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terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25265: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte I: texto da intervenção do Nuno Rogeiro

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > A sessão foi presidida  pelo presidente da Associação de Comandos, Dr. José Lobo do Amaral.

A apresentação do livro do Amadu Djaló (o segundo da mesa, a contar da esquerda para a direita), esteve a  cargo de três oradores: o cor 'cmd' ref Raul Folques  (o último comandante do Batalhão de Comandos da Guiné), o cor inf ref e escritor Manuel Bernardo (o último da ponta, do lado direito) e ainda o jornalista e analista político Nuno Rogeiro (o primeiro da ponta, do lado esquerdo).  Vamos relembrá-las aqui, às três intervenções, começando pela do Nuno Rogeiro.

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >Sessão de  lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). > A brilhante intervenção do Nuno Rogeiro, que se reproduz a seguir.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Aspecto geral da assistência, que encheu a ala central das famosas caves manuelinas... Na primeira fila, do lado direito, reconhecemos a dra. Maria Irene, esposa do Virgínio Briote bem como o comandante Alpoím Calvão, além do representante do Chefe do Estado-Maior do Exército. A meio, na outra ala, a filha e o neto do Amadu Djaló.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa,  2010). O Autor, Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, e o presidente da Associação de Comandos, Dr.  José Lobo do Amaral... Nas suas palavras de abertura, este último  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido possível esta edição"... 

No final, também nos  agradeceu a divulgação do evento,  dada pelo nosso blogue,  e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem como  pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


 

Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 



O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


1. Foi um dia grande para o nosso Amadu Djaló, o da apresentação do seu livro, no Museu Militar, em Lisboa, no 15 de Abril de 2010. Mas também para o seu amigo, camarada e editor literário, Virgínio Briote.

Vamos recordar os melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou nada mais nada menos do que cinco postes. 

O livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.)  foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos).

Vamos relembrar aqui as intervenções dos três oradores (Nuno Rogeiro, Raul Folques, Manuel Bernardes), começando pela do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeir0 que consideramos a mais original e estimulante nota de leitura do livro, do autor e da sua história de vida.


NO FIM DAS GUERRAS

por Nuno Rogeiro


A guerra e as suas entranhas, em terras próximas ou estranhas, sempre fascinaram, revoltaram e mobilizaram o homem.

Anarquistas e conservadores, aristocratas e operários, fascistas e antifascistas, descamisados e oficiais de monóculo, sobreviventes das trincheiras e gaseados, soldados de assalto e feridos de morte, poetas e prosadores, pintores e pensadores, muitos investiram as mais nobres energias na reflexão sobre o campo de batalha.

Este pode ser visto como uma simples planície da técnica, da era da espada ou da era de Urânio. Ou ser antes olhado, de forma que se diria “existencialista”, como um vale de lágrimas e revelações, onde se morre e se nasce, mas sobretudo onde habitam homens e mulheres comuns. E onde residem, soberbas ou incógnitas, evidentes ou traiçoeiras, contínuas ou explosivas, a violência e a morte.

Tivemos grandes obras sobre este continente trágico, onde vemos já não como um espelho baço, mas face a face. Como “As Tempestades Aço” de Jünger, como “O Fogo”, de Henri Barbusse, como E.E. Cummings em “O Enorme Quarto”, ou o “Entre Parêntesis” de David Jones, como o “Ronge Maille Vainqueur”, de Lucien Descaves, qualquer livro sobre guerra perturba, alerta, impede a normalidade. E pode despertar, para lá do desespero, a esperança.

É o caso do livro que nos traz aqui. Relato de guerra, seco e sem adornos desnecessários, este volume de Amadu Djaló, escrito em português escorreito e de lei, é tanto uma história de morte como de vida. De tempo de matar e de proteger. De tempo de golpes de mão, executados com precisão e destemor, e de lágrimas por uma criança perdida, em Darsalame Baio, na margem, literalmente na margem: à beira do rio Burontoni, à beira de sentença salomónica.

Relato de vida militar, da obediência perinde ac cadaver, também é uma fiel e lúcida exposição das dúvidas dos combatentes, quando confrontados já não com a obediência, a lealdade e a técnica, mas com os juízos políticos, a diplomacia e as relações internacionais.

Este clima de homens divididos encontra-se na breve descrição do prelúdio à operação “Mar Verde”: resgatar companheiros presos fazia parte da missão, mas o que dizer de levar a cabo um acto de guerra em território estrangeiro?

Estaríamos perante uma violação da soberania alheia, mesmo se de estado hostil, ou antes diante de uma espécie de auto-defesa legítima? Seria “regime change”, ou contra-ataque a quem nos agredia, ou oferecia bases a quem nos ofendesse?

“Obedientes como cadáveres”, como diria Inácio de Loyola. Mas pode um cadáver reflectir, se a alma, prestes a partir, ainda o habitar?

Relato de guerra, este volume, o primeiro de memória, é antes de mais um admirável retrato, de história oral e testemunhos vivos, sobre a humanidade, os seus encontros e desencontros, amores e desamores.

É a história dos condutores sem carta, dos oficiais à estalada em frente de soldados envergonhados, dos civis ambulantes que levavam o cinema às tabancas, de um ataque de abelhas que abatem um homem rijo, de romances ao luar, de misérias na estrada. Um relato de delicadeza e pudor.

Pudor na descrição do que hoje diríamos violência sexual, violência racial, violência animal. O autor, homem bom e reservado, é também bom e reservado, na visualização da desumanidade: o oficial que diz que “preto é como a tartaruga” não é “racista”, mas apenas “um branco mau”.

Este é também um livro sobre o terrível abandono, sobre a inutilidade, sobre o esquecimento. Sobre o absurdo.

Cito, talvez imprecisamente e sem consultar o original, um poema de um dos nossos grandes vates, António Manuel Couto Viana:

“A minha Pátria alçou o braço
Pátria pacífica e pequena
Baixou-o logo de cansaço
Foi Pena

“Cedo arrasou a altiva torre
Que ergueram todos
De mãos dadas
Agora sei como se morre
Por nada”


Esta obra, relato de guerra e do pós-guerra, relato da paz e da pós-paz, é também o mapa deste desencanto, dos combates declarados inúteis, dos combatentes declarados redundantes, dos feridos declarados descartáveis, dos órfãos e viúvas declarados dispensáveis, dos mortos declarados inexistentes, por regulamento ou decreto.

Mas é também uma história, se bem que só esboçada, de reconciliações e de abraços. Abraços e reconciliações às vezes traídos.

O autor encontra-se, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com o cabo-verdiano Antero Alfama, quadro do vencedor político, o PAIGC. Os compromissos feitos pelo último são de transição generosa, de integração de todos os guineenses, sem vinganças ou retaliações, sem tribunais especiais ou valas comuns, sem julgamentos secretos e tiros na nuca, sem o “N’kré vivé”, o processo de choques eléctricos, sem asfixia colectiva, em antigos depósitos de munições. Promessas rasgadas pelo processo “revolucionário” em curso em Bissau, mas sobretudo pela iluminação sanguinolenta de algumas vanguardas.

Não vale hoje a pena, se calhar, chorar mais sobre as vidas derramadas, nesse intervalo onde Portugal, independentemente de credos, doutrinas, regimes e pessoas, não fez tudo o que devia, para proteger os que combateram em seu nome.

Não valerá a pena chorar mais sobre o “incidente”, que levou à execução de centenas de comandos, milicianos, civis, em Farim, Cumeré, Portogole, Mansabá, a partir de 1974.

Não valerá mais a pena chorar sobre a aplicação do artigo 86 da Lei de Justiça Militar do novo partido no poder. Não valerá mais a pena chorar sobre aqueles que preferiram ficar na Guiné, a sua terra, em vez de fugir ou de pedir colocação nas instâncias burocráticas de Lisboa.

Não valerá mais a pena chorar por aqueles que aguardavam por oportunidades para continuar a servir a Guiné, ou para serem julgados por crimes de guerra, com todas as garantias e recurso à verdade.

Não valerá mais a pena chorar por este processo. Mas será uma vergonha não o lembrar. Será uma vergonha ter vergonha de o lembrar.

Este livro é também, na tradição dos grandes relatos de combatentes, de tropas de escol ou de guerrilhas, de milícias ou de regimentos fardados a rigor, de irregulares ou de exércitos convencionais, este é também um relato sobre sonhos e premonições, sobre lendas e o outro mundo, sobre conchas mágicas e aparições.

É o caso de João Bacar Jaló, que fecha os olhos, e sabe o que vai acontecer nesse dia.

Nessa zona da mente onde desembarcamos do sono para o sonho, fazem-se também episódios onde imaginamos a morte, às tantas de tal, sem falta.

E lá está ela, pontual no encontro, no fim da picada. Ela, a velha ceifeira, que vem buscar os últimos guerreiros.

É também este um relato sobre acções militares das forças especiais, numa guerra que hoje se chamaria “de baixa intensidade”, mas que teve picos próximos de confrontos convencionais, com emprego de todos os meios, da aviação à artilharia, dos meios navais ribeirinhos à ofensiva em linha contra quartéis e bases.

É, no plano técnico, um bom relato, se bem que parcial e provisório, de incidentes localizados do “nevoeiro da guerra”, com descrições exactas de tácticas e princípios, doutrinas de contra-insurreição e aquilo que a prática, e as lições aprendidas, fazem aos manuais.

É a história da missão, talvez impossível, de ganhar corações e espíritos, num conflito subversivo, às vezes de armas combinadas, com os Harvard e os Alouette a zunir sobre as cabeças dos infantes, às vezes continuação de acções de polícia, de missões de assuntos civis, de operações psicológicas.

Às vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, com “vítimas colaterais”, de um lado e de outro. Como diz o autor, no confronto verbal com o comandante guerrilheiro Pedro Nazi, logo a seguir ao cessar-fogo: “Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos, nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido” (p.205).

Neste sentido, o livro cumpre também o preenchimento da lacuna sobre relatos pessoais, ou de grupo, sobre pormenores operacionais na África Lusófona, do ponto de vista das forças armadas portuguesas e do seu inimigo.

Essa lacuna, que se foi preenchendo, nas últimas décadas, com documentos e relatórios de estado-maior, com romances de base realista, com fragmentos e com monografias, tem ainda muito poucas contribuições dos militares africanos, de um e de outro lado da barricada.

Não seria impensada a criação de uma instituição, no seio da parte da CPLP que directamente viveu as guerras africanas, que pudesse, mais activamente, colmatar a brecha.

Oio, Canjambari, Cunacó, Antuane, Cameconde, Bedanda…Nestas páginas pode-se também deambular pela Guiné desconhecida, uma terra onde as famílias, as raízes, os clãs e os laços ultrapassam fronteiras, e se espraiam para além dos estados definidos pelas regras das administrações europeias, ou dos orgulhos nacionais pós-europeus.

Este é assim, ainda, num tempo que preza os relatos de viagem e as descobertas das partidas do mundo, uma espécie de introdução à Guiné, à querida Guiné de todos os portugueses, tenham ou não deixado o seu melhor naquela terra.

À querida Guiné que – penso poder falar em nome de todos os presentes – continuamos a querer soberana, desenvolvida, feliz e capaz de repartir riqueza pelos seus filhos.

À querida Guiné que, acima de golpes de estado e revoluções, pronunciamentos e discursos com má pronúncia, sublevações e homicídios, narcotráfico e cleptocracia, ameaças estrangeiras e cancros internos, tem suficientes filhos, talentos e energias para erguer um futuro diferente. Um futuro melhor.

Porque este é também um livro para o futuro. Uma espécie de filho do autor, e dos que o ajudaram ao parto intelectual. Um manifesto que lembra, como no desfiladeiro das Termópilas:

“Estrangeiro, vai dizer a Atenas
Que morremos aqui para cumprir a sua Lei”.


Mas que, para além dessa lápide de sacrifício, afirma ainda, de forma límpida, o principio do amor entre os homens. Da possibilidade de recomeçar, mesmo na mais negra das noites. Da disposição firme de dar a mão a antigos inimigos, de erguer torres em conjunto, de obter a absolvição, e de absolver. Ou, como fizeram os bispos polacos, em 18 de Novembro de 1965, duas décadas apenas depois da grande carnificina, na carta pastoral aos irmãos alemães:

“Vimos perdoar, mas sobretudo pedir para ser perdoados”.

No fim das guerras, na lembrança interior, no armistício sem amnésia, na paz dos bravos, na reparação dos males, na humildade de reconhecer o que se fez, o que se sofreu, o que se poderia ter feito, na disponibilidade para afirmar os seus valores e reconhecer os dos outros, desta forma se fazem os futuros pactos de não agressão, os irmãos e os aliados.

E assim se alcança, talvez por milagre, a eternidade.

(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao nosso coeditor Virgínio Briote, que nos facultou o texto.)
___________

Nota do editor:

segunda-feira, 11 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25263: Notas de leitura (1675): Capitães/MFA – A conspiração na Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
O tema está longe de ser novo, já foi pelo menos abordado o longo depoimento de Carlos Matos Gomes e Jorge Golias, aqui reproduzidos
.[1]
O Coronel Duran Clemente elenca as sucessivas etapas da constituição do núcleo dinamizador e como ele evoluiu até agregar as unidades fundamentais sediadas em Bissau, dos três ramos das Forças Armadas. Não se reproduzem aqui os textos de Moisés Cayetano Rosado sobre Salgueiro Maia pois igualmente já se fez recensão do livro que o investigador dedicou ao capitão de abril; as considerações de Mário Moitinho Pádua sobre o colonialismo português também já apareceram numa recensão dedicada ao seu livro.

Um abraço do
Mário



Capitães/MFA – A conspiração na Guiné

Mário Beja Santos

O boletim n.º 86 deste ano da revista “O Pelourinho”, da Deputação de Badajoz é dedicada ao estudo de conflitos coloniais. O seu diretor, Moisés Cayetano Rosado convidou vários intervenientes portugueses, como Duran Clemente, Mário Moutinho Pádua ou Luís Farinha, além de ele próprio ter dedicado um texto à consciencialização do Capitão Salgueiro Maia, a quem dedicou um trabalho que já está traduzido em português.

Duran Clemente, hoje Coronel reformado, tece uma apreciação sobre a conspiração na Guiné que acaba por completar e confirmar depoimentos de Carlos de Matos Gomes e Jorge Sales Golias, aqui já apresentados no blogue.

Tudo terá começado com a reação e repúdio dos oficiais do quadro permanente ao Congresso dos Combatentes do Ultramar. Escreve textualmente o autor:
“Almeida Bruno, Dias de Lima, Manuel Monge, Otelo Saraiva de Carvalho e outros, puseram ocorrente o general Spínola do descontentamento que apoderou dos oficiais em geral. Tratava-se de um congresso que mais não era do que uma encenação do governo com aproveitamento de antigos oficiais milicianos. Este descontentamento chegou a Lisboa, chegou também a Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e a Vasco Lourenço, que encabeçavam na metrópole um vasto movimento de protesto. 400 assinaturas de oficiais do quadro permanente assinaram em Bissau”.
Enviou-se mesmo um telegrama para o Porto a partir de Bissau em que os subscritores diziam taxativamente que se consideravam totalmente alheios às conclusões do congresso. Duran Clemente chegara a Bissau a 28 de julho de 1973. Começaram as reuniões no Agrupamento de Transmissões, presentes Jorge Golias, Duran Clemente, Matos Gomes, Jorge Alves, José Manuel Barroso, este capitão miliciano. Debruçaram-se sobre um documento que Duran Clemente tinha feito à hierarquia militar e distribuído no Congresso de Oposição Democrática em Aveiro. Com consentimento dos presentes criou-se um núcleo dinamizador, assumiu-se como prioridade editar um documento destinado a todos os oficiais, no sentido de os sensibilizar para o que se estava a passar. É nesta fase em que se procura endereços de todos os oficiais em serviço na metrópole ou nas colónias que é publicado o Decreto-Lei n.º 353/73, que facultava a entrada de oficiais do Quadro Especial de Oficiais no quadro permanente através de curso intensivo na Academia Militar.

Iniciava-se uma fase de grande protesto, fora um tremor de terra que pôs este núcleo em ação e os oficiais começaram a reunir na sala de jogos do Clube Militar, efetuaram-se 4 reuniões no espaço de 8 dias, 3 delas no Agrupamento de Transmissões. Elaborou-se uma carta protesto assinada por 46 capitães a que se juntaram ainda as de 4 subalternos. Na metrópole, começara a haver reuniões de capitães; em setembro, foi eleita a 1.ª Comissão Coordenadora do Movimento de Capitães da Guiné. Houve informação da reunião de Évora, que se realizou em 9 de setembro, onde se encontraram mais de 130 oficiais do quadro permanente. Em Bissau entendeu-se dar conhecimento ao Comandante Militar da existência de reuniões. O Brigadeiro Alberto Banazol deu a devida autorização para se reunirem na Biblioteca do Quartel General. Banazol mostrou-se cordial e convidou-os para um jantar volante em sua casa, jantar que teve um final conturbado por ter havido intervenções acaloradas, chamava-se à atenção dos altos comandos que se estava a deixar resvalar para um caso semelhante ao da Índia. O oficial general mostrou-se evasivo e acabou por ser vítima de si próprio, em 25 de abril não quis mostrar que estava do lado dos capitães e até do seu irmão, o Tenente-Coronel Luís Ataíde Banazol.

Entrara-se numa atmosfera conspirativa, procurava-se angariar o maior número possível de adeptos. A Marinha aderiu em força, a Força Aérea destacou sempre em Jorge Alves e Faria Paulino e depois Sobral Bastos e o paraquedista Albano Pinela. No mês de outubro, Duran Clemente efetuou uma reunião com 14 oficiais pilotos-aviadores do quadro permanente, acompanhado de Faria Paulino. Constituiu-se igualmente o Movimento de Oficiais Milicianos, os seus principais mentores eram os alferes Barros Moura e Celso Cruzeiro, e o Capitão Miliciano José Manuel Barroso. Há a reunião de Óbidos em 24 de novembro de 1973, punham-se 3 hipóteses, a conquista do poder para uma Junta Militar criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional, dar oportunidade ao governo de legitimar perante a nação perante eleições livres precedidas de um referendo sobre a política ultramarina, utilizar reivindicações exclusivamente militares como forma de alcançar o prestígio do exército e depressão sobre o governo.

E escreve Duran Clemente:
“A decisão de que na Guiné também optaríamos pela tomada do poder pelas armas já estava tomada há muito; daríamos, no entanto, a possibilidade à hierarquia militar para se pronunciar. Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa. No caso de insucesso das operações pelo Movimento em Portugal a nossa estratégia era a tomada do poder na mesma. Para isso, tínhamos de ter o completo domínio do comando em todos os setores e ramos das nossas Forças Armadas, instaladas no teatro de operações da Guiné. Iriamos ter.”
Houve alguns momentos de aflição, houve que travar a ansiedade do Tenente-Coronel Banazol que queria tomar o poder ocupando o Palácio do Governo.

E assim se chegou ao 25 de Abril. Tanto o Comandante-Chefe como o Comandante-Militar não aderiram ao Movimento. A Companhia de Polícia Militar tomou pacificamente as instalações do Comando-Chefe, Bettencourt Rodrigues seguiu uns dias depois por avião para Lisboa. O MFA colocou o Almirante Almeida Brandão como Comandante-Chefe interino e o Major Mateus da Silva como representante da Junta de Salvação Nacional, até 7 de maio, data em que chegou o Tenente-Coronel Carlos Fabião graduado em Brigadeiro, vinha ocupar as funções de Governador da colónia.

O depoimento de Duran Clemente traz um anexo com a síntese das reuniões havidas em agosto de 1973.

Manuel Duran Clemente
____________

Notas do editor:

[1] - Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12751: Notas de leitura (566): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 4 de 4 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 9 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25254: Notas de leitura (1674): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15) (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25254: Notas de leitura (1674): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2024:

Queridos amigos,
A narrativa dos autores dirige-se agora para a problemática de possíveis intrusões aéreas a partir de países hostis; dá-se uma relação de situações de intrusão de aeronaves, durante a governação Schulz, e relevam-se as preocupações de Spínola quanto às hipóteses, que já eram patentes em informações, de que o PAIGC estava a preparar pilotos na União Soviética; faz-se uma descrição dos meios existentes em termos de artilharia antiaérea e recorda-se a insatisfação deixada na Força Aérea pela Operação Vulcano, se bem que Amílcar Cabral tenha considerado um verdadeiro desastre o que se passou em Cassebeche.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.


Capítulo 4: “A pedra angular”

Como se viu no texto anterior, a Operação Vulcano não resultou como se esperava. Envolveu 20 surtidas de Fiat em 9 ataques, teve 7 pilotos a participar nas missões, quase todos eles tiveram três operações de ataque cada um, no total os Fiat largaram 7,2 mil quilos de bombas, 1,4 mil litros de napalm, 56 foguetes de 2,75 polegadas e vários milhares de munições de espingarda metralhadora, o que representou “um esforço notável ao nível do nosso escasso arsenal”, como observou o Coronel Diogo Neto. A Zona Aérea reivindicou ter neutralizado quatro DShK de 12,7 mm e a destruído uma ZPU de 14,5 mm; foram intercetadas comunicações entre os guerrilheiros, ficou-se a saber que estes tinham tido 19 mortos e 32 feridos. Amílcar Cabral considerou que esta operação fora “o desastre de Cassebeche”. Em contrapartida, dois dos sete Fiat tinham sido atingidos por fogo antiaéreo e um comando transportado em DO-27 fora atingido na asa por fogo de uma de 12,7 mm. As três aeronaves regressaram a Bissalanca, mas a frota de Fiat disponíveis passou para cinco. O General Nico escreveu mais tarde que “a partir daí, em determinados momentos, a presença continuada dos Fiat na zona de ação só poderia ser assegurada com aeronaves isoladas". Se o PAIGC considerara a operação um ‘desastre’ do lado português ninguém ficou satisfeito.

A análise posterior da operação bem como a atividade inimiga que lhe sucedeu, deixavam claro que pelo menos duas armas antiaéreas permaneciam operacionais nas proximidades de Cassebeche e havia outros agrupamentos de defesa antiaérea localizados noutros locais da península do Quitafine. Com efeito, em 9 de março de 1969, apenas dois dias após a Operação Vulcano, quatro posições inimigas perto de Cassebeche dispararam contra uma aeronave portuguesa numa missão noturna e ocorreu um incidente semelhante na semana seguinte. O General Nico concluiu mais tarde: “Tínhamos todas as condições para destruir o sistema aéreo e infligir um duro golpe ao PAIGC; o resultado, se bem que positivo, ficou muito aquém das nossas expetativas.” Os fatores que conduziram a esta insatisfação prendiam-se com o longo atraso de meses após a identificação inicial do alvo, bem como as dificuldades de coordenação e sincronização; mas também a decisão de empregar uma única companhia de paraquedistas para o ataque terrestre, e, não menos importante, houvera uma subestimação das capacidades do PAIGC no seu poder de resposta. Observou o Coronel Diogo Neto: “No futuro, teremos que ter mais cuidado, não podemos ficar entre a espada e parede sem ter uma saída.” Os insurgentes deixaram Cassebeche sabendo que “a aviação continuava a ser o único meio pelo qual os portugueses lhes podiam causar problemas” como observou Luís Cabral.

Ironicamente, as autoridades portuguesas na Guiné também estavam preocupadas com a ameaça de bombardeamento aéreo por parte do inimigo. Um dos desafios mais imediatos postos a Spínola envolvia a vulnerabilidade da Guiné Portuguesa face à infiltração aérea e, potencialmente, a ataques provenientes de países vizinhos. A ameaça era quase tão antiga quanto a guerra em si, quando aviadores da Força Aérea avistaram um jato não identificado no espaço aéreo da região, em 23 de julho de 1963. E havia também relatos oriundos das forças terrestres que informavam ter por ali passado aeronaves misteriosas, sobretudo à noite. Os radares de controlo antiaéreo corroboraram alguns desses relatórios. No começo de 1966, o Comandante-chefe Schulz ordenou a Operação Ver Para Crer, foi marcada para 25 de maio de 1967. Durante esta operação, os Alouette III levaram um pelotão de paraquedistas para a região de Pache, no lado ocidental da Guiné, para investigar relatos de atividade noturna não identificada de helicópteros ao serviço do PAIGC. Avaliações no local levaram o comandante da Zona Aérea a concluir que “um pequeno helicóptero inimigo havia possivelmente pousado em Pache algumas vezes”. Naquela época as autoridades portuguesas não acreditavam que o PAIGC possuísse aeronaves por conta própria. Amílcar Cabral concluíra em 1964 que possuir qualquer tipo de aeronave estava fora dos recursos do partido. Mas as autoridades portuguesas esperavam que isso viesse a alterar-se; uma enorme quantidade de relatórios, a partir de 1969, alegava a formação de pilotos do PAIGC na União Soviética e falava-se em possíveis planos para lhes fornecer aviões MiG, que ficariam baseados na República da Guiné.

O risco de intervenção aérea cresceu também com as forças aéreas dos Estado vizinhos sempre hostis a Portugal. A República da Guiné recebeu 10 MiG-17 no início da década de 1960, estes aviões formaram o núcleo ofensivo da Force Aérienne de Guinée até meados da década de 1980. O Senegal só possuía um pequeno número de helicópteros e aeronaves leves durante a década de 1960, mas eram meios que podiam ser usados para transportar armas e pessoal do PAIGC. Ambas as nações tinham aumentado o apoio moral e material ao PAIGC ao longo da década de 1970, o que preocupava cada vez mais os portugueses visto que o inimigo podia ser reforçado com recursos aéreos de outros países, estes podiam intervir abertamente no conflito. Vários incidentes justificavam tais preocupações. Em 24 de abril de 1968, um par de T-6 portugueses foi “intimidado” por aeronaves não identificadas no corredor de Guileje, a poucos quilómetros com a fronteira da República da Guiné. Um dos pilotos, o Tenente Oliveira Couto, lembrou ter sido surpreendido por dois golpes de asa varrida de jatos que manobravam agressivamente contra os T-6. Os Fiat em Bissalanca estavam inoperacionais, ficou para depois a especulação de que os T-6 tinham tido aviões MiG pela frente, que tinham atravessado inadvertidamente a fronteira.

Apenas um mês antes, em 26 de março de 1968, um Antonov-14 Pchelka, de construção soviética, aterrou por engano em Aldeia Formosa. As autoridades portuguesas fizeram transportar a aeronave para Bissalanca, foram imediatamente libertados os 6 passageiros malianos, mas os dois tripulantes da Força Aérea da Guiné ficaram detidos como forma de garantir trocas de prisioneiros: um piloto da Guiné-Conacri por cinco militares portugueses. O piloto e o mecânico do Antonov foram finalmente libertados cerca de três anos depois, depois de Portugal ter assegurado a libertação dos seus prisioneiros; mas o Antonov ficou a apodrecer na pista de Bissalanca. A ele se juntou um Westland Wessex, marcado como propriedade da Bristow Helicopters, empresa britânica com múltiplas operações na Nigéria. Em 10 de setembro de 1967, este helicóptero civil foi avistado sobre o norte da Guiné por uma tripulação de um C-47, intercetado por aviões Fiat e forçado a pousar na pista de Bula. Horas depois, este helicóptero voou sobre escolta de helicanhão até Bissalanca. O incidente levou a especulações, se não estaria envolvido em operações do PAIGC, sabia-se que a Bristow Helicpoters vendera em 1966 dois aviões ao Gana, um dos apoiantes do PAIGC.

Independentemente do que esteve por detrás destes incidentes, eles reforçaram a perceção do novo Comandante-chefe de que um “ataque surpresa ou mesmo um simples sobrevoo a baixa altitude sobre as nossas tropas” poderia causar “desmoralização e pânico”. O General Spínola temia que “tal ataque, realizado por pilotos insurgentes ou por tripulações estrangeiras, teria consequências verdadeiramente catastróficas.” O novo Comandante-chefe renovou as exigências de melhorar a defesa contra ataques aéreos. A solução mais óbvia era a melhoria da cobertura por artilharia de Bissalanca, bem como em outras instalações críticas. Já em janeiro de 1962 – um ano antes do início formal da luta da guerrilha – o primeiro pelotão de artilharia antiaérea foi instalado em Bissalanca, equipado com um conjunto de canhões de 12,7 mm e canhões Bofors L/60 de 40 mm. Esta escassa força representou a defesa antiaérea até ao fim da década a seguir à retirada dos F-86 em 1964. O pelotão de defesa antiaérea lutou para superar uma enorme escassez de pessoal e armamento obsoleto, mais do que inadequado para responder a qualquer ameaça aérea credível.

Um MiG-17 (Coleção Alexey Tolmachev)
O avião Antonov que aterrou por engano em Aldeia Formosa, em março de 1968, vemo-lo na pista de Bissalanca, onde apodreceu na pista (Coleção Virgílio Teixeira)
Uma quádrupla usada pelo pelotão de artilharia antiaérea em Bissalanca (Arquivo Histórico da Força Aérea)

(continua)
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Notas do editor:

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Último post da série de 6 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)


 





Cartoons da guerra... Do álbum 
Que se passa na frente?!!, com a devida vénia...

1. Mensagem do nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote:

Data - 4 de fevereiro de 2024, 21: 58

Assunto - Recordando o Cid e o humor na Guerra

Augusto Cid nasceu na Horta, em 1941 e morreu em Lisboa em 14 de março de 2019. Publicou os livros.
Dois anos antes de morrer, em entrevista ao Jornal I, Augusto Cid, que foi antigo combatente em Angola, não deixou de desenhar.

“Curiosamente eu fazia a minha guerra – não a guerra que eles queriam que eu fizesse. Cumpria a minha obrigação, julgo eu, mas depois quando chegava ao destacamento rapava dos meus lápis de cores e das minhas aguarelas e fazia um cartoon sobre aquilo. Quando vi que havia umas páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Posso trabalhar com eles’. Curiosamente não era mal pago. Davam-me 150 paus por cartoon, que era dinheiro. E faziam concursos em que o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia do que como furriel”, recordou.

"A guerra é uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento. Tirando isso, é uma belíssima escola”, disse ainda.

Anexo alguns "bonecos" do Cid,  extraídos do livro "Que se Passa na Frente" (com a devida vénia...)

Abraço do V. Briote

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segunda-feira, 4 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25236: Notas de leitura (1672): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Agora há que esperar mais obras de consagração, só se espera o melhor da escrita de Amadu Dafé. A narrativa de A Cidade Que Tudo Devorou é a prova provada que ele tem um domínio absoluto de uma escrita inovadora, tece uma radiografia arrasadora das instituições e dos avatares de um Estado falhado, caldeia com mão segura o poderoso animismo africano (que influi até na vida dos crentes muçulmanos guineenses) as desventuras de um país em roda livre, fala abertamente na escravatura das crianças, na impunidade absoluta dos traficantes de droga nos Bijagós, no envolvimento dos políticos e militares em negócios fraudulentos, com ajustes de contas sanguinários. Não há no seu discurso um milímetro de nostalgia da vida colonial, há é a lembrança das cadeias de solidariedade, de uma cidade limpa onde era agradável passear, e que se tornou numa quase montureira, com o património a despedaçar-se, uma economia assente na depredação florestal (com os ávidos chineses por trás, sempre rapaces) e no caju, como se fosse possível a nação progredir com a ajuda humanitária, o neocolonialismo chinês e o caju que vai para a Índia. Amadu Dafé não só escreve livro notável, deixa para quem quiser estar atento, um libelo arrepiante, referencial para o futuro próximo e longínquo.

Um abraço do
Mário



Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (2)

Mário Beja Santos

Continuamos a falar do romance "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadu Dafé, Nimba Edições, 2022. O autor lavra esta sua tragédia com inovação na escrita, este é português com terminologia guineense, o belo crioulo há séculos inventado e sempre mutante; tragédia porque houve traição, não se cumpriram os sonhos de Cabral, houve classes políticas gananciosas, inescrupulosas, ressalvadas as distâncias montaram oligarquias junto do círculo íntimo tanto do Partido Único como dos quadros partidários subsequentes; daí os desfechos da autoestrada da droga, do património escalavrado, dos assassinatos, dos golpes; mas mesmo dentro destes lugares devorados há paixões e esperança e os irans são grandes senhores dentro destas portentosas florestas tropicais, veja-se uma descrição magistral do autor falando deste habitat onde pontificam os poilões:
“Os seus perfumes atraem mais insetos e, por isso, os pássaros colhem boas recompensas. As suas folhas são deliciosas e as girafas são beneficiadas. Os seus galhos são robustos e os macacos conseguem dormir num conforto deslumbrante. Os esquilos fazem bons tálamos no interior dos seus troncos; os ratos, manguços, iguanas, suricatas fazem lindas tocas nas fissuras abertas pelas suas raízes (…) Os poilões, aos pares, amam-se, porque não sabem ser de outra maneira e porque dão corpo ao espírito dos irans.”

Lê-se este estupendo romance como se vê um retábulo, a peça central, a placa giratória, é Bissau a que tudo falta, tecem-se, por meios colaterais, narrativas de perdas e achados, a aparição de grandes amores, logo transtornados, conversações que só um animismo milenário permite, daí o papel dos balobeiros, de certos fantasmas, descobrimos que um dos heróis do romance, além de carteirista e marinheiro, está destinado a estranhas missões, uma delas vai correr mal e vai custar a vida a N’Sunha Badjuda, tudo ocorre numa cilada, tudo vai correr mal a este nosso herói, vai parar à prisão, há um espírito que o liberta, por indicações recebidas vai parar a um balobeiro, uma figura de indumentária extravagante fará uma apreciação da Guiné colonial e da sua transição para a independência, são evocados os antigos combatentes.

Mais adiante, o nosso herói recebe instruções para ir ao aeroporto buscar alguém, e o autor faz-nos um comentário do caos que se vive no aeroporto quando chega o avião de Lisboa, pela madrugada:
“A razão por que muita gente ia ao aeroporto, a cada vez que chegava um avião, receber encomendas, deve-se à ausência dos serviços essenciais. Esta era a única forma das nossas diásporas manterem o contacto com a terra, ajudando os pobres familiares que ficaram para trás. O cais do porto de pindjiquiti andava sombreado por uma maré trivial, porque nada chegava pelos navios, ao contrário do afluído aeroporto. Nem mesmo as prostitutas das feiras de caracol eram concorridas como o nosso aeroporto.”

E aquela menina vinda de Lisboa, de nome Sónya, aceita o transporte, fala-se de Bissau e dos irans de tchon-de-papel, da estátua de Cabral, que não deve andar descansado pela traição dos seus camaradas da luta de libertação nacional, o nosso herói cumpre as instruções do Almirante, dirige-se à embaixada de Cuba, temos agora uma história de aventura e ação, mete embaixador e colaboradores, Cabral e Che Guevara são invocados e nisto seis homens armados, fardados e encapuçados, invadiram a sala e dispararam indiscriminadamente , cabe a Sónya o discurso na primeira pessoa do singular, se há pessoa que não sabe o que se está a passar é ela, quem vem quer saber do produto, traz-se uma mala que o herói recebeu do Almirante, o que lá está é pura deceção, há tiroteio, o embaixador morre, quem aparece é António Tabaco, por acaso é conhecer de toda a história do nosso herói e desta Sónya, Tabaco é um intermediário da droga, o nosso herói é espancado, aquele produto é um mistério, acontece que o livro que Sónya escrevera tem algo de premonitório, nisto entra um ministro em cena, novo tiroteio, o Almirante caiu de joelhos, é mortalmente esfaqueado, mas o ministro também não escapou.

Há intenso realismo mágico em toda esta narrativa a que Amadu Dafé em subtítulo diz ser “Uma história confusa, caótica, nunca é escatológica, porquanto do caos nasce a ordem, a amoralidade da natureza.” Regressam à cena pais falecidos, há quem esteja interessado em devolver o sonho de felicidade às crianças, como justifica Sónya:
“Libertá-las dessa maldição que é a escravatura, a miséria e claro, as drogas. A estratégia para completar o puzzle passa por escrever e publicar sobre aquele fenómeno do desaparecimento de crianças nas ilhas e todo o mal que as drogas têm causado ao país. É esta a visão que tenho do momento, e embora o meu gato não tenha aparecido como de costume, acredito que as coisas tenham mudado de ângulo para nos permitir enxergar melhor.”

Andam os dois caminhando por Bissalanka, Sprança lembra-se do manuscrito que está guardado na sua caverna, quando lá chegam tudo tinha ardido naquele edifício que era um quartel antigo que tinha sido reabilitado com o fito de travar uma batalha secreta contra o mal das drogas e a escravatura. Sónya e Sprança mostram-se dispostos a cooperar para devolver o sonho de Cabral ao país. Caminham pela margem até ao estuário de Bissalanka, Sprança anuncia que o pai de Sónya mora ali, entrámos no universo da fantasmagoria, por processo antropomórfico aquele pai é agora um gato cinzento. “Enrosca-se em mim, como uma chapa de zinco ondulada nas coberturas das casas da capital. Levanta a cabeça e olha de mansinho para mim. A sua cara expressa alguma aflição e eu prontifico-me para uma operação de salvamento, levando-o ao colo.”

A Cidade Que Tudo Devorou é uma obra inesquecível do que há de melhor da literatura luso-guineense, aliás Amadu Dafé teve o cuidado de nos dar um glossário que facilita a compreensão de inúmeros termos. Amílcar Cabral temia Bissau depois da independência, era também a premonição de que os vencedores pretendiam o melhor da vida civilizada, apoderaram-se das casas do pessoal colonial, usaram as ajudas para terem bons carros, Bissau cresceu desmesuradamente com quem vinha à procura do Paraíso, de deceção em deceção, inventaram-se inimigos internos, fuzilaram-se antigos militares que apoiaram os portugueses, houve empreendimentos megalómanos e a latente tensão entre cabo-verdianos e guineenses cresceu violentamente, deu-se a rotura, a economia falhava, vieram novos auxílios e criou-se uma oligarquia com peso agrário. À falta de recursos, abriu-se a porta à droga, comprovadamente Bissau tornou-se na cidade que tudo devorou, como magistralmente Amadu Dafé, já se apresentara como uma promessa da grande escrita, nos apresenta em obra que irá dar muito que falar.

Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
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Notas do editor:

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Último post da série de 1 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Queridos amigos, não é a primeira vez que se refere no blogue a Operação Vulcano, escritores oriundos da Força Aérea a ela fizeram referência, temos aqui o relato pormenorizado das atividades desenvolvidas a partir de 6 de março de 1969, dentro desta saga de atividades que visavam destruir os sistemas antiaéreos do PAIGC no Quitafine. Aqui se conta o que aconteceu, os autores não escondem que havia poucas informações concretas sobre o dispositivo militar do PAIGC na Península do Quitafine, ora as antiaéreas tinham proliferado, Spínola, contrariando o desenho da operação feito pelo Coronel Diogo Neto reduziu a metade o contingente de paraquedistas, e depois veio a surpresa, o PAIGC defendeu-se fortemente, imobilizou a força paraquedista, danificou dois aviões. Houve que abortar a Operação Vulcano, pelo adiante teremos notícias de como continuou, aprendida que fora a experiência amarga.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 4: “A pedra angular”


Os autores estão a analisar as alterações introduzidas pelo novo Comandante-chefe, António de Spínola, no tocante às atividades da Força Aérea. Reconhecia-se que era prioritário fazer calar o sistema antiaéreo do PAIGC, com prioridade para o existente na área de Cassebeche.

À semelhança de operações anteriores, envolvendo paraquedistas, desenhou-se uma operação envolvendo um bombardeamento aéreo inicial, a que se seguia um ataque helitransportado. O ataque inicial foi cometido aos Fiat, procurava-se suprimir as posições antiaéreas conhecidas ou suspeitas. O comandante da Zona Aérea e da Base Aérea 12, Coronel Manuel Diogo Neto, recordou: “Era opinião de alguns pilotos experientes que se fosse possível destruir a ZPU, imediatamente a defesa do PAIGC no local entraria em colapso, o que facilitaria a ação dos paraquedistas.” O projeto deste plano previa duas companhias de paraquedistas helitransportadas que seriam postas no solo a Norte e a Sul da área-alvo. A sua missão era de destruir os posicionamentos do PAIGC, apoiados por um posto de comando DO-27, dois helicanhões, quatro T-6 e os Fiat reabastecidos e rearmados. Estes meios, T-6 e PCV, ficariam temporariamente baseados em Catió, a 45 quilómetros da zona de ação. Todos os Fiat atribuídos à Zona Aérea, 10 dos 11 Alouette III, e a maioria dos transportes de asa fixa, foram comprometidos para esta operação, bem como a generalidade dos pilotos. Na Operação Vulcano participariam mais de 25 aeronaves e 240 paraquedistas, era o maior esforço combinado de ataque de assalto e aéreo até então feito.

No entanto, o planeamento da Operação Vulcano acabou por ser prejudicado por questões que vieram a complicar a execução e o seu resultado. Havia falta de informações no Comando-Chefe quanto à disposição das forças do PAIGC no Quitafine. A informação disponível era vaga e esporádica, aludindo à presença de diferentes grupos de guerrilha “fortemente armados” na Península. Mesmo assim, Spínola reduziu inexplicavelmente para metade o número de grupos de paraquedistas, considerando que uma só companhia era suficiente, e “nada o convenceu da necessidade de empregar as duas companhias”, recordou Diogo Neto. Mas o pior para a Força Aérea era que os canhões antiaéreos se tinham multiplicado “como cogumelos” nas semanas posteriores à sua identificação.

Agendou-se a Operação Vulcano para 7 de março de 1969, não havia ilusões de que as forças portuguesas se iriam defrontar com forte oposição dos grupos de guerrilha. No dia anterior, 6 de março, 60 paraquedistas voaram em C-47 de Bissalanca para Catió, onde já estavam quatro T-6 que iriam apoiar a operação no dia seguinte. No início de 7 de março, numa sucessão de voos em quatro DO-27, chegaram 40 paraquedistas para a segunda onda de assalto de helicóptero. A primeira onda, composta por 40 paraquedistas, deveria vir diretamente de Bissalanca para o objetivo em 8 Alouette III, logo a seguir ao bombardeamento aéreo inicial. Depois de entregar a primeira onda, os mesmos 8 helicópteros Alouette III deveriam voar para Cabedú e regressar à zona de ação transportando a segunda leva de paraquedistas. A missão de ambas as formações deveriam avançar sobre Cassebeche, completando a destruição dos meios antiaéreos do PAIGC, eliminando quaisquer outras posições da guerrilha, ou outras armas existentes.

A Operação Vulcano começou às 7 horas do dia 7 de março, partiu um DO-27 encarregado de realizar o reconhecimento visual da área-alvo. Após o relatório do piloto sobre as condições atmosféricas, dez Alouette III, incluindo dois helicanhões, descolaram de Bissalanca com 40 paraquedistas. O seu sucesso dependia da capacidade do primeiro ataque suprimir a ameaça da defesa aérea para que as armas antiaéreas do PAIGC não atacassem violentamente os helicópteros. Essa tarefa coube aos 7 Fiat disponíveis, três dos quais descolaram de Bissalanca armados com bombas. Estes três subiram a 8 mil pés para um voo de 8 minutos até Cassebeche, a 120 quilómetros de distância. Contornaram a fronteira com a República da Guiné para atacar do lado do Sol, mas os Fiat encontraram imediatamente fogo das armas defensivas do PAIGC de, pelo menos, 7 posições antiaéreas ativas, compostas por 6 armas antiaéreas DShK de 12,7 mm e um ZPU-4 de 14,5 mm de cano quádruplo. Os pilotos concentraram-se na ZPU e lançaram 12 bombas de 50 kg e 6 bombas de 200 kg contra a posição, com o comandante do Grupo Operacional 1201, Capitão Fernando de Jesus Vasquez a reportar em direto o acontecimento.

Uma das posições DShK foi destruída, a parte mais difícil parecia estar feita. Como nenhuma outra atividade antiaérea fora detetada imediatamente após os ataques iniciais, o comandante da Zona Aérea concluiu erradamente que todas as atividades de defesa do PAIGC estavam suprimidas, e transmitiu essa avaliação ao PCV. Dois minutos depois, os Fiat completaram o ataque, os paraquedistas iniciaram a sua missão, protegidos por um DO armado com um foguete e dois helicanhões. Os primeiros paraquedistas pisaram o solo pelas 9h da manhã e iniciaram a sua marcha em direção às posições do PAIGC, a pouco mais de 1 km de distância. Pelas 9h16, deu-se o segundo ataque, um par de Fiat carregado de bombas como os três Alouette III anteriores começaram a atacar o ninho de defesa aérea em Cassebeche, identificando uma sétima posição antiaérea. Quatro minutos depois, a segunda leva de paraquedistas pisou solo e partiu em direção à área do objetivo, foi recebida pelos disparos de armas ligeiras. Pelas 9h27, uma terceira formação constituída por dois Fiat atingiu os lugares de defesa antiaérea à volta de Cassebeche, silenciando uma segunda DShK. Por esta altura, os paraquedistas estavam a ser atingidos por RPG e espingardas metralhadoras; o DO-27, onde funcionava o PCV, informou que havia três posições antiaéreas ativas, uma das quais atingiu a DO numa asa. Estava visto que o PAIGC recuperara do choque dos ataques iniciais, o que deixou Diogo Neto “apreensivo”.

A não eliminação de toda a capacidade aérea do PAIGC impediu que os T-6 e os helicanhões apoiassem os paraquedistas, pelo receio de que devido à sua baixa velocidade acabassem por ser inutilmente massacrados. Até os Fiat estavam em risco, na sua quarta missão dessa manhã, foram recebidos com o fogo das armas de 12,7 mm, o que danificou um dos aviões. Nessas condições, não era possível alcançar os objetivos definidos, uma vez que tudo pressupunha um avanço sem resistência significativa. O General Nico recordou mais tarde que havia uma preocupação crescente que as forças portuguesas ficassem encurraladas numa posição que estava rapidamente em deterioração. A reserva de 25 paraquedistas ficou comprometida, dado que a operação terrestre estava paralisada, enquanto três Fiat chegaram ao local para um quinto ataque contra as posições antiaéreas, trazendo desta vez foguetes e metralhadoras, mas pelo menos dois dos locais das armas do PAIGC permaneciam ativos. Os paraquedistas envolvidos foram atingidos por um intenso fogo inimigo quando estavam a 500 metros do seu objetivo. Foi chamado um outro par de Fiat com o fim de suprimir as defesas do PAIGC e liquidar a persistente ameaça antiaérea, mas um segundo avião a jato foi atingido e danificado pelo fogo de uma antiaérea de 12,7 mm, teve de regressar a Bissalanca e fazer uma aterragem de emergência.

Recordou Diogo Neto que estavam reduzidos a 5 Fiat, havia que considerar a probabilidade de novas perdas, mas também percebeu logo que sem apoio aéreo a recuperação das forças terrestres ficava seriamente comprometida. Pelas 13h30, as três colunas de paraquedistas tinham-se reunido após um sétimo ataque de Fiat contra as antiaéreas, estavam agora a ser flageladas pelo fogo do PAIGC. Pouco depois, apareceram outros três Fiat e lançaram napalm sobre a posição DShK. O ataque falhou, pelo menos três antiaéreas mantinham-se ativas enquanto os paraquedistas continuavam a ser sujeitos a um pesado fogo. Com a ameaça daquele sistema antiaéreo não suprimido, com o elemento terrestre imobilizado e dois Fiats fora da operação, Diogo Neto ordenou prudentemente a retirada de todos os elementos da Zona Aérea, incluindo os paraquedistas, e assim ficou abortada a operação.

Vista aérea de Gadamael na Península do Quitafine. A aldeia e destacamento estavam perto do ataque dos Fiat contra as ZPU do PAIGC, isto em janeiro de 1969 (Arquivo da Defesa Nacional)
Durante a Operação Vulcano (março de 1969), empregaram-se todos os Fiat contra as posições antiaéreas do PAIGC no Sul da Guiné (Coleção José Nico)
Quadro descritivo da Operação Vulcano (Matthew M. Hurley)
Coronel Diogo Neto, comandante da Zona Aérea durante a Operação Vulcano (Arquivo da Defesa Nacional)
Capitão Alberto Cruz, um dos pilotos dos Fiat que participaram na Operação Vulcano (Coleção Alberto Cruz)

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 23 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Se um grande romance é uma história bem contada, Amadú Dafé recebe a cotação máxima com esta "A Cidade Que Tudo Devorou", vamos embrenhar-nos na cidade de Bissau, palco de assassinatos, guerra civil, roubalheiros de toda a ordem, ninho de paixões, corredor da droga, cenário de mística, mundo dos balobeiros, conversas entre mortos e vivos; uma Bissau desmazelada, onde impera o caos, um povo surpreendentemente resignado com décadas de desgovernação; e uma arquitetura literária de primeiríssima água, os sonhos de Amílcar Cabral não se cumpriram mas os guineenses roubaram-nos muito bem a língua, este belíssimo romance é a prova provada de que a língua se renova, se universaliza na identidade que lhe é dada pelo escritor em nome da fala comum dos povos que são a matéria prima da sua escrita. É com muito orgulho que vejo alcandorado Amadu Dafé ao lado de Abdulai Sila, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Ondjaki, João Paulo Borges Coelho, entre outros. Que nos surpreenda mais com outras gemas literárias, são os meus sinceros votos.

Um abraço do
Mário



Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (1)

Mário Beja Santos

Já conhecia um livro belíssimo de Amadú Dafé, Ussu de Bissau, uma denúncia corajosa do desvio de crianças guineenses para o tráfico sexual e escravatura, só lamento que esta joia quase seja mantida no anonimato, possui uma tessitura muito própria, uma construção subtil que confirma que não há esmalte literário se a história não é bem contada e não a retivermos como valor no edifício dos nossos princípios.

A obra que acaba de dar à estampa coloca-o ao nível dos primeiros nomes da literatura da Guiné a alcandora-o a expoente entre as figuras principais da literatura lusófona. Ele pega numa frase do investigador António Duarte Silva para construir a radiografia da Guiné atual, centra-se em Bissau, A Cidade Que Tudo Devorou, Nimba Edições, 2022. A urdidura das peripécias que ele vai narrar investem no realismo mágico, há para ali uma língua portuguesa que é desossada, recebe injeções de crioulo, desce ao terreno da laterite, mete golpismo, assassinatos, delinquência, gente que conversa com fantasmas, paixões desmesuradas, desmonta-se o machismo, aquele maldito mercado da droga, ali se fala sem cessar das crianças misteriosamente desaparecidas do arquipélago dos Bijagós. São narrativas que se entrepõem, há falas para irmos até ao abismo das mentes e perceber o que move N’Sunha Sprança, Sonya, Lante Ndam Kdutar, Tabaco, Almirante, Kanserá Só, todos a contracenar num palco dramático, porque este primor literário não é só uma radiografia, é o espelho de uma tragédia, onde se fala permanentemente do caos em que vive uma nação mas onde os jovens ainda têm uma réstia de esperança.


É literatura da modernidade, as mulheres são mostradas fora da submissão, mas não se deixa de mostrar a moral vigente:
“Estava feliz. Não teria mais de suportar aquele ardente desejo de ser casada, aquela pressão social de ter de encontrar um homem bom, pressão esta que lhe fez espécie desde que se formou badjuda. Era ela e eram todas as outras mulheres da terra. Mesmo aquelas que tinham, pela alcunha, uma premonição menos favorável, ansiavam pelo aparecimento de um homem para casamento. A sorte da mulher é na porta do casamento, dizia-se. Um dos mais fortes sinais de machismo e misoginia enraizados nesta sociedade, é este castramento de sonhos e construção de dependências. As mulheres só podem sonhar com casamento; são frágeis e sensíveis e por isso precisam de alguém que cuidasse delas. Já os homens podem sonhar alto, almejar riquezas, lutar pelo poder e desposar mulheres, várias. Podem juntá-las na mesma casa, como peças de mobiliário, e podem consigná-las a casa um, casa dois, casa três, ou a vários lares a seu bel-prazer, sem lhes atribuir a propriedade da própria felicidade. Conseguem-no em nome da mentira e a custo de uma manipulação desenfreada. A troco das dependências e fragilidades a que elas se sujeitam.”
A conversa entre mãe e filho é palpitante, o pai morrera de forma tão dramática, vivia tão arredio da paixão da mãe que esta guardou no espírito a imagem de um homem que já não lhe pertencia.

E entra em cena N’sunha, e em simultâneo com a paixão de jovens fala-se do morto, Lante Ndam Kdutar, há pouco tempo houvera uma guerra civil em Bissau, vamos saber o que aconteceu: “Ficou claro, mais tarde, para os que se juntaram aos dois oponentes nesta barbarice, de que tinham arriscado a vida em vão. Mataram civis inocentes, pilharam armazéns e desgraçaram o país, deixando-o refém nas mãos dos políticos mal preparados, por causa de um cisme absurdo. Foi vendida a todos a ideia de uma divergência sobre a venda de armas aos insurretos do país vizinho, porém, por maior que seja a montanha, jamais envergará o Sol.” Lante apresentou-se no quartel de Mansoa, assistiu à crueldade de uma chacina dementada: “Quando as tropas da junta militar invadiram aquele quartel, não fizeram reféns nem presos de guerra. Os corpos mortos dos chamados aguentas, crianças e jovens guineenses que lutaram ao lado dos militares estrangeiros, vindos do Senegal e da Guiné-Conacri, para a junta governamental, foram largados nas ruas para os jagudis, os cães, gatos e corvos se alimentarem. A cidade tresandava a sangue podre e a almas desabrigadas.” É nesta altura que Lante vai conhecer uma rapariga de seu nome Sán’nan. Gozando de uma vida familiar às direitas, é nessa altura envolvido numa operação golpista, o móbil é o assassinato do presidente da República, por portas e travessas o presidente escapa e é levado para uma tabanca, cena hilariante, da mais refinada tragicomédia, os papagaios vão botando palavrões, o presidente disserta sobre a classe política, nunca diz explicitamente de que etnia fala, mas tece um comentário cheio de vitríolo: “Esta gente, por natureza, vive pelo poder. Embora durante a nossa luta de libertação se tenham mantido esquivos, porque eram os grandes aliados dos colonizadores, disfarçando-se sempre de comerciantes desinteressados, sempre tiveram o poder em mira. São uma espécie de camaleões venenosos e conseguem disfarçar com uma perícia do caralho… Até a sua religião, que é de uma particularidade diferente da das crenças nacionais, fá-los passar despercebidos.”

E, mais adiante: ”Depois da nossa independência e ao verem-se perseguidos pelo partido que os considerou traidores, por terem sido aliados dos colonizadores, enveredaram-se pela estratégia de espionagem, disseminação de intrigas e conspirações nas fileiras das nossas forças armadas e nas nossas estruturas políticas, em busca da recuperação dos privilégios perdidos ao longo das últimas décadas (…) Nunca aceitaram Cabral como um herói. Ainda hoje veneram os seus líderes que há séculos fizeram aquelas incursões de ocupação desta região e acabaram por transformar toda a zona num lugar de confusões, conspirações e instabilidades, a partir das quais dominaram os planaltos à volta dos rios, essenciais para a pastorícia e o comércio. A verdade, porém, é que foram sempre uma minoria nesta zona, mas com a estratégia de dividir para reinar, tomaram conta de tudo e de todos.” O presidente deposto acaba baleado.


Mudamos agora de campo de ação. Alguém, inominado, está a ordenar papéis, veio até à Guiné numa missão tão mística quanto divina, veio para impedir uma guerra civil iminente, leva uma existência entre o pretérito, o presente e o futuro, é assumidamente a filha de um fantasma e conta-nos onde começou este sonho messiânico, como chegou à Guiné-Bissau, vamos agora navegar entre feitiçaria, doenças do foro da saúde mental, há espaço para as almas do outro mundo e conversação com os mortos, esse alguém veio seguramente de Portugal. E parece que estamos a mudar de cenário, vamos conhecer o balobeiro de Bissilanka, voltamos a ouvir falar em Sán’nan e apresenta-se Sprança: “Cresci como Sprança, sem o é, porque o é, transfigurado de raiva, também da minha parte, expulsou esse alguém, afastando-o dali, fisicamente.” Sprança conheceu N’Sunha Badjuda junto ao pátio da escola de djembrem (barraca), ao lado da casa do General Anónimo, ela acaba por ter por ele embeiçamento, há sempre fantasmagoria, chegou a hora de mostrar a importância dos irans, cabe a N’Sunha a narrativa: “Dizia que ao crescerem juntos, os poilões, habitat natural dos irans, passam os dias a competir, cada um a querer ser o melhor, a tentar captar mais a atenção do resto da floresta e ver-se mais cortejado pelos animais. Entregam-se ao som do vento para verem quem dança melhor. Atiram-se de cabeça desgrenhada às trovoadas, à prova de oposição contra os raios piromaníacos e contra as tempestades devastadoras. Enquanto uns penetram o solo até ao manto, outros engrossam as suas raízes para a superfície. Se uns alargam os ramos para abraçar toda a floresta, outros aumentam o verdume das suas folhas para cromatizar todo o ambiente.”

Aqui se interrompe a recensão, segue no próximo número, adverte-se o leitor que estamos perante um caso muito sério do que melhor existe na literatura luso-guineense.

Leitura imperdível.

(continua)

Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
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Nota do editor

Último post da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)