupações, enquanto médico, do camarada C. Martins. Outra coisa não era de esperar de um profissional que diariamente tem na sua frente, e como principal preocupação deontológica, a segurança dos cuidados de saúde prestados a quem deles precisam.

Outro caso, é a missão dos profissionais de saúde em contexto de guerra, particularmente a do conflito armado que nós, os ex-combatentes, conhecemos há mais de meio século no CTIG. Essa situação não era apenas problemática para a logística das nossas forças armadas. Para o PAIGC, quer gerir recursos que não havia/tinha, materiais e humanos, seria certamente muito mais dramático e doloroso, onde, por essa causa/efeito, a questão do "protocolo clínico" não era possível observar/respeitar.

Não pondo em causa a competência de cada um dos clínicos que decidiram colaborar com os movimentos de libertação, creio que o primeiro objectivo, presente em cada acto, seria "não fazer mal", esforçando-se por reduzir, tanto quanto possível, os efeitos adversos das diferentes práticas de saúde não seguras, onde se incluíam, também, as cirurgias. (**)

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

22OUT2018.

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19046: (D)o outro lado do combate (36): Bigene, agosto de 1972, «Operação Silenciosa"... (Jorge Araújo)

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


Foto nº 1 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Canhão s/r,  vendo-se ao fundo uma das célebres colinas do Boé que rodeavam o aquartelamento.



Foto nº 2 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Abrigo

[Duas das 38 fotos de Madina do Boé com que o Manuel Coelho nos  brindou  em 2011 e que já publicámos no nosso blogue, sendo até agora o melhor registo fotográfico que conhecemos deste mítico aquartelamento. Justifica-se a republicação, um dia destes,  do conjunto, por temas. (LG)]

Fotos: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas]


 
Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.


1. INTRODUÇÃO

Dando continuidade ao projecto de investigação que tem por título «d(o) outro lado do combate», seguimos com mais algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.

No poste anterior, iniciámos a entrevista ao médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], a terceira no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: 

Uma vez que se trata de uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net.

Por outro lado, este segundo poste,  referente ao médico Virgílio Camacho Duverger,  irá ter, certamente, comentários de grande valor histórico por parte dos bravos camaradas, ex-combatentes, onde os factos relatados estão prestes a completar cinquenta anos. É muito tempo… mas acredito que os episódios marcantes para aqueles que os viveram em Madina do Boé (ou na região do Boé), e foram muitos e dramáticos, nem todos são conhecidos. Eis uma oportunidade…

2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [II]

Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era "Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos de vida e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.

Concluiu o curso de medicina em Havana em dezembro de 1960, incorporando-se como médico militar. No dia seguinte a obter o seu diploma foi mobilizado para Mariel, seguindo-se, depois, a transferência para La Limpia del Escambray como médico militar.

Poucos meses depois é designado para fazer a pós-graduação no Serviço Médico Rural. Seguiu-se Minas de Frio, uma localidade existente na Serra Maestra, aonde funcionava a escola de recrutas [cadetes] que Ernesto Che Guevara [1928-1967] havia fundado em 1958.

Como era militar, enviaram-no para o acampamento Pino del Agua, na província de Oriente, para depois rumar ao Batalhão fronteiriço, em Guantánamo, que acabara de fundar-se. Foi o primeiro médico desse Batalhão aonde termina a pós-graduação, passando, em maio de 1962, para o Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia [INCA]. Conclui a cirurgia geral em 1964 (como militar) e transita para o Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay como especialista.

Em janeiro de 1966, durante a 1.ª Conferência Tricontinental, é lhe colocada a possibilidade de ir cumprir uma missão ao estrangeiro e que no seu caso seria a Guiné-Bissau, que aceita. Faz, então, parte do primeiro contingente de trinta elementos, entre médicos, artilheiros e motoristas-mecânicos, a chegar em missão de ajuda ao PAIGC.

Seguem-se mais alguns desenvolvimentos dessa missão,  revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger ao jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, 10 meses antes de morrer.


Entrevista com 22 questões [Parte 2 > da 8.ª à 12.ª]

“Testemunhos antes da morte” [Cap. XII, pp. 154-165]



[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte». As perguntas vão numeradas, em romano, opção nossa. Optámos também pelo itálico na transcrição da respostas do entrevistado. Os parêntes retos são nossos].

A entrevista ao médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizada pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital  Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras. Viria a falecer dez meses depois,  vítima de enfarte do miocárdio.


(viii) Após a chegada  para onde o destinaram?

Em Conacri estivemos pouco tempo. Uma vez reunimo-nos com Amílcar Cabral [1924-1973]. Do grupo de nove médicos, o dr [Pedro] Labarrere e eu [Virgílio Duverger] éramos os únicos especialistas, alguns eram internos e outros com muito pouco tempo de graduados.

[Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido), Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Foto anexa ao livro de H.L. Blanch (2005). Reproduzida com a devida vénia.]


Na capital da Guiné-Conacri já estavam os que tinham viajado de avião [em março de 1966]. Eu fui para Boké, uma localidade situada perto da fronteira com a Guiné-Bissau, aonde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC para a Frente Sul. Naquele tempo, na Guiné-Bissau existiam três frentes de guerra: Leste, Sul e Norte.

Para a Frente Norte, que teriam que passar pelo território do Senegal, vão três médicos: Pedro Labarrere, especialista em medicina interna; Domingo Diaz [Delgado], que tinha pouco tempo de graduado, com alguma experiência em cirurgia [o primeiro entrevistado deste projecto – P16224] e Teudi Ojeda [Suárez], com conhecimentos em ortopedia [Vd. foto acima].

Para a Frente Sul vão três cirurgiões: Rómulo Soler Vaillant, Luís Peraza [Cabrera] e o Bebo [Julio García Olivera], que era cirurgião em Santiago de Cuba.

Em Boké, ficou o Raúl Currás [Regalado], especialista em medicina interna, Jesús Pérez, que fazia ortopedia, e eu [Virgílio Duverger], que era especialista em cirurgia geral [, mais tarde irá especilizar-se em cirurgia cardiovascular]. 


Ali já se encontrava um médico [italo-]panamiano, de nome Hugo Spadafora [Franco] [1940-1985], que esteve connosco cerca de dois meses e depois não sei para onde foi.


[Segundo José Macedo (DFE21), Hugo Spadafora chegou a Conacri em 10 de fevereiro de 1966, seguindo para Boké, onde recentemente o PAIGC tinha aberto um hospital. (…) Spadafora saiu de Boké para as matas da Guiné-Bissau em julho de 1966, aí permanecendo durante nove meses. Regressou ao Panamá em maio de 1967 (comentário ao P9070)].


(ix) Passou todo o tempo em Boké?


Com cerca de três meses de estadia em Boké, o dr. Jesús Pérez teve uma icterícia violenta e regressou a Cuba. Ficámos ali só os dois: o Raúl Currás e eu [Virgílio Duverger].

Mais tarde [agosto de 1966?] mudaram-me para a Frente Leste, cujo objectivo principal, do ponto de vista militar, era o quartel de Madina do Boé [onde esteve instalada, entre maio de 1966 e abril de 1967, a CCAÇ 1416, comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro].

Fizemos um "hospitalito" [enfermaria de campanha] no interior da República da Guiné, perto da fronteira com a Guiné-Bissau, para apoiar os combatentes da Frente Leste, cujo chefe era o cmdt Domingos Ramos [nome de guerra “João Có”] do PAIGC .



(x) Em que consistia  esse hospital de campanha? 



Era muito rudimentar: umas palhotas de colmo com três ou quatro camitas. O médico tinha uma cubata independente, perto da enfermaria, com um rio [Corubal] a cem metros que era necessário para a higiene da instalação.

Depois vieram outros dois médicos cubanos de cirurgia, o dr.  [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] (faleceu em Cuba em 2003) e o dr. Ibrahim [Fernández] Rodriguez, que actualmente é [tenente-coronel, ] professor consultor de cirurgia do Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay [com vários artigos publicados na Revista Cubana de Medicina Militar]. 



Milton Echevarria chega ao nosso hospital de forma indirecta, porque saiude Cuba para cumprir a sua missão em Moçambique, mas por não existir um  coordenador naquele país, não pôde ficar, seguindo para integrar esta nossa missão [na Guiné-Bissau].

[O dr. Ibrahim Fernández Rodriguez fez parte da equipa de sete especialistas cubanos que trataram o presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013) durante a sua estadia em Cuba. Por esse motivo foram condecorados pelo Governo Venezuelano com a «Ordem dos Libertadores e Libertadoras da Venezuela de 1.ª Classe e Espada», conforme consta no Decreto 9419, publicado no Diário Oficial n.º 40130, a segunda mais importante do país. A primeira é a “lança” e a terceira é a ”flecha”].


(xi) Participou em acções de guerra? 


A missão militar mais importante em que participei foi num reconhecimento ao quartel de Madina [do Boé]. Em novembro de 1966, na companhia dos exploradores, o dr. [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] e eu [Virgílio Duverger] fizemos uma caminhada que durou perto de cinco horas até que chegámos ao local previsto. 

Regressámos, e em poucos dias preparou-se o ataque ao quartel, não para o conquistarmos, mas tão só para causar baixas e para dar conta que a guerrilha estava activa.


Guiné > Região de Boé > Madina do Boé > 1966 > Vista aérea do aquartelamento. Foto atribuída a Manuel Domingues, s/d, inserirda no poste P238 (**)



Antes do ataque, fizemos um posto avançado. Comigo ia um enfermeiro anestesista do Hospital Dr. Carlos J. Finlay [Havana] que se havia incorporado. Este enfermeiro estivera inicialmente em Boké [hospital de rectaguarda] na companhia do dr. Noronha, de um clínico de radiologia e de um clínico de laboratório.

Entrámos em território da Guiné-Bissau para estar mais perto do combate,  de modo a facilitar a assistência médica aos combatentes que ficassem feridos. Essa foi uma experiência repetida nas Frentes Norte e Sul do país, aonde as distâncias eram grandes e às vezes os feridos demoravam vários dias para chegar ao hospital.


A primeira morteirada lançada pelos portugueses [da guarnição de Madina do Boé, a CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos [foto ao lado com Amílcar Cabral – P16246]. Os estilhaços atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta,  não lhe tendo dado tempo para o levar até ao hospital, situado na fronteira, e para o poder operar. O posto sanitário avançado era só para prestar os primeiros socorros. Durante a evacuação a caminho do hospital, Domingos Ramos faleceu [em 10 de novembro de 1966].

Embora médico, eu ia armado pois em algum momento poderia ter de combater. Do lugar aonde estávamos ouvia-se perfeitamente o ruído das viaturas dos portugueses, assim como dos disparos de artilharia: obuses [, granadas de canhão s/r, não havia obuses] e morteiros. O posto médico estava a cerca de três quilómetros do combate.


[Este episódio é descrito pelo “internacionalista” cubano Ulises Estrada Lescaille,  Ulises, só com um "s", nome de guerra de Dâmaso José Lescaille Tabares (1934-2014), chegado à Guiné-Bissau na sequência do contacto que estabelecera com Amílcar Cabral durante a Primeira Conferência Tricontinental, realizada em Havana em janeiro de 1966, nos seguintes termos:

“Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [?, pois havia mais do que um] informou-me que havia falecido.

Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides [Maria] Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”].

[tradução de JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].


(xii) Esteve até ao fim da missão no Leste da Guiné ?


Não. Como aí estava já há um ano, em junho de 1967, o dr. Rómulo Soler Vaillant, que estava na Frente Sul com Bebo [Julio García Olivera] e Luís Peraza [Cabrera], adoeceu e enviam.-no para Madina do Boé, aonde o trabalho era menos intenso, e a mim transferem-me dali com destino ao Sul [Frente].

Nessa altura já aí se encontrava o comandante Victor Dreke [Moya] como chefe da Missão Militar Cubana, e também começámos a receber aprovisionamento logístico (viveres) de Cuba, que anteriormente não tínhamos. No hospital do Sul tínhamos um caçador nativo, que era combatente, e que assegurava a proteína dos feridos e do pessoal do hospital.

Quando substitui o dr. Rómulo [Soler Vaillant], sou nomeado chefe do Hospital Militar de Boké que, como disse, estava em território da Guiné-Conacri.
   
(Continua) (***)

 ____________

Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 12 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (888): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)

(**) Vd. poste de 25 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P238: Antologia (22): Madina do Boé, por Jorge Monteiro (CCAÇ 1416, 1965/67) (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16608: Notas de leitura (891): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)


Foto: © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Torres Vedras > Barro > O Fernando Andrade Sousa, ex- 1º cabo aux enf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), em véspera de ir passar umas férias à Tunísia, mais o Umaru Baldé, já doente, no Hospital do Barro, nas imediações de Torres Vedras, em agosto de 2000 (e não de 2007, como erradamente foi indicado no poste P16382) (*). Foi a última vez que o Fernando (com a esposa) esteve com ele.

O Hospital do Barro (, instalado num antigo convento do séc. XVI), hoje desativado, fazia parte do Centro Hospitalar Oeste - Unidade de Torres Vedras. O Fernando lembrar-se de ele, Umaru,  ter desaconselhado, ao casal,  a viagem à Tunísia. Durante 24 anos, de 1975 a 1999,  o Umaru Baldé andou em bolandas pela África subsariana e pelo norte de África,  tentando chegar a Portugal, o que só conseguiu em 15/4/1999.

Esteve internado no Hospital do Barro em 2000 e, ao que parece, terá voltado para lá para morrer (no final do ano de 2004, segundo informação do António Fernando Marques, que foi ao seu funeral;: está sepultado do cemitério do Lumiar em Lisboa, no talhão dos muçulmanos) (**).









1. Carta do Umaru Baldé, "ex-1º Cabo [da] Força Armada Porttuguesa", datada de 15 de novembro de 2000, de agradecimento a quem o apoiou no momento difícil da sua doença (**):

(i) "obrigado minha médica [do] HJMAJ, TV - Hospital [dr.] José Maria Antunes Júnior, de Torres Vedras, ou Hospital do Barro, hoje desativado (, pertencia ao Centro Hospitalar do Oeste), a pneumologista dra. Paula Raimundo;

(ii) os drs. Júlio e Félix,  do Hospital de Pulido Valente, Centro Hospitalar de Lisboa Norte,  Lisboa (onde o Umaru foi operado em 11/10/2000) [julgo tratar-se, respetivamente, do dr. Júlio Semedo, pneumologista,  coordenador da unidade de pneumologia de intervenção; e do dr. Francisco José Pimenta Félix, que dirige o serviço de Serviço de Cirurgia Torácica];

(iii)) antigos camaradas portugueses na Guiné, ex-alf mil Mário Pina Cabral (CART 11, 1969/70), ex-fur mil [António Fernando] Marques e ex-sold radiotelegrafista João Ramos [CCAÇ 12,  1969/71) (com quem trabalhou na Somague, durante 8 meses);

(iv) e ainda povo da freguesia  de Ventosa, Torres Vedras;

A carta,  escrita no dia em que teve alta do Hospital  Pulido Valente, termina com dois vivas;

"Viva Médicas e Médicos Portugueses";
"Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic).

O Umaru Baldé diz explicitamente que teve "10 meses" internado nos hospitais portugueses, entre o Hospital Curry Cabral (, especializado em doenças infetocontagiosas) e o Hospital do Barro. de retaguarda (onde funcionava um serviço de pneumologia). O Umaru Baldé não esconde a gravidade da sua doença: a dra. Paula Raimundo, do Centro Hospitalar Oeste,  tratou-o durante 9 meses da doença pulmonar de que sofria, já estava "curado" há 2 meses dos pulmões, quando surgiu outra "doença muito grave", tendo sido referenciado para o Hospital Pulido Valente.

Na carta o Umaru Baldé diz que, desde que chegou a Portugal, em 15/4/1999,  esteve 12 meses sem trabalhar, sem tendo sequer título de residência.

Mais diz que, ao ao fim no seu exílio de 24 anos (desde que saíra da sua terra natal. em finais de dezembro de 1974),  nunca tivera confiança em hospitais que não fossem portugueses...

Tratado em Portugal, acabou por sobreviver mais alguns anos: não sabemos exatamente a data da sua morte, mas pensávamos que teria ocorrido em finais de 2004 (e não em 2007/2008, como indicado erradamente em postes anteriores).

A última carta que o Valdemar Queiroz, seu instrutor no CIM de Contuboel em março-maio de 1969, recebeu dele, tem a data de 18 de abril de 2003, quando o Umaru estava a tentar arranjar dinheiro para a viagem de regresso à sua terra, cada vez mais doente, sem trabalho e sem esperança... Seriam também os seus antigos camaradas (da CART 11 e da CCAÇ 12) que se quotizaram para lhe pagar o bilhete de regresso a Portugal, possivelmente já em 2004.

Não temos a certeza se morreu no antigo Hospital do Barro onde, ironicamente, haveria de morrer, anos mais tarde,    Luís Cabral (1931-2009), também ele vítima de doença prolongada... O Umaru esteve no Hospital do Barro seguramente em 2000, falta confirmar se lá voltou depois do seu regresso da Guiné-Bissau (c. 2003/2004).

Não se encontraram, mas poderiam hipoteticamente ter-se encontrado (e essa seria uma ironia da História!), no "terminal da morte" que era então o Hospital de Barro, a "vítima" (Umaru Baldé) e o "carrasco" (Luís Cabral)...

Foi sob o regime de Luís Cabral que se assistiu à perseguição, prisão, tortura  e, em muitos casos, execução brutal, sumária, de antigos militares guineenses que integraram as nossas NT (incluindo milícias e polícia administrativa). Estes crimes, qualquer que seja a sua tipificação (crimes de guerra, crimes contra a humanidade, etc.) não podem prescrever... Pelo menos na nossa memória e no nosso blogue, não prescrevem... (LG)

_____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16382: Álbum fotográfico de Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, 1969/71) - Parte III: Lembrando, com saudade, o "puto" Umaru Baldé

 (**) Vd. postes anteriores:

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16530: (In)citações (101): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte III): E a propósito...o Umaru Baldé e o Luís Cabral que eu conheci... Eventualmente por uma diferença de alguns anos não se encontraram, no "terminal da morte" que era então o Hospital do Barro, em Torres Vedras, a vítima (Umaru Baldé, c. 1963-2005) e o carrasco (Luís Cabral, 1931-2009) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

27 de setembro 2016 > Guiné 63/74 - P16527: (In)citações (100): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte II): "Portugal, os portugueses e os políticos que querem esquecer os passados" (sic)... Ou a Pátria portuguesa que lhe foi madrasta...

26 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16525: (In)citações (99): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte I): "Filho único e menino, minha mãe chorou quando, em 12 de março de 1969, alferes me foi buscar a Dembataco para defender a pátria portuguesa"

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7248: Ser solidário (94): Tenho tanta pena do que acontece e louvo o trabalho da Catarina Furtado (Torcato Mendonça)

1. Mensagem do Torcato Mendonça (, foto à esquerda, Mansambo, 1968), com data de 7 do corrente:

Caro Carlos e Editores, se lerem...

Estou desiludido com o desenvolvimento ou retrocesso da Guiné.  Claro que tenho uma visão muito pequena do que efectivamente se passa.  Vi o Programa na RTP 1,  da Catarina Furtado (*). Já o ano passado tinha visto. No Gabu a situação parece ter melhorado, como em Mansoa. Depois em Bafatá a situação está mal.

A diferença com o que se passava há quarenta anos é para pior. Talvez isso se deva a ter poucos conhecimentos do que se passa. Não vejam, nesta tristeza sentida, uma defesa do colonialismo. Vocês sabem como eu penso. Até pode ser devido sequelas deixadas pelo colonialismo, pelo obscurantismo herdado, por uma religião maioritária retrógrada e uma cultura machista que não ajuda nada.

É pena. Tenho tanta pena pelo que acontece e louvo o trabalho da Catarina Furtado, dos que ela representa e dos Guineenses,  médicos, enfermeiros e auxiliares que tanto lutam, que voltaram para ajudar o seu Povo. Aquela Gente diz-me tanto.

Eu falo sempre do Povo das Tabancas. Este é o Povo de que eu gosto. Mas quem sou eu? Nada. Outrora até defendi como militar uma mentira. Era militar e cumpria e lutava para defender-me e aos meus camaradas, brancos e negros... E ajudávamos com comida, com ensino de práticas de higiene, com escolas rudimentares. Eu sei lá. Mas era um operacional e...tinha que ser assim. Acima de mim a farda que envergava.

Depois vocês, como eu sabem algumas "coisas" que se estão a passar. Há tempo atrás disse: dizer a verdade é preciso. É!....Acabar com tantas desigualdades é necessário? É!

Muito mais que se sabe!

Espero que vocês tenham visto o que eu vi e certamente sentiram o que eu senti....e sabendo que....palavras para quê? É um desabafo, palavras que partilho com vocês e não vos aborreço mais.

Por uma Guiné melhor (...sem ligação ao slogan do passado)

Abraços para vocês do Torcato

___________

Nota de L.G.:

(*)  Referência ao programa que estreou na RTP 1, domingo, dia 7, às 21h30, o terceiro documentário da série Dar Vida sem Morrer, apresentado por Catarina Furtado. Recorde-se que este trabalho resultou de um donativo de 500 mil euros oferecido pelos telespectadores da RTP (conseguido através do especial Dança Comigo), pela Cooperação Portuguesa e pelo Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA).  O documentário mostra os progressos feitos no hospital de Gabu. A modernização do  bloco operatório em Gabú contribuiu para baixar os índices de mortalidade materna e neonatal.

"Ainda há muito a fazer, mas esta é a prova de como o dinheiro doado está a ser bem gerido e aplicado. Dou a minha palavra de que as coisas acontecem", diz Catarina Furtado, ao Correio da Manhã

Este projecto levou a Cooperação Portuguesa a investir mais 450 mil euros em Bafatá, uma iniciativa mostrada neste documentário. Comparando a realidade dos nossos dois países, Catarina confessa que se emociona: "Faço um esforço gigantesco para não chorar frente à câmara e frente àquelas pessoas que não entenderiam sequer. Quem nunca teve nada não sabe, não compara". Ainda na RTP 1, terça-feira, dia 9, Catarina mostra o trabalho dos voluntários em Príncipes do Nada. Fonte: Adaptado de Correio da Manhã,  5 de Novembro, notícia de Teresa Oliveira. (Com a devida vénia...).

Excerto de notícia no Diário de Notícias, de 3 do corrente:

(...) "A Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, foi o palco da apresentação do documentário Dar Vida sem Morrer, que será exibido na RTP1 no domingo, às 21.30. Neste programa - que é o terceiro de quatro gravados na Guiné-Bissau -, Catarina Furtado assiste ao impacto que um bloco operatório, inaugurado há um ano, tem na redução do número de mortes de mulheres grávidas e recém-nascidos. "Baixámos de um total de 15% de mulheres que morriam devido a complicações no parto para 9,6%, o que, a meu ver, é uma vitória fruto de um conjunto de contactos e de esforços", salientou a embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas. "Temos de mostrar às pessoas para onde é que vai o dinheiro, porque há efectivamente fugas de donativos e projectos que não vão para a frente", acrescentou, referindo-se ao dinheiro doado pelos telespectadores para esta causa numa das emissões do programa Dança Comigo. (...)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4053: Blogoterapia (98): José Silva, um camarada com muita falta de sorte

1. Mensagem de um nosso camarada que não se assina, mas que julgamos tratar-se de José Silva, com data de 17 de Março de 2009:

Como todos vós fui mobilizado para a Guiné, 1971/73 - Aldeia Formosa, onde cumpri a minha comissão, mau grado os infortúnios que podiam advir no teatro de guerra. Poderei afirmar com toda a veemência que a corrente do destino, se é que há destino, se caudicou ao escolher uma vítima, que já o era antes de ter sido.

Após a recruta e encaminhado para a Especialidade de Transmissões de Infantaria (BCC5) Batalhão de Caçadores 5 em Campolide - Lisboa: foi já no IAO, com duas semanas de campo, se a memória não me falha, que fui acometido de doença súbita, no (Inverno do meu descontentemento), perdoem-me o plágio, que a meningite surge nua e crua, a um jovem militar envaidecido com a sua Especialidade e nas espectativas que na época se empolavam.

Transferido para o (HMDIC), em estado muito grave, foi através de algumas vontades altruístas que fui atendido por uma equipa médica, a quem muito devo e quem dera hoje em dia poder abraçá-los, pelo trabalho que tiveram para me curarem de tal maleita, como se dizia em meias idades e há uns séculos atrás. Pensei na altura e já a caminho de casa para uns dias de recuperação, que talvez essa grave doença inibice qualquer hipótese de mobilização, mas como já referi tal não aconteceu.

Ao afirmar dupla vitimização, incluo como é óbvio a ida para a Guiné, a poucos quilómetros de Conácri e num aquartelamento, que como Comando de Agrupamemto, era um alvo apetecível para o PAIGC, com sequentes ataques ao aquartelamento, que se dividiam ora com mísseis terra-ar e canhoadas ou com grupos suicídas, que se encostavam ao arame farpado com a costureirinha e roquetada prá frente, e isto meus amigos foi um caso muito sério, pois às vezes estávamos debaixo de fogo uma e hora e meia.

Hoje em dia, ataques de pânico depressão crónica e enfisema pulmonar: alguém é servido? Perdoem-me ser mordaz, mas a revolta continua.

Sei que em alguns hospitais há a consulta de Stress Pós-Traumático, mas também sei que a maioria nem um tiro deu e, sem vergonha apresentam-se como vítimas da guerra, tendo estado em locais onde as grandes farras e caçadas erm prato do dia. Espero que alguém ponha fim à farsa e que aos hospitais sejam exigidas políticas de atendimento, de forma a evitar os trapaçeiros. Aqui no Porto não há essa política de verdade, não por culpa dos hospitais, mas por políticas descabidas. Era bem preciso que se pusesse fim ao trapaceirismo que já existe por quem diz ter traumas, com o fito de obter relatórios favoráveis para as juntas médicas.

2. Comentário de CV

Aqui fica o desabafo deste nosso camarada que sofre na pele as mazelas deixadas pela sua estada na Guiné. Sabemos que há pessoas que se aproveitam das possibilidades dadas aos verdadeiros doentes para obterem de forma fraudulenta benesses a que não têm direito. Cabe às autoridades e aos técnicos de saúde separar o trio do joio.

Os que são mesmo doentes devem dirigir-se ao hospital mais próximo, Liga dos Combatentes ou Associação dos Deficientes das Forças Armadas e apresentar o seu problema, fazendo menção à qualidade de ex-combatentes da Guerra Colonial.

Olhando pela sua saúde e procurando ajuda, contribuem para o bem-estar do agregado familiar em que estão inseridos.

A todos os camaradas na situação deste nosso companheiro, José Silva (?), os nossos desejos de rápidas melhoras.
__________

Vd. último poste da série de 14 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4032: Blogoterapia (97): Pois.. Juvenal Amado, Assim não falamos na primeira pessoa (José Brás)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

Bilhete Postal > Guiné Portuguesa > 118 – Vista aérea de Bissau. Fotografia verdadeira – Reprodução proibida. Edição Foto Serra. C.P. 239 – Bissau… Impresso em Portugal. Sem data. Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (*). 

 Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


  1. Mensagem de Joana Beja Santos: Ao cuidado de Luís Graça: A pedido da minha mãe, Cristina Allen, remeto o texto "Em Bissau, controlado desespero", destinado à "Tabanca Grande", se achar oportuno. Cumprimentos, Joana Beja Santos 2. Os meus 53 dias brasa em Bissau (1) > Controlado desespero (I) por Cristina Allen (*) [Título da série e subtítulos a negrito no texto, da responsabilidade do editor L.G.]

Caro Luís Graça, seus co-editores, e ainda Torcato Mendonça e Hélder Sousa, Um agradecimento comovido pelos comentários que o meu texto suscitou (*). 

Que é isso, meus bravos? Uma mulher anónima diz: “Afinal, a nossa geração viu muitas coisas”. E Torcato Mendonça escreve um poema belíssimo (nunca ninguém se lembrou de me trazer à vida em poesia), o Luís Graça cita V. Briote em “As nossas mulheres (…)” e surgem, no Blogue, a fotografia da pequena catedral e mais uma fotografia minha, já olheirenta e profundamente angustiada, para além de mais um endereço de aerograma (**). 

Para os que coleccionarem informações soltas e, sobretudo, para os camaradas deste blogue que nasceram no Alto Alentejo e conheçam bem Évora, o arquitecto daquela igreja foi o alentejano José Pedro Cordovil, nascido no belíssimo palácio Cordovil (Rua da Mesquita n.º 7). Num imenso jantar de família, deu-me a sua direita e falou-me dessa obra de juventude, que não ficara muito a seu gosto… aos dezoito anos, nada me faria pensar que viria a casar ali. 

O mundo é redondo, dá muitas voltas, mas quer o acaso que, num ponto inimaginável do tempo, nos encontremos, fisicamente ou nos recônditos obscuros da memória, prontos a saltar em vivíssimos vislumbres. Como neste blogue. E também para os gulosos de azeitonas (grandes, verdes, retalhadas à mão!), que estiveram na Guiné e viram a Praça da Senhora da Candelária, em Bissau, aqui vai um errático e estimulante percurso – “Tigre de Missirá” – Cristina - Catedral – “azeitonas cordovil”. Espetem um palito, levem à boca este petisco e vereis o casal mais mal emparelhado que Bissau tão brevemente viu. E brindem aos vossos amores! Passados, presentes e… futuros. 

   Chegar a 15 de Abril, casar a 16...

Luís Graça, temos um problema (que não é seu). Ao fazer a citação de uma passagem que, creio, ser do segundo volume da obra do camarada Mário Beja Santos (distraído historiador) li: “A Cristina chegou a 18 de Abril (…). Durante os praticamente vinte dias que ela aqui viveu (…)”. 

Li e pasmei. É que eu não vivi só vinte dias em Bissau. Nem cheguei a 18 de Abril. Se estou certa, na tarde de 18 de Abril de 1970, estaria a assistir a um batuque em nossa honra, e recordo um incidente: nesse magnífico batuque, um dos dançarinos, com uma camisola às riscas verdes e brancas, atirou para o meu colo um grande trapo sujo e o Cherno atacou-o, fazendo-o desaparecer de imediato. 

 Quer mais provas? Reza assim a minha certidão de casamento, que tenho à frente: “Certifico que (…) às dezoito horas do dia dezasseis de Abril do ano de mil novecentos e setenta (…) perante mim, Padre José Afonso Lopes (…) compareceram os nubentes (…)”, etc. 

 Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura. 

 Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. 

No dia seguinte, e de acordo com o que fora anteriormente combinado, o meu marido vadio ingressaria na ala de Neuropsiquiatria do Hospital Militar. Durante dois dias, eu não poderia vê-lo, já que o David Payne iria tentar pô-lo a dormir. Discretamente, o David passou-me para as mãos um frasco hospitalar de “Vesparax” (quem não dormia era eu…). 

Dançando o tango com o Caco Baldé 

 Começaram as tardes das visitas. Havia um autocarro, sempre cheio de pessoas, cabritos e cobiçadas galinhas. Acabei por arranjar um táxi, cujo motorista, João Carlos, me levava e, pontualmente, me aguardava para o regresso. Tínhamos feito um trato – em Bissau quase tudo se negociava. Apressava-me, na saída, não fosse encontrar Spínola, que, diariamente, visitava os seus doentes. Atrasei-me três vezes e três vezes me aconteceu encontrá-lo à porta de armas (chamava-se assim?) do hospital. Andávamos, ao que parecia, cronometrados… 

 Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava. 

 Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… “Caco Baldé”! Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, Caco Baldé… 

 Mas este era apenas o primeiro acto desta farsa. O segundo, começava com a questão “Passas tu ou passo eu?”. No terceiro, resolvia eu recuar, só então ele passava e, perfeito cavalheiro, punha-se de lado e cumprimentava: “Muito boas tardes, minha senhora”. E eu respondia-lhe: “Muito boas tardes, Senhor Governador”. Afinal de contas, era fácil dançar o tango com Spínola. Dobrado contra singelo, diria que, em seus tempos, o teria dançado na perfeição, sem pisar os pés do par… 

Deixemos, por ora, o Mário na sua cama, entre dois outros perturbados, que, continuamente, discutiam… Quando, escassos anos volvidos, leria atentamente Portugal e o Futuro, fecharia o livro, e, olhos cerrados, para mim mesma o interpelava: “Então, meu Caco, só agora?!” Para todas as coisas há o seu tempo. Nos anos de brasa que decorreriam, e, mais ainda, nos outros que vieram, ele seria, talvez, uma das mais contraditórias e inquietantes personagens. Recordo, hoje, os quatro majores que, num gravíssimo erro de cálculo – ou num quase infantil erro de cálculo – ele enviou para o martírio e penso em tantos jovens anónimos que perderam suas desgraçadas vidas. Nos estropiados, nos cegos, nos perturbados, nas nossas lágrimas. E, todavia, ele, feito Marechal António de Spínola, será sempre, para mim, a mais trágica figura do braseiro que outros atearam, sem ele, com ele, ou em seu nome. Que Deus e a História sejam clementes para com este homem. 

Em paz, na nossa 'Tabanca Grande'...Inch’ Allah!, amigos. 

 E agora nós, Luís Graça e Camaradas da Guiné, se a nossa geração viu tantas coisas, certamente teremos mais para ver. Estamos prontos? Vejamos, então. Todos nós temos televisão e esse meio, quer queiramos, quer não, de todos nós faz cidadãos do mundo. 

O Inferno anda à solta em Gaza, em Jerusalém, nos túneis que se abrem no Egipto e, ao que consta, no Irão. O epicentro deste horror situa-se numa terra que foi berço dos três mais velhos credos monoteístas deste mundo, raízes das nossas crenças, nossas lendas, nossos hábitos, superstições, pequenos gestos. No nosso sangue correm, misturados, laivos do sangue dessa gente que se bate. Quem são, de que lado se batem esses “turras”? Os nossos “irmãozinhos”, diriam os muçulmanos, os nossos “irmãos”, dizem judeus e cristãos. 

Algures na Alemanha, o mais jovem dos meus primos (33 anos!), piloto da Nato, já fez Kosovo, Afeganistão, Iraque e está em “estado de prontidão”. Idade suficiente para ser um filho nosso. Lembrai-vos desse menino alentejano, que, aos comandos, vai ir para qualquer sítio, atravessando os ares carregados. Estamos em paz na nossa “Tabanca Grande”. E, acima de nós, escreveu Kant, “o céu estrelado (…)”. “Inch’ Allah!”, não só “talvez”; literalmente é “Queira Deus!” “Inch’ Allah!”, amigos. Cristina Allen 

 _____ 

Nota: esqueci-me de que deixei o meu ex-marido em “banho de maria” no hospital. Há mais, ainda mais para vos contar. Lisboa ainda está longe de Bissalanca. Nem vi, sequer, do alto, a quase poética brancura de Dakar.

____________ 

 Notas de L.G.: 



sábado, 8 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3426: Álbum fotográfico do Renato Monteiro (5): Bafatá, 1969: a igreja, o hospital, o mercado, as mulheres, o pilão

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > Foto 6 > "Acaso não tropeçasse nesta foto, diria nunca ter entrado numa das igrejas de Bafatá, num dia de Junho do ano de 1969".

Guine > Zona leste > Bafatá > 1969 > Foto 16 > "Camarata de uma instituição religiosa, em Bafatá. As bonecas por cima das camas podiam lembrar namoradas à espera"... [Renato: Não seria o hospital de Bafatá, que pertencia uma congregação religiosa ? LG]

Guiné > Zona leste > Bafatá > 1969 > Foto 17 > "Mercado de Bafatá. Os tomates e os limões eram pouco maiores que as nozes. Mas rivalizavam com o colorido das vestes das mulheres"

Guiné > Zona leste > Bafatá > 1969 > Foto 8 > "Uma vendedeira de peixe, com o filho ao colo, no mercado de Bafatá".

Guiné > Local desconhecido [ Contuboel, Piche, Xime, Bafatá ?]> 1969 > Foto 15 > "O batucar do pilão ouvia-se por toda a Guiné…ainda hoje o ouço!

Fotos (e legendas): © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados (*)

(Continuação da publicação do álbum fotográfico do Renato Monteiro (**), ex-Fur Mil da CART 2479, depois CART 11/CCAÇ 11, Contuboel e Piche, 1968/69, e da CART 2520, Xime, 1969) (***)

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

(**) Vd.postes anteriores desta série:

13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

16 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3210: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (2): O mítico cais do Xime (1969)

2 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3263: Álbum fotográfico do Renato Monteiro (3): Xime, o sítio do meu degredo

30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3382: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (4): Rio Udunduma, destacamento do Xime

(***) Vd. posts relacionados com a CART 2479 (que deu origem à CART 11 e depois CCAÇ 11) e o meu amigo Renato Monteiro, com quem privei, durante um mês e meio, em Contuboel (Junho/Julho de 1969):

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2412: História de vida (8): Renato Monteiro, um homem de múltiplos... fotografares (Luís Graça)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2955: PAIGC: Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XII Parte): Saúde (A. Marques Lopes)


Reprodução da primeira página da 1ª página do Blufo, Orgão dos Pioneiros do PAIGC, nº 3, Março de 1966, além de parte das páginas 2 e 4 (continuação dos artigos da 1ª página). Era feito a stencil. "Em Janeiro de 1966, a Escola-Piloto começou a publicar o Blufo, órgão dos pioneiros do PAIGC, assumindo-se como a voz da Juventude que se lançou corajosamente na luta de libertação nacional do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde. A colecção que agora disponibilizamos, digitalizada a partir dos originais cedidos por Luís Cabral, vai do n.º 1 (Janeiro de 1966) ao n.º 22 (Dezembro de 1970)" (FMS).

Neste número dá-se um destaque às mulheres que tiveram um papel importante, em sectores como saúde e a educação, bem como no apoio de rectaguarda à guerrilha. Um dos artigos é sobre "As mulheres do Komo" que "se recusaram a abandonar a ilha quando, num momento de grande perigo, foi dada ordem, para se retirarem os velhos, as crianças e as mulheres. Pegando em armas, ao lado dos homens, elas lutaram com bravura pela defesa da ilha. Tudo isto se passou em Março de 1964. Desde então os colonialistas portugueses nunca mais tentaram pôr os pés na ilha do Komo" (...). É óbvia aqui a função ideológica da narrativa sobre a Batalha do Como que se tornou num dos mitos ou lendas do PAIGC. As mensagens eram simples mas eficazes, do ponto de vista comunicacional.

O outro artigo, um editorial, tem como título "Glória às mulheres das nossas terras"... Comemorava-se então o dis 8 de Março de 1966, dia das mulheres. "Também na nossa terra, na vida nova que vamos construir depois da saída dos portugueses, vamos festejar o dia das mulheres com muita alegria (...). As mulheres conquistaram também um lugar ao lado dos homens nba luta pela nossa liberdade e independência. Elas fazem a comida para os guerrilheiros, tratam dos combatentes feridos e doentes. As raparigas estudam nas Escolas do Partido ou nos países estrangeiros para participarem amanhã na construção da nossa Pátria livre dos colonialistas portugueses" (...).

Fonte: © Fundação Mário Soares > Dossier Amílcar Cabral (2008) (com a devida vénia...)







1. Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, em 19 de Setembro de 2007, pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, e a quem mais uma vez agradecemos publicamente :

PAIGC - Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (Parte XI) >


Logística: (e) SAÚDE

(1) O Desenvolvimento do Serviço de Saúde no PAIGC

Vencendo inúmeras dificuldades, resultantes muito especialmente da falta de quadros logo após a eclosão da luta armada, o PAIGC começou a instalar pouco a pouco em diversos pontos das Regiões Libertadas alguns postos de saúde, onde colocou os poucos enfermeiros que o Partido à data dispunha. Sendo este número, porém, insuficiente, e segundo directivas da Direcção do Partido, estes enfermeiros procuravam dar a outros elementos recrutados nas escolas na Milícia Popular uma preparação mínima que lhes permitisse auxiliá-los no seu trabalho.

Foram assim iniciados no serviço de enfermagem muitos elementos que, muito embora carecendo de preparação teórica, foram solucionando o problema até à formação e Escolas de Enfermagem no interior, entre as quais se destaca a Escola de Ajudantes de Enfermagem do Morés.

Entretanto, e dada a insuficiência a que estas escolas ainda conduzem, o Partido, no sentido da formação do pessoal qualificado necessário a uma funcionamento mais eficaz dos centros de saúde, tem enviado para o estrangeiro muitos jovens que aí seguem estudos práticos de enfermagem e medicina, de modo a poder dispor, a curto prazo, de um número sempre crescente de pessoal capaz, o que irá permitir uma progressiva melhoria da actividade do Partido no domínio da saúde.

(2) O auxílio estrangeiro

Como já se referiu, o auxílio estrangeiro ao PAIGC no domínio da saúde reveste-se de uma importância muito grande, dado que é através do fornecimento de bolsas de estudo para a frequência de cursos médicos e de enfermagem que o PAIGC obtém elementos qualificados de cuja carência tanto se ressente. Assim, numerosos bolseiros do PAIGC cursam Medicina na Rússia e na Bulgária, enfermagem na Bulgária e Cuba e Profilaxia e Higiene Social na Checoslováquia.

Não termina, porém, aqui o auxílio estrangeiro ao Partido, pelo que se caracteriza também na cedência de pessoal médico, pelo que vamos encontrar médicos cubanos, jugoslavos, russos e holandeses nos principais estabelecimentos hospitalares. Este auxílio é completado com o fornecimento gratuito de medicamentos e material sanitário por parte de Cuba e dos países do Leste da Europa, revestindo-se também de particular importância a contribuição dada por particulares da Europa Ocidental, nomeadamente a Fundação Mondlane, com sede em Haia, e a Suécia.


(3) Como é prestada a assistência sanitária


A assistência sanitária aos combatentes e populações sob o controle IN é realizada através de "enfermarias" e "hospitais" existentes no interior do TO, formações sanitárias muito rudimentares, quase nunca dispondo de médico.

Os indisponíveis que denunciam casos graves, são transportados em macas improvisadas desde essas "enfermarias" ou "hospitais" para as bases fronteiriças, onde normalmente o PAIGC dispõe de instalações mais apetrechadas, e daqui, em automacas ou viaturas de transporte, senão mesmo em meios aéreos, para os hospitais de Conakry, Ziguinchor, Koundara ou Boké.

No capítulo da assistência sanitária, mormente nos "hospitais" e "enfermarias" do interior, além da falta de pessoal qualificado surge ainda toda uma série de condicionamentos, nomeadamente o reabastecimento irrregular dos medicamentos, a conservação do sangue para transfusões e o transporte e feridos graves para o exterior, que muito afectam o funcionamento normal do serviço.


(4) Orgnização dos serviços de saúde (civil militar) do PAIGC

Tanto quanto os elementos disponíveis o permitem, julga-se que estes centros sanitários ("hospitais" e "enfermarias") se dividem em dois ramos, o civil e o militar, dependentes de entidades distintas.

No meio civil, ainda em estado incipiente de organização, compreenderá "enfermarias" ou mesmo "hospitais" existentes nas "áreas libertadas", os quais se destinam a prestar assistência às populações controladas pelo IN. Estas "enfermarias" são accionadas nos escalões administrativos a que correspondem pelos responsáveis da Saúde dos respectivos Comités e destacam, com o fim de efectuarem uma cobertura eficaz das respectivas zonas, brigadas sanitárias que percorrem as tabancas que não dispõem de serviço de saúde próprio.

Julga-se que a saúde civil esteja dependente, a nível superior, da Direcção para os Assuntos Sociais do Departamento para os Assuntos Sociais e Cultura.

No ramo militar, o serviço de saúde encontra-se já num grau de desenvolvimento diferente, dispondo de estabelecimentos hospitalares, no exterior [Guiné-Conacri e Sewnegal], de apreciáveis recursos.

Julga-se que no topo de toda a organização sanitária militar se encontra o Serviço de Saúde do Departamento da Defesa, o qual acciona três Secções Sanitárias (Ziguinchor, Koundara e Boké) que abrangem todo o TO e zonas fronteiriças dos países limítrofes. Estas Secções Sanitárias corresponderam às três Frentes (norte, Leste e Sul) em que o IN dividia o TO até à reorganização levada a efeito durante o ano de 1970, mas mantendo actualidade mesmo depois desta reorganização.

Cada Secção dispõe de um Hospital Central, dela dependendo os “"hospitais" e "enfermarias" correspondentes aos Sectores e Frentes. As unidades, por sua vez, dispõem também de enfermeiros responsáveis pela assistência sanitária imediata aos guerrilheiros.


(5) Referências a alguns estabelecimentos hospitalares:

HOSPITAL DE BOKÉ

Inaugurado em Dezembro de 1965 como Dispensário Sanitário do Partido, logo no princípio do ano seguinte passou a ser designado por Hospital Militar de Boké, sendo destinado ao tratamento dos feridos de guerra, especialmente dos combatentes da Inter-Região Sul cujo estado justificasse evacuação dos “hospitais” do interior.

Compõe-se de uma grande enfermaria dividida em duas secções (homens e mulheres), uma sala de operações com quarto anexo para tratamento pré e poó-operatório, uma sala de consultas e tratamentos, uma secção de radiologia e uma farmácia. O hospital, que dispõe de todo o equipamento necessário, está apetrechado com moderno material cirúrgico e de Raio X.

A capacidade actual [1971] será de 100 camas, tendo sido equipado também, em local afastado do corpo principal do hospital, com um centro de reabilitação para diminuídos físicos e uma maternidade. Do corpo médico em serviço neste hospital farão parte, além de médicos caboverdeanos, outros de nacionalidade jugoslava, russa e cubana.

HOSPITAL DE KOUNDARA

Este hospital que dispunha de uma capacidade para 60 camas, terá sofrido, partir de Abril de 1970, significativos melhoramentos, nomeadamente alargamento das instalações, aparelho de Raio X, motor gerador de energia eléctrica e cisterna de capacidade para 5.000 litros.

Os melhoramentos introduzidos destinam-se a um melhor apoio a toda a Inter-Região Norte, evitando evacuações para Boké que, por demoradas, dada a distância e as possibilidades dos meios de transporte, poderiam fazer perigar a vida dos doentes.

As possibilidades deste hospital são já vastas, realizando intervenções cirúrgicas de certo melindre.

Para este hospital são evacuados os feridos e doentes de toda a Inter-Região Norte, mesmo os das regiões mais afastadas, desde que os seus casos não sejam resolúveis localmente.

No corpo clínico deste hospital estão referenciados médicos cubanos, um caboverdeano e, até há pouco tempo, um médico norte-vietnamita.


HOSPITAL DE ZIGUINCHOR

Foi, até à altura em que foi beneficiado o Hospital de Koundara, o hospital mais importante para apoio das antigas Frente Norte e Frente Leste.

Dispõe de 60 camas, sendo no entanto as suas possibilidades muito limitadas, supondo-se até que se servirá do hospital senegalês, para casos graves de extrema urgência. Ultimamente, parece que teria sido transformado em hospital crúrgico, mas não se possuem elementos que o confirmem.

Do corpo médico deste hospital faz parte uma médica holandesa (**).

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 15 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

(**) Curiosamente a nossa inteligência militar não devia andar bem articulada com a PIDE/DGS, porque neste Subintrep não se faz menção do português, natural de Angola, o Dr. Mário Pádua, médico, que desertou das fileiras do nosso exército, Angola, e dedicou parte da sua vida, como médico e como militante, ao PAIGC, no Hospital de Ziguinchor, Senegal. Seguramente que o Mario Pádua tinha ficha na PIDE/DGS. Chegou a ser o único médico do PAIGC (até 1966, ano da chegada dos primeiros voluntários cubanos), e inclusive tratou prisioneiros portugueses, nomeadamente o Soldado Fragata,
CART 1690 (Geba, 1967/69), a que pertenceu o nosso A. Marques Lopes. Vd. o seu depoimento no filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, 2007.

Vd. também poste de 28 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)


(...) Mas morreu também nesta operação o soldado Vito da Silva Gonçalves, que foi dado como "morto em combate", porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista! E porque é que não foi dado como "desaparecido em campanha" o soldado Metropolitano Fragata, o Manuel Fragata Francisco, que também ficou nesta operação?

É uma história das teias que o império tecia. Eu conto: ele foi crivado com uma roquetada nessa operação, mas vivo, e os guerrilheiros do PAIGC levaram-no numa maca, atravessando a mata do Oio, o rio Mansoa e o rio Cacheu, até ao hospital que servia o PAIGC em Ziguinchor, no Senegal, onde, coincidência, foi tratado pelo doutor Pádua (actualmente no Hospital Pulido Valente, em Lisboa), que se tinha passado para o outro lado. A PIDE sabia disso, claro. Parece lógico que se pense que teriam feito o mesmo com o alferes Fernandes se ele tivesse ficado vivo. Mas foi muito claro que estava morto (...).